CEDÊNCIA DE PARCELA DE TERRENO
ALARGAMENTO DE CAMINHO PÚBLICO
FORMA LEGAL
LEGITIMIDADE DO CABEÇA-DE-CASAL PARA A CEDÊNCIA
Sumário

I - A cedência de uma parcela de terreno para o alargamento de um caminho público não está sujeita a forma legal.
II - Tal acto não cabe na competência do cabeça-de-casal por não se tratar de acto de conservação inserido nos poderes de administração conferidos pelo artigo 2079.º CC, cabendo o seu exercício a todos os herdeiros (artigo 2091.º CC).
III - Verifica-se exercício do direito em desequilíbrio quando se verifica uma significativa desproporção entre as vantagens que o titular pretende obter e o prejuízo que resulta para terceiro (ou para a contraparte).

Texto Integral

Apelação n.º 1434/08.8TJVNF.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B… e cinco seus irmãos, C…, D…, E…, F… e G…, residentes em França, intentaram acção declarativa, sob a forma sumária, contra a Junta de Freguesia …, pedindo a sua condenação a reconhecer que os AA. (e os restantes irmãos e pai, cuja intervenção foi requerida) são herdeiros da falecida H…, e donos do prédio que identificam, prédio esse que a R. abusivamente invadiu e danificou, devendo entregar-lhes a faixa ocupada do aludido prédio, reconstruir o muro e a indemnizar os AA. e intervenientes pelos prejuízos havidos e privação de rendimentos.
Contestou a R. invocando que as obras levadas a cabo na parte do dito campo dos AA. foram autorizadas pelo pai destes — I… — cuja intervenção nos autos requereu para fazer valer o direito de regresso que lhe assiste em caso de condenação.
A intervenção principal provocada ao lado dos AA. foi aceite, sendo a intervenção acessória do pai dos AA. indeferida.
Procedeu-se à audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a R. a:
i) reconhecer os AA. B… e cinco seus irmãos, C…, D…, E…, F… e G…, bem como J…, K…, L…, M…, N… e I… como herdeiros da falecida H…;
ii) reconhecer que da herança por esta última deixada faz parte o prédio misto, sendo a parte urbana actualmente constituída por casa de habitação de rés do chão e andar e horta junta e a parte rústica constituída pelos terrenos ou leiras e campos do “O…”, “P…”, “Q…” e “S…”, descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o número 4381 primeira gleba, encontrando-se a parte urbana inscrita na matriz sob o artigo 71 e a rústica sob o artigo 115.º, sendo donos e legítimos possuidores do mesmo as pessoas identificadas em i), em comum e sem determinação de parte ou direito;
iii) respeitar a propriedade do referido prédio e a abster-se de qualquer acto perturbador do direito de propriedade das pessoas identificadas em i);
iv) demolir a parte do muro que reconstruiu, de forma a que a que a faixa de terreno por ela ocupada do imóvel identificado em ii) fique livre e desembaraçada, em 30 (trinta) dias;
v) entregar aos AA. e às pessoas identificadas em i) a faixa de terreno que ocupou, repondo o prédio misto campo do O… no estado em que se encontrava antes dos trabalhos de alargamento do caminho, em 30 (trinta) dias;
vi) reconstruir em pedra o muro de suporte/vedação nos exactos limites onde o primitivo se encontrava, em 30 (trinta) dias;
vii) indemnizar os AA. e as pessoas identificadas em i) na quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
No mais foi a R. absolvida do pedido.
Inconformada, apelou a R., apresentado as seguintes conclusões:
«I- Constitui fundamento específico do presente recurso o disposto nos artigos 216º e 2079º do C.C. e nos artigos 220º e 947º do mesmo diploma.
II- Os recorridos que intentaram a presente acção não lançaram mão do disposto na alínea b) do nº1 do artigo 2086º do C.C., face ao acordo celebrado entre o cabeça-de-casal e a recorrente.
III- O acordo celebrado entre o cabeça-de-casal e a primitiva Ré não deve ser qualificado como negócio de alienação de direitos sobre imóvel, pelo que não é nulo, por vício de forma.
IV- O referido acordo teve por objecto a realização de uma obra de alargamento e beneficiação de um caminho rural.
V- O citado acordo não originou encargos para a herança.
VI- Da execução da obra resulta a integração do domínio público, por mera afectação, de uma parcela de terreno, com área não definida e valor não determinado.
VII- Da referida obra resultam benefícios para o imóvel administrado pelo cabeça-de-casal.
VIII- O acordo estabelecido e a obra em execução não afectam substancialmente o imóvel administrado, nem foi alegada qualquer afectação relevante.
IX- Ao contrário do que consta da douta sentença recorrida, os poderes do cabeça-de-casal não se limitam a usar os meios conservatórios do património hereditário.
X- O cabeça-de-casal pode praticar actos de valorização da herança, nomeadamente quando não existem encargos para esta.
XI- O acordo estabelecido com a recorrente insere-se e respeita os limites dos poderes
de administração da herança, de que dispõe o cabeça-de-casal.
XII- A obra pública executada no terreno da herança e nos termos em que ocorreu não pode ser destruída.
XIII- A douta sentença recorrida violou os preceitos legais supra referenciados, pelo que deve ser revogada, absolvendo-se a recorrente do pedido, como é de JUSTIÇA»
Contra-alegaram os apelados, assim concluindo:
«A)- O Tribunal “a quo” decidiu com acerto a matéria de facto e fez uma correcta aplicação do direito;
B)- O acordo celebrado entre o pai dos Recorridos e a Recorrente não se insere no âmbito dos poderes de administração ordinária do cabeça de casal de herança;
C)- Ao alienar, através de negócio jurídico gratuito, uma parcela de terreno da componente rústica ("O…") fazendo parte do prédio misto que compõe o acervo hereditário deixado por morte da mãe dos Recorridos, e permitir a demolição de uma ramada, com extensão de 57 m e arranque das respectivas vides, produzindo esta anualmente, em média, uma pipa de vinho, ao preço de € 300,00, privando os Recorridos de um rendimento e praticando um acto de disposição que lhe estava vedado.
D)- Por outro lado, a Recorrente tinha conhecimento que, os Recorridos e demais irmãos, por intermédio de familiares, eram quem administravam o dito "O…";
E)- Os Recorridos não autorizaram nem consentiram no alargamento do caminho, à custa do “O…”, nem a demolição da ramada;
F)- Com o alargamento do caminho rural, dito Rua …, o “O…" viu a sua área diminuída em cerca de 300m2 (conjugação entre matéria dada como assente e auto de inspecção ao local);
G)- Destinando-se o dito "O…" a cultura (vide certidão matricial junta à petição inicial), subtraída parte da sua área, menor rendimento se retira do dito prédio e consequentemente, o seu valor em termos comerciais surge diminuído.
H)- O "O…" confronta com uma outra rua, dita Rua …, sendo por esta o acesso àquele e não pelo caminho rural alargado. Este, por sua vez, fica a uma cota mais baixa da do "O…".
I)- De forma alguma o "O…" ou o prédio misto de que faz parte se vê valorizado, perante a diminuição da área daquele e da privação de uma ramada que produz anualmente, em média, uma pipa de vinho no valor de € 300,00;
J)- A lei civil atribui ao cabeça de casal o dever de administrar a herança, não especificando os poderes que integram essa administração, deixando à doutrina e à jurisprudência, a tarefa de definirem os limites de intervenção e os deveres inerentes ao cargo;
K)- Com recurso a critérios como o do fim de tal dever de administração, bem como o do confronto com outros regimes paralelos de administração de bens, designadamente, a tutela, a administração de bens do casal e com a alienação ou oneração de bens e ainda mediante a análise dos poderes e deveres particulares que a lei atribui ao cabeça-de-casal, a doutrina e jurisprudência concluem, com relativa unanimidade, que actos de mera administração são os que visam a conservação e frutificação normal dos bens, sem alteração da integridade do património (Ac. Rel. Porto, de 22.2.80, CJ, V, 1, p. 56) e que "(...) a administração cometida ao cabeça-de-casal não tem a extensão da conferida ao administrador dos bens do casal (...)" (Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, I, Coimbra, 1990, p. 322;
L)- Sendo também elucidativo o valioso contributo do Prof. Mota Pinto para a distinção entre actos de mera administração e de disposição: "A consideração, quer num quer noutro tipo de situações, onde a lei opera com a dicotomia administração disposição, da 'ratio legis' conduz à conclusão de os actos de mera administração ou de ordinária administração serem os correspondentes a uma gestão comedida e limitada, donde estão afastados os actos arriscados, susceptíveis de proporcionar grandes lucros, mas também de causar prejuízos elevados. São os actos correspondentes a uma actuação prudente, dirigida a manter o património e a aproveitar as suas virtualidades normais de desenvolvimento, mas alheia à tentação dos grandes voos, que comportam risco de grandes quedas. Ao invés actos de disposição são os que, dizendo respeito à gestão do património administrado, afectam a sua substância, alteram a forma ou a composição do capital administrado, atingem o fundo, a raiz, o casco dos bens." (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1989, p. 408).
M)- O supra referido acordo, inserido ntes no âmbito da administração extraordinária, vedada ao cabeça de casal e porque não acompanhado da vontade dos restantes herdeiros, é nulo;
N)- Quanto à forma: a alienação, através de negócio jurídico oneroso ou gratuito, de um prédio ou parte, seja ele urbano, rústico ou misto, carece sempre de ser formalizado através de escritura pública ou escrito particular com força de escritura pública;
O)- E porque o dito acordo, nos seus termos, consubstanciava um negócio gratuito, carecia ele, sempre, de deliberações de dois orgãos a aceitar o negócio, a saber: a Junta de Freguesia e a Assembleia de Freguesia. Dos autos não constam actas retratando tais deliberações;
P)- O instituto da afectação ao caso não é aplicável. A parcela de terreno retirada ao "O…" não se encontrava afectada ao domínio público, sendo antes propriedade privada, sendo certo que, a afectação carece de deliberação dos órgãos autárquicos, Junto de Freguesia e Assembleia de Freguesia, determinando a utilidade pública da área afectada, deliberações essas não existentes.
Q)- Pelas expostas razões, a sentença do Tribunal a quo não sofre de qualquer vício, pelo que deve manter-se.
Termos em que, deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Recorrida mantendo-se integralmente a douta sentença recorrida, tudo com as consequências legais, assim se fazendo a devida Justiça»

2. Fundamentos de facto
A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos, que não foram objecto de impugnação:
1. O prédio misto, sendo a parte urbana actualmente constituída por casa de habitação de rés-do-chão e andar e horta junta e a parte rústica constituída pelos terrenos ou leiras e campos do “O…”, “P…”, “Q…” e “S…”, descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o número 4381 primeira gleba, encontra-se inscrito a favor da falecida H… e I… sob o n.º 32056, encontrando-se a parte urbana inscrita na matriz sob o artigo 71 e a rústica sob o artigo 115.º.
2. I… e H…, por contrato de compra e venda titulado por escritura pública lavrada a 16/1/1963, de folhas 34 a 35 verso, do Livro de Escrituras Diversas B-9, do Segundo Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão, declararam adquirir o supra referido prédio.
3. A parte rústica do supra referido prédio misto, concretamente a constituída pelo O…, confronta em toda a sua extensão a Poente/Sul com a rua denominada de “rua …” e na extensão Poente/Norte confronta com caminho público, actualmente denominado de “rua …”.
4. Nesta confrontação, o nível do solo do denominado O…, encontra-se a uma cota superior ao do caminho público.
5. H… foi casada, em primeiras núpcias e no regime da comunhão geral de bens com I….
6. Os AA., assim como J…, K…, L… e a M… são filhos da falecida H… e de I….
7. A 12/10/1982 faleceu em França H….
8. Os AA., assim como J…, K…, L…, M… e I…, por si e antepossuidores e anteriores proprietários há mais de dez, quinze, vinte e cinco e trinta anos, fazem obras e plantações, cultivam colhendo os seus frutos e rendimentos sob o prédio identificado, pagando contribuições, sem qualquer interrupção no tempo, com a consciência de que não lesam ninguém, sem a oposição de quem quer que seja e com o conhecimento de todos.
9. No decurso da segunda semana do mês de Fevereiro de 2008, a R. Junta de Freguesia … iniciou o alargamento do caminho, denominado de rua …, sito a Poente/Norte do supra referido O….
10. Com a ajuda de uma máquina retroescavadora, demoliu o muro em pedra que vedava e suportava as terras na confrontação Poente/Norte do dito campo.
11. A R. efectuou quase todos os trabalhos preparatórios relativos ao alargamento do caminho.
12. Por virtude do embargo judicial entretanto decretado, o alargamento do dito caminho não foi concluído, faltando proceder à completa regularização da terraplanagem, pavimentação do referido caminho (rua …) e total reconstrução do muro de suporte/vedação do prédio dos AA..
13. A rua … era um caminho rural.
14. Confinando, a sul, com o O….
15. O caminho público, actualmente denominado de rua …, tinha uma largura não superior a metro e meio.
16. A rua … confina do norte com outro proprietário.
17. Na referida extensão Poente/Norte, a demarcar e vedar o dito O… com o caminho público existia um muro em pedra com uma altura aproximada de metro e meio.
18. No O…, nas suas extremidades e em toda a sua volta, existe uma vinha, com muitos anos, em forma de ramada.
19. A R. arrancou todas as vides da ramada existente na extremidade e confrontação referidas em 10.
20. Demoliu a respectiva ramada, retirando todos os esteios em pedra e respectiva armação constituída por arames de ordir e de tecer, bancas e arreostas e barras em ferro.
21. O alargamento referido em 11 foi efectuado para o “lado” do O….
22. A R. invadiu o O…, desconhecendo-se a área exacta, e que na extensão de cerca de 56 metros retirou terra correspondente a essa penetração.
23. A R. procedeu a trabalhos de terraplanagem do caminho, os quais abrangem a área retirada do O… e da extremidade deste.
24. E retirou ao O… área não concretamente apurada.
25. O alargamento do caminho para sul foi feito incorporando, para sul, uma faixa de terreno do O…, ao longo de cerca de 56 metros.
26. Por virtude do arrancamento das vides e destruição da ramada acima descrita, ficaram os AA. privados de um rendimento.
27. Daquela parte de vinha, com a extensão de cerca de 57 metros, era produzido vinho tinto, verde, dela obtendo os AA. anualmente e em média uma pipa de vinho (500 litros).
28. A preços atuais de mercado, uma pipa (500 litros) de vinho tinto verde custa à volta de € 300.
29. Refazendo-se a vinha, está só voltará a produzir vinho após cinco a seis anos a contar da plantação de novas vides.
30. Para refazer a ramada, na extensão de 57 metros, precisarão os AA. de comprar novos esteios, arame de ordir e de tecer, bancas, arriostas e barras em ferro.
31. Precisarão de comprar novas vides.
32. Terão que custear, após um ano de plantação, a necessária enxertia.
33. Tudo isto não custará aos AA. menos de € 1.500.
34. Quantia que terão que despender para refazer a vinha e ramada.
35. A R., nas pessoas respectivamente do Presidente da Junta, Secretário e Tesoureiro, bem sabiam e sabem que o O… não só é propriedade das pessoas que cuja intervenção principal provocada foi requerida [J…, K…, L…, M… e I…] como também é propriedade dos AA..
36. Os AA. e os chamados, com excepção de I…, residem em França há dezenas de anos.
37. I… reside na freguesia …, Vila Nova de Famalicão.
38. Os AA. não autorizaram tais obras de alargamento, efectuadas à custa da retirada da área do O….
39. Os AA. não cederam por qualquer título nem autorizaram a R. a proceder ao alargamento do dito caminho à custa da sua propriedade, com excepção de I….
40. A Junta de Freguesia … contactou com aquele I… a fim de, com ele, negociar as condições para o alargamento da denominada “rua …”.
41. A R. acordou com o I… as condições de alargamento do caminho para sul.
42. O I… determinou à Junta de Freguesia que, contra a integração no domínio público daquela faixa de terreno, para alargamento do caminho (agora rua …), a autarquia refizesse o muro de vedação, em pedra, na referida extensão de cerca de 56 metros.
43. O que a R. estava a cumprir, executando a obra através de empreitada contratada.
44. Em parte da faixa de terreno destinada ao domínio público existia um muro em mau estado e uma vinha.
45. O I… entendeu não interessar a manutenção da vinha, em ramada, e em adiantado envelhecimento.
46. Por isso propôs à R. que custeasse a demolição da ramada e remoção das videiras e peças dessa ramada (pedras, ferros e arames).
47. O I… iria passar a ter um prédio vedado com um muro novo.
48. Passava a ter um prédio servido por um arruamento com melhores condições.
49. O I… acompanha a execução das obras e com ela concordava.
50. A R. actuava na execução do acordo estabelecido com aquele I….
51. Suportando as despesas inerentes à contratação e realização da obra.
52. O I… está há mais de um ano incapacitado de sair de casa, passando grande parte do tempo acamado e tem muita dificuldade em comunicar e entender o que lhe dizem.
53. São os AA. e demais irmãos, por intermédio de familiares e de uma outra pessoa que presta assistência ao I…, quem administram todos os bens, incluindo o O…, que fazem parte da herança deixada por morte da mãe daqueles.

3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:
— (in)validade da cedência de parcela de terreno para alargamento de caminho público contra a construção de um muro de vedação por falta de forma legal (artigo 220.º CC);
— legitimidade do cabeça-de-casal para o efeito.

3.1. Da (in)validade da cedência de parcela de terreno para alargamento de caminho público contra a construção de um muro de vedação por falta de forma legal
Um dos fundamentos da decisão recorrida contra o qual se insurge a apelante é a
nulidade do acto de cedência de uma parcela de terreno para o alargamento de um caminho público, contra a (re)construção de um muro, por falta de forma.
Assim, sustenta que o acordo celebrado entre o cabeça-de-casal e a apelante não deve ser qualificado como negócio de alienação de direitos sobre imóvel, tratando-se antes de um acto de afectação ao domínio público de uma parcela de terreno, contra a construção de um muro de vedação, de que resultou a valorização do imóvel.
O acto de cedência em causa não pode ser tratado como se de mera doação se tratasse, por envolver uma entidade pública e um fim de utilidade pública. Esta característica não pode deixar de influenciar o regime legal aplicável.
A este propósito subscrevemos o teor do acórdão da Relação de Guimarães, de 2005.11.02, Manso Rainho, www.dgsi.pt.jtrg, proc. 1500/05-2, que passamos a transcrever na parte relevante:
«A R. é uma autarquia local.
A parcela de terreno que o A. cedeu e a autorização que deu para que o muro fosse demolido, tiveram em vista o alargamento de um caminho público, vicinal.
Portanto, estamos perante a afectação de um bem aos fins do domínio público da R..
Ora, a atribuição (formação) do carácter dominial (ou seja, a aquisição ou submissão de um bem aos os fins do domínio público [utilidade pública]) de uma coisa, não está sujeita à disciplina fixada no CC para a transmissão de bens imóveis, designadamente a nível de forma. Na realidade, a lei civil rege unicamente para as relações jurídico-privadas, sendo que as coisas que se encontram no domínio público se consideram fora do comércio jurídico-privado (v. artº 202º, nº 2 do CC). A este propósito ensinava Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, II, 9ª ed., pág. 921) que a atribuição do carácter dominial de um imóvel pode fundar-se designadamente na simples afectação à utilidade pública (isto é, na aplicação do imóvel ao fim de utilidade pública, como seja a abertura de uma via de circulação). O que não significa, bem entendido, que ao domínio público não possam sobrevir bens adquiridos pelos modos previstos no comércio jurídico-privado (como seja a usucapião) ou usando-se de formas e formalidades próprias do comércio jurídico-privado (como seja a simples forma escrita ou a escritura pública). O que se diz é que a aquisição do carácter dominial não está sujeita obrigatoriamente aos modos, formas e formalidades próprios do comércio jurídico-privado.
Temos assim que in casu o acto de afectação da coisa cedida aos fins da utilidade pública representou por si só a aquisição do respectivo domínio, por parte da R., da parcela de terreno em causa.
Bem se vê deste modo que o acordo estabelecido entre A. e R. não tinha, para valer juridicamente, que ser formalizado por escritura pública. O que significa que nulidade alguma foi, por inobservância de forma, praticada.
A situação em causa é aliás subsumível àquilo a que a doutrina e a jurisprudência italianas designam de dicatio ad patriam. A dicatio (cedência) consiste basicamente em uma pessoa ceder para uso público (designadamente para fins de “strade vicinali” [caminhos vicinais]) bens de sua propriedade, o que é considerado como um meio de aquisição da coisa para o domínio público e uma perda para o tradens. A propósito desta temática expende Durval Ferreira (v. Posse e Usucapião, 2ª ed., pág. 103) que a regra da exigência da escritura pública se circunscreve às relações que tenham por objecto coisas submetidas ao comércio jurídico-privado, de sorte que não abrange as declarações de vontade (a começar pela do cedente) manifestadas para o ingresso da coisa no domínio público. E observa que a dicatio é um meio específico e autónomo de ingresso da coisa no domínio público, fundado justamente na renúncia do particular à sua propriedade».
Impõe-se, pois, concluir que o acto em causa não padece de invalidade por falta de forma.
3.2. Da legitimidade do cabeça-de-casal
O outro fundamento prende-se com os poderes do cabeça-de-casal.
Recorde-se que está em causa a cedência de uma parcela de terreno para o alargamento de um caminho público, contra a (re)construção de um muro.
É frequente os fregueses (pessoas pertencentes a uma freguesia) cederem faixas de terreno para alargamento dos caminhos públicos, contra a (re)construção dos muros delimitadores do prédio por tal facto normalmente acarretar a valorização do prédio em montante superior ao valor do terreno cedido (a proximidade de vias de acesso é um factor de particular valorização como é do conhecimento comum e se colhe do regime da expropriação por utilidade pública).
Nessa medida, não estamos perante um mero acto de disposição, mas sim de uma benfeitoria útil (cfr. artigo 216.º, n.º 3, CC: despesa que, não sendo necessária para a conservação da coisa, contudo lhe aumentam o valor).
Importa, por isso, determinar se o acto em causa cabe nas competências legais do cabeça-de-casal.
Nos termos do artigo 2079.º CC, a administração da herança até à sua liquidação, pertence ao cabeça-de-casal.
A lei, salvo em alguns preceitos especiais (v.g., artigos 2088.º, 2089.º e 2090.º CC), dispensou-se de fixar o conteúdo dos poderes e deveres inerentes ao estatuto do cabeça-de-casal, deferindo tal tarefa à doutrina e jurisprudência.
A este propósito escreve Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Almedina, vol. I, 4.ª edição, pg. 322-3:
«Mas de tudo quanto se doutrinou e decidiu pode concluir-se que, no caso concreto, a administração cometida ao cabeça-de-casal, no caso concreto, não tem a extensão da conferida ao administrador dos bens do casal já por sua precaridade, já por ser menor interesse do titular na conservação e frutificação do património administrado.
Trata-se de uma administração muito limitada no tempo, por via de regra, com escassos meios administrativos e quase sempre desempenhada por pessoas a quem, fora das suas ocupações habituais, não sobeja tempo para a exercer com competência e assiduidade.
A lei diz ao cabeça-de-casal que administre, impõe-lhe regras de conduta cuja inobservância é causal de responsabilidade, nenhuma retribuição lhe atribui por o exercício da função dispensa-se de definir em concreto o que pode fazer, deve fazer e lhe é defeso fazer.
Mais: — a lei defere o cabeçalato não em função da competência para o seu exercício mas com respeito por uma ordem que tem ínsita o parentesco, a proximidade de grau com o falecido, critérios de razão afectiva, sentimental, quiçá de relativo interesse pessoal, tudo factores sem relevância no tocante à administração que atribui e impõe ao titular assim designado.
Concluir-se-á, portanto, que, colocado numa situação temporária de administrador de bens em que tem mera parte ideal (e até em que pode não ter parte alguma), o cabeça-de-casal deverá praticar os actos que sejam indispensáveis à conservação do património em partilha, exercer aquele conjunto de direitos que a lei lhe outorga especificamente com vista a essa conservação e cumprir as tarefas que diplomas vários lhe impõem em atenção à qualidade em que investido ou a que tem potencial direito.
E justamente porque naquele primeiro aspecto se reporta à «conservação», concluir-se-á mais que é defeso ao cabeça-de-casal a realização de benfeitorias úteis ou voluptuárias (Cód. Civil, art. 216.º, n.º 3)».
A este propósito remete para o acórdão da Relação do Porto de 1980.02.22, CJ, V, tomo 1, pág. 56, onde se afirma que «por actos de administração se entendem aqueles cujo fim é a conservação e frutificação normal dos bens, sem alteração da integridade do património».
Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Coimbra Editira, vol. II, 3.ª edição, pg. 54-5, equaciona os poderes do cabeça-de-casal nos termos seguintes:
«(…) importa dizer que também a história da lei e até os graus de exigência com que a lei regula o exercício da administração do cabeça-de-casal apontam no sentido de que ao cabeça-de-casal competem, para além dos definidos especialmente, poderes de administração ordinária, ou seja, de acordo com os ensinamentos de MANUEL DE ANDRADE poderes para a prática de actos e negócios jurídicos, de conservação e frutificação normal dos bens administrados.»
E continua na nota n.º 144:
«Embora MANUEL DE ANDRADE, ob. ant. cit., pág. 63, e MOTA PINTO, Teoria Geral ia Direito Civil, 1985, pág. 410, admitam muito reticentemente a possibilidade de enquadramento dos actos de frutificação anormal e de melhoramento nos poderes de administração ordinária em geral, desde que as respectivas despesas se façam à custa de rendimentos e se traduzam em obras nos bens administrados, parece-nos que no caso da administração da herança tal não é possível, desde logo porque o destino dos rendimentos hereditários está funcionalizado ou imperativamente fixado (arts. 2090.°, 2092.° e 2093.°, n.º 3). Igualmente, no sentido de que as benfeitorias úteis ou voluptuárias estão defesas ao cabeça-de-casal, cfr. LOPES CARDOSO, Partilhas Judiciais, 1, 1990, pág. 323».
Assim, e não obstante a elevada probabilidade de valorização do património hereditário, não podia o cabeça-de-casal ter cedido a parcela de terreno sem o acordo dos demais herdeiros (artigo 2091.º CC).
Nessa conformidade, o acto em apreço será inoponível aos demais herdeiros.
3. Do exercício em desequilíbrio
Do acima exposto não resulta, porém, que se acolha a solução da sentença no sentido de determinar a reposição do prédio no estado que se encontrava antes do acordo celebrado com o cabeça-de-casal respectiva indemnização (pontos iii a vii) da sentença.
Pese embora ter conhecimento de que o prédio pertencia também a outras pessoas para além do I…, com quem negociou a cedência da faixa de terreno para o alargamento do caminho, verifica-se uma grande desproporção entre o benefício que para os apelados resulta do reconhecimento do seu direito e o prejuízo para a apelante — Junta de Freguesia … — e para os fregueses beneficiados com o alargamento do caminho cujas obras já se tinham iniciado.
Trata-se de uma situação de exercício em desequilíbrio, pois se verifica uma significativa desproporção entre as vantagens que o titular pretende obter e o prejuízo que resulta para terceiro ou para a contra-parte.
Como refere Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Almedina, Parte Geral, Tomo I, 1999, pg. 212, aqui não se faz apelo à protecção da confiança, mas tão só à primazia da materialidade subjacente, pois o que está em causa é um exercício de puro desequilíbrio objectivo.
Encontramos, aliás, um lugar paralelo na responsabilidade contratual: o artigo 829.º CC dispõe que, havendo obra construída em violação de dever de prestação de facto negativo, o credor tem o direito de exigir que seja destruída, mas esse direito cessa se o prejuízo da demolição para o devedor for consideravelmente superior ao prejuízo sofrido pelo credor.
A propósito da desproporção entre a vantagem auferida e o sacrifício imposto, escreve Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, Coimbra Editora, vol. III, pg. 287,
«E o que está verdadeiramente em causa é, não a boa fé, mas a desproporção entre vantagens e sacrifícios – ou seja, o afloramento do grande princípio da lesão, ou da reacção contra esta.
Por isso o mesmo princípio é aplicável fora do domínio do Direito las Obrigações. Neste sentido, o Acórdão STJ de 29 de Outubro de 1971 admitiu expressamente a aplicabilidade do artigo 829 para outorgar, em vez da demolição, apenas a indemnização, nos termos gerais.
Diríamos assim que o princípio da reacção contra a lesão impõe que se evitem destruições inúteis, quando a grave desproporção das posições em presença recomenda a composição mediante uma indemnização.»
Revertendo ao caso concreto, afigura-se excessivo fazer retroceder a obra ao seu ponto inicial e inviabilizar a conclusão do alargamento do caminho.
A circunstância de não se ter apurado qual o valor da faixa de terreno incorporada no domínio público (nem sequer a sua área), podendo discutir-se mesmo se o prédio efectivamente sofreu um visível aumento de valor, não invalida a manutenção do negócio face à prevalência do interesse público, sem prejuízo naturalmente do ressarcimento que os apelados possam vir a reclamar na sede própria, designadamente através da remoção do cabeça-de-casal e competente indemnização.
De igual modo não pode subsistir a condenação na indemnização peticionada porque ficaria comprometido o equilíbrio do negócio, pois a apelante tem de proceder à reconstrução do muro demolido, e só haverá verdadeiro prejuízo se o prédio não sofrer valorização com o alargamento do caminho igual ou superior ao montante da indemnização.
4. Decisão
Termos em que, julgando a apelação procedente, revoga-se os pontos iii a vii da sentença recorrida.
Custas pelos apelados.

Porto, 20 de Maio de 2014
Márcia Portela
M. Pinto dos Santos
Francisco Matos
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Sumário:
1. A cedência de uma parcela de terreno para o alargamento de um caminho público não está sujeita a forma legal.
2. Tal acto não cabe na competência do cabeça-de-casal por não se tratar de acto de conservação inserido nos poderes de administração conferidos pelo artigo 2079.º CC, cabendo o seu exercício a todos os herdeiros (artigo 2091.º CC).
3. Verifica-se exercício do direito em desequilíbrio quando se verifica uma significativa desproporção entre as vantagens que o titular pretende obter e o prejuízo que resulta para terceiro (ou para a contraparte).

Márcia Portela