DESPEDIMENTO ILÍCITO
LEI APLICÁVEL
LEI ESTRANGEIRA
Sumário

I – Quer à face da Convenção de Roma (artigo 3.º), quer à face do Código do Trabalho de 2003 (artigo 6.º, n.º 1), o primeiro critério para a determinação da lei aplicável é o critério da vontade das partes: se as partes escolheram determinada lei a aplicar na resolução dos litígios emergentes do contrato de trabalho é essa lei que deverá será aplicada.
II – A escolha da lei pelas partes deve ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa.
III – O segundo critério, ou regra supletiva, que actua na falta de escolha da lei pelas partes, é o critério da conexão mais estreita (cfr. os artigos 6.ºs, n.ºs 2, quer da Convenção de Roma, quer do Código do Trabalho), aferida pelo local habitual da prestação do trabalho e pela localização do estabelecimento onde o trabalhador foi contratado, se o trabalhador não trabalhar habitualmente noutro Estado, ou por outras circunstâncias aplicáveis à situação.
IV - Tal como dispõe o art. 6.°, n.° 1, da Convenção de Roma, não é válida a escolha de uma lei aplicável se a opção feita pelas partes vier a afastar normas imperativas do ordenamento jurídico determinado pelas regras de conflitos, que têm em vista tutelar o trabalhador.
V – Tendo as partes acordado que à relação contratual se aplicava a lei francesa, e prevendo esta legislação que no caso de despedimento tem de se verificar uma “cause réelle et sérieuse”, e o procedimento disciplinar deve obediência ao principio do contraditório, da defesa e da fundamentação da decisão, inexistem razões para aplicar a lei portuguesa, já que não está em causa o principio constitucional da segurança no emprego, consagrado no artigo 53º da CRP.

Texto Integral

ACÓRDÃO
PROCESSO Nº 525/09.2TTPRT.P1
RG 366

RELATOR: ANTÓNIO JOSÉ ASCENSÃO RAMOS
1º ADJUNTO: DES. EDUARDO PETERSEN SILVA
2º ADJUNTO: DES. PAULA MARIA ROBERTO

PARTES:
RECORRENTE: B…
RECORRIDA: C…, S.A.

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Acordam os Juízes que compõem a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
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I – RELATÓRIO
1.
B…, solteira, residente na Rua …, fracção AX, n.º .., ..º esquerdo, Esposende, intentou a presente acção declarativa, emergente de contrato de trabalho e sob a forma de processo comum, contra C…, S.A., pessoa colectiva de direito francês com sede em …, ….. Estrasburgo, França, pedindo que seja declarada a ilicitude do seu despedimento efectuado pela ré, e que em consequência a ré seja, em suma, condenada:
a) A pagar à autora as retribuições desde 30 dias antes da proposição da presente acção, e até à data do trânsito em julgado da decisão final;
b) A pagar à autora a indemnização devida pelo despedimento ilícito, pelo qual opta em substituição da reintegração, no valor de € 16.979,38;
c) A pagar à autora o valor devido desde a data da suspensão do contrato de trabalho até ao despedimento, que se cifra em € 608,85;
d) Em quantia a definir equitativamente pelo Tribunal – mas não inferior a € 3.000,00 -, devida a título de compensação pelos danos não patrimoniais causados;
e) A pagar à autora, a título de crédito de horas trabalhadas em excesso, € 6.763,35;
f) Nos juros de mora correspondentes a cada uma das parcelas, contados desde a data de vencimento de cada uma, até efectivo e integral pagamento;
g) Nos valores respeitantes às contribuições para a segurança social portuguesa, cuja liquidação deverá ser relegada para execução de sentença.
Para tanto, e em síntese, a autora alegou factos para caracterização da relação laboral que a ligou à demandada, dizendo que foi admitida por esta em 17/3/2003, com a retribuição mensal de € 1.105,26 – que à data da cessação do contrato de trabalho era já de € 1.465,84 - e para exercer as funções inerentes à categoria profissional de «hotesse de cabines», actividade essa que exerceu, ininterruptamente, nos navios da ré sempre fundeados em águas fluviais portuguesas.
A autora foi contratada a tempo inteiro, mas afecta a períodos alternados, sendo um dos períodos composto de 7 meses, entre Abril e Outubro, durante o qual a autora prestaria 46 horas de trabalho semanal, e no outro período, entre Novembro e Março, a autora prestaria o restante tempo de trabalho para, em média, não ultrapassar o período normal de trabalho definido nas 35 horas semanais.
Quando a autora trabalhasse, em cada semana, mais do que as 35 horas devidas, era concedido pela ré uma majoração do seu período de férias.
Sucede que, na sequência de “um pequeno mal-entendido” entre a autora e uma outra trabalhadora da ré, no dia 26/9/2008, a autora veio a ser convocada, por documento escrito, para uma reunião a acontecer no dia 6/10/2008 e cujo escopo, como constava dessa carta, visava a tomada de uma deliberação acerca da sanção disciplinar a aplicar à autora, que inclusivamente poderia consistir no seu despedimento, admitindo aí a ré que a autora se fizesse acompanhar em tal reunião de pessoa à sua escolha que pertencesse ao quadro de pessoal daquela, mas sendo certo que não permitiu que a autora se fizesse acompanhar de advogado. Na dita reunião, a que compareceram a autora, o Comandante do navio (D…) e a responsável do Navio (E…), o comandante do navio comunicou a autora que o que esta havia feito era muito grave e que tinha perdido toda a confiança que depositava nela, dizendo-lhe ainda que já não a queria mais a trabalhar para a ré, na sequência do que, indignada, a autora disse que não podia aceitar que a mandassem assim embora e posto o que lhe foi então entregue uma comunicação a comunicar a imediata suspensão da autora. A 14 de Outubro de 2008, a autora recebeu uma carta que lhe foi endereçada pela ré, na qual esta lhe comunicava o seu despedimento.
Com o despedimento, a autora viu-se privada de qualquer apoio da segurança social portuguesa tendo em conta que os descontos foram efectuados pela ré em França, e a segurança social francesa não comparticipa em nada para com a autora uma vez que a mesma não tem, nem teve enquanto para a ré trabalhou, qualquer domicílio em território gaulês.
Por via do despedimento de que foi alvo, a autora viu seriamente comprometidos os compromissos bancários com a aquisição de habitação própria, pois viu-se privada da sua única fonte de rendimentos e não conseguindo obter novo trabalho, tendo a autora perdido o ânimo que tinha, sentindo-se triste, deprimida, sem confiança, e chorando com frequência.
À data da cessação do contrato de trabalho, e somando as férias adquiridas em cada mês do decurso do contrato de trabalho com o número de dias a recuperar por via de prestar mais do que 35 horas semanais, a autora tinha direito a 100,02 dias a título de férias.
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2.
Após a realização da Audiência de Partes, sem qual êxito conciliador, a Ré apresentou contestação, defendendo-se por excepção, arguindo a nulidade da citação - questão que, conforme despacho de fls 170 e ss foi desatendida, considerando-se válida e regular a citação da ré.
Seguidamente, e ainda defendendo-se por excepção, a ré deduz a excepção da incompetência internacional argumentando em favor desta tese, e em suma, que o Tribunal internacionalmente competente para julgar a presente causa seria sempre um Tribunal de Direito francês: as partes aceitaram subordinar o contrato de trabalho à legislação social francesa, contrato de trabalho que foi celebrado em Estrasburgo, como acordaram que a autora passasse a ficar inscrita no regime de segurança social francesa, para a qual foram efectuados os respectivos descontos contributivos, sendo a língua francesa, conhecida e falada pela autora, utilizada na celebração do contrato de trabalho e utilizada pela autora durante a vigência do contrato com colegas de trabalho e superiores hierárquicos, prestando a autora o seu trabalho em embarcações de origem e matrícula francesa, propriedade da ré, que é uma sociedade anónima de direito francês, matriculada em França.
Sempre, a resolução das questões referentes ao contrato de trabalho em mérito deverá basear-se na lei laboral francesa.
Não obstante, e defendendo-se uma vez mais por excepção, a ré invoca a prescrição dos créditos reclamados pela autora porquanto, e em síntese, extinguindo-se os créditos emergentes de contrato de trabalho, por efeito da prescrição, no prazo de um ano, e tendo o contrato de trabalho cessado em 14/10/2008, como a própria autora alega, e a citação da ré (a considerar-se válida) ocorrido apenas em 16/11/2009, à data da citação – acto que, nos termos do art. 323.º do CC interrompe a prescrição - já havia decorrido integralmente o referido prazo de prescrição, e sendo que a citação apenas não ocorreu dentro do prazo de um ano por culpa imputável à autora.
De todo o modo, não é verdade a versão que a autora traz aos autos no que concerne ao alegado despedimento – a ré impugna também alguma outra matéria de facto alegada pela autora, como seja quanto à ré ter uma representação em território português, o contrato de trabalho ter sido celebrado em Vila Nova de Gaia, ter a autora exercido as suas funções sempre em navios fundeados em águas portuguesas, auferir a autora à invocada data do despedimento a retribuição no montante que alega.
A autora tinha dois antecedentes disciplinares, um deles ocorrido em 16.04.2003 e que determinou uma carta de repreensão.
A autora violou – com o comportamento que teve em 26/9/2008, ao colocar numa garrafa de água mineral vazia um líquido de natureza química, à base de detergente e com efeitos abrasivos, que guardou junto de outras garrafas de água destinadas ao consumo, e vindo a animadora da embarcação a ingerir, ainda nesse dia, e ainda que só parcialmente, um copo desse líquido colocado no interior da garrafa, o que lhe provocou queimaduras graves ao nível da boca e lábios - de forma manifesta os deveres que lhe estavam adstritos por via do contrato de trabalho que a ligava à ré.
No decurso da reunião ocorrida em 6/10/2008 a autora penitenciou-se pelo sucedido e, perante a comunicação por parte dos seus superiores hierárquicos da instauração de um procedimento disciplinar com vista ao seu despedimento, afirmou estar a empresa dispensada de o fazer, já que ela iria sair pelos próprios meios, declarando nessa data que não mais iria comparecer ao trabalho e que a ré lhe fizesse as contas.
Para surpresa da ré, dois dias depois a autora deu “o dito por não dito”, e anunciou perante colegas de trabalho que iria accionar a empresa para ser indemnizada.
Daí que a ré não viu outra alternativa senão a de dirigir a missiva de 08.10.2008 à autora, pela qual lhe dava conhecimento da acusação contra ela formulada e da sanção disciplinar, no caso de despedimento, que previsivelmente seria de aplicar.
A autora não mais compareceu ao trabalho nem nada mais disse, senão através da instauração da presente acção.
Donde, e ao contrário do que alega a autora, a ré não a despediu, apenas a confrontou com a grave infracção por si praticada.
Alega que todos os créditos que assistiam à autora, e nomeadamente os respeitantes à majoração do período de férias, foram pagos.
Ainda em resumo, e finalmente, alega a ré que a situação contributiva da autora, à qual ela anuiu, é mais favorável do que a actualmente em vigor em território nacional, possibilitando à autora um maior benefício ao nível de uma futura reforma, sendo que os danos não patrimoniais invocados pela autora não têm qualquer nexo de causalidade com a situação identificada na petição inicial, e, aliás, logo após o mês de Outubro de 2008 a autora iniciou funções para outra empresa, auferindo daí rendimentos.
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3.
Respondeu a Autora pugnando pela validade da citação da ré e pela competência internacional dos Tribunais portugueses para conhecer da presente acção, e quanto ao mais reafirmar a posição vertida na petição inicial, negando que se verifique a prescrição invocada pela ré e impugnando diversa matéria de facto alegada pela ré.
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4.
Foi realizada uma audiência preliminar e proferido despacho saneador, tendo-se então procedido à selecção da matéria de facto assente e à organização da base instrutória, do que não houve reclamações - mas tendo-se posteriormente, na sequência de um complemento/aperfeiçoamento da petição inicial, proferido despacho a aditar quesitos à base instrutória.
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5.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto relevante.
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6.
Foi proferida sentença, cuja parte decisória tem o seguinte conteúdo:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo a presente acção parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de € 7.372,20 (sete mil trezentos e setenta e dois euros, e vinte cêntimos), acrescendo juros de mora ao valor em dívida, à taxa legal (prevista na lei aplicável) e a calcular desde a data da cessação do contrato e até efectivo e integral pagamento.
Custas pela autora e pela ré, na proporção do respectivo decaimento.
Valor da acção: € 24.351,58.
Registe e notifique.”
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7.
Inconformada com esta decisão dela recorre a Autora, pugnando pela procedência do recurso e pela revogação da sentença recorrida, declarando-se procedente todo o peticionado pela Autora/recorrente, tendo formulado as seguintes conclusões:
I - OBJECTO E DELIMITAÇÃO DO RECURSO
6. A recorrente intentou acção declarativa, emergente de contrato de trabalho, sob a forma de processo comum, contra C…, S.A., pedindo que fosse declarada a ilicitude do despedimento perpetrado pela ré;
7. Nessa conformidade, pedia a condenação da ré no pagamento de uma série de valores;
8. Veio o Tribunal a quo a entender, por um lado, que à presente situação seria aplicável a legislação francesa e, por outro lado, que o despedimento seria lícito à luz desta.
II - DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
9. O Tribunal a quo considerou provado, entre outros, que a ora recorrente foi admitida ao serviço da B… em 17 de Março de 2003, para exercer as funções inerentes à categoria profissional de “hotesse de cabines”, tendo-se sujeito, sempre, às ordens, direcção, orientações e fiscalização da mesma; que, enquanto trabalhou para a ré, a autora não teve qualquer domicílio em território gaulês; que as conversações entre a autora e a representante da ré que levaram à assinatura do contrato de trabalho aconteceram no F…, em Vila Nova de Gaia, Portugal; e que toda a actividade desenvolvida pela autora em prol da ré se situou em águas fluviais portuguesas, à excepção de um período de cerca de um/dois meses em que a autora prestou o seu trabalho para a ré em França.
Sucede, todavia, que,
10. O Tribunal considerou que as partes acordaram que a autora passasse a ficar inscrita no regime de segurança social Francesa e, também, que acordaram subordinar a relação laboral à Convenção Colectiva do Pessoal das Empresas de Transporte de Passageiros no âmbito do acordo sobre a organização e o ordenamento do trabalho de 23 de Abril de 1997, (imputadamente) em vigor em França.
Vejamos:
11. Do ponto 13.º da base instrutória cabia apurar o seguinte: «Acordaram as partes que a autora passasse a ficar inscrita no regime de segurança Social Francesa?».
12. Do ponto seguinte – o 14.º – pretendia-se apurar: «As partes subordinaram a sua relação laboral à Convenção colectiva do Pessoal das Empresas de Transporte de Passageiros, no âmbito do acordo sobre a organização e o ordenamento do trabalho de 23 de Abril de 1997, em vigor em França?».
13. Nessa continuação, o 15.º ponto da base instrutória tinha a seguinte formulação: “Tudo de acordo com a legislação francesa fornecida ao trabalhador na data da sua contratação?”.
14. Dir-se-á: começando por este último ponto, o Tribunal não o deu como provado.
15. Aliás, do contrato assinado consta, tão-somente, que «Estes textos são consultáveis na sede da empresa»… portanto, em Estrasburgo, França.
16. Daqui logo se infere que, pretendendo a trabalhadora consultar tal legislação – se é que algum dia existiu –, teria de fazer qualquer coisa como 2.000km!
17. Em suma, da matéria assente não resulta provado que tenha sido fornecida à ora recorrente qualquer legislação francesa, nem que esta tenha sido devidamente informada e esclarecida sobre a mesma.
18. Também não ficou provado que a ora recorrente – ou até qualquer outro funcionário – tivesse tido a oportunidade de escolha, quer relativamente à lei aplicável, quer no que concerne à escolha do país onde fazer os descontos para a segurança social.
19. Contrariamente ao que o Tribunal a quo considerou provado, as partes não acordaram que a autora passasse a ficar inscrita no regime de segurança social Francesa; não acordaram subordinar a sua relação laboral à Convenção Colectiva do Pessoal das Empresas de Transporte Passageiros, no âmbito do acordo sobre a organização e o ordenamento do trabalho de 23 de Abril de 1997, supostamente vigente em França; nem, muito menos, acordaram ser a lei francesa a reger o contrato de trabalho.
20. Passando então à matéria de facto de forma mais detalhada, analisemos, releva-se do depoimento da Sr.ª E… o que se segue:
Mm.º Juiz: Sim, eu percebi. Olhe, mas no contrato consta… no contrato consta… foi a Sr.ª que redigiu o contrato, que fez mesmo o contrato, ou não?
Testemunha: Não, só assinei.
Mm.º Juiz: Só assinou. E…, só assina com um “S”, é assim?
Testemunha: Sim.
(…)
Mm.º Juiz: Mas então a razão de constar aqui que ela reside em França era essa? Porque de facto nunca residiu em França… estou a perguntar, na realidade!
Testemunha: No barco… vivia no barco.
Mm.º Juiz: E onde é que se encontrava o barco?
Testemunha: Em Portugal.
Mm.º Juiz: Em Portugal.
(…)
Mandatário da Autora: E a casa era onde? Em França ou em Portugal?
Testemunha: Em Portugal.
(…)
Mm.º Juiz: 2008. Mas então de 2003 a 2008, só num ano, só uma vez, é que a autora trabalhou, um ou dois meses em França, é isso?
Testemunha: Nesses cinco anos ela trabalhou uma vez em França.
Mm.º Juiz: Tudo o que conversaram na altura e que a D. B… foi admitida por esta empresa para prestar trabalho, tudo o que foi conversado, foi aqui em Portugal?
Testemunha: Sim.
(…)
Mandatário da autora: Este contrato, vocês falaram?
Negociaram? A Sr.ª disse: “O contrato é este!”. Não foi um dia ou dois dias depois que fez os contratos?
Testemunha: Não, não. Foi no próprio dia.
Mandatário da autora: E estava o contrato feito. Preencheu os dados dela, se calhar?
Testemunha: Quando foi a entrevista com ela já falava disto, já dizia que ganhava “tanto”, as condições…
Mandatário da autora: Mas quando deu o contrato para assinar foi do género: “Está aqui este contrato!”?
Testemunha: Sim, está aqui o contrato, vamos ver, vamos ler juntas…
Mandatário da autora: E assinou?
Testemunha: Assinou.
Mandatário da autora: Ela introduziu alguma cláusula nesse contrato? Disse: “Não, essa cláusula não pode ser assim, tem de ser de maneira diferente!”?
Testemunha: Não, não.
Mandatário da autora: Não disse nada. Não alterou nada. Esse contrato era igual para todos os funcionários?
Testemunha: Exactamente!
Mandatário da autora: Exactamente igual?
Testemunha: Era sempre o mesmo.
Mandatário da autora: Sem tirar nem pôr. Nunca houve ninguém a discutir? A dizer: “Eu quero esta cláusula, eu não quero esta…”?
Testemunha: Não, não, não.
Mandatário da autora: É assim! É assim! E se não quisesse, enfim! Iam procurar outro funcionário não é?
Testemunha: Sim.
21. Foi então presente a testemunha arrolada, H…, de cujo depoimento se destaca:
Mandatário da autora: Não houve negociação?
Testemunha: Não.
Mandatário da autora: Não houve “Eu não concordo com esta cláusula. Eu quero que seja acrescentada esta cláusula.”. Não foi nada neste sentido, pois não?
Testemunha: Não.
Prosseguindo a inquirição em instâncias do Mm.º Juiz:
Mm.º Juiz: Quanto aos descontos para a segurança social, foi dito que era assim. Não perguntaram se o Sr. preferia lá, se preferia cá. Se tinha algum interesse que fosse lá?
Testemunha: Não, não. Foi na França, disseram…
Mm.º Juiz: …que era assim?
Testemunha: Sim, sim. Não propuseram nada!
22. Aqui chegados, analisados os depoimentos, enfaticamente, vê-se que:
e) Os contratos eram iguais para todos os trabalhadores;
f) Os trabalhadores não alteravam o conteúdo contratual;
g) Se não assinassem o contrato conforme a minuta apresentada, a empresa «procuraria» outro;
h) A empresa nada propunha nem admitia alterações: apenas impunha!
23. Assim postas as coisas, o contrato era apresentado ao trabalhador que ou aceitava ou recusava.
24. Como tal, seria sempre de considerar que, por força do artigo 96.º do Código do Trabalho (de 2003), se estava perante um contrato de trabalho de adesão, daí que sempre estariam violados os artigos 5.º (Comunicação), 6.º (Dever de informação), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
Por conseguinte,
25. É manifesto existir erro na resposta à matéria de facto quanto aos pontos 13.º e 14.º da base instrutória (e constantes dos pontos 22.º e 23.º da sentença) e, por inerência, mal decidida devia ter sido uma resposta concreta ao ponto 15.º da base instrutória.
26. Do vindo de expor, sendo as respostas das testemunhas as acabadas de transcrever, é cristalino que a trabalhadora não acordou passar a ficar inscrita no regime de segurança Social Francesa,
27. Como também não acordou subordinar a sua relação laboral à Convenção Colectiva do Pessoal das Empresas de Transporte Passageiros, no âmbito do acordo sobre a organização e o ordenamento do trabalho de 23 de Abril de 1997, em vigor em França, 28. Aliás, nem se encontra «certificado» pelo Tribunal a mera existência da aludida Convenção Colectiva…
29. Dos autos verifica-se que a mera obtenção da legislação francesa foi uma tarefa complexa, sendo que teve de ser o infra subscritor a obter o Code du Travail…
30. Nestes preparos, manifesto se torna que a trabalhadora não poderia – em consciência – negociar, discutir e «acordar» um contrato de trabalho tal como vem dito na sentença.
31. Assim sendo, deverão os pontos 13.º e 14.º da base instrutória serem dados como não provados e, por conseguinte, revogada a decisão proferida e substituída por outra no sentido do peticionado pela ora recorrente.
III - DAS INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DAS NORMAS APLICÁVEIS SUB JUDICE
Sem prescindir,
32. Porque o dever de cautela assim o impõe, sempre se dirá que, mesmo não sendo reformulada a resposta dada aos pontos 13.º e 14.º da base instrutória, a decisão proferida encontra-se eivada de erro na determinação e interpretação das normas aplicáveis.
33. Efectivamente, do artigo 6.º do Código do Trabalho vigente à data da cessação do contrato [2003], resultava o que se segue:
«3 - Na determinação da conexão mais estreita, além de outras circunstâncias, atende-se:
a) À lei do Estado em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que esteja temporariamente a prestar a sua actividade noutro Estado; (…)
5 - Sendo aplicável a lei de determinado Estado, por força dos critérios enunciados nos números anteriores, pode ser dada prevalência às disposições imperativas da lei de outro Estado com o qual a situação apresente uma conexão estreita se, e na medida em que, de acordo com o direito deste último Estado essas disposições forem aplicáveis, independentemente da lei reguladora do contrato.
7 - A escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato de trabalho não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe garantem as disposições imperativas deste Código, caso fosse a lei portuguesa a aplicável nos termos do nº2.».
34. Desde logo, pelo n.º 5, não é exigido que se trate da lei com a «conexão mais estreita», mas apenas uma lei com uma «conexão estreita».
35. Depois, sempre se tem de ter «em conta a natureza e o objecto das disposições imperativas, bem como as consequências resultantes tanto da aplicação como da não aplicação de tais preceitos.», o que, como é bom de ver, é manifestamente antagónico caso se aplique a lei francesa ou a portuguesa.
36. Por fim, «A escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato de trabalho não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe garantem as disposições imperativas deste Código, caso fosse a lei portuguesa a aplicável nos termos do nº 2.».
37. Assim sendo, o cotejo dos reportados nºs 2 e 3, levam a que se tenha de atender à lei do Estado em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho – neste caso, a Portugal.
Por outra via,
38. Como que servindo de modelo ao artigo 6.º do Código do Trabalho (de 2003), já em 1990 dispunha a Convenção de Roma, a este respeito, o que se indica:
39. A Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais de 19 de Junho de 1980 consagra, no seu artigo 3.º, o princípio da liberdade de escolha.
40. Não obstante, como muito bem evidencia Paul Lagarde: Por último, a Convenção limita a liberdade de escolha quando o seu exercício pode resultar em desvantagem para a parte fraca em certos contratos celebrados por consumidores (artigo 5.º) e nos contratos de trabalho (artigo 6.º). As regras de protecção do consumidor ou do trabalhador (por exemplo, a nulidade das cláusulas abusivas ou a regulamentação do despedimento)vigentes em numerosos Estados, incluindo os da União Europeia, seriam esvaziadas de alcance prático nas relações internacionais se pudessem ser contrariadas pela escolha não controlada de uma lei estrangeira. Por isso, nestes tipos de contratos e nas circunstâncias adiante referidas (ponto 4), a convenção inclui a regra de que é lícita a escolha da lei mas essa escolha não pode privar o consumidor ou o trabalhar da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que seria aplicável, na falta de escolha.» – in Roma I - Protocolos Roma, pp. 132 e 133.
41. Ora, no caso em apreço, apesar de o Tribunal a quo ter considerado que as partes escolheram expressamente a lei francesa para o reger –o que não se concede –, em matéria de consumidores e de trabalho, em que uma das partes é considerada pelo legislador em posição mais vulnerável, o princípio da protecção da parte mais fraca é limitador do princípio da liberdade de escolha.
42. O número 1 do artigo 6.º da Convenção de Roma dispõe que, sempre juízo da liberdade de escolha pelas partes sobre a lei aplicável ao contrato de trabalho, a mesma não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe é garantida pelas disposições imperativas da lei que seria aplicável, na falta de escolha, por força do número 2 do artigo 6.º.
43. Por sua vez, do n.º 2 do artigo 6.º da Convenção de Roma, resulta que o contrato de trabalho é regulado pela lei do país em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho: neste caso, Portugal.
44. Acresce ainda o disposto no artigo 7.º, n.º 1, da Convenção de Roma.
45. Por fim, do artigo 16.º da Convenção de Roma consta a denominada excepção de ordem pública internacional: «A aplicação de uma disposição da lei designada pela presente convenção só pode ser afastada se essa aplicação for manifestamente incompatível com a ordem pública do foro.».
46. Já agora, recorde-se que tal excepção de ordem pública internacional há meio século foi positivada no artigo 22.º do Código Civil.
47. De tudo isto se converge para a notoriedade da aplicação da legislação portuguesa à situação sub judice.
48. No caso em apreço ficou provado que:
f) “A autora não teve, enquanto para a ré trabalhou, qualquer domicílio em território gaulês.” – cfr. facto n.º 13 da matéria assente;
g) “O denominado contrato de trabalho, documento de fls. 37 a 39 (doc. junto com a petição inicial sob o n.º 1) foi assinado, e as conversações entre a autora e a representante da ré que levaram à sua assinatura aconteceram, no F…, em Vila Nova de Gaia.” – cfr. facto n.º 18 da matéria assente;
h) “Em relação à actividade desenvolvida, a autora exerceu as suas funções, ininterruptamente, nos navios da ré normalmente fundeados no F…, em Vila Nova de Gaia,Portugal” – cfr. facto n.º 19 da matéria assente;
i) “Toda a actividade desenvolvida pela autora em prol da ré situou-se em águas fluviais portuguesas, à excepção de um período de cerca de um/dois meses em que a autora prestou o seu trabalho para a ré na França.” – cfr. facto n.º 20 da matéria assente;
j) Mais, fosse de aplicar a legislação francesa e aquela não seria protegida como pela lei portuguesa.
49. Com o devido respeito, parece-nos ser evidente a maior conexão coma lei portuguesa: a ora recorrente prestou a sua actividade em Portugal, nos cruzeiros, em águas fluviais portuguesas.
50. Acresce que, a aplicação da lei francesa tinha como consequência privar a trabalhadora – ora recorrente – da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei portuguesa, designadamente no que concerne ao procedimento disciplinar (ou até à protecção no desemprego uma vez que a lei francesa pressupõe a residência do beneficiário em França).
51. Neste sentido, é pacífica e esclarecedora a jurisprudência dos Tribunais Superiores, da qual ressaltamos a que se segue:
«Porém, consagrando o art. 53º do Constituição, a proibição do despedimentos sem justa causa e sendo esta uma norma de aplicação necessária e imediata, ou seja, uma daquelas que pela essencialidade dos seus comandos como que transborda a competência espacial do sistema em que se integra, aplicando-se directamente a situações jurídicas plurilocalizadas, assimilando-as a uma situação interna, tem precedência sobre a lei estrangeira considerada competente pelas regras de conflitos, sendo por isso aplicável à matéria do despedimento a lei portuguesa cujo regime assenta naquela norma constitucional.».
«I - Num contrato de trabalho plurilocalizado, a escolha da lei aplicável (a lei laboral das ilhas Caimão - que admite a cessação do contrato de trabalho sem justa causa e não exige procedimento disciplinar), não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que, na falta de escolha, seria objectivamente competente, que no caso é a portuguesa, em cuja Constituição da República se consagra o princípio fundamental da segurança no emprego e a proibição dos despedimentos sem justa causa (art.º 53.º).
II - O princípio da segurança no emprego e da proibição dos despedimentos sem justa causa, constitui um verdadeiro princípio estruturante do direito laboral português, não podendo, por isso, deixar de fazer parte do conteúdo da ordem pública internacional do Estado português.».
«1. Tendo o autor sido contratado pela Delegação do ICEP no Canadá, em Toronto é aplicável ao respectivo contrato a lei canadiana, de harmonia com o nº 4 do art. 33º do DL nº 388/86 enº 2 do art. 32º do Regulamento dos serviços do ICEP no Estrangeiro.
2. No que se refere à cessação do contrato, porém, há que desconsiderar a aplicação da lei canadiana, nomeadamente o Código de Procedimento das Normas de Emprego, 2000, e aplicar a lei portuguesa recorrendo à excepção de ordem pública portuguesa.
(…)
Por sua vez, os nºs 5, 6 7 do citado normativo reservam ou ressalvam as excepções de ordem pública.(…)
Contudo, já no que se refere à cessação do contrato, estamos de acordo com a decisão recorrida, que desconsiderou a aplicação da lei canadiana, nomeadamente o Código de Procedimento das Normas de Emprego, 2000, para aplicar a lei portuguesa recorrendo à excepção de ordem pública portuguesa.
Com efeito, o artigo 22º n. 1, do Código Civil Português estabelece que "não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português".(…)
Ora, o regime jurídico relativo à cessação do contrato de trabalho tem natureza imperativa, conforme resulta do disposto no art. 383º do CT/2003.
Por outro lado não podemos olvidar que a segurança no emprego e a proibição dos despedimentos sem justa causa têm consagração no art. 53º da Constituição da República Portuguesa, que constitui a trave mestra do direito laboral português e que é um direito fundamental que goza do privilégio dos direitos, liberdades e garantias, pelo que, não pode deixar de fazer parte do conteúdo da “ordem pública internacional” do Estado Português - (cfr. artº 17º da CRP).
Conforme se refere no Ac. do STJ de 23.05.2001, in www.dsgi.pt/jstj, “a reserva ou excepção de ordem pública visa impedir que a aplicação de uma norma de direito estrangeiro conduza, num determinado caso concreto, a um resultado intolerável por ofender princípios essenciais do sistema jurídico nacional”.
É que a lei canadiana, no que se refere à cessação do contrato de trabalho, apenas exige um aviso prévio de maior ou menor duração consoante a antiguidade do trabalhador, conforme se depreende do Código das Normas de Emprego, 2000, cuja cópia está junta aos autos (fls. 175 a 231), cuja aplicação ofende os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português em matéria de despedimentos, o que leva, na falta de outras disposições apropriadas da lei canadiana, à aplicação da lei portuguesa sobre despedimentos.».
V - Contudo, o art. 16º da Convenção permite que seja afastada a aplicação de disposições legais nela contidas se essa aplicação for manifestamente incompatível com a ordem pública do foro.
VI - O regime laboral Alemão colide com o regime imperativo consagrado nos arts. 2º nº 1, 9º , 10º, 11º, 12º e 13º da nossa Lei dos despedimentos, não só quanto às condições de legalidade do despedimento promovido pela entidade patronal com invocação de justa causa, como também quanto às consequências da ilicitude desse despedimento.».
52. Compulsados os arestos supra referenciados, verifica-se, inclusivamente, a violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
53. Na verdade, «a Convenção [Europeia dos Direitos do Homem]constitui um instrumento de direito internacional que faz parte integrante do direito interno uma vez que foi aprovada, ratificada e publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78. Aquela Lei também ratifica os Protocolos n.os 1 e 4. Nos termos do artigo 8.º, n.º 2,da CRP, «As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincular em internacionalmente o Estado Português.».
54. Ora, «os Tribunais não se devem afastar dos seus acórdãos anteriores sem que haja razões suficientes e bem esclarecidas para isso. Tais razões devem constar dos acórdãos, no interesse da segurança jurídica, da previsibilidade e da igualdade e até da imparcialidade dos juízes.» – cfr. Acórdão Cossey vs. Reino Unido, de 27/10/1999,considerando 35; acórdão Chapman vs. Reino Unido, de 18/01/2001,considerando 70; acórdão Goodwin vs. Reino Unido, de 11/07/2002,considerando 74; acórdão Mamatkulov vs. Turquia, de 06/02/2003,considerando 105.
55. Por outro lado, «o direito a um processo equitativo perante um tribunal, garantido pelo artigo 6.º, n.º 1, da Convenção, deve ser interpretado à luz do preâmbulo da Convenção que enuncia o primado do direito como elemento do património comum dos Estados contratantes» – cfr. Acórdão Brumarescu vs. Roménia, de 28/10/1999, considerando 61.
56. Deverá assim tratar-se de forma igual o que é igual, por respeito ao princípio da igualdade,
57. E, de forma diferente o que é diferente, por respeito ao princípio da diversidade.
58. À vista de tudo o que antecede, a sentença de que se recorre afastasse excessivamente (e sem justificação) do referente constituído pela jurisprudência dos Tribunais Superiores.
59. Mais, sabendo-se que «O interesse da segurança jurídica, da previsibilidade e da igualdade perante a lei, deve obrigar os tribunais anão se afastar sem motivo válido dos seus próprios precedentes» – cfr. Acórdão Chapman vs. Reino Unido, de 18/01/2001, considerando 70,
60. Que, «Uma decisão de um tribunal que põe em causa uma decisão dum tribunal superior transitada põe em causa o princípio da segurança jurídica, e, portanto, o direito do requerente a um processo equitativo no sentido do artigo 6.º, n.º 1, da Convenção» – cfr. Acórdão Chivochian vs. Roménia, de 02/11/2004, considerando 42;Acórdão Androna vs. Roménia, de 22/12/2004, considerandos 39 e 52,61. Notório se faz sentir que a sentença de que se recorre afasta-se, excessivamente (e sem justificação), do referente constituído pelos padrões seguidos pela jurisprudência.
62. Com esta decisão, o Tribunal a quo violou:
a) o artigo 22.º do Código Civil;
b) o artigo 6.º do Código do Trabalho;
c) os artigos 3.º, 4.º, 6.º, 7.º e 16.º da Convenção de Roma;
d) o princípio da equidade,
e) o princípio do acesso ao direito imanente do artigo 20.º da CRP,
f) o princípio da não discriminação decorrente do artigo 13.º da CRP,
g) o princípio da igualdade disposto no artigo 13.º da CRP, designadamente na vertente do tratamento igual dos trabalhadores,
h) os artigos 16.º, n.º 2 e 28.º, n.º 2 da CRP,
i) o artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil,
j) o artigo 9.º da DUDH,
k) o princípio da estabilização da jurisprudência,
l) o princípio da previsibilidade das decisões, assim arredando a confiança que os cidadãos devem depositar na Justiça,
m) o princípio da segurança jurídica,
n) o princípio do respeito pela jurisprudência dos Tribunais Superiores transitada em julgado (até por não terem sido alegados quaisquer fundamentos sérios para esta alteração de posição), e
o) os artigos 5.º e 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Isto posto,
63. Compulsados os arestos supra referenciados, verifica-se, inclusivamente, a violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
64. Mal andou o Tribunal a quo ao considerar ter o contrato em apreço maior conexão com França, e
65. Pior, ainda que assumindo tal maior ligação a território francês, os artigos 22.º do Código Civil, 6.º do Código do Trabalho e os artigos 3.º,4.º, 6.º, 7.º e 16.º da Convenção de Roma, jamais admitiriam a aplicação de legislação francesa – manifestamente menos protectora para a trabalhadora –, pois que privaria a trabalhadora da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei portuguesa, designadamente no que concerne ao procedimento disciplinar.
66. Pelo exposto, deverá a sentença posta em crise ser revogada e substituída por outra de forma a que seja aplicada a lei portuguesa ao contrato de trabalho celebrado entre recorrente e recorrida e, consequentemente, ser declarada a ilicitude do despedimento perpetrado pela ora recorrida, com as inerentes consequências legais.
◊◊◊
8.
A apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença recorrida e pela improcedência do recurso, assim concluindo:
I) Entende a recorrida que a resposta dada aos quesitos 13º e 14° da base instrutória se deve manter nos precisos termos constantes dos pontos 22 e 23 dos factos provados, pois resulta do contrato de trabalho junto aos autos bem como da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, que as partes acordaram que a Autora/recorrente passasse a ficar inscrita no regime de Segurança Social Francês, bem como acordaram subordinar a relação laboral à legislação francesa, designadamente à Convenção Colectiva do Pessoal das Empresas de Transportes de Passageiros, no âmbito do acordo sobre a organização e o ordenamento do trabalho de 23 de Abril de 1997.
II) Tal corno resulta das transcrições apresentadas, tanto a recorrente corno os demais funcionários da recorrida tiveram oportunidade de optar pela lei que queriam ver aplicada ao contrato, bem como optar pelo respectivo regime de segurança social.
III) Tal possibilidade de escolha resulta desde logo do depoimento da testemunha E… na audiência de julgamento, constante da gravação efectuada sob ficheiro informático com a identificação 20120228110933_63167_993389, realizada entre as 11:09:33 e as 12:21:46 a 28 de Fevereiro de 2012, o qual está em consonância com o que o Meritíssimo Juiz a quo julgou como provado sob os pontos 22 e 23 dos factos provados.
IV) Da prova produzida ressalta como indiscutível que os candidatos aos postos de trabalho, confrontados com os respectivos contratos de trabalho, estes lhes eram lidos e explicados e que concordando com todas as cláusulas contratuais que lhes eram propostas, nada tinham a objectar; não se depreendendo de passagem alguma dos depoimentos prestados que os trabalhadores eram forçados a assinar os contratos apresentados, sem terem a possibilidade de modificar qualquer cláusula contratual com a qual não estivessem de acordo.
V) Ao contrário do alegado pela recorrente, não estamos, assim, perante contratos de adesão, pois, no que a este tipo de contratos diz respeito, prescrevia o artigo 95° do Código do Trabalho de 2003 que "A vontade contratual pode manifestar-se, por parte do empregador, através dos regulamentos infernos da empresa e, por parte do trabalhador, pela adesão expressa ou tácita aos ditos regulamentos".
VI) No caso sub judice a vontade contratual entre a recorrente e a recorrida não se manifestou pela declaração de adesão a qualquer regulamento interno, mas antes a recorrida submeteu à apreciação da recorrente uma proposta de contrato individual de trabalho, que a mesma após ter lido e lhe ser explicado o seu conteúdo assinou sem manifestar qualquer reserva ou vontade diferente daquela que o contrato proposto encerrava,
VII) Isto posto, devem as respostas dadas à matéria de facto constante dos quesitos 13° e 14° da base instrutória manter-se nos precisos termos constantes da douta sentença recorrida, pelo facto de, efectivamente as partes terem escolhido aplicar a Lei Francesa ao contrato de trabalho bem como o regime de Segurança Social Francês.
