CONTRATO DE MANDATO
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
INCUMPRIMENTO DO MANDATO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I- No mandato sem representação, o mandatário, embora agindo por conta, e no interesse do mandante, não assume a qualidade de seu representante, e, como que age em nome próprio, adquire todos os direitos e assume todos os deveres que decorrem dos actos que celebra.
II- Todavia, uma vez celebrado o negócio, fica obrigado a transferir a titularidade de todos os direitos “adquiridos em execução do mandato
III- Mas se o mandatário se recusar a transmitir a propriedade para o mandante, este não tem possibilidade de o forçar a tal, assistindo-lhe apenas o direito a uma indemnização de perdas e danos, pois que, