CONTRATO-PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
SOCIEDADE DISSOLVIDA
DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LIQUIDATÁRIO
Sumário

1- Para exigir a execução específica de um contrato-promessa celebrado numa transação judicialmente homologada por sentença, o processo próprio não é o de execução, mas sim o declarativo comum.
2- Tendo esse contrato por objeto a promessa de venda de uma quota-parte de um imóvel a dois promitentes-compradores, estes, para exigirem aquela execução específica, devem atuar, em litisconsórcio necessário ativo.
3- Se, em virtude de outros pedidos, esses promitentes-compradores já figurarem na ação como partes opostas, não podem associar-se quanto ao pedido de execução específica, que deve ser apreciado em ação distinta.
4- Numa sociedade comercial já dissolvida, o respetivo liquidatário não tem legitimidade para, em nome próprio, estar em juízo a exercer os direitos de crédito que só àquela sociedade competem.
5- E, mesmo que tenha a expetativa de vir a receber algum valor remanescente resultante da liquidação da mesma sociedade, também não tem esse liquidatário, só por esse motivo, legitimidade para exercer o direito de sub-rogação quanto às entradas não realizadas.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório
1- J, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra, L, esposa, M, A, e esposa, E, com incidente de intervenção principal provocada de D e esposa, O, pedindo, para além da admissão desta intervenção, ainda o seguinte:
1.º- Que seja proferida sentença que substitua a declaração de venda dos RR., A, e esposa, E, transmitindo para si (A.) e para os RR., L, e esposa, M, a terça parte de que aqueles são proprietários no prédio que descreve no artigo 11.° da petição inicial;
2.º- Que seja declarado que a sociedade “Alves, Carvalho & Companhia, Limitada - em liquidação” é credora dos RR., L e esposa, M, pelo montante de 353.813,94€, acrescida das rendas recebidas depois da data da instauração desta acão (nesta parte a liquidar em execução de sentença), quantia que deverão ser condenados a entregar à sociedade na partilha do património social e na medida do necessário para igualação entre os sócios;
3.º- A título subsidiário, seja declarado que a sociedade, “Alves, Carvalho & Companhia, Limitada - em liquidação” é credora dos RR., L, e esposa, M, pelo montante de 353.813,94€, acrescido das rendas recebidas depois da data da instauração desta ação (nesta parte a liquidar em execução de sentença), quantia em que os referidos RR., sem causa, estão enriquecidos e em que, por isso, deverão ser condenados a entregar à sociedade na partilha do património social e na medida do necessário para igualar os sócios nas perdas e ganhos; ou, para o caso de se entender que o réu só pode pedir o reconhecimento desse direito e a respetiva condenação dos réus na medida do seu próprio empobrecimento, ser declarado que os RR., L e esposa, M, devem ao A. a quantia de 117.937.98€, acrescida de um terço das rendas recebidas depois da data da instauração desta ação, e aqueles condenados a entregá-la a este.
Para fundamentar o primeiro pedido alega, em síntese, que, no dia 27 de Outubro de 1977, ele próprio e a esposa, MF, os RR., L e esposa, M e A, celebraram uma transação, no âmbito de uma ação judicial (que correu termos no 2.° Juízo do Tribunal Judicial de Guimarães, sob o n.º 82/1975), homologada por sentença transitada em julgado, na qual estipularam, entre o mais, que o aí A., A, se obrigava a celebrar com os aí RR., J e L, a escritura de venda do quinhão de um terço do prédio que descreve no artigo 11.° da petição, mas nunca cumpriu essa obrigação.
Quanto ao segundo e terceiro pedidos, sustenta que a sociedade Alves Carvalho & Cª Ldª, foi dissolvida por sentença proferida no dia 14/07/2006, no processo 1334/06.6TBGMR, que já transitou em julgado, mas, o R., L, não cumpriu com a sua obrigação de entrada para o capital social dessa sociedade, que se consubstanciava na transmissão da propriedade de um prédio que lhe pertencia (descrito no artigo 1.º da petição inicial), além de que subtraiu à mesma sociedade outros bens.
Por isso mesmo, entende que, na partilha do património societário, o crédito sobre aquele sócio, deve ser levado em consideração, o que tem legitimidade para exigir-lhe.
2- Os RR. L, esposa, M, contestaram, invocando expressamente a exceção de caso julgado e impugnando a demais factualidade em que o A. baseia a sua pretensão.
Por isso, pede a procedência daquela exceção ou, subsidiariamente, a improcedência desta ação, com a sua absolvição do pedido.
3- Findos os articulados e ouvidos os RR. sobre as exceções arguidas e oficiosamente suscitadas, foi proferida sentença que, julgando verificado o erro na forma de processo, quanto ao primeiro pedido, e a ilegitimidade do A. relativamente a todos os pedidos, absolveu os RR. da presente instância.
Além disso, no que concerne ao pedido de intervenção principal requerido pelo A., considerou-se, num primeiro momento, que se trata de matéria prejudicada na sequência da decisão proferida.
No entanto, “[n]ão se deixando todavia de anotar que sempre seria de se concluir pela ausência de fundamento da requerida intervenção principal de terceiros, uma vez que a mesma se acostava precisamente na representação da sociedade pelos sócios em nome próprio o que como se viu, não é legalmente possível.
Daí que e valendo para aqui mutatis mutandis as mesmas razões de direito (sem prejuízo da inutilidade do seu conhecimento) se indefere os referidos pedidos de intervenção principal”.
4- Inconformado com esta decisão, dela interpõe recurso o A., rematando-o com as seguintes conclusões:
“Quanto ao acerto na forma do processo
1ª A forma processual adequada para obter a execução específica de uma promessa não cumprida é a acção declarativa constitutiva de direitos a que se refere a alínea c), do n.º 3, do artigo 10.º, do Código de Processo Civil, que segue a forma comum por não haver, para ela, processo especial, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 546.º e n.º 2, do artigo 548.º, ambos do mesmo Código;
2.ª Isso mesmo que a promessa conste de uma transacção homologada por sentença, pois que a declaração negocial do faltoso deve ser substituída por uma sentença que o declare, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 830.º, do Código de Processo Civil, o que não se apresenta alcançável com nenhuma forma de processo executivo.
Segue-se, quanto à legitimidade do autor,
3.ª Em face de uma promessa de transmissão de uma coisa a mais do que uma pessoa em conjunto, qualquer dos promitentes adquirentes pode pedir que se profira sentença que substitua a declaração negocial do transmitente faltoso, ainda que tenha de deduzir o incidente de intervenção principal dos que não se apresentarem a deduzir a pretensão em conjunto, para observar o litisconsórcio necessário, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 33.º, em conjugação com o n.º 1, do artigo 316.º, ambos do Código de Processo Civil, pois que, de outra forma, bastava a quem não quer cumprir uma promessa, convencer um dos elementos da parte contrária, por forma a deixar de ser possível a sua obtenção judicial;
4.ª Se acaso o(s) elemento(s) da parte contrária forem já parte principal na acção, ocupando a posição de réu(s), por serem deduzidos outros pedidos contra ele(s), então não há que deduzir qualquer intervenção por esta se destinar a chamar à acção quem nele não intervém ainda.
5.ª Sem prescindir e se acaso ocorresse esta ilegitimidade, sempre o tribunal deveria convidar o autor a supri-la, nos termos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 590.º, e n.º 2, do artigo 6.º, do Código de Processo Civil.
Segue-se, quanto à outra legitimidade do autor,
6.ª O liquidatário da sociedade dissolvida pode, ele próprio, cobrar os créditos da sociedade, nos termos do disposto na alínea c), do n.º 3, do artigo 152.º, do Código das Sociedades Comerciais, sendo, por isso e nas respectivas acções, parte legítima.
7.ª Ainda que assim se não entendesse, sempre qualquer sócio é parte legítima para pedir a declaração da existência de um crédito da sociedade sobre outro sócio, decorrente da obrigação de entrada não satisfeita e não exigida pela sociedade, e da indemnização devida à sociedade por subtracção de bens desta, não satisfeita e não exigida pela sociedade, por ter um interesse próprio para, na partilha, haver a parte que lhe competir, nos termos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, do artigo 78.º, ambos do Código das Sociedades Comerciais, e n.º 1, do 606.º, do Código Civil.
8.ª Sem prescindir e se acaso ocorresse esta ilegitimidade, sempre o tribunal deveria convidar o autor a supri-la, em face das normas referidas na conclusão 5.ª.
Segue-se, quanto ao pedido de intervenção,
9.ª Em acção em que se pede a declaração da existência de um crédito de uma sociedade sobre um sócio para o levar em conta na partilha do património social, deve ser admitido o pedido de intervenção dos outros sócios, por terem interesse igual ao do autor, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 316.º, em conjugação com os n.ºs 1 e 2, do artigo 33.º, ambos do Código de Processo Civil;
10.ª Em acção em que se pede a execução específica de um contrato promessa, alegando que a sentença que se pede substitua a declaração negocial do faltoso visa dar cumprimento a outros compromissos, designadamente da transmissão do objecto a terceiro, é de admitir a intervenção desse terceiro, para, quanto a ele se produzir, nessa matéria, caso julgado, designadamente no caso de a acção ser julgada improcedente, do que resultará a impossibilidade do cumprimento daquele compromisso, sem culpa do autor, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 316.º, em conjugação com o n.º 1, do artigo 32.º, ambos do Código de Processo Civil,
Tudo visto
11.ª A decisão recorrida não aplicou e violou o disposto na alínea c), do n.º 3, do artigo 10.º, n.º 6, do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, do artigo 546.º e n.º 2, do artigo 548.º, todos do Código de Processo Civil, e n.º 1, do artigo 830.º, do Código Civil; bem como o n.º 1, do artigo 33.º, em conjugação com o n.º 1, do artigo 316.º, e a alínea a), do n.º 1, do artigo 590.º, em conjugação com o n.º 2, do artigo 6.º, todos do Código de Processo Civil; bem como a alínea c), do n.º 3, do artigo 152.º, do Código das Sociedades Comerciais, a alínea a), do n.º 1, do artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, do artigo 78.º, ambos do Código das Sociedades Comerciais, e n.º 1, do 606.º, do Código Civil, e a alínea a), do n.º 1, do artigo 590.º, e n.º 2, do artigo 6.º, do Código de Processo Civil; bem como, finalmente, o disposto nos n.ºs 1 e 2, do artigo 316.º, em conjugação com os n.ºs 1 e 2, do artigo 33.º, e o n.º 1, do artigo 32.º, todos do Código de Processo Civil”.
Pede, assim, a revogação da sentença recorrida e que se declare que não ocorreu qualquer erro na forma do processo, o A. é parte legítima para todos os pedidos que deduziu, bem como que admita a intervenção principal pedida na petição inicial.
5- Os RR./Contestantes responderam pugnando pela confirmação do julgado.
6- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:

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II- Mérito do recurso
1- Definição do seu objecto
Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil), é constituído pelas seguintes problemáticas:
a) Em primeiro lugar, saber se ocorre erro na forma de processo, quanto ao primeiro pedido formulado pelo A., se este, por si só, tem legitimidade para esse pedido e, na negativa, quais as consequências jurídicas;
b) Em segundo lugar, aquilatar se o A. tem legitimidade para os demais pedidos substantivos que formula;
c) E, por fim, decidir se é admissível o pedido de intervenção principal provocado, apresentado pelo A..
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2- Baseando-nos nos factos descritos no relatório supra exarado -que são os únicos relevantes para o efeito -, vejamos, então, como solucionar as referidas problemáticas:
2.1- Comecemos por analisar a primeira.
Trata-se de saber, em primeiro lugar, qual o tipo de ação legalmente adequada para o A. exigir o cumprimento da transação celebrada na Ação Ordinária que, sob o n.º 82/1975, correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Guimarães: se a ação executiva ou a ação declarativa.
Na instância recorrida, optou-se pela primeira solução. Aí se argumentou, no essencial, que, dispondo o A. de título executivo, é naquela ação, e não nesta, que o mesmo deve fazer valer os seus direitos.
Mas o A. não concorda com este entendimento. E defende, ao invés, que, tratando-se de uma ação destinada a exigir a execução específica de um contrato promessa celebrado na dita transação, é em sede declarativa, e não executiva, que esse resultado deve ser alcançado. Isto porque, no fundo, se trata de uma ação constitutiva de direitos.
E, a nosso ver, tem razão.
Efetivamente, não sofre dúvidas de que, na transação já mencionada, o ora R., A, se comprometeu a vender ao ora A., J, e ao ora R., L, a sua quota-parte, ou seja, 1/3, no direito de propriedade sobre um determinado prédio.
Por conseguinte, ainda que constante de uma transação, este é um contrato-promessa de compra e venda; isto é, um convénio mediante o qual aquele R., A, se comprometeu, perante os seus referidos irmãos, a celebrar um outro contrato, neste caso de compra e venda, tendo por objeto o mencionado direito (artigo 410.º, n.º1, do Código Civil).
E, alegadamente, não o terá cumprido.
Ora, quando assim é, ou seja, quando “alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida” – artigo 830.º, n.º 1, do Código Civil. Pode, por outras palavras, requerer a execução específica da promessa.
Esta execução, no entanto, ao contrário do que parece ter-se entendido na instância recorrida, não se confunde com o típico processo de realização coativa da prestação pelo devedor ou por terceiro. Nem mesmo que a promessa tenha sido assumida em transação judicialmente homologada, como foi o caso.
Traduz-se, efetivamente, numa realização coativa da prestação(1), mas, ao invés do que sucede naquele processo, isto é, no processo de execução, a prestação fica a cargo do tribunal e não de outrem. É o tribunal, no fundo, que, por sentença, “substitui o promitente faltoso na emissão da declaração de vontade prometida”(2).
Por isso se diz que, nessa hipótese, a ação, embora declarativa, tem natureza constitutiva(3); ou seja, introduz “uma mudança na ordem jurídica existente” – artigo 10.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil.
Ora, sendo esse o caso, isto é, pretendendo também o A. nesta ação esse resultado, é inequívoco que não ocorre qualquer erro na forma de processo.
Questão diferente é a de saber se o A. tem legitimidade para o efeito.
Já vimos que a promessa de venda foi feita não só ao A., mas também ao seu irmão e ora R., L. Trata-se, portanto, de uma obrigação conjunta. Mas esta conjunção não significa que, do lado ativo desta demanda, possa estar só um dos seus titulares.
Efetivamente, para além dos casos em que a lei ou o negócio jurídico imponham o litisconsórcio necessário (designados também, respetivamente, por litisconsórcio legal e convencional), há outros (de litisconsórcio natural) em que a pluralidade de sujeitos processuais se torna imperiosa para que a decisão produza o seu efeito útil normal (artigo 33.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil). Isto é, para que, “não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado” (n.º 3). Ou, dito por outras palavras, possa compor definitivamente o litígio.
Não se trata, assim, como tem sido sublinhado pela doutrina, de “impor o litisconsórcio para evitar decisões contraditórias nos seus fundamentos, mas de evitar sentenças – ou outras providências – inúteis por, por um lado, não vincularem os terceiros interessados, e, por outro, não poderem produzir o seu efeito típico em face apenas das partes processuais”(4).
Daí que o litisconsórcio seja, também nessas hipóteses, necessário.
Pois bem, tomando como certo este critério, e sabendo nós que, nas ações constitutivas, como já vimos ser o caso desta em relação ao pedido em apreço, “a relação material é, diretamente, o próprio direito potestativo, e não a relação a modificar, invalidar ou extinguir”(5), nenhuma utilidade teria a sentença que se limitasse a emitir a declaração de vontade substitutiva da prometida só em relação ao A. e não ao outro promitente comprador, o R., L. A promessa não ficaria inteiramente cumprida.
De modo que não há como deixar de concluir pela necessidade deste R. se posicionar, em relação à referida pretensão do A., em litisconsórcio ativo com este último.
Sucede – e este é o ponto mais agudo desta problemática – que o referido R. já é parte nesta ação. E, assim, como bem salienta o A., não faz sentido chamá-lo a juízo novamente para suprir a sua ilegitimidade. Não fora deste modo, e o expediente próprio para o chamar a juízo seria o incidente de intervenção provocada (artigo 316.º, n. 1, do Código de Processo Civil). Mas, repetimos, não é assim. O aludido R. já é parte nesta causa e a questão que se coloca agora é a de saber se lhe pode ser pedido que, no fundo, se transfigure; que em vez de opositor do A. passe, nesta parte, a ser também seu associado.
Ora, do nosso ponto de vista, esta transfiguração não pode aqui ter lugar; ou seja, o referido R. não pode, em simultâneo e na mesma ação, assumir os dois papéis.
É verdade que um dos princípios estruturantes do processo civil é o da economia processual. “Deve procurar-se o máximo resultado processual com o mínimo emprego de atividade; o máximo rendimento com o mínimo de custo”(6). E, assim, além de ser proibida a prática de atos inúteis (artigo 130.º, do Código de Processo Civil) também se deve procurar que em cada processo se resolvam o máximo de litígios possível (economia de processos). As disposições legais que permitem a pluralidade de partes, a cumulação de pedidos, a ampliação do pedido e/ou causa de pedir, a reconvenção e os incidentes de intervenção de terceiros, confirmam o respeito por esse princípio(7).
Mas esse respeito tem limites. Na verdade, não é porque alguém tem um sem número de conflitos que pode solucioná-los, todos, num único processo. A regra, aliás, é exatamente a contrária. Cada litígio deve resolvido no processo que a lei lhe reserva, em função dos diversos fatores de conexão considerados relevantes. Por exemplo, o autor pode deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis entre si, mas já não o pode fazer, por regra, se a esses pedidos corresponderem formas de processo diferentes ou no caso da cumulação ofender as regras que disciplinam a competência internacional, em razão da matéria ou da hierarquia – artigos 555.º, n.º 1, e 37.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Por outro lado, sob pena de grave subversão do modelo processual vigente, que, no domínio contencioso, assenta no antagonismo de interesses (artigo 3.º, n.º1, do Código de Processo Civil), não se pode permitir que, no mesmo processo, alguma das partes seja, em simultâneo, opositor e associado daqueles que já detêm essa qualidade.
Ora, se o R., L fosse admitido a intervir nestes autos também como associado do A., era isso, justamente que sucederia. Ocuparia dois papéis com interesses antagónicos, em virtude dos demais pedidos formulados.
Daí que não se possa admitir essa intervenção. E, como tal, não dispondo o A., como vimos, de legitimidade para, por si só, exigir ao R. A, o cumprimento da promessa que o mesmo lhes fez, esse cumprimento terá de ser exigido numa outra demanda.
Aqui, como se decidiu na sentença recorrida, esse R. e a esposa, não podem deixar, quanto a este pedido, de ser absolvidos da presente instância (artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, al e), do Código de Processo Civil).
2.2- Vejamos agora se o A. tem legitimidade adjetiva para os demais pedidos
Recordemos o seu teor:
a) Que seja declarado que a sociedade “Alves, Carvalho & Companhia, Limitada - em liquidação” é credora dos RR., L e esposa, M, pelo montante de 353.813,94€, acrescida das rendas recebidas depois da data da instauração desta acão (nesta parte a liquidar em execução de sentença), quantia que deverão ser condenados a entregar à sociedade na partilha do património social e na medida do necessário para igualação entre os sócios;
b) A título subsidiário, seja declarado que a sociedade, “Alves, Carvalho & Companhia, Limitada - em liquidação” é credora dos RR., L, e esposa, M, pelo montante de 353.813,94€, acrescido das rendas recebidas depois da data da instauração desta ação (nesta parte a liquidar em execução de sentença), quantia em que os referidos RR., sem causa, estão enriquecidos e em que, por isso, deverão ser condenados a entregar à sociedade na partilha do património social e na medida do necessário para igualar os sócios nas perdas e ganhos; ou, para o caso de se entender que o réu(8) só pode pedir o reconhecimento desse direito e a respetiva condenação dos réus na medida do seu próprio empobrecimento, ser declarado que os RR., L e esposa, M, devem ao A. a quantia de 117.937.98€, acrescida de um terço das rendas recebidas depois da data da instauração desta ação, e aqueles condenados a entregá-la a este.