VIII) A situação jurídica em análise situa-se no âmbito do Direito Internacional Privado, já que estamos perante uma relação privada internacional, cujos elementos estruturais mantiveram contacto com mais de um ordenamento jurídico, nomeadamente o francês e o português.
IX) A entidade empregadora, ora recorrida, é uma sociedade comercial de direito francês, cuja sede se situa em Estrasburgo, França, dedicando-se à realização, com fins lucrativos, de cruzeiros fluviais, tendo a recorrente sido admitida ao serviço da recorrida para exercer funções de hospedeira de cabine num dos seus navios de cruzeiro, sendo a recorrente uma cidadã portuguesa, tendo o contrato de trabalho sido celebrado em território nacional, nomeadamente em Vila Nova de Gaia,
X) Sobre a lei aplicável às obrigações contratuais laborais que apresentem conexão com mais de um ordenamento jurídico rege a Convenção de Roma, estipulando o artigo 2° desta Convenção, que a mesma tem carácter universal, na medida em que a lei designada nos termos da Convenção é aplicável mesmo que essa lei não seja de um Estado contratante.
XI) O artº 3º daquela Convenção encerra um dos princípios vigentes no âmbito do Direito Internacional Privado, que é o da "autonomia privada", segundo o qual as partes podem escolher a lei que irá reger o contrato, devendo a escolha ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias em causa, podendo através dela designar-se a lei aplicável à totalidade ou apenas a parte do contrato (nº 1).
XII) A escolha pelas partes da lei aplicável não pode ter corno consequência privar o trabalhador da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que, na falta de escolha seria objectivamente competente, estabelecendo as alíneas do artigo 60 os critérios de conexão a observar para a sua determinação.
XIII) Atentos os critérios expostos de determinação da lei aplicável, procurou a douta sentença recorrida determinar se as partes escolheram a lei aplicável ao contrato, resultando do ponto 23 dos factos provados que "As partes acordaram subordinar a sua relação laboral à Convenção Colectiva do Pessoal das Empresas de Transporte Passageiros, no âmbito do acordo sobre a organização e o ordenamento do trabalho de 23 de Abril de 1997, em vigor em França."
XIV) Tendo as partes escolhido submeter a sua relação laboral à legislação francesa, cumpre, todavia, determinar, se na falta de escolha, seria aplicável ao contrato a lei de outro ordenamento jurídico, em cumprimento do disposto no artigo 6º nº1
XV) Entendeu-se e bem na douta sentença recorrida, que todo o circunstancialismo que envolve a relação laboral entre recorrente e recorrida apresenta conexão mais estreita com a República Francesa.
XVI) A ré é uma sociedade comercial de direito francês, tem a sua sede em Estrasburgo, França; a recorrente foi inscrita no regime de segurança social francês, para a qual realizou efectivamente os respectivos descontos; a recorrente conhecia a língua francesa e utilizou-a, como única língua, durante a vigência do contrato de trabalho com colegas e superiores hierárquicos (ponto 24 dos factos provados), bem como foi sempre a língua francesa a ser utilizada nas negociações tendentes à celebração do contrato de trabalho e escritos trocados entre a recorrente e recorrida; a recorrente exerceu funções em embarcações de origem e matricula francesa, propriedade da recorrida.
XVII) A ponderação de todas estas circunstâncias, aponta claramente para uma relação de maior estraneidade da relação contratual em apreço com a República Francesa, pelo que, mesmo na falta de escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato de trabalho, sempre seria de aplicar à relação laboral a lei francesa, por ser com este ordenamento jurídico que apresenta uma conexão mais estreita.
XVIII) A aplicação da lei francesa ao caso sub judice não viola as disposições imperativas da lei portuguesa, tendo a douta sentença recorrida respeitado a reserva de ordem pública internacional prevista no artigo 160 da Convenção de Roma.
XIX) Pois, como vem sendo entendido pela Doutrina e Jurisprudência, em matéria laboral, o artigo 53° da Lei Fundamental constitui uma norma de aplicação necessária e imediata, fazendo, por isso, parte da reserva de ordem pública internacional do Estado português, consagrando o princípio da segurança no emprego ao proibir o despedimento sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos.
XX) Sendo certo que, o despedimento em causa se prende com a existência ou não de justa causa, tendo o Mmº Juiz a quo entendido, e a nosso ver bem, que se verificou justa causa de despedimento ao dar como provados os factos constantes dos pontos 27, 28, 29, 31 e 32 dos factos provados da douta sentença recorrida, pois os mesmos revestem-se de tal gravidade que justificam que a recorrida tenha perdido a confiança depositada na recorrente.
XXI) Sendo certo que, no tocante à existência de justa causa de despedimento, tal matéria se considera assente por não ter sido objecto de recurso, aceitando a recorrente que efectivamente o seu despedimento foi motivado por justa causa.
XXII) Assim, tendo o despedimento da recorrente ocorrido com justa causa, a sentença recorrida não violou de forma alguma a reserva da ordem pública internacional plasmada no artigo 53° da Constituição, até porque também a lei francesa proíbe o despedimento sem justa causa, pelo que da sua aplicação ao caso concreto não resulta qualquer desvantagem para a recorrente.
XXIII) Em suma, não violou a sentença recorrida qualquer disposição legal portuguesa ou francesa, tendo, inclusive, respeitado a excreção da reserva da ordem pública internacional, pelo que deve ser confirmada na íntegra, confirmando-se a aplicação da lei francesa ao caso sub judice.
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9.
A Exª. Srª. Procuradora-Geral Adjunta deu o seu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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10.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II - QUESTÕES A DECIDIR
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da recorrente (artigos 653º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, temos que as questões a decidir são as seguintes:
1ª – IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO;
2ª-DETERMINAÇÃO DA LEGISLAÇÃO APLICÁVEL AO CASO SUB JUDICE: A LEI PORTUGUESA OU A LEI FRANCESA.
3ª-SE A LEI PORTUGUESA SABER SE O DESPEIDMENTO É ILÍCITO.
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III – FUNDAMENTOS
1.
SÃO OS SEGUINTES OS FACTOS QUE A SENTENÇA RECORRIDA DEU COMO PROVADOS:
1 - A ré é uma sociedade comercial de direito francês.
2 - Tem a sua sede em Estrasburgo, França.
3 - A ré, C…, S.A., dedica-se, com fins lucrativos, a actividades marítimo turísticas, onde se incluem, nomeadamente, a realização de cruzeiros fluviais.
4 - A autora foi admitida ao serviço da ré C… em 17/03/2003.
5 - Para exercer as funções inerentes à categoria profissional de «hotesse de cabines», ou seja, “hospedeira de cabine”, tendo-se sujeito, sempre, às ordens, direcção, orientações e fiscalização daquela.
6 - Os instrumentos e, por exemplo, a farda de trabalho, eram fornecidos pela ré.
7 - A autora foi contratada, a tempo inteiro, embora afecta a períodos alternados de trabalho e de não trabalho.
8 - Um dos períodos seria composto de 7 meses, entre Abril e Outubro, durante o qual a autora prestaria 46 horas de trabalho semanal.
9 - No período de inverno – entre Novembro e Março –, a autora prestaria, tão-somente, o restante para, em média, não ultrapassar o período normal de trabalho definido nas 35 horas semanais.
10 - A autora teria direito a um período de férias de acordo com a legislação em vigor, acrescido, contudo, de 3 dias.
11 - Já no que se refere à contrapartida do seu trabalho, a autora receberia da ré o montante mensal de € 1.105,26.
12 - A 14 de Outubro de 2008, a autora levantou nos correios uma carta que lhe foi endereçada pela ré comunicando, o que consta de tal carta, cuja cópia está junta de fls. 27 a 32 (doc. junto com a petição inicial sob o nº 3), cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.
13 - A autora não teve, enquanto para a ré trabalhou, qualquer domicílio em território gaulês.
14 A autora foi inscrita no regime da segurança social Francesa, para a qual foram realizados os respectivos descontos contributivos referentes à autora e à C…, S.A. durante toda a relação laboral ("Caísse de Retraite Compleméntaire", sita em …, .. rue …, ….. Paris …).
15 - Antes a autora tem dois antecedentes disciplinares registados durante o período de tempo em que laborou para a C…, S.A.
16 - Com vista a melhor averiguar o sucedido a aqui ré enviou à autora a carta de 29 de Setembro de 2008, junta de fls. 33 a 35 (documento junto pela autora com a petição inicial como documento nº 4) cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido.
17 - A ré comunicou à autora, através da carta junta de fls. 37 a 39 (doc. junto com a petição sob nº 5) o seu afastamento temporário a partir dessa data.
18 - O denominado contrato de trabalho, documento de fls. 19 a 25 (documento junto com a petição inicial sob o nº 1) foi assinado, e as conversações entre a autora e a representante da ré que levaram à sua assinatura aconteceram, no F…, em Vila Nova de Gaia.
19 - Em relação à actividade desenvolvida, a autora exerceu as suas funções, ininterruptamente, nos navios da ré normalmente fundeados no F…, em Vila Nova de Gaia, Portugal.
20 - Toda a actividade desenvolvida pela autora em prol da ré situou-se em águas fluviais portuguesas, à excepção de um período de cerca de um/dois meses em que a autora prestou o seu trabalho para a ré em França.
21 – À data da cessação do contrato, a autora auferia já, mensalmente, o total bruto de € 1.465,84, dos quais € 1.321,05 correspondiam ao salário de base, conforme discriminado no documento de fls 26.
22 - Acordaram as partes que a autora passasse a ficar inscrita no regime de segurança Social Francesa.
23 - As partes acordaram subordinar a sua relação laboral à Convenção Colectiva do Pessoal das Empresas de Transporte Passageiros, no âmbito do acordo sobre a organização e o ordenamento do trabalho de 23 de Abril de 1997, em vigor em França.
24 - A autora conhece a língua francesa e passou a utilizá-la durante a vigência do contrato de trabalho em mérito, nomeadamente com colegas de trabalho e superiores hierárquicos.
25 - Idioma utilizado em todos os contactos verbais, inclusive nas negociações tendentes à celebração do contrato de trabalho, e escritos, havidos entre trabalhadora e entidade empregadora.
26 - A autora exercia funções em embarcações de origem e matrícula francesa, da propriedade da empresa "C…, S.A.".
27 - No dia 26/09/2008, a bordo da embarcação "G…", a autora colocou numa garrafa de água mineral vazia um líquido de natureza química, á base de detergente e com efeitos abrasivos, que guardou junto de outras garrafas de água destinadas ao consumo no Salão – Bar.
28 - Pelas 18:30 horas desse dia a animadora da embarcação ingeriu, ainda que só parcialmente, um copo do líquido colocado no interior da aludida garrafa.
29 - Como consequência do sucedido a referida animadora sofreu queimaduras ao nível da boca e lábios.
30 – Os danos só não foram mais graves porque a dita funcionária não deglutiu o líquido.
31 - Nessa sequência, a animadora foi socorrida pela comissária de bordo, após o que ordenou à autora que procedesse à eliminação do líquido e destruição da garrafa.
32 - Ordem a que autora apenas obedeceu após diversas interpelações da referida comissária de bordo.
33 - A ré recolheu os depoimentos de alguns funcionários que assistiram ao mencionado episódio.
34 - Na reunião de 06/10/2008, a autora assumiu a inteira responsabilidade pelo sucedido, embora tendo-se justificado com um "post it" que alegadamente teria colocado na garrafa com indicação de "produto detergente".
35 - A autora penitenciou-se pelo sucedido, e os seus superiores hierárquicos comunicaram-lhe a instauração de um procedimento com vista a seu despedimento.
36 – Entretanto – após o seu despedimento pela ré – a autora foi trabalhar para outra empresa, em França, da qual aufere rendimentos.
37 – A autora tinha um escalonamento do seu tempo de trabalho ao longo do ano (01 de Abril a 31 de Março).
38 – Quando trabalhasse para além das 35 horas semanais era concedido pela ré à autora uma majoração do seu período de férias.
39 – A soma das férias adquiridas em cada mês do decurso do contrato de trabalho com o número de dias a recuperar é de 100,02 dias.
◊◊◊
2.
DO OBJECTO DO RECURSO
2.1.
Analisemos então as questões que nos foram trazidas pela recorrente.
2.1.1.
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A recorrente põe em causa a resposta dada aos pontos 22º e 23º da matéria de facto dada como provada e assente na sentença impugnada (correspondente aos pontos 12º e 13º da Base Instrutória).
Tais pontos têm a seguinte redacção:
22 - Acordaram as partes que a autora passasse a ficar inscrita no regime de segurança Social Francesa.
23 - As partes acordaram subordinar a sua relação laboral à Convenção Colectiva do Pessoal das Empresas de Transporte Passageiros, no âmbito do acordo sobre a organização e o ordenamento do trabalho de 23 de Abril de 1997, em vigor em França.

Pretende que a resposta a esses pontos seja «Não provado».

O Tribunal a quo na motivação das suas respostas referiu que «no tocante à matéria dos quesitos 2.º, 3.º, 4.º, 13.º, 14.º, 16.º, 17.º, 18.º e 30.º e 34.º tivemos em especial consideração para a convicção que formamos o depoimento da testemunha E… que, como a própria declarou, foi a pessoa que, em representação da ré, contratou a autora, tendo estabelecido com a autora todos os contactos tendentes à sua admissão pela ré e tendo o contrato sido assinado na sua presença, e também por si em representação da ré, e testemunha essa que depôs por forma serena, clara e consistente, e de cuja idoneidade não temos qualquer razão para duvidar.»

A Recorrente baseia a sua impugnação no depoimento das testemunhas E… e H....
Diga-se que quanto ao depoimento da testemunha H… o mesmo é inócuo para esta acção, já que apenas se referiu a um contrato por si celebrado com a Ré, eventualmente semelhante. Nada de concreto, porque não assistiu, em relação ao contrato de trabalho aqui em apreço.
Por outro lado, perante este depoimento, vir agora invocar nas alegações que «[c]omo tal, seria sempre de considerar que, por força do artigo 96.º do Código do Trabalho (de 2003), se estava perante um contrato de trabalho de adesão e, por isso, «O regime das cláusulas contratuais gerais aplica-se aos aspectos essenciais do contrato de trabalho em que não tenha havido prévia negociação individual, mesmo na parte em que o seu conteúdo se determine por remissão para cláusulas de instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.».
Neste aspecto, da prova testemunhal produzida, e sem necessidade de grandes delongas, bem se alcança não terem sido cumpridos, designadamente, os artigos 5.º (Comunicação), 6.º (Dever de informação), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro.
Daqui advém a nulidade das cláusulas apostas no contrato por força do artigo 8.º daquele regime.
Por conseguinte,
É manifesto existir erro na resposta à matéria de facto quanto aos pontos 13.º e 14.º da base instrutória (e constantes dos pontos 22.º e 23.º da sentença) e, por inerência, mal decidida devia ter sido uma resposta concreta ao ponto 15.º da base instrutória.», é algo que não faz sentido.
E não faz sentido porque em primeiro lugar estamos perante uma questão nova, apenas agora suscitada.
Como "questões novas" entendem-se aquelas que, colocadas ao tribunal de recurso, não tenham merecido pronúncia por parte do tribunal a quo, sendo indiferente que essa omissão provenha de insuficiência alegatória da parte, nos seus articulados, ou do mero silêncio do órgão recorrido, posto que, nesta última hipótese, o vício da omissão de pronúncia não haja sido atempadamente invocado[1].
Os recursos são meios de impugnação de decisões com vista ao reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, só abrangendo as questões que nelas se contêm, ainda que outras tenham sido afloradas nas alegações propriamente ditas, salvo tratando-se de questões que o tribunal deva conhecer oficiosamente.
Assim sendo, sem prejuízo destas últimas questões, o tribunal de recurso não deve conhecer de matéria que não tenha sido suscitada no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar. Na verdade, os recursos visam apenas modificar as decisões impugnadas mediante o reexame das questões nelas equacionadas e não apreciar matéria nova sobre a qual o tribunal recorrido não teve ensejo de se pronunciar.
Como refere ABRANTES GERALDES[2],“A diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os tribunais superiores apenas devam ser confrontados com questões que as partes discutiram em momentos próprios.”
Por fim, para não sermos fastidiosos sobre esta questão, deixamos aqui o sumário de dois Acórdãos do STJ, sobre a questão.
O primeiro, refere que “ As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuar a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição.”[3]
O segundo, diz que “Os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas pelo tribunal recorrido e não a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso.”[4]
Acontece que a recorrente nunca levantou na primeira instância a questão que agora suscita nas alegações de recurso.
Na verdade, nunca nos articulados ou em outro qualquer momento anterior às alegações de recurso a recorrente suscitou a questão de estarmos perante um contrato de adesão.
Por essa razão, nunca o Tribunal a quo se pronunciou sobre a questão, nem a Ré teve a oportunidade de exercer o respectivo contraditório. E tal questão, a ser suscitada teria de ser naquela instância e no momento adequado, conforme subjaz dos artigos 489º, nº 1 e 493º, nº 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil.
Tendo em conta, o atrás mencionado, não temos dúvidas em afirmar que estamos perante uma “questão nova”, nunca suscitada no Tribunal recorrido, razão pela qual o seu conhecimento é inadmissível e este Tribunal de Recurso não conhecerá da mesma.
Mas mesmo que a tivesse oportunamente invocado, a sua verificação nunca levaria às consequências pretendidas, até pela simples circunstância de para a ela chegarmos necessário seria terem-se invocado e dado como provados factos donde a mesma se extraísse.
Além do mais, resulta do teor do contrato de trabalho junto aos autos que as partes estabelecerem ou acordaram que o mesmo seria regido pelo CNN do pessoal das Empresas de transporte de passageiros e seria inscrito no âmbito do acordo sobre a organização e o ordenamento do trabalho, de 23 de Abril de 1997. Do mesmo contrato resulta que a trabalhadora será beneficiária da caixa de reforma complementar …, .. rua …, ….. Paris …..
Por outro lado, resulta do depoimento da testemunha E… – pessoa que contratou a Autora para trabalhar ao serviço da Ré - que a mesma explicou à Autora que descontaria para a Segurança Social Francesa e que estaria sujeita às leis do trabalho francesas. Tendo ainda dito que a Autora estava de acordo com tudo isso.
Assim sendo, inexistem razões que nos levem a alterar a resposta dada aos pontos de facto ora impugnado.

2.2.
DETERMINAÇÃO DA LEGISLAÇÃO APLICÁVEL AO CASO SUB JUDICE: A LEI PORTUGUESA OU A LEI FRANCESA.

Na decisão recorrida enfrentou-se a questão da determinação da lei aplicável ao contrato de trabalho celebrado entre a Autor e a Ré, tendo-se referido, a tal propósito, o seguinte:
“Sustenta a ré, entidade patronal, que a lei aplicável ao contrato de trabalho que celebrou com a autora, e às questões que da sua vigência e (alegada) cessação emergem, e suscitadas nos autos, é a lei francesa.
A controvérsia jurídica a apreciar nos presentes autos pertence, assim, ao âmbito do direito internacional privado. Estando em jogo, substancialmente, um problema jurídico laboral, a resolução deste passa previamente pela necessidade de escolher o sistema jurídico competente, uma vez que a situação jurídica se apresenta como absolutamente internacional, isto é, apresenta, desde o momento da sua constituição, elementos de contacto com mais do que uma ordem jurídica.
Como é sabido o problema da lei aplicável põe-se fundamentalmente para as situações jurídicas privadas que, no momento da sua constituição, apresentam elementos de estraneidade, ou seja, estão em contacto com mais do que um sistema jurídico.
No caso sub judice autora tem a nacionalidade portuguesa e a ré entidade patronal tem a nacionalidade francesa. É certo que a ré, como pessoa colectiva, não tem propriamente, em termos rigorosos, uma nacionalidade (nem uma residência) mas uma sede, que, como afirma Baptista Machado (Lições de Direito Internaciona1 Privado, pág. 344), “é o centro donde irradia a sua actividade”. Sendo assim, para os efeitos de escolha da lei, não pode deixar de se entender que a ré entidade patronal tem nacionalidade portuguesa. Por seu turno o lugar de execução do contrato foi - na sua quase totalidade – em Portugal. Estas são, pois, as conexões, em princípio, relevantes, sendo certo que, conforme adiante se notará, a vontade das partes é de igual modo um elemento relevante a atender no domínio das obrigações provenientes de negócio jurídico e poderão ocorrer outras circunstâncias igualmente relevantes e que poderão até sobrepor-se aquelas.
Como resulta da contestação apresentada pela ré esta estriba, essencialmente, a sua defesa quanto à circunstância de à relação contratual que estabeleceu com a autora será aplicável a lei francesa nos mesmos fundamentos que invocou para arguir a incompetência internacional dos Tribunais portugueses (cf. art. 22.º e ss da contestação), muito embora parecendo basear a competência internacional dos Tribunais franceses para dirimir o litígio numa mera decorrência de a lei aplicável dever ser a francesa (cf. particularmente art. 35.º da contestação).
Como é porém sabido, os Tribunais portugueses não estão inibidos de aplicar nas decisões que hajam de proferir uma lei estrangeira, posto que esta seja a aplicável segundo das regras do direito internacional privado.
Posto o que, não obstante se tenha considerado que os Tribunais portugueses têm competência internacional para dirimir o litígio dos autos – e, consequentemente e em razão das regras da competência em razão da matéria e do território este Tribunal do Trabalho seja igualmente dotado de competência internacional -, nada impede que ao caso seja aplicável efectivamente a lei francesa, mas por força da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais de 19 de Junho de 1980 (desde já se diga que não se cogita a aplicação, no caso, do Regulamento (CE) N.º 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17/6/2008, pois que o mesmo, como consta taxativamente do seu art. 28.º, é aplicável aos contratos celebrados após 17 de Dezembro de 2009).
Com efeito, a Republica Francesa é um dos estados outorgantes de tal Convenção, e Portugal ce1ebrou uma Convenção de Adesão à Convenção de Roma em 15 de Maio de1992.
Essa Convenção, urna vez que foram observados os trâmites constitucionalmente estabelecidos, constitui direito interno português, em conformidade com o preceituado no art.8.° da Constituição da República.
Segundo o disposto no n.º 1 do art. 1.º o seu âmbito de incidência é o das obrigações contratuais que impliquem um conflito de leis.
Aplica-se, por conseguinte, às relações contratuais e às obrigações delas emergentes que estejam em contacto com mais do que um sistema jurídico, isto é, aos contratos que, por apresentarem relações de extraneidade em relação ao sistema jurídico interno, suscitam um problema de escolha de lei.
Sendo assim, salvo algumas excepções, a constituição, o conteúdo, a modificação, os efeitos, a execução e a extinção das obrigações contratuais caem no domínio da Convenção. Há, assim, uma coincidência entre as matérias abrangidas pela Convenção e aquelas que se subsumem no conceito-quadro dos arts. 4l.° e 42.° do Código Civil.
A Convenção, dada a sua vocação universal (art. 2.°), pretendeu que as regras uniformes dela constantes substituíssem as correspondentes regras de conflitos existentes no direito interno dos Estados-membros, passando tais regras a constituir o direito comum para o conflito de leis em matéria contratual. Significa isto que em relação ao nosso país o regime da Convenção derrogou os arts. 41.° e 42.° do Código Civil.
Seguindo os trâmites constitucionalmente previstos, a Assembleia da República, através da Resolução n.º 3/94 (publicada no Diário da República, 1 série, n.° 28, de03.02.1994), aprovou, em 4 de Novembro de 1993 a Convenção de Adesão.
Ora a Convenção, em conformidade, aliás, com o regime existente em todos os Estados-membros da Comunidade (cfr. art. 41.° do nosso Código Civil ), consagrou, no n.° 1do seu art. 3°, como princípio fundamental o da liberdade de escolha da lei aplicável ao contrato, correspondente à ideia de que no domínio das obrigações provenientes de negócio jurídico prevalece o interesse das partes.
A Convenção (tal como da mesma forma preceitua o n.º 1 do art. 41.° do nosso Código Civil) estabe1ece que as partes poderão escolher, de forma expressa ou tácita, a lei que querem aplicar ao contrato que celebraram.
A vontade das partes é assim erigida como elemento ou factor de conexão decisivo no estatuto contratual, assumindo, por isso, a cláusula de escolha da lei competente um lugar de destaque.
Contudo, como as partes, ao celebrarem um contrato plurilocalizado, nem sempre escolhem a lei que querem ver aplicada, a Convenção estabeleceu critérios supletivos.
Assim, o n.° 1 do art. 4.° estabelece o princípio geral de que o contrato deve ser regulado pela lei do país com que apresente a conexão mais estreita, consagrado, no entanto, como forma de preencher tal conceito indeterminado, várias presunções de cuja concretização depende a indicação da lei mais próxima, sem prejuízo do disposto no n.º 5 do citado normativo.
No entanto, no que tange ao contrato de trabalho a Convenção estabeleceu regras específicas.
E a consagração de um regime específico para tal tipo contratual explica-se, designadamente, por se reconhecer que neste contrato a liberdade efectiva não é igual para ambas as partes, que os respectivos interesses não estão ao mesmo nível e que, por isso mesmo, há a necessidade de proteger aquela parte considerada mais débil socioeconomicamente.
Neste contexto, compreende-se perfeitamente o teor do art. 6.°, n.º 1, segundo o qual «sem prejuízo do disposto no art. 3.º, a escolha pelas partes da lei aplicáve1 ao contrato de trabalho não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que seria aplicável, na falta de escolha, por forçado n.° 2 do presente artigo.
Portanto no domínio do contrato de trabalho embora a Convenção acolha de igual modo a autonomia da vontade, essa autonomia carrega em si uma limitação, limitação essa que se fundamenta em razões idênticas às que justificam semelhantes limitações em direito material. Daí que se em direito material laboral se consagram regimes imperativos, tendentes a impedir que a parte mais forte, precisamente por o ser, imponha conteúdos contratuais lesivos à parte mais fraca, também em direito internacional privado tem sentido evitar que o desequilíbrio contratual seja aproveitado pelo mais forte para escolher a lei menos favorável para a parte mais débil.
Por isso, como salienta Moura Ramos (Da Lei Aplicável ao Contraio de Trabalho Internacional, pág. 78), um dos limites à autonomia no contrato de trabalho deve consistir na proibição de as partes escolherem leis diferentes para regularem simultaneamente diferentes aspectos do contrato, ou de escolherem uma lei para regular parcialmente o contrato.
A Convenção, porém, apenas excluiu a escolha da lei na medida em que a leiesco1hida constitua um atentado às normas imperativas do sistema que seria aplicado na ausência de escolha, quer esse sistema seja o do foro ou seja o de um país estrangeiro.
Assim, na falta de escolha feita nos termos do seu art. 3.°, e não obstante o disposto no art. 4.º, estabelece o n.° 2 do art. 6° que «o contrato de trabalho é regulado:
a) pela lei do país em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que tenha sido destacado temporariamente para outro país; ou
b) se o trabalhador não prestar habitualmente o seu trabalho no mesmo país, pela lei do país em que esteja situado o estabelecimento que contratou o trabalhador.
Distingue-se, pois, a situação em que o trabalhador executa normalmente o seu trabalho num só país, daquela outra em que ele executa habitualmente a sua actividade laboral em diversos países.
Erige-se assim como primeiro critério o do lugar de execução habitual do trabalho.
Contudo tal critério não reveste carácter absoluto já que, de acordo com o art. 6.°in fine, quando do «conjunto das circunstâncias» resultar que o contrato de trabalho apresenta conexões mais estreitas com uma lei diferente da do local onde se cumpre a prestação típica, será essa a lei aplicável.
Posto isto, e como se viu, o princípio da autonomia em direito internacional vigora em relação ao contrato de trabalho daí derivando, como regra, a faculdade de as partes escolherem a lei aplicável no âmbito do contrato de trabalho plurilocalizado.
E as partes podem fazer essa escolha de forma expressa ou implícita (acerca das modalidades de escolha da lei admitidas em direito internacional privado, na doutrina portuguesa, cf., Baptista Machado, ob. citada, pág. 362; Moura Ramos, ob. citada págs. 465 ess e Marques dos Santos, Direito Internacional Privado - Sumários, pág. 287): Assim, e por via de regra, só na falta dessa escolha, e só então, será lícito recorrer aos critérios supletivos estabelecidos na Convenção.
Chegados a este ponto questão prende-se em determinar se a autora e a ré, entidade patronal, escolheram uma lei determinada para reger o contrato que celebraram ouse, pelo contrário, nada resulta nesse sentido e então serão aplicáveis os critérios supletivos da Convenção, entre os quais se conta em primeira linha, como se notou, o locus executionis.
Ora, como resulta do texto do contrato, os contraentes escolheram, pelo menos implicitamente, a lei francesa para reger o contrato de trabalho que celebraram.
Na verdade recorrendo ao texto do contrato celebrado entre a demandante e a ré entidade patronal dele se extraem elementos que apontam claramente no sentido de que a lei que tiveram em vista foi, precisamente, a lei francesa. Assim, ficou expressamente consignado no texto do contrato: “Este contrato é regido pelo CCN do pessoal das Empresas de transporte de passageiros e é inscrito no âmbito do acordo sobre a organização e o ordenamento do trabalho, de 23 de Abril de 1997. Estes textos são consultáveis na sede da empresa” – cf. também ponto 23 da matéria de facto provada.
Porque assim, não pode deixar de se entender que os sujeitos do contrato de trabalho em apreço, ao celebrá-lo, tiveram em vista, pelo menos tacitamente, a aplicação à relação de trabalho do regime jurídico consagrado – em todos os aspectos - pela legislação francesa.
Na esteira de Baptista Machado (ob. citada, pág. 362, nota 2), entendemos que na determinação da lei aplicável por escolha tácita não está em causa propriamente um qualquer acordo tácito, mas uma simples concordância de ideias quanto à lei aplicável. Na verdade, o que interessa para a determinação da conexão não é propriamente a vontade normativa (negocial), mas como facto que só tem relevância no plano do direito internacional privado enquanto revela que lei tiveram as partes na ideia ao realizar o acto.
É certo que outra questão se pode levantar: a eventual colisão do regime legal francês, v.g. na parte respeitante às condições de legalidade do despedimento, quer substantivas quer quanto aos procedimentos a observar, com o correspondente regime, de natureza imperativa, previsto no nosso Código do Trabalho, como ainda quanto à colisão de tais regimes no que tange às consequências da ilicitude do despedimento, e, a concluir-se afirmativamente, o dever então prevalecer, não obstante o supra apontado acordo das partes, o regime legal instituído pela lei portuguesa.
Afigura-se, todavia, que carece de efectivo interesse fazer a análise de tal questão.
Com efeito, não se negando, antes se reafirmando, que a Convenção de Roma estabelece, no seu art. 6.º, n.º 1, que a escolha da lei, no âmbito de um contrato de trabalho, não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que seria aplicável na falta de escolha, o certo é que, no caso em apreço, e com o devido respeito por diverso entendimento, a lei que seria outrossim aplicável na falta de escolha seria a lei francesa.
Não se olvida que “na falta de escolha” – e atentos, no caso, os factos provados, v.g. o que consta do número 20 da lista dos factos provados-, e tendo em consideração, por outro lado, o disposto no art. 6.º, n.º 2, al. a), da Convenção, numa primeira leitura haveríamos de concluir que a lei portuguesa seria a aplicável.
Mas a esta leitura inicial havemos de contrapor o que prevê a parte final do art. 6.º da Convenção: “a não ser que resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com um outro país, sendo em tal caso aplicável a lei desse outro país.”
O que está inteiramente de acordo com o que acima se disse, e agora se sublinha, que a Convenção apenas exclui a escolha da lei na medida em que a lei esco1hida constitua uma tentado às normas imperativas do sistema que seria aplicado na ausência de escolha, quer esse sistema seja o do foro ou seja o de um país estrangeiro.
Ora, a ré é uma sociedade comercial de direito francês, que tem a sua sede em Estrasburgo, França, o contrato de trabalho, escrito, foi celebrado em língua francesa, língua esta que a autora conhece, que foi utilizada nas negociações tendentes à celebração do contrato de trabalho e que a autora utilizou durante a vigência do contrato de trabalho, designadamente nas suas relações com os colegas de trabalho e superiores hierárquicos; a autora exerceu as suas funções em embarcações de origem e matrícula francesa; a autora foi afecta a períodos alternados de trabalho e de não trabalho; a autora acordou com a ré a sua inscrição no regime de segurança social francesa, regime de segurança social esse no qual a autora foi efectivamente inscrita, e para o qual foram realizados os respectivos descontos contributivos, durante toda a relação laboral – cf. pontos 1, 2, 7, 14, 22 e 24, 25 e 26 da listados factos provados.
Todas estas circunstâncias, olhadas e ponderadas no seu conjunto, e em particular o acordo, e sua execução, em matéria de contribuições para a segurança social (pelas implicações que acarreta, até posteriormente à cessação da relação laboral), representam efectivamente, e a nosso ver claramente, uma «conexão mais estreita» com o País República Francesa/lei francesa, sendo muito menos relevante, e cedendo a primazia como conexão relevante, o facto de a autora prestar (habitualmente) o seu trabalho em território português ou ainda o de ser uma cidadã portuguesa.
De tudo o que vem dito e concluindo, é aplicável a lei francesa.”

Na globalidade estamos de acordo com o decidido, pelo que seria fastidioso e até pouco ético estarmos aqui a repetir o que se disse quanto à aplicação espacial da lei reguladora do contrato de trabalho.

No entanto, não deixaremos de aludir a determinados pontos que entendemos merecedores de um maior desenvolvimento.
Parece-nos inequívoco que as partes acordaram que à relação laboral era aplicada a lei francesa.
O Tratado de Roma no que tange à determinação da lei aplicável consagra no art.º 3.º o princípio da “autonomia privada”, por via do qual podem as partes optar pela lei que irá regular o contrato; ou seja, o contrato rege-se “pela lei escolhida pelas partes”; devendo a escolha ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias em causa, podendo através dela designar-se a lei aplicável à totalidade ou apenas a parte do contrato (n.º 1).
Porém, como forma de protecção da parte mais fraca na relação contratual/laboral e para que o aludido princípio da autonomia da vontade não leve a abusos, nem a eventuais manipulações pela parte mais forte dessa relação, consagrou-se naquela convenção um estatuto protector para o contraente mais débil, assim se compensando «a desigualdade de facto com uma desigualdade de direito, com vista ao equilíbrio»[5].
“Nesse sentido se compreende existência de regras especiais para o contrato de trabalho (que pressupõe essa desigualdade), como são as decorrentes do art.º 6.º da Convenção de Roma, onde se determina o seguinte:
“Sem prejuízo do disposto no art.º 3.º, a escolha pelas partes da lei aplicável ao contrato de trabalho não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que lhe seria aplicável, na falta de escolha, por força do n.º 2, do presente artigo.
2. Não obstante o disposto no art.º 4.º e na falta de escolha feita nos termos do art.º 3.º, o contrato de trabalho é regulado:
a) Pela lei do país em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que tenha sido destacado temporariamente para outro país; ou
b) Se o trabalhador não presta habitualmente o seu trabalho no mesmo país, pela lei do país em que esteja situado o estabelecimento que contratou o trabalhador, a não ser que resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato apresenta uma conexão mais estreita com um outro país, sendo em tal caso aplicável a lei desse outro país”.
Do referido normativo legal resulta, pois, que a escolha que as partes tenham feito no que toca à lei aplicável ao contrato de trabalho, não pode ter como consequência privar o trabalhador da protecção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que, na falta de escolha, seria objectivamente competente, fornecendo o legislador os critérios para a sua determinação, que são em primeira linha, os do país onde o trabalhador desenvolve habitualmente a sua actividade; retornando-se à cláusula geral da “conexão mais estreita”, se o trabalhador não prestar habitualmente o seu trabalho no mesmo país. Luís Lima Pinheiro, “Direito Internacional Privado”, Vol. II, 2.ª Edição pág. 203.
Como é sabido, «a regra básica de todo o direito dos conflitos é a de que: a quaisquer factos aplicam-se leis - e só se aplicam leis que com eles se achem em contacto». Baptista Machado, “Lições de Direito Internacional Privado”, 2.ª Edição Almedina, pág. 34.”[6]
Como salienta Pedro Romano Martinez[7], «[m]as, tal como dispõe o art. 6.°, n.° 1, da Convenção de Roma, não é válida a escolha de uma lei aplicável se a opção feita pelas partes vier a afastar normas imperativas do ordenamento jurídico determinado pelas regras de conflitos, que têm em vista tutelar o trabalhador. Neste caso, encontram-se, designadamente, as disposições que, quanto à ordem jurídica portuguesa, regulam a cessação do contrato de trabalho, e as que prescrevem a responsabilidade do empregador em caso de acidente de trabalho. Mas nem todas as normas de Direito do Trabalho são imperativa se, ainda que injuntivas, pode o regime laboral português ser preterido mediante opção das partes por um outro ordenamento, excepto com respeito a princípios fundamentais, onde existirão normas de aplicação imediata, a que também alude o art. 7.° da Convenção de Roma.”
Também o artigo 22º, nº 1 do Código Civil estatui que “não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português”.
As normas referentes à cessação laboral são normas de aplicação necessária e imediata, tendo em conta a protecção constitucional atribuída pelo artigo 53º da Constituição da Republica Portuguesa.
De acordo com este preceito constitucional é «garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos».
Segundo JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA[8], «o significado preciso desta garantia é evidente, traduzindo-se na negação clara do direito ao despedimento livre ou discricionário por parte dos empregadores, em geral, que assim deixam de dispor das relações de trabalho» e prosseguem os mesmos autores, referindo que «uma vez obtido um emprego, o trabalhador tem direito a mantê-lo, salvo justa causa, não podendo a entidade empregadora pôr-lhe fim por sua livre vontade».
É, assim, a proibição da discricionariedade na cessação da relação de trabalho que basicamente é proibida por esta norma constitucional, pelo que a entidade empregadora, em nome do direito à estabilidade do emprego, não pode pôr termo à relação de trabalho sem ter um motivo juridicamente válido e relevante para isso[9].
No caso em apreço, a lei francesa no seu Código do Trabalho (“Code du Travail”) estatui no seu “article L1232-1” que “Tout licenciement pour motif personnel doit être justifié par une cause réelle et sérieuse. “Daqui se extrai que o despedimento pressupõe uma causa real e séria ou grave. Portanto, o despedimento não pode ocorrer sem justa causa, ou como prevê a legislação francesa “une cause réelle et sérieuse”.
Assim sendo, não se pode dizer que a aplicação da lei francesa, neste ponto, envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português, nomeadamente o artigo 53º da Constituição.
Por outro lado, no que toca ao procedimento disciplinar também não vislumbramos que a lei francesa, nesta questão, ponha em causa princípios fundamentais da ordem pública internacional ou que viole o artigo 53º da CRP. É verdade, que o procedimento disciplinar previsto na lei francesa não é igual ao previsto na legislação portuguesa (cfr. artigos 352º e ss do Código do Trabalho), no entanto, os artigos L 1332-1 e ss. da lei francesa consagram o princípio da defesa do trabalhador, a audiência deste, o seu acompanhamento por outra pessoa, os motivos da sanção a aplicada, a sua fundamentação e notificação. Portanto, da aplicabilidade da lei laboral francesa não resultam para o trabalhador a exclusão ou até diminuição das suas garantias de defesa, pelo, que não se vislumbra a violação de quaisquer normas de ordem pública internacional do Estado Português, nomeadamente o artigo 53º da Constituição.
E tanto assim é, que se perguntássemos se o legislador português modicasse o código do trabalho no que de refere ao procedimento disciplinar e impusesse normas semelhantes à lei francesa, haveria qualquer violação do artigo 53º da CRP? A resposta, salvo melhor opinião, não poderia deixar de ser negativa. Isto porque, o despedimento continuava dependente da existência de justa causa e as normas procedimentais continuavam a assegurar o princípio do contraditório e da defesa.
Assim sendo, temos por certo que ao caso se aplica a legislação francesa. E foi com base nessa aplicação que a sentença recorrida entendeu que o despedimento da aqui recorrente foi lícito, uma vez que os factos por si praticados são graves e merecedores de grande censura.
E foi assim que se escreveu o seguinte:
Com efeito provou-se que:
- No dia 26/09/2008, a bordo da embarcação "G…", a autora colocou numa garrafa de água mineral vazia um líquido de natureza química, á base de detergente e com efeitos abrasivos, que guardou junto de outras garrafas de água destinadas ao consumo no Salão – Bar.
- Pelas 18:30 horas desse dia a animadora da embarcação ingeriu, ainda que só parcialmente, um copo do líquido colocado no interior da aludida garrafa.
- Como consequência do sucedido a referida animadora sofreu queimaduras ao nível da boca e lábios.
– Os danos só não foram mais graves porque a dita funcionária não deglutiu o líquido.
- Nessa sequência, a animadora foi socorrida pela comissária de bordo, após o que ordenou à autora que procedesse à eliminação do líquido e destruição da garrafa.
- Ordem a que autora apenas obedeceu após diversas interpelações da referida comissária de bordo.
- Antes a autora tem dois antecedentes disciplinares registados durante o período de tempo em que laborou para a C…, S.A.
Ainda que nada se tenha apurado no sentido de que a autora agiu propositadamente, com intenção de provocar qualquer dano ou lesão, afigura-se inquestionável que o seu comportamento traduz um manifesto desleixo – ainda que a autora tivesse colocado um “postit”, o que de resto não provou, a indicar que a garrafa, de água mineral vazia, continha um “produto detergente” por tal não se devia considerar autorizada a colocar tal garrafa (com um líquido de natureza química, à base de detergente e com efeitos abrasivos) junto de outras garrafas de água destinadas ao consumo, pois que, como parece evidente, o perigo de uma pessoa vir a ingerir inadvertidamente o líquido colocado na garrafa em questão persistia -,sendo por si idóneo a causar mais graves consequências, para a saúde de quem ingerisse o líquido que colocou na garrafa em causa, do que aquelas que, felizmente, veio efectivamente a causar, mas mesmo assim, e no mínimo, bem desagradáveis para a trabalhadora que as sofreu– queimaduras ao nível da boca e lábios.
De assinalar, ainda, como agravantes da conduta da trabalhadora/autora, que só após diversas interpelações da Comissária de Bordo para que procedesse à eliminação do líquido e destruição da garrafa é que a autora o fez, e que a autora tem dois antecedentes disciplinares registados durante o período de tempo em que laborou para a ré, embora se desconheça a gravidade dos comportamentos sancionados.
Ante o exposto, afigura-se curial que a entidade patronal haja perdido a confiança depositada na autora, questionando com razão o bom cumprimento das funções da autora no futuro.
Quanto ao mais, afigura-se que a ré levou a cabo a reunião preliminar a que aludem os artigos L. 1232-2, L. 1232-3 e L. 1232-4 do Código do Trabalho Francês – cf. pontos 16 e 34e 35 dos factos provados, e documento de fls 33 a 35 dos autos.
Quanto à ré não ter autorizado que a autora se fizesse assessorar por advogado, tal não ficou demonstrado, como não se apurou (ademais, e tão pouco foi alegado) que se verificavam quaisquer circunstâncias que impunham, à luz da lei francesa, que fosse facultado à autora que se fizesse acompanhar por advogado – cf. art. L. 1232-7 do Código do Trabalho Francês.
Também parecem ter sido observados os requisitos previstos no art. L. 1232-6 do Código do Trabalho Francês – quanto ao envio da carta, não sabemos efectivamente em que data ocorreu, não obstante a data aposta na mesma, mas sendo até que a autora só a veio a recepcionar em 14 de Outubro de 2008.
Destarte, não se vislumbra onde basear a ilicitude do despedimento da autora, antes se concluindo pela licitude do mesmo.”

Concordando nós, como concordamos, com estas considerações, nada mais temos a acrescentar, que não seja declarar a licitude do despedimento da Autora e a consequente improcedência do recurso.
◊◊◊
3.
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA

As custas do recurso ficam a cargo da recorrente [artigo 527º, nºs 1 e 2, do actual Código de Processo Civil].
◊◊◊
◊◊◊
◊◊◊
IV
DECISÃO
Em face do exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em:
a) Julgar improcedente o recurso interposto pela Autora B… e, em consequência manter a sentença recorrida.
b) Condenar a Recorrente no pagamento das custas do recurso.
◊◊◊
Anexa-se o sumário do Acórdão – artigo 663º, nº 7 do actual CPC.
◊◊◊
(Processado e revisto com recurso a meios informáticos (artº 138º nº 5 do Código de Processo Civil).
Porto, 05 de Maio de 2014
António José Ramos
Eduardo Petersen Silva
Paula Maria Roberto
____________
[1] Acórdão do STJ de 27/04/2007, in www.dgsi.pt.
[2] “Recursos em Processo Civil – Novo Regime”, 2ª ed., Revista e Actualizada, pág. 94.
[3] Acórdão de 01/10/02, CJSTJ, Tomo III, pág. 65.
[4] Acórdão de 29/04/1998, BMJ 476º/401.
[5] Rui Moura Ramos, “Das Relações Privadas Internacionais”, Coimbra Editora, pág. 200, apud Acórdão da Relação de Lisboa de 15/12/2011, Processo nº 149/04.0TTCSC.L1-4, in www.dgsi.pt.
[6] Acórdão da Relação de Lisboa de 15/12/2011, Processo nº 149/04.0TTCSC.L1-4, in www.dgsi.pt.
[7] Direito do Trabalho, 2ª edição (reformulada e adoptada ao Código do Trabalho), Almedina, pp 246/247.
[8] JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 2007, p. 707.
[9] Neste sentido Acórdão do STJ de 11/07/2012, processo nº 377/07.7TTFUN.L1.S1., in www.dgsi.pt.
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SUMÁRIO – a que alude o artigo 663, nº 7 do CPC.
I – Quer à face da Convenção de Roma (artigo 3.º), quer à face do Código do Trabalho de 2003 (artigo 6.º, n.º 1), o primeiro critério para a determinação da lei aplicável é o critério da vontade das partes: se as partes escolheram determinada a lei aplicar na resolução dos litígios emergentes do contrato de trabalho é essa lei que deverá será aplicada.
II – A escolha da lei pelas partes deve ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa.
III – O segundo critério, ou regra supletiva, que actua na falta de escolha da lei pelas partes, é o critério da conexão mais estreita (cfr. os artigos 6.ºs, n.ºs 2, quer da Convenção de Roma, quer do Código do Trabalho), a qual é aferida pelo local habitual da prestação do trabalho e pela localização do estabelecimento onde o trabalhador foi contratado, se o trabalhador não trabalhar habitualmente noutro Estado, ou por outras circunstâncias aplicáveis à situação.
IV - tal como dispõe o art. 6.°, n.° 1, da Convenção de Roma, não é válida a escolha de uma lei aplicável se a opção feita pelas partes vier a afastar normas imperativas do ordenamento jurídico determinado pelas regras de conflitos, que têm em vista tutelar o trabalhador.
V – Tendo as partes acordado que à relação contratual se aplicava a lei francesa, e prevendo esta legislação que no caso de despedimento tem de se verificar uma “cause réelle et sérieuse”, prevendo-se ainda no que toca ao procedimento disciplinar o principio do contraditório, da defesa e da fundamentação da decisão, inexistem razões para aplicar a lei portuguesa, já que não está em causa o principio constitucional consagrado no artigo 53º da CRP.

António José Ramos