DIFAMAÇÃO
DOLO GENÉRICO
Sumário

I - No domínio do Código Penal de 1854-1886, entendeu-se que, no crime de difamação e no de injúrias, o dolo exigível não era o específico, corporizado no fim de injuriar ou difamar e sintetizado mo brocardo "animus injuriandi vel difamandi", mas, antes, o genérico, em que se não exigia a especial intenção de ofender; no âmbito do Código de 1982 (CP), consagrou-se tal entendimento, como resulta da conjugação dos n. 1 e 3, artigo 164 CP tendo em consideração a restrição do seu n. 2 vindo a não se penalizar a negligência, pelo que, assim, o dolo basta-se com o teor das expressões ou palavras usadas pelo agente para com o destinatário, ou seja, que as palavras ou frases sejam ofensivas em si mesmas, segundo um critério geral de valoração, - quer dizer, saber se a honra foi atingida deve aferir-se pela sã opinião da generalidade das pessoas e não sob a óptica do ofendido (cfr., Beleza dos Santos, in RLJ 92/267).
II - Acusou-se o arguido (Presidente da Câmara Municipal) de ter proferido, em relação ao assistente (vereador da mesma câmara e de partido político diferente), num contexto de natureza político-criminal, frases como: - "foi detectado um buraco de dois mil e seiscentos contos no pelouro do pessoal da Câmara Municipal de Lisboa a cargo do "Assistente;
"nos Estados Unidos, um gestor que fizesse um erro de precisão de 30%, passava a porteiro"; "o vereador do PSD" "não deve aparecer em mais nenhuma lista";
"este facto veio dar-me força porque se trata de uma pessoa que publicamente toma posição contra mim"; "ao Governo do PSD competirá honrar os compromissos tornados urgentes por defeituosa previsão de mandados seus".
III - As frases aspadas, dirigidas a um homem público com funções de grande responsabilidade e destaque, na sua nudez temática, consideram-se objectivamente injuriosas, segundo um critério do homem comum, e dado que à Lei basta o dolo genérico, não tinha a acusação que referir, expressamente, a índole ofensiva daquelas expressões para o assistente, por irrelevante.
IV - Os lugares de Presidente e de Vereador da Câmara são cargos políticos, competindo àquele a responsabilidade de supervisão geral da gestão municipal; o exercício desses cargos tem ou deve ter em vista, exclusiva ou primordialmente, o bem público, competindo-lhes e aos respectivos colaboradores, gerirem os dinheiros e interesses públicos de forma honesta, cuidadosa, eficiente e profícua evitando erros e lapsos, por incúria, desatenção ou impreparação.
Dado o intercruzar dos vários sectores da administração camarária, os erros e deficiências nuns afectam os demais, onde causam perturbações e alterações que afectam o interesse público planejado.
Pelos princípios da transparência e publicidade da função pública a todos cabe a faculdade de denunciar à opinião pública a deficiência de actuação, as limitações ou desacertos dos titulares dos cargos políticos. A divulgação e expressão do pensamento é livre, bem como o direito de informar e de ser informado (artigo 37 CRP). Tal faculdade não
é restrita aos órgãos de informação, mas entende-se que deve começar, prioritariamente, pelos responsáveis afectados do órgão autárquico, demonstração de autocrítica de gestão consciente e diligente, ainda que haja de atingir directamente algum dos seus servidores.
V - No contexto de luta partidária, o aproveitamento dos lapsos, deficiências e erros do adversário político, representam ganhos para as aspirações e objectivos políticos dos que os denunciam com o duplo objectivo de minimizar a influência e valor do adversário, e ganhar para si imagem e vantagem políticas.
VI - Conquanto as frases e comentários usados pelo arguido sejam um tanto ousados, o certo é que devem inserir-se e ser também encarados como uma disputa entre adversários políticos a que se associará a qualidade de responsável e gerente máximo camarário, do arguido; daí, se deva tirar efeitos nos aspectos criminal e civil, em causa.
VII - Ora a sentença deu por não provada a consciência falsidade da imputação constante das expressões proferidas pelo arguido; outrossim, que o arguido quisesse atingir o assistente na sua honra e consideração pessoal e profissional: - consequentemente, não se demonstra a existência dos elementos cognitivo e volitivo do dolo e este, em qualquer das suas modalidades (artigo 14 CP), pelo que o crime de difamação fica afastado, já que se não apura o essencial elemento subjectivo da conduta do agente.
VIII - Não haverá lugar a responsabilidade civil, em ordem a indemnizar o assistente, porque se não demonstra a culpa do agente, pois, a esse respeito, existe completa falha na matéria de facto apurada.