Na sentença recorrida não se reconheceu legitimidade ao A. para formular estes pedidos.
Aí se argumentou e decidiu do modo seguinte:
“O autor invoca a situação de dissolução da sociedade Alves Carvalho e Companhia Ldª e a sua qualidade de sócio gerente da mesma sociedade para formular os pedidos indicados sob os nºs 3 e 4 da petição a favor da mesma sociedade.
Sobre a representação das sociedades comerciais, Raul Ventura, em Sociedades e Empresas Comerciais, 631, escrevia que num sentido restrito que por «dissolução das sociedades entende-se como o ato pelo qual se determina a extinção da sociedade. Num sentido amplo, que é o corrente, é todo o período que vai desde o ato que determina a extinção das sociedades até ao seu completo desaparecimento, isto é, até ao final da partilha».
De forma mais sintética e expressiva, diz o mesmo autor, in Dissolução e Liquidação, das Sociedades Comerciais I-13 que «a dissolução é a modificação da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade consistente em ela entrar na fase da liquidação».
Já segundo Pinto Furtado, Cód. Comercial Anotado, 1º, pág. 317, a dissolução da sociedade é a cessação gradativa da sua existência, através da liquidação do respetivo património, com satisfação do passivo e final partilha do resíduo pelos sócios.
Do exposto resulta à evidência que a dissolução é uma mera modificação da situação jurídica da sociedade que se caracteriza pela sua entrada em liquidação; consistindo pois, numa modificação e não na sua extinção, uma vez que, não obstante a sua dissolução, a sociedade conserva a sua personalidade jurídica até ao registo do encerramento da liquidação (art. 160°, nº2) vde Rosário Palma Ramalho, Sobre a Dissolução das Sociedades Anónimas.
À deliberação ou declaração judicial de dissolução deve seguir-se, igualmente, a escritura pública e registo de dissolução.
Dissolvida a sociedade, esta fica com existência jurídica, embora apenas para a liquidação do seu património e partilha do resíduo pelos sócios que agem como liquidatários (artigos 146° e ss do CSC).
No que respeita à situação jurídica da sociedade em liquidação, esta, mantém a mesma personalidade jurídica até ao encerramento da liquidação (arts. 146°-2, e 160°-2 e Ac. S.T.J., de 2.7.1996, in CoI. Jur., 1996, II, pág. 157).
Por isso, apesar de ser decretada a sua dissolução, a sociedade continua, durante a fase da liquidação, temporariamente, a exercer a atividade social, mesmo que tal implique a conclusão de novos negócios ou a contratação de empréstimos necessários à efetivação da liquidação (art. 152°-2-a) e b) CSC), os órgãos da sociedade em liquidação são os mesmos existentes à data da dissolução, excetuando os administradores, que passam a ser os liquidatários (arts. 146° n° 2 e 151 ° n° 1, do CSC), com os deveres, poderes e responsabilidades referidos no art. 152°.
Feita a liquidação, os liquidatários devem requerer o registo de encerramento da liquidação que marca o termo de personalidade jurídica da sociedade (art. 160° CSC e art. 3° al. s) do C.R.C.).
Só no termo do processo de liquidação, através do registo do seu encerramento, é que a sociedade se considerará extinta (cit. art. 160° nº 2 CSC).
Regista-se, ainda que após o encerramento da liquidação e extinção da sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha (art. 163°-a) responsabilidade, que prescreve no prazo de 5 anos a contar do registo da extinção (art. 174°-3).
De todo o exposto, se, retira que a sociedade Alves Carvalho Ldª não tendo sido liquidada e registada a respetiva liquidação, a mesma, apesar, de dissolvida mantém a personalidade jurídica, não sendo caso, de ser substituída pelos seus sócios.
Deste modo, o autor é parte ilegítima para demandar em nome da referida sociedade e formular em seu nome os demais pedidos supra elencados.
É que sendo a legitimidade um pressuposto que se afere pela posição da parte processual face ao objeto processual - exigida pelo direito traduz-se num poder de dispor em processo da situação jurídica que se quer fazer valer.
A existência deste poder para dispor por via processual permite ao respetivo sujeito uma determinada atuação no campo da ação, qual seja a de fazer valer a pretensão ao longo do processo (legitimidade do autor) ou opor-se à procedência da pretensão (legitimidade do réu).
Tal poder como supra se referiu inexiste na pessoa do autor, radicando, pois, nesta ausência de pressuposto processual e com os fundamentos expostos, a sua ilegitimidade.
Nos termos expostos se decide absolver os RR de todos os pedidos formulados na petição inicial (artigos 278° 1 b) e d) 576° n° 1 e 2, e 577º, e), todos do Código de Processo Civil”.
O A., porém, discorda desta solução. E contrapõe que “[o] liquidatário da sociedade dissolvida pode, ele próprio, cobrar os créditos da sociedade, nos termos do disposto na alínea c), do n.º 3, do artigo 152.º, do Código das Sociedades Comerciais, sendo, por isso e nas respectivas acções, parte legítima”.
Mas, “[a]inda que assim se não entendesse, sempre qualquer sócio é parte legítima para pedir a declaração da existência de um crédito da sociedade sobre outro sócio, decorrente da obrigação de entrada não satisfeita e não exigida pela sociedade, e da indemnização devida à sociedade por subtracção de bens desta, não satisfeita e não exigida pela sociedade, por ter um interesse próprio para, na partilha, haver a parte que lhe competir, nos termos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, do artigo 78.º, ambos do Código das Sociedades Comerciais, e n.º 1, do 606.º, do Código Civil”.
Do nosso ponto de vista, no entanto, o A. não tem razão.
Para melhor compreender esta resposta, importa começar por recordar que a legitimidade processual se reconduz à qualidade ou posição, juridicamente relevante, da parte em relação ao objeto (próximo) do processo(9); ou seja, em relação ao pedido. E isso, quer para o deduzir, quer para o contradizer.
A parte, sendo legítima, tem o direito de, dentro dos limites da lei, dispor do processo e de afirmar nele os seus interesses legalmente protegidos(10).
Ponto é que seja titular direto desses interesses. A lei (artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) não deixa qualquer margem para dúvidas, quando dispõe que “[o] autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”. E esclarece no n.º 2, que “[o] interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha”.
O interesse, pois, entendido nestes termos, é o critério decisivo para a aferição da legitimidade processual.
Mesmo no plano das relações jurídicas, como acrescenta o n.º 3 do citado preceito, a legitimidade depende da titularidade do interesse juridicamente relevante; ou seja, da coincidência entre a relação jurídica material controvertida e a relação processual em que aquela relação é afirmada, servindo de critério para aferição dessa coincidência, na falta de disposição legal em contrário, a tese do autor.
Ora, o que deve questionar-se nestes autos é se o A. detém a titularidade do referido interesse.
E, como já demos a entender, não tem.
É verdade, em primeiro lugar, que o artigo 152.º, n.º 3, al. c), do Código das Sociedades Comerciais (CSC), estipula que o liquidatário deve “cobrar os créditos da sociedade”. Tal como é verdade que, nada sendo convencionado em contrário no acordo constitutivo da sociedade ou em deliberação subsequente, “os membros da administração da sociedade passam a ser os liquidatários desta a partir do momento em que ela se considere dissolvida”, podendo qualquer deles, individualmente, praticar atos de liquidação que não impliquem a alienação de bens da sociedade, para os quais é necessária a intervenção de, pelo menos, dois liquidatários- artigo 151.º, nºs 1 e 6, do CSC.
Mas estes poderes não convertem o liquidatário em ente autónomo da sociedade. Esta, com efeito, apesar de dissolvida continua, como se assinalou na sentença recorrida e resulta do disposto no artigo 160.º, n.º 2, do CSC, a ter personalidade jurídica até ao registo do encerramento da liquidação.
Só que, com a dissolução, nela se verificam profundas modificações orgânicas. Modificações que, de resto, são justificadas pela mudança de objetivos. Até à dissolução, a sociedade visava a obtenção de lucro através do exercício da sua atividade societária. A partir de então, passa a ter por objetivo a liquidação e partilha do seu património remanescente. Mas, repetimos, a sociedade continua a ser o mesmo centro autónomo de relações jurídicas(11), dotado, portanto, de personalidade jurídica (artigo 5.º do CSC). É ela o centro de imputação de direitos e obrigações e não os seus órgãos.
De modo que, sendo este o critério relevante, nunca o liquidatário de uma sociedade dissolvida se pode considerar seu substituto. É sim um dos órgãos que a representa.
Ora, nessa qualidade de simples órgão, o liquidatário não atua em nome próprio; isto é, não atua enquanto titular dos direitos e deveres que exerce. “A atuação dos órgãos é a da pessoa coletiva, numa lógica própria do modo coletivo de funcionamento do Direito”(12). De tal forma que a atuação desses órgãos se repercute na esfera jurídica da mesma pessoa coletiva, que é, assim, quem tem legitimidade para estar em juízo.
Neste enquadramento, pois, bem se vê que o A. não tem legitimidade para, em nome próprio e na qualidade de liquidatário, como alega, estar em juízo a exercer direitos de crédito que só à sociedade por ele (também) fundada assistem.
Por outro lado, também não tem legitimidade para esse mesmo efeito, mas agora na qualidade de credor que invoca, pois que o seu alegado crédito sobre a referida sociedade nem sequer ainda existe. Enquanto não terminar a fase da liquidação e a dita sociedade não for extinta nos termos já assinalados, o A. não tem mais do que uma expetativa jurídica, que estará dependente da distribuição do saldo remanescente dessa liquidação, se o houver. De modo que, pressupondo o direito de sub-rogação previsto no artigo 30.º do CSC, um crédito já constituído a favor dos credores da sociedade relativamente à qual as entradas não foram realizadas(13), e não sendo esse o caso, a legitimidade do A. não se pode fundamentar em semelhante preceito.
Daí que, a todas as luzes seja inviável também este fundamento para justificar a legitimidade processual do A.
E nenhum outro também existe, pois que todos os alegados créditos em que o mesmo baseia a sua pretensão situam-se, em primeira linha, como refere, na titularidade da sociedade da qual ele é sócio.
Por outro lado, também não é caso de fazer intervir alguém para suprir esta exceção, pois como já vimos, essa intervenção pressupunha que esse eventual interveniente se pudesse associar ao A., o que, de todo, não é possível, pois que o mesmo tem necessariamente de ser absolvido desta instância. O que significa, por outras palavras, que se encontra prejudicada a análise desta questão.
Em suma: o decidido na sentença recorrida é de confirmar, ainda que não por razões totalmente coincidentes, assim improcedendo este recurso.
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III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
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- Porque decaiu na sua pretensão, as custas serão suportadas pelo Apelante - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.




1 - Por isso está inserida na Secção dedicada, no Livro das Obrigações do Código Civil, a essa temática (Secção III).
2 - João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5ª, Almedina, pág. 150.
3 - Neste sentido, José Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 13; e, na jurisprudência, Ac.RC de 23/04/2013, Processo 144/11.3TBFCR.C1, consultável em www.dgsi.pt.
4 - José Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto, ob cit., pág. 58.
5 - Manuel Domingues Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 85.
6 - Manuel Domingues Andrade, ob cit., pág. 387.
7 - José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios gerais, 2ª ed. Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 177.
8 - Presumimos que o A. se queria referir a ele próprio, e não ao “réu”, como sustenta no artigo 118.º da petição inicial.
9 - João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, IIº Vol, Revisto e Atualizado, 1987, AAFDL, pág. 190.
10 - Neste sentido, Manuel A. Domingues de Andrade, ob. cit., pág. 84.
11 - -Este o conceito de personalidade jurídica, adotado, por exemplo, por Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, pág. 151.
12 - António Menezes Cordeiro, Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, Almedina, pág. 45.
13 - Sociedade que também tem de ser citada para atuar em regime de litisconsórcio necessário (artigo 608.º do Código Civil)- Neste sentido, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, coordenado por Jorge M. Coutinho de Abreu, Fev. 2013, Almedina, pág. 476.