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FRIEZA DE ÂNIMO
MEIO INSIDIOSO
LICENÇA DE DETENÇÃO DE ARMA NO DOMICÍLIO
HOMICÍDIO
CONCURSO APARENTE
CONSUNÇÃO
Sumário
I – Atua com frieza de ânimo o agente que tomou a resolução de matar a vizinha na noite anterior à prática dos factos e a manteve ao longo de mais de 10 horas. II - A qualificação de uma determinada conduta como atuação insidiosa passa pela análise da concreta situação da vítima e da forma como o agente executou o ato. III – Comete o crime de Detenção de arma proibida, do art. 86º, nº l, al. c), da Lei n° 5/2006, de 23.02 (na redação dada pela Lei n° 17/2009, de 06.05) o agente que, sendo titular de “licença de detenção de arma no domicílio” a utiliza para matar outrem. IV – O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio; e, no caso concreto, a lei não prevê uma agravação mais elevada para o crime, razão pela qual a respetiva pena deve ser agravada nos termos do nº 3 do art. 86.º da Lei 5/2006. V – Se o uso da arma pelo arguido se traduziu num ato instantâneo, esgotando-se na prática do homicídio, entre as duas condutas verifica-se uma relação de instrumentalidade ou funcionalidade típica, justificativa da consunção, na medida em que o uso da arma constitui, instrumentalmente, um elemento do tipo de culpa do crime de homicídio.
Texto Integral
Proc. nº 1586/12.2JAPRT.P1
1ª secção
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Coletivo que corre termos na 2ª Vara Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia com o nº 1586/12.2JAPRT, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferido acórdão, depositado em 12.12.2013, que condenou o arguido:
- pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. nos artºs. 131º e 132º nºs 1 e 2 al. j), ambos do Cód. Penal, na pena de 19 anos de prisão;
- pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 86º nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006 de 23.02, por referência ao artº 3º nº 6 al. c) do mesmo diploma, com as alterações introduzidas pela Lei nº 17/2009 de 06.05, na pena de 1 ano e seis meses de prisão;
- efetuado o cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, foi o arguido condenado n a pena única de 19 (dezanove) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Mais foi o arguido/demandado B… condenado a pagar às demandantes C… e D…, em partes iguais, a quantia de € 80.000,00 e a cada uma das demandantes a quantia de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais, em ambos os casos acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data do acórdão até efetivo e integral pagamento.
Inconformado com o acórdão condenatório, dele veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. Da conjugação dos meios de prova produzidos nos autos, em particular a documental, da testemunha E… e das declarações prestadas pelo próprio arguido, resultou demonstrada factualidade contrária àquela que foi integrada sob os pontos 6) e 7) dos factos tidos por provados;
2. Devendo tal decisão ser modificada, consignando-se como não provado que o arguido na noite de 12.09.2012 para 13.09.2012 tivesse formado o propósito de matar F…, e que em execução de tal propósito, tivesse nessa noite municiado a dita arma com dois cartuchos a fim de, no dia seguinte, de manhã, matar F…a;
3. Impondo-se, por conseguinte, proceder à reapreciação dos apontados meios de prova testemunhal (depoimento da testemunha E… e do arguido), os quais estão registados em suporte áudio e, consequentemente, ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto concretamente indicada, dando por não provados os apontados factos constantes dos pontos 6) e 7) que integram o relatório da fundamentação do acórdão recorrido, com a consequente modificação da decisão recorrida, em obediência ao preceituado pelo artº 412º nº 3, 4 e 6 do CPP;
4. Sem prescindir, resulta da prova produzida que o arguido é portador de doença psíquica que lhe afeta a sua personalidade, circunstância que deveria ter sido tomada consideração na qualificação da conduta, dado que tal anomalia afeta a formulação do juízo de culpa, neutralizando a aparente “frieza” da sua ação;
5. Não houve premeditação na conduta do arguido, nem qualquer outra circunstância que esteja possa enquadrar-se na definição de “frieza de ânimo”;
6. Isto posto, necessariamente terá de ser afastada a qualificação da conduta do arguido, por referência à alínea j) do artº 132º nº 2 do CP, uma vez não se mostra verificado que o mesmo tenha agido de forma calculada, reflexiva ou insensível, de forma a considerar-se por verificada a ocorrência de frieza de ânimo ou seja, não existe fundamento para o crime de homicídio ser qualificado;
7. E, assim, logicamente, o crime efetivamente praticado pelo arguido por cuja autoria terá necessariamente de ser condenado, é o de homicídio simples, p. e p. no artº 131º do Cód. Penal;
8. O arguido era titular de licença de autorização permanente de detenção de arma no domicílio;
9. O disparo da arma pelo arguido foi efetuado no “quintal da sua casa”;
10. A decisão recorrida efetuou uma errada aplicação da lei, ao determinar que o arguido fez uso da arma fora do seu domicílio, razão pelo qual o condena na prática do crime de detenção de arma proibida;
11. Dado que o recorrente era titular de licença de detenção de arma no seu domicílio, e uma vez que o local do crime corresponde ao quintal que integra o seu domicílio, não pode entender-se que violou a autorização de detenção que possui, pois por “domicílio” deve entender-se não apenas como abrangendo a área coberta mas ainda a área descoberta (pátio, jardim, quintal, logradouro, alpendre, etc.);
12. Assim, e salvo o devido respeito por opinião em contrário, o recorrente deveria ter sido absolvido do crime de detenção de arma proibida;
13. Donde resulta a errada condenação do recorrente, pelo que igualmente importa proceder à revogação do acórdão recorrido.
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Na 1ª instância o Ministério Público não respondeu às motivações de recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO O acórdão sob recurso considerou provados os seguintes factos: (transcrição)
1) Desde há cerca de 2 anos que o arguido e F…, proprietária da casa onde aquele residia, localizada na Rua …, …, em …, Vila Nova de Gaia, mantinham um litígio judicial sobre o direito ao arrendamento daquela casa.
2) Ambos eram vizinhos, uma vez que F… residia na casa correspondente ao n.º … da aludida artéria, situando-se, ambas, no mesmo imóvel, a da F… no piso superior e a do arguido no inferior.
3) O mencionado litígio iniciou-se com a propositura, por parte do arguido de uma ação que correu os seus termos pela 1.ª Vara Mista deste Tribunal, sob o n.º 7415/10.4TBVNG, na qual peticionava a condenação daquela a reconhecer que o direito ao arrendamento do dito imóvel, por morte da arrendatária, sua mãe, lhe havia sido transmitido, por força da incapacidade que possuía, pugnando, por seu turno, a F…, pela cessação do arrendamento.
4) O aludido processo terminou, na sequência de transação celebrada entre ambos, homologada por sentença transitada em julgado, ficando acordado que o direito ao arrendamento do imóvel não se transmitia ao arguido, ao qual a F… concedeu um prazo até 31/3/2012, para fazer a entrega da habitação, livre de pessoas e bens.
5) Chegada a supra mencionada data, como o arguido não desocupou a habitação, a F… intentou acção executiva, para entrega de coisa certa, à qual foi atribuído o n.º 477/12.9TBVNG e correu termos pelo Juízo de Execução deste Tribunal, por apenso à qual o arguido deduziu incidente de diferimento de desocupação de imóvel arrendado, incidente esse que foi indeferido, na sequência de sentença proferida no dito apenso (processo 4779/12.9TBVNG-A), no dia 7/9/2012.
6) Após tomar conhecimento de tal decisão, o que sucedeu em data não concretamente apurada, ocorrida entre 07.09.2012 e 12.09.2012, por ter de abandonar a habitação, na noite de 12.09.2012 para 13.09.2012 o arguido formou o propósito de matar a F….
7) Em execução de tal propósito, nessa noite, o arguido, que em tempos havia sido caçador, pelo que tinha na sua posse e era proprietário de uma espingarda caçadeira de calibre 12 mm Gauge (arma da Classe D), de marca Tulsky Oruzheiny Zavod, com o n.º de série ……., de 2 canos paralelos, sobrepostos, basculantes, de alma lisa, com fita de refrigeração no cano superior, de tiro a tiro e percussão central, com o comprimento total de cerca de 113 cm, medindo os canos 71 cm, municiou a dita arma com dois cartuchos do aludido calibre, a fim de, no dia seguinte, de manhã, matar a F….
8) No dia 13/9/2012, cerca das 9h00, sempre constante no propósito de matar a F…, o arguido logo que a avistou no quintal de sua casa, muniu-se da supra descrita caçadeira e deslocou-se em sua direção pelo seu quintal, o qual confinava com o da F.. e lhe permitia ter visibilidade e ângulo de disparo para o mesmo.
9) E, durante o percurso, quando a ofendida F… se encontrava de costas para si e a uma distância de cerca de 4 metros, o arguido apontou a caçadeira na direção da mesma, visando a parte superior do respetivo corpo - onde sabia alojarem-se órgãos vitais – e, com o propósito de a matar, efetuou um disparo.
10) Os projéteis – bagos de chumbo – deflagrados, na sequência do disparo efetuado pelo arguido, atingiram F… na zona da cabeça e parte superior do tronco, do lado direito, provocando-lhe, para além de outras, lesões traumáticas crânio-meningoencefálicas e torácicas, nomeadamente, ao nível dos ossos da abóboda da cabeça: dois traços de fratura irregulares, com infiltração sanguínea, perpendiculares entre si, envolvendo os ossos frontal, parietal e temporal direitos, o maior com nove centímetros de comprimento e traço de fratura irregular, com infiltração sanguínea, a nível do osso temporal esquerdo, com cinco centímetros de comprimento; ao nível dos ossos da base da cabeça, dois traços de fraturas irregulares, com infiltração sanguínea, um com direção anterior e outro posterior, o maior com quatro centímetros de comprimento, fratura multicominutiva dos andares anterior e médio à direita e fratura, com infiltração sanguínea dos topos ósseos, em dobradiça, entre os andares anterior e médio, envolvendo a sela turca; ao nível da meninges, hemorragia subdural em toalha fina generalizada bilateralmente e focos de hemorragia subaracoideia bilateral, encontrando-se um projétil alojado no espaço subdural a nível do lobo parietal esquerdo, com infiltração sanguínea circundante e, ao nível do encéfalo, presença de projétil metálico, com forma irregular, de cerca de cinco milímetros de diâmetro, alojado na espessura do parênquima do lobo frontal esquerdo, com focos de contusão intraparenquimatosos nos lobos frontal, temporal e occipital direitos e frontal esquerdo -, as quais foram causa direta e necessária da respetiva morte.
11) O trajeto descrito pelos projéteis disparados pelo arguido, no corpo da vítima, foi de trás para a frente, da direita para a esquerda e de baixo para cima.
12) O arguido conhecia a elevada letalidade da arma utilizada, em disparos de curta distância, por força da forma de dispersão dos chumbos, em trajetos curtos.
13) O arguido muniu-se da arma de fogo acima descrita e disparou-a quando aquela se encontrava a escassos metros e de costas para si.
14) O arguido matou a F… pelo facto de ter que abandonar a habitação.
15) O arguido não era titular de licença de uso e porte de arma, mas era titular de licença de detenção da arma em causa, no respetivo domicilio.
16) O arguido tinha, ainda, na ocasião, no interior da respetiva residência, trinta munições de arma de fogo – cartuchos carregados, com chumbos de caça – de calibre 12 mm Gauge, em bom estado de conservação e funcionamento, próprios para a arma de fogo que utilizou.
17) O arguido ao disparar sobre F… na forma descrita, quis e conseguiu, na sequência de resolução por si tomada, atingi-la em zonas do corpo que sabia albergarem órgãos vitais, a fim de lhe causar, como causou, a morte, pelo facto de ter que abandonar a sua habitação.
18) O arguido sabia que não lhe era licito ter na sua posse, guardar e deter a arma em causa fora do seu domicilio, em virtude de não ser titular de licença de uso e porte de arma e de ser titular apenas de licença de detenção no domicilio e, não obstante, quis fazê-lo, agindo da forma descrita.
19) O arguido sabia que não lhe era licito usar a arma em causa, em virtude de não ser titular de licença de uso e porte de arma e de ser titular apenas de licença de detenção no domicilio e, não obstante, quis fazê-lo, agindo da forma descrita.
20) O arguido sabia que não lhe era lícito ter na sua posse, guardar, deter e usar as munições, em virtude de não ser titular de licença de uso e porte de arma e de ser titular apenas de licença de detenção no domicilio e, não obstante, quis fazê-lo, agindo da forma descrita.
21) Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
22) A vitima F… era uma pessoa de origens humildes que com o seu marido procuraram e conseguiram alcançar estabilidade que lhe permitia augurar o seu futuro com tranquilidade.
23) Conseguira formar as duas filhas com cursos superiores.
24) Acompanhava a sua neta diariamente.
25) A vitima diariamente tratava do seu quintal e das suas plantas.
26) As demandantes juntamente com a sua mãe e entre si constituíam um núcleo familiar unido, apoiando-se mutuamente.
27) A demandante D… vivia com a mãe e a demandante C… diariamente estava presente, sendo a sua mãe que tomava conta da sua filha.
28) As demandante passavam usualmente férias em conjunto com a mãe e acompanhavam-na à piscina e aos tratamentos que necessitava.
29) As demandantes eram filhas dedicadas e a vítima F… era igualmente dedicada às filhas e neta.
30) A demandante D… deparou-se com a mãe morta e quase seguidamente a demandante C….
31) Imagens que não mais vão esquecer.
32) Foi a demandante D…, enfermeira de profissão, quem prestou os primeiros socorros, tendo efetuado as manobras técnicas adequadas.
33) As demandantes sofreram e ainda sofrem dor pela morte da sua mãe.
34) As demandantes viveram horas de angústia.
35) A demandante C… sofreu ainda angústia ao ver a sua filha privada do convívio da sua avó a quem se encontrava ligada.
36) Em 12.11.1993 foi concedida ao arguido licença de autorização permanente de conservar no seu domicilio, a título de simples detenção, a arma descrita no ponto 7) dos factos provados.
37) O arguido desde 1980 que frequenta consultas de psiquiatria em centros hospitalares em virtude de lhe ter sido diagnosticado e padecer de doença psíquica que se consubstancia num distúrbio de personalidade, apresentando características de uma personalidade antissocial, o que o obriga a manter tomar de forma regular medicação específica diária.
Desde 2010 que o acompanhamento médico do arguido deixou de ser regular com o seu médico psiquiátrico por estar clinicamente estabilizado, mantendo a toma regular de medicação.
38) Em 12.10.2005 o arguido foi considerado portador de uma deficiência correspondente ao capítulo X, de Grau V, com uma desvalorização de 75%, por referência à Tabela Nacional de Incapacidades.
Tal situação clínica foi confirmada em 10.05.2010 e 19.09.2012.
39) O arguido possui o 1º ciclo do ensino básico.
Aos 13 anos de idade iniciou atividade profissional como operário têxtil até aos 18 anos de idade. Mais tarde retomou as funções de operário têxtil em regime noturno. O seu percurso profissional terminou em 1981 após lhe ter aparecido o problema de saúde, pelo qual foi reformado por invalidez.
O arguido casou e teve uma filha, tendo se divorciado em 1992, ficando desde então isolado com a progenitora, a quem prestou os cuidados básicos continuados entre 2008 e 2010, ano em que faleceu. Desde então o arguido passou a viver sozinho.
À data dos factos o arguido vivia sozinho, sem interações com os vizinhos, em isolamento familiar e social.
Recebe uma pensão de invalidez no valor de € 279,00.
No E.P., onde se encontra em prisão preventiva à ordem destes autos, beneficia de acompanhamento das especialidades de psiquiatria e de psicologia, efetuando medicação que lhe possibilita regularizar e melhorar a qualidade do sono. Não detém qualquer ocupação, continua a privilegiar a vivência solitária, ocupando o seu tempo com o tratamento da roupa e algumas vezes jogo coletivo de damas.
Recebe visitas da sua filha e neto.
40) O arguido não tem antecedentes criminais.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: (transcrição)
Não se provaram todos os demais factos constantes da acusação, do pedido de indemnização civil e da contestação, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
Deste modo, não se provou nomeadamente: §1. Da Acusação:
a) que o arguido formou o propósito de matar F… entre 07.09.2012 e 11.09.2012;
b) que o arguido conhecia as rotinas de F… e que sabia que a mesma deslocava-se todos os dias, sensivelmente entre as 8h45 e as 9h00, ao quintal da respetiva residência, a fim de alimentar algumas aves de capoeira que possuía e levar a cabo outras pequenas tarefas domésticas;
c) que no dia 12.09.2012 o arguido procedeu à limpeza cuidadosa da arma aludida no ponto 7) dos factos provados;
d) que no dia 13.09.2012 o arguido posicionou-se no seu quintal, emboscado em local onde o mesmo confinava com o da F…;
e) que o arguido permaneceu no propósito de matar por mais de 24 horas;
f) que o arguido emboscou-se para executar os seus intentos;
g) que o arguido matou F… pelo facto daquela ter obtido vencimento no litígio judicial que haviam mantido;
h) que o arguido não era titular de licença de detenção da arma no domicilio. §2. Do Pedido de Indemnização Civil:
a) que a vitima F… se tenha apercebido da morte ainda que por escassa fração de segundo;
b) que tenha sido a demandante C… quem se deparou com a mãe morta;
c) que as demandantes receiam o que o requerido possa a vir a fazer no futuro quando alcançar a liberdade, receio que permanentemente as acompanha e de que não conseguem libertar-se. §3. Da Contestação:
a) que a doença do foro psíquico veio a agravar-se com a morte da mãe do arguido;
b) que a ação judicial instaurada pela vitima com vista à desocupação da residência agravou o estado de saúde psíquica do arguido;
c) que o arguido não tem capacidade de discernimento entre o bem e o mal;
d) que o arguido não tem a noção de anti-juricidade da sua conduta;
e) que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação o arguido não tinha consciência da ilicitude da sua conduta, atuando sem capacidade de formular um entendimento de querer;
f) que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação o arguido não estava dotado da plena capacidade de entender e de querer.
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição) I- Dos Factos Provados
No que concerne aos factos provadoso tribunal alicerçou-se nas regras de experiência comum, em conjugação com o conjunto da prova produzida, nomeadamente:
A) Nas declarações prestadas em audiência pelo arguido B… que confessou ter municiado a sua arma na noite de 12 para 13 de Setembro de 2012, tendo explicado (verbalmente e por gestos) em que circunstâncias disparou a arma em direção da vitima F….
B) Nos depoimentos das seguintes testemunhas:
1) G…, inspetor da P.J., que se deslocou ao local e explicado de forma isenta e credível a distância em que a arma foi disparada (foi encontrada uma bucha projetada a 4 metros do corpo), a visibilidade da vítima aquando do disparo, bem como apreendeu a arma em causa.
2) D…, filha da vítima F…, que foi a primeira pessoa a chegar ao local após o disparo efetuado pelo arguido e encontrou a sua mãe prostrada no quintal de sua casa, tendo deposto, ainda de que forma emocionada, com isenção, objetividade e credibilidade.
3) C…, filha da vítima F…, que foi a segunda pessoa a chegar ao local após a sua mãe ter sido atingida, tendo deposto de forma livre e convincente (ainda que emocionada).
4) H…, que conhecia a vítima F… há cerca de 40 anos, tendo esta sido ama do seu filho, tendo deposto de forma isenta e credível quanto à factualidade alegada no pedido de indemnização civil e dada como provada, revelando ter sobre a mesma conhecimento direto.
5) I…, há cerca de 40 anos, tendo esta sido ama do seu filho, tendo deposto de forma livre e convincente quanto à factualidade alegada no pedido de indemnização civil e dada como provada, revelando ter sobre a mesma conhecimento direto.
6) J…, prima da vítima F…, que revelou ter conhecimento direto sobre a vida da falecida F…, a sua relação com as suas duas filhas e neta e o estado emocional das demandantes, tendo deposto de forma isenta, livre e credível.
7) E…, médico psiquiátrico do arguido desde 1983/1984, que descreveu de forma elucidativa, pormenorizada, isenta e convincente o estado psíquico de que padece o arguido.
8) K…, filha do arguido, que retratou o estado emocional do seu pai, tendo deposto de forma isenta e credível.
C) No teor dos seguintes documentos:
1) Nas fotografias de fls. 48- 59 que retratam o quintal da habitação do arguido contíguo ao da vítima, o quintal da vítima visto do lado do interior do quintal do arguido e o quintal da vítima, o local onde a vítima foi encontrada, o local onde foi encontrada a bucha deflagrada, o corpo da vítima onde, o local onde foram encontradas a arma e as munições.
2) Nos relatórios médicos de fls. 83, 408 e 409, dos quais consta que o arguido frequenta com regularidade consulta de psiquiatria desde 1980 no centro hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, apresentando uma regressão da personalidade e modificação dos seus padrões do comportamento.
3) No atestado médico de fls. 84 e 407 do qual consta que o arguido foi considerado portador de uma deficiência correspondente ao capítulo X, de Grau V, com uma desvalorização de 75%, por referência à Tabela Nacional de Incapacidades.
4) No assento de nascimento de fls. 124-125 do qual se atesta que C… é filha da vítima F….
5) No assento de nascimento de fls. 126-127 do qual se atesta que D… é filha da vítima F….
6) No assento de óbito de fls. 253 do qual consta o óbito de F….
7) No documento de fls. 257 e 305 – informação da PSP – do qual consta que o arguido não é titular de licença de uso e porte de arma.
8) No relatório de autópsia de fls. 263-272 no que concerne às zonas do corpo atingidas pelo disparo, às lesões sofridas pela vítima F… e à causa da sua morte.
9) No certificado de registo criminal de fls. 274 quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido.
10) Nas certidões de fls. 281-283 e 284-299 e na informação de fls. 301 quanto aos factos constantes nos pontos 1), 3) a 5) e 1ª parte do ponto 6) dos factos provados relativos às ações judiciais instauradas pelo arguido e a vítima F….
11) No documento de fls. 525 – autorização permanente – do qual consta que em 12.11.1993 foi concedida ao arguido autorização para deter no seu domicilio a arma aqui em apreço.
12) No relatório social de fls. 531-535 relativamente à situação pessoal e familiar e profissional do arguido.
D) No teor dos seguintes autos e relatórios periciais:
1) No auto de apreensão de fls. 30 quanto à apreensão da arma, dos cartuchos inseridos na arma, das munições e cartuchos encontrados na habitação do arguido e da bucha encontrada junto ao cadáver.
2) No auto de exame de fls. 31-32 no que concerne à descrição e características da arma e das munições apreendidas.
3) No relatório de exame pericial de fls. 168-178 que concluiu que a arma apreendida de calibre 12 encontra-se em boas condições de funcionamento, que o cartucho apreendido foi deflagrado no cano interior da referida arma, que dos 30 cartuchos apreendidos 14 deles encontravam-se em boas condições de utilização, admitindo que os restantes, não testados, se apresentam em idênticas condições, a bucha apreendida constitui um elemento proveniente de um cartucho de caça de calibre 12.
4) Nos relatórios de perícia médico-legal de fls. 478-481 e 483-485 que concluiu que o arguido apresenta uma perturbação da personalidade, apresentando características de uma personalidade antissocial, não apresenta défices que o impeçam de assumir voluntariamente a voluntariedade, intencionalidade e responsabilidade pelos seus comportamentos, tem consciência da censura social da conduta que lhe é imputada, tem consciência da ilicitude da conduta que lhe é imputada e entende a gravidade dos factos que lhe são imputados.
No que concerne à intenção de matar por parte do arguido formulada na noite de 12 para 13 de setembro de 2012 (na modalidade de dolo direto), para além dos meios de prova acima elencados, o tribunal teve em consideração o facto do arguido ter nessa altura municiado a sua arma conforme o mesmo declarou em audiência de julgamento. Todavia, não foram valoradas as declarações do arguido na parte em que este afirmou que carregou a arma para se matar (ou para matar a vítima), porquanto, as mesmas não se mostram plausíveis na parte em que afirma que a arma poderia ser para se matar desde logo atento o local onde o arguido colocou a arma após a ter carregado (encostada numa parede da cozinha junto à porta), sendo que no dia seguinte quando o arguido avistou a vítima foi por esse local que o mesmo saiu em direção à mesma e disparou a arma. Acresce ainda que, das declarações do arguido quanto ao momento em que se muniu da arma (logo que viu a vítima pela manhã), da explicação demonstrativa do arguido quanto ao modo e de que forma disparou a arma em direção à vítima e do depoimento da referida testemunha G… (do local do disparo o arguido tinha possibilidade de ver o corpo todo da vitima), bem como atento o tipo de arma utilizada, a distância em que a mesma foi disparada pelo arguido, a posição da vítima aquando do disparo e as zonas atingidas resulta de, forma inequívoca, que o arguido quando disparou a sua arma fê-lo na sequência de um propósito por si formulado de matar F…. II- Dos Factos Não Provados A) Da acusação:
1) Quanto aos factos não provados sob as als. a) a f) importa apenas salientar que sobre eles não foi produzido qualquer meio de prova.
2) No que concerne ao facto não provado sob a al. g) cumpre assinalar nenhum meio de prova produzido corroborou tal factualidade, tendo o arguido explicado o motivo pelo qual resolveu disparar a sua arma para atingir a vítima (“por ter que abandonar a sua habitação”).
3) No que respeita ao facto não provado sob a al. h) há que referir que do documento de fls. 525 resulta que o arguido é titular de licença de detenção no domicilio da arma apreendida. B) Do Pedido de Indemnização Civil:
1) Quanto aos factos não provados importa apenas salientar que sobre eles não foi produzido qualquer meio de prova. C) Da Contestação:
1) Quanto aos factos não provados cumpre consignar que sobre eles não foi produzido qualquer meio de prova. De facto, quer os relatório médico-legais de fls. 478-481 e 483-485 e quer a referida testemunha E.. (médico do arguido) não confirmaram a factualidade em causa alegada na contestação.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso em apreço, resulta das conclusões do recurso que o recorrente delimita o respetivo objetoà inexistência da circunstância qualificativa prevista na al. j) do nº 2 do artº 132º do C.Penal - “frieza de ânimo”, bem como à condenação pelo crime de detenção de arma proibida.
A) Da qualificação do crime de homicídio:
Alega o recorrente que a patologia do foro psíquico, de que padece, aliada ao facto de ter de abandonar a sua habitação na sequência de litígio judicial mantido com a vítima por mais de 2 anos, provocou-lhe perturbação grave do entendimento e raciocínio, não podendo por isso o tribunal considerar provado que “ao municiar a arma na noite na noite anterior à manhã do crime, o arguido atuou com a premeditação de atentar contra a vítima”, uma vez que o terá feito com o propósito de se suicidar, como resulta das declarações prestadas pelo arguido em audiência.
Ora, contrariamente ao invocado pelo recorrente, a patologia de que padece não “afeta a formulação do juízo de culpa, neutralizando a aparente frieza da sua ação”.
Do relatório de perícia psicológica forense de fls. 479 a 481 resulta que o arguido “tem consciência da ilicitude do seu comportamento e da censura social do mesmo”, “reúne um conjunto de competências que lhe permitem responsabilizar-se pelas suas ações, isto é, […] não apresenta défices que o impeçam de assumir a voluntariedade, intencionalidade e responsabilidade pelos seus comportamentos”, o seu funcionamento psicológico pauta-se pela tendência a manter relações de domínio sobre os outros, […] baixa ressonância afetiva e reduzida tolerância à frustração”.
Por outro lado, no relatório de perícia psiquiátrica, efetuada a solicitação do arguido, conclui-se que o mesmo “tem consciência da ilicitude da conduta que lhe é imputada, entende a gravidade dos factos que lhe são imputados e compreende e aceita as consequências do seu comportamento, reúne condições psíquicas para compreender o julgamento a que vier a ser submetido”.
Ou seja, em momento algum dos referidos exames se admite sequer a hipótese de o arguido se encontrar, à data dos factos, sujeito a perturbação grave das suas faculdades mentais que afetasse o seu juízo de culpa, bem como a sua capacidade de se determinar por uma conduta lícita.
Por outro lado, nem dos referidos exames periciais, nem do depoimento da testemunha E…, médico psiquiatra que acompanha o arguido desde 1983/1984, é possível extrair a conclusão pretendida pelo recorrente de que as circunstâncias supra aludidas provocaram uma perturbação grave do seu entendimento e raciocínio, suscetível de anular ou, de algum modo, diminuir as suas capacidades volitivas, designadamente quanto ao ato de municiar a arma de forma premeditada de atentar contra a vida da vítima.
É certo que, em audiência de julgamento, o arguido admite que, quando na véspera da ocorrência dos factos, decide carregar a arma, seria “talvez para me matar; talvez para me matar a mim … não faço a mínima ideia”.
Contudo, mais adiante, à pergunta da Srª. Juíza Presidente “Quando o Sr. carrega a arma tinha intenções de a utilizar e de que forma? Se carrega a arma, era para usá-la!?” o arguido responde “Eu não sei, Srª. Drª., talvez matar-me a mim ou matar a minha senhoria. Não sei, não faço ideia”.
Ou seja, o próprio arguido admite a sua intenção de matar a senhoria, quando na véspera dos factos, carrega a arma com munições.
Por outro lado, não resulta dos relatórios periciais juntos aos autos, que o arguido alguma vez tivesse manifestado perturbações suicidas ou intenção de se suicidar ou mesmo que, aquando da prática dos factos, pretendesse pôr termo à vida.
E se, naquela data, carregou a arma para “se matar a ele próprio”, não se percebe porque razão deixaria a arma municiada, encostada na parede da cozinha, junto da porta que dava acesso ao quintal, porta essa por onde, afinal, acabou por sair na manhã do dia seguinte, para se dirigir ao quintal a fim de disparar contra o corpo da vítima, logo que a viu naquele local, através da janela do quarto de banho (“tem uma janela que dá para o campo da minha senhoria, e foi quando eu a vi … passei por lá fora e matei-a, foi isso”).
O próprio relato feito pelo arguido revela uma vontade determinada, muito longe de quem não sabia ainda o que fazer com a arma municiada. E essa determinação revela-se ainda no teor dos relatórios periciais, em que se transcrevem declarações do arguido – matou a senhoria “porque ela merecia”; afirma perentoriamente e de forma exaltada que “se fosse agora fazia o mesmo, ela insultou a minha dignidade” (cfr. fls. 479 vº); “ela teve o que mereceu” (cfr. fls. 484 vº).
Afastada que fica a intenção de pôr termo à própria vida, a matéria de facto provada apenas permite concluir que o arguido municiou a arma caçadeira com dois cartuchos, na noite do dia 12.09.2012, com o propósito de, no dia seguinte, tirar a vida à sua senhoria, F…, o que veio a concretizar cerca das 9h00 do dia 13.09.2012, mal a viu, através da janela do quarto de banho, no quintal da casa daquela.
Ou seja, o desígnio homicida do arguido iniciou-se, não quando avistou a ofendida, mas em momento anterior e, na execução de tal desígnio, municiou a arma com dois cartuchos a fim de a vir a utilizar na manhã do dia 13.09.2012.
Tal conduta do arguido, longe de traduzir um ato impulsivo gerado quando o arguido viu a ofendida no seu quintal (pois, se assim fosse, o arguido municiaria a arma nesse mesmo momento), foi previamente planeado, não só quanto ao meio empregue, mas ainda quanto às circunstâncias de tempo e lugar onde concretizaria o referido propósito.
Não se justifica, por isso, a alteração da matéria de facto provada constante dos pontos 6 e 7.
E o que dizer quanto à integração da conduta na previsão do artº 132º nº 2 do Cód. Penal.
A acusação pública imputara ao arguido, além do mais, a autoria material de um crime de homicídio qualificado pelas circunstâncias previstas nas alíneas e), i) e j) do nº 2 do artº 132º do Cód. Penal.
A decisão recorrida considerou que a matéria de facto provada não integrava as circunstâncias de o arguido ter agido por motivo torpe ou fútil, ou que tivesse utilizado veneno ou qualquer outro meio insidioso, considerando apenas que a conduta do arguido preencheu a circunstância qualificativa prevista na al. j) – “agir com frieza de ânimo e com reflexão sobre os meios empregados”.
Contra tal integração jurídico-penal insurge-se o recorrente por entender que há ausência de elementos na sua conduta que possam consubstanciar e preencher o conceito de frieza de ânimo, citando jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, alegadamente em abono da sua tese.
Vejamos:
A qualificação do crime de homicídio é efetuada pela combinação de cláusula genérica de agravação prevista no nº 1, com a técnica dos exemplos-padrão, enunciados no nº 2 do mesmo artigo isto é, os exemplos padrão indiciam e explicitam o sentido da cláusula geral que, por sua vez, corrige o conteúdo objetivo daqueles, e baseia-se num especial tipo de culpa, espelhado na especial censurabilidade – atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas – ou perversidade – condutas que refletem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade – do agente, não sendo as circunstâncias qualificativas de funcionamento automático, nem o respetivo elenco taxativo.
A especial censurabilidade ou perversidade do agente é, pois, uma especial culpa por referência à que é pressuposta na moldura penal do homicídio simples (art. 131.º) e que aqui assumirá a qualidade de uma culpa “normal”. Para o preenchimento valorativo do conceito indeterminado “especial” revelará, atenta a noção material de culpa, a vontade culpável e o seu objeto nas manifestações concretas do caso.
«Sendo assim, o especial grau de culpa subjacente à “especial censurabilidade ou perversidade” que o agente manifesta em tais circunstâncias aquilo que motiva a agravação, esta tem afinal a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta e querida pela ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática do crime de homicídio simples (...)»[3].
O art. 132.º, trata, pois, de uma censurabilidade especial, relativamente à que constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a conceção normativa de culpa, que se revela quando as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores.
«Com referência à especial perversidade, tem-se em vista uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto, pois, um recurso a uma conceção emocional da culpa e pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala Binder.
Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor (...), atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente»[4].
Entendeu o acórdão sob recurso que a conduta do arguido se subsumia na previsão da al. j) do nº 2 do artº 132º do Cód. Penal, em virtude de o arguido ter atuado com frieza de ânimo e reflexão sobre o meio utilizado.
Como refere o Prof. Figueiredo Dias[5] “Com a previsão simultânea dos três tipos de circunstâncias referidas na al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP, «o legislador português pretendeu afinal englobar uma realidade unitária, susceptível de possibilitar por si mesma um maior juízo de censura jurídico-penal sobre o agente; é a particular intensidade da vontade criminosa daquele que age com reflexão ou domínio de si, e não sob emoções ou impulsos de momento, e que desse modo pode manifestar uma personalidade marcadamente mais desviada dos padrões supostos pela ordem jurídica».
Sem que a lei o diga expressamente (como sucedia na versão originária do C. Penal), prevê-se a circunstância da premeditação.
Em vez de definir o seu conceito, optou o legislador por nela integrar três índices de maior censurabilidade que correspondem a três distintas doutrinas sobre a premeditação.
Assim, na antiga doutrina portuguesa e francesa, com reflexos no C. Penal Português de 1886 (art. 352º), a premeditação supunha uma resolução tomada que, depois se prolonga até à execução, por um considerável espaço de tempo. A firmeza e irrevocabilidade da resolução previamente tomada revela uma tão intensa vontade criminosa que o agente, apesar da “mora habens”, não se deixou demover pelos contra motivos sociais e ético-jurídicos.
A doutrina italiana, para além da persistência do desígnio criminoso, passou a exigir também o agir com calma, o agir com frieza de ânimo.
Já na doutrina alemã a premeditaçãoliga-se à ideia de reflexão no tomar da resolução criminosa e no sentido de uma clara ponderação dos motivos e contra-motivos, ligados aos fins visados pelo agente e às atividades e meios necessários para os alcançar. Esta reflexão, que poderia apenas ter lugar imediatamente antes da execução, deveria verificar-se durante toda ela, e implica uma maior intensidade do dolo[6].
Assim, o que torna mais censurável a conduta do agente, à luz desta circunstância qualificativa, é uma vontade criminosa particularmente intensa do agente que, com mais ou menos tempo, pensou o crime antes de o por em prática, não tendo portanto, agido sob a emoção, sob o impulso ou as circunstâncias do momento.
Naturalmente que os três índices supra referidos não constituem requisitos cumulativos para a verificação da premeditação, sendo qualquer um deles, por si mesmo, suscetível de indiciar um tipo de culpa agravado.
Feitas estas breves considerações, relembremos, de forma sintética a matéria de facto provada pertinente:
● Após tomar conhecimento da sentença proferida no Proc. nº 4779/12.9TBVNG-A, o que sucedeu em data não concretamente apurada, ocorrida entre 07.09.2012 e 12.09.2012, por ter de abandonar a habitação, na noite de 12.09.2012 para 13.09.2012 o arguido formou o propósito de matar a F…;
● Em execução de tal propósito, nessa noite, o arguido, que em tempos havia sido caçador, pelo que tinha na sua posse e era proprietário de uma espingarda caçadeira de calibre 12 mm Gauge, municiou a dita arma com dois cartuchos do aludido calibre, a fim de, no dia seguinte, de manhã, matar a F…;
● No dia 13/9/2012, cerca das 9h00, sempre constante no propósito de matar a F…, o arguido logo que a avistou no quintal de sua casa, muniu-se da supra descrita caçadeira e deslocou-se em sua direção pelo seu quintal, o qual confinava com o da F… e lhe permitia ter visibilidade e ângulo de disparo para o mesmo;
● E, durante o percurso, quando a ofendida F… se encontrava de costas para si e a uma distância de cerca de 4 metros, o arguido apontou a caçadeira na direção da mesma, visando a parte superior do respetivo corpo - onde sabia alojarem-se órgãos vitais – e, com o propósito de a matar, efetuou um disparo.
● O trajeto descrito pelos projéteis disparados pelo arguido, no corpo da vítima, foi de trás para a frente, da direita para a esquerda e de baixo para cima.
● O arguido conhecia a elevada letalidade da arma utilizada, em disparos de curta distância, por força da forma de dispersão dos chumbos, em trajetos curtos.
● O arguido muniu-se da arma de fogo acima descrita e disparou-a quando aquela se encontrava a escassos metros e de costas para si.
● O arguido matou a F… pelo facto de ter que abandonar a habitação.
● O arguido ao disparar sobre F… na forma descrita, quis e conseguiu, na sequência de resolução por si tomada, atingi-la em zonas do corpo que sabia albergarem órgãos vitais, a fim de lhe causar, como causou, a morte, pelo facto de ter que abandonar a sua habitação. […]
Conclui-se assim que o arguido agiu de forma calculada, preparando a execução do crime com calma e reflexão, revelando insensibilidade, indiferença e persistência na execução.
Como se refere no Ac. Rel. Coimbra de 30.04.2008[7] “a frieza de ânimo, é um atributo da personalidade do agente, um modo de ser do seu temperamento[8].
Atua com frieza de ânimo o agente que forma o seu desígnio criminoso – no caso, o de matar outra pessoa – através de um processo frio, pensado, reflexivo, cauteloso e calmo quanto à execução, e persistente quanto à resolução. E é neste modo frio e refletido de atuar que se revela no agente, a sua enorme insensibilidade e indiferença pela vida humana. Em todo o caso, também neste índice a agravação resulta do processo de formação da vontade no cometimento do crime ou seja, na persistência da resolução criminosa”.
O recorrente tomou a resolução de matar na noite anterior à prática dos factos. Segundo ele próprio afirmou em audiência, não conseguiu dormir toda a noite, pelo que teve oportunidade de refletir sobre a resolução tomada e, não obstante, não aproveitou tal oportunidade para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio. Antes pelo contrário, movido pela revolta de ter de abandonar a sua habitação, o que lhe endureceu totalmente a sensibilidade, o arguido revela uma força de vontade criminosa de tal maneira intensa que, mais de dez horas depois de tomar a resolução, pratica o respetivo crime sem hesitação “como mero déclancher da decisão tomada previamente”[9].
Como escreve Fernando Silva[10] “A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do fator tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não atue desse modo”. Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflete sobre o ato, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha.
Ora, face à matéria de facto provada, dúvidas não temos de que o arguido agiu com frieza de ânimo e com reflexão sobre os meios empregados, preenchendo assim a circunstância qualificativa prevista na al. j) do nº 2 do artº 132º do Cód. Penal, como se decidiu no acórdão recorrido, que não merece por isso qualquer censura.
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E aqui, sempre se poderia colocar a questão de saber se não estaria efetivamente preenchida a alínea i) do nº 2 do art. 132º, do C. Penal, ou seja, a de ter o recorrente atuado utilizando um meio insidioso.
A noção de meio insidioso, embora tenha recebido contributos úteis da doutrina e da jurisprudência, não é unívoca, girando, todavia, sempre à volta de uma ideia que envolve elementos materiais e circunstanciais, estes ligados a uma certa imprevisibilidade da ação.
Nelson Hungria chama-lhe «meio dissimulado na sua influência maléfica», «meio fraudulento ou sub-reptício por si mesmo» que inclui traição («ataque súbito e sorrateiro, atingida a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso»), emboscada («dissimulada espera da vítima em lugar por onde terá de passar») ou simulação («ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de surpresa»[11].
Teresa Serra aponta que o meio insidioso «abrange não apenas meios materiais especialmente perigosos..., mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de modo mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade, de desproteção da vítima em relação ao agressor: é o caso da facada traiçoeira pelas costas ou o disparo de arma de fogo em emboscada, meios que retiram à vítima qualquer capacidade de proteção»[12].
O Prof. Figueiredo Dias regista que insidioso «será todo o meio cuja forma de atuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno - do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto»[13].
A Jurisprudência também lhe confere idênticos contornos.
É o caso do Ac. do STJ de 00.02.23, Procº nº 1187/99-3ª[14], quando sentencia que o meio insidioso «abrange não só os meios materiais perigosos, mas também um processo enganador, dissimulado, elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida».
Ou o do Ac. do mesmo Supremo Tribunal de 00.09.27, Procº nº 292/00-3ª[15], ao escrever que meio insidioso «é aquele que, tal como o veneno, a que a lei atual o equipara, tem, em si mesmo ou na forma por que é utilizado, um carácter enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para a vítima, constituindo para esta uma surpresa ou colocando-a em situação de especial vulnerabilidade ou desproteção que torna para ela especialmente difícil a sua defesa».
A qualificação de uma determinada conduta como atuação insidiosa passa, assim, pela análise da concreta situação da vítima e da forma como o agente executou o ato.
No caso concreto, logo que avistou a vítima no quintal de sua casa, o arguido muniu-se da arma e deslocou-se em sua direção; durante o percurso, quando a ofendida se encontrava de costas para si e a uma distância de cerca de 4 metros, o arguido apontou a caçadeira, visando a parte superior do corpo e efetuou um disparo.
É certo que efetuando o disparo pelas costas, assim impossibilitando qualquer tentativa de defesa ou fuga por parte da vítima, o arguido agiu à traição, surpreendendo a vítima que certamente não contaria com a sua presença, munido com a arma e com intenção de a matar.
Contudo, também é certo que, não tendo resultado provado que o arguido se tenha posicionado no seu quintal emboscado em local onde o mesmo confinava com o da F…, para executar os seus intentos, o disparo da arma em direção à ofendida e pelas costas desta, não é suscetível de revelar especial censurabilidade e perversidade do agente, de forma a integrar a referida alínea i) do nº 2 do artº 132º do Cód. Penal, na medida em que não é possível afirmar que o arguido tivesse procurado as condições especialmente favoráveis para apanhar a vítima desprevenida, tudo levando a concluir que, quando chegou ao quintal, o arguido encontrou já a ofendida de costas voltadas para si e disparou quando se encontrava a uma distância de cerca de 4 metros daquela.
Assim sendo, inexiste fundamento para alterar o decidido na 1ª instância quanto à al. i) do nº 2 do artº 132º do Cód. Penal.
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Quanto ao crime de detenção de arma proibida:
Alega o recorrente que é titular de licença de detenção da arma no seu domicílio e que o quintal onde ocorreram os factos deve considerar-se abrangido pelo conceito de domicílio, pelo que deveria ter sido absolvido do crime de detenção de arma proibida.
A arma apreendida ao arguido e por este utilizada na prática dos factos é uma espingarda caçadeira de calibre 12 mm Gauge, classificada como arma da Classe D.
O arguido tinha ainda na sua residência trinta munições de arma de fogo - cartuchos carregados com chumbos de caça – de calibre 12 mm Gauge, em bom estado de conservação e funcionamento, próprios para a arma acima identificada.
De acordo com a matéria de facto provada (ponto 15) o arguido não era titular de licença de uso e porte de arma, mas apenas de licença de detenção de arma no domicílio.
Ora, independentemente da questão de saber se o quintal constitui parte integrante do domicílio, o certo é que a licença de que o arguido era titular apenas lhe permitia deter a arma no domicílio. O que significa que, com esse tipo de licença, o respetivo titular não pode utilizar a arma, quer no interior, quer no exterior do domicílio. Aliás, é precisamente por tal condicionalismo que o artº 18º da Lei nº 5/2006 ded 23.02, na redação introduzida pela Lei nº 17/2009 de 06.05, sob a epígrafe “licença de detenção de arma no domicílio”, dispõe no seu nº 3 que “em caso algum a detenção das armas, pode ser acompanhada de munições para as mesmas”, incorrendo o infrator em responsabilidade contra-ordenacional, nos termos do artº 99º nº 1 al. c) do mesmo diploma, punível com coima de € 600 a € 6.000.
Ao utilizar a espingarda caçadeira para matar a F…, arma que apenas lhe era lícito deter no domicílio, o arguido usou-a fora das condições legais, sem que se encontrasse devidamente autorizado a fazê-lo, já que não era titular de licença de uso da referida arma. Ou seja, o arguido não se limitou a “deter” a arma (dentro ou fora do domicílio), mas utilizou-a, sem que, para tal, estivesse devidamente autorizado.
A questão não se coloca, como sustenta o recorrente, relativamente ao local onde o arguido podia deter a arma, mas sim quanto à respetiva utilização fora das condições legais, porque não autorizada, quer para matar, quer para qualquer outra finalidade.
Assim sendo, mostram-se preenchidos os elementos típicos do crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 86º nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006 de 23.02, com a alteração introduzida pela Lei nº 17/2009 de 06.05.
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Considerando, porém, que o recorrente questiona a qualificação jurídica dos factos efetuada na decisão sob recurso, iremos apreciar em primeiro lugar a referida questão, aderindo à posição que vem sendo defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça[16], de que o tribunal superior pode sempre conhecer da qualificação jurídica, estando em causa matéria de direito, pelas implicações que pode ter na medida da pena, ressalvada a proibição da “reformatio in pejus” e também, como afirmou o Ac. desta Relação do Porto de 06.05.2009[17], sem necessidade de qualquer comunicação prévia desde que tal alteração não prejudique a defesa do arguido.
O acórdão sob recurso condenou o arguido na pena de 19 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado p. e p. nos artºs. 131º e 132º nºs 1 e 2 al. j) do Cód. Penal e na pena 1 ano e 6 meses de prisão pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 86º nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006.
Contudo, importa analisar a eventual aplicação ao caso concreto da agravação prevista no artº 86º nº 3 da Lei nº 5/2006, na redação introduzida pela Lei nº 17/2009 de 06.05 (que a decisão recorrida omitiu) e, ainda, analisar se entre o crime de homicídio qualificado e o crime de detenção de arma proibida ocorre uma relação de concurso real de crimes ou antes um concurso aparente de normas.
É o seguinte o texto do nº 3 do artº 86º:
«As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».
E, em complemento, estabelece-se no nº 4:
«Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do nº 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente».
Como se diz no nº 3, a agravação aí prevista só não terá lugar quando «o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».
O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no artº 131º do CP. Pode ser um factor de agravação, mas só o será se, para além de preencher um dos exemplos-padrão «meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da alínea h) do nº 2 do artº 132º, revelar «especial censurabilidade ou perversidade». Enquanto a agravação do nº 3 do artº 86º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, a do artº 132º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa. Além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime; aqui não.
O nº 3 do artº 86º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do artº 86º nº 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de acionar efetivamente essa outra agravação. Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, como se disse, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do artº 132º.
Não há, assim, fundamento para afastar a agravação daquele artº 86º nº 3, pelo que o tribunal recorrido deveria ter agravado o crime de homicídio qualificado, pelo qual condenou o arguido.
Considerando, porém, que o limite máximo da pena prevista para o crime de homicídio qualificado coincide já com o limite máximo absoluto da pena de prisão – 25 anos – a agravação prevista no artº 86º nº 3 da Lei nº 5/2006 na redação introduzida pela Lei nº 17/2009, apenas seria de relevar na medida concreta da pena.
Atendendo, porém, que o recurso foi interposto pelo arguido, não pode este Tribunal proceder à agravação da pena concreta imposta na decisão recorrida, sob pena de violação do princípio da proibição da “reformatio in pejus”.
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Do concurso efetivo de crimes versus concurso aparente de normas:
Como se disse, entendeu a decisão recorrida condenar o recorrente pela prática, em concurso real, de um crime de homicídio qualificado e um crime de detenção de arma proibida.
Efetivamente, como se salientou, o arguido usou a arma – espingarda de caça de calibre 12 mm Gauge (arma de classe D) – sem que estivesse devidamente autorizado já que não era titular de licença de uso da referida arma.
Contudo, o arguido era titular de licença de detenção da referida arma no domicílio, pelo que a mera detenção anterior à data dos factos, não pode ser punida.
Assim, o único ato com relevância jurídico-penal consiste no uso, tendo-se o arguido limitado a utilizar a arma para realizar o homicídio, o que, como dissemos, preenche o tipo objetivo do artº 86º nº 1 al. c) da Lei 5/2006.
E, não obstante o homicídio dever ser agravado em função da utilização da espingarda, ao abrigo do citado artº 86º nº 3, não é valorada nessa agravação a situação de proibição em que o recorrente se encontrava em relação à arma, por falta de licença de uso de arma. Isso, porque à agravação é indiferente que o agente esteja numa situação de legalidade ou de ilegalidade em relação à arma: a agravação teria lugar mesmo que o recorrente tivesse licença de uso e porte.
Contudo, como se refere no Ac. do STJ de 31.03.2011[18] «apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais – homicídio e uso de arma proibida –, não deve concluir-se por um concurso efetivo de crimes, mas antes aparente.
Vão nesse sentido os ensinamentos de Figueiredo Dias, que, depois de ter como assente que «é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica» existente no comportamento global do agente «que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de (…) de crimes», considera: «A ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objetiva e/ou subjetiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes (…) seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global»[19].
No caso em apreço, o arguido carregou a espingarda com duas munições com vista a utilizá-la no dia seguinte para atentar contra a vida da F…, o que veio de facto a acontecer, não possuindo o arguido a necessária licença de uso daquela arma. A conexão existente entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio, esgotando-se aquela na prática deste, faz aparecer, no comportamento global, o sentido de ilícito do homicídio absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da utilização da arma proibida, havendo desde logo «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o recorrente pretendeu foi matar a F…, não sendo o uso de arma proibida mais que o processo de que se serviu para atingir o resultado almejado.
O uso da arma pelo arguido traduziu-se assim num ato instantâneo, embora antecipadamente ponderado, esgotando-se na prática do homicídio, pelo que entre as duas condutas se verifica uma relação de instrumentalidade ou funcionalidade típica, justificativa da consunção, na medida em que o uso da arma constitui, instrumentalmente, um elemento do tipo de culpa do crime de homicídio.
Trata-se, no caso, de dependência finalística entre uma ação (a detenção da arma) e outra (o homicídio). A detenção da arma é fruto apenas da resolução homicida do agente, pois que ao detê-la tem unicamente em vista conseguir matar.
O autor citado aponta mesmo como exemplo de concurso aparente um caso como este: «Circunstâncias como, p. ex., a de se utilizar arma proibida (…) constituem condutas que concorrem com a de homicídio, em princípio, sob a forma de concurso aparente»[20].
Não é, pois, correta a decisão recorrida no ponto em que autonomizou como crime do artº 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, o uso da arma, devendo o arguido ser absolvido da acusação nessa parte.
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Já o mesmo não acontece relativamente às munições (trinta munições de arma de fogo – cartuchos carregados, com chumbos de caça – de calibre 12 mm Gauge, em bom estado de conservação e funcionamento, próprios para a arma de fogo que utilizou) que o arguido detinha na sua residência e que lhe foram apreendidas.
Como se disse, sendo o arguido titular de licença de detenção de arma no seu domicílio, em caso algum tal detenção da arma podia ser acompanhada de munições para a mesma (artº 18º nº 3 da Lei nº 5/2006, na redação introduzida pela Lei nº 17/2009), constituindo a respetiva violação, contra-ordenação punível com coima de € 600,00 a € 6.000,00.
Com efeito, enquanto a detenção de licença de uso e porte de arma habilita automaticamente o seu titular à detenção de munições para a arma em causa, a licença de mera detenção no domicílio exclui expressamente a possibilidade de detenção das respetivas munições.
Por outro lado, há que tomar em consideração que, enquanto a utilização da arma se esgotou no próprio disparo com que matou a vítima F…, sendo a respetiva detenção lícita, já a detenção das munições, que se prolongou no tempo, não se mostra consumida pela punição do crime de homicídio, impondo-se por isso a sua punição autónoma, por se verificar uma situação de concurso efetivo de crime e contra-ordenação.
Assim, resultando dos pontos 16 e 20 da matéria de facto provada os elementos objetivos e subjetivos da contra-ordenação prevista no artº 99º nº 1 al. c) da Lei nº 17/2009 de 06.05, na determinação da coima aplicável, atenta a supra referida moldura abstrata, há que atentar que o arguido não tem antecedentes criminais registados, provavelmente nunca conseguiria obter licença de uso e porte de arma e respetivas munições atenta a patologia psiquiátrica de que padece, e considerando ainda o número de munições por ele detidas e, acima de tudo, que o arguido não se limitou a detê-las, tendo utilizado uma delas para efetuar o disparo, sem esquecer as suas condições pessoais e económicas, entendemos que a coima de € 1.000,00 se mostra adequada e suficiente para satisfazer as finalidades da punição.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido B… e, em consequência:
- absolvem o arguido do crime de detenção de arma proibida p. e p. no artº 86º nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006 de 23.02;
- condenam o arguido na coima de € 1.000,00 (mil euros) pela prática da contra-ordenação prevista nos artºs. 18º nº 3 e 99º nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006 de 23.2, na redação introduzida pela Lei nº 17/2009 de 06.05;
- mantêm a pena de 19 (dezanove) anos de prisão imposta na decisão recorrida, pela prática de um crime de homicídio qualificado agravado p. e p. nos artºs. 131º, 132º nºs 1 e 2 al. j) do Cód. Penal e 86º nº 3 da Lei nº 5/2006 de 23.2, na redação introduzida pela Lei nº 17/2009 de 06.05.
Sem custas.
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Porto, 07 de Maio de 2014
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Prof. Figueiredo Dias, in parecer publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XII - 1987, Tomo 4, pág. 52.
[4] Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Tipo de culpa e medida da pena, Almedina, pág. 63/64.
[5] Ob. cit., pág. 51/55.
[6] Cfr. Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, Vol. II, 295 e ss., Prof. Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, Verbo, Vol. I, 646 e ss., Profª. Maria Fernanda Palma, Direito Penal, Parte Especial, 1983, 66 e ss., e Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª edª. pág. 70 e ss.
[8] Proferido no processo nº 105/06.4GCPMS.C1, Des. Vasques Osório, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Cfr. Nelson Hungria, citado pelos Cons. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, II Vol., 1996, 48.
[10] Prof. Eduardo Correia, autor do Projecto, expressa in Direito Criminal, II, 1965, págs. 301/3.
[11] In Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, 2.ª edição, revista e atualizada de acordo com a Lei n.º 59/2007, Quid Juris, 2008, pág. 80.
[11] In Comentário ao Código Penal Brasileiro, V, págs.167 a 169.
[12] In Homicídios em Série, pág. 154.
[13] Comentário Conimbricense, Tomo I, 2ª edª., pág. 70.
[14] SASTJ, 38, 76.
[15] SASTJ, 52, 43.
[16] Cf., por todos, Ac. do STJ de 24.02.2010, Proc. nº 59/06.7GAPFR.P1.S1, Cons. Raul Borges e disponível em www.dgsi.pt.
[17] Proferido no Proc. nº 104/03.8GAVFR.P1, relator Manuel Braz, disponível em www.dgsi.pt
[18] Proferido no Proc. nº 361/10.3GBLLE – 5ª, Cons. Manuel Braz, disponível em www.dgsi.pt.
[19] In Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, páginas 989 e 1015.
[20] Ob. cit., pág. 1017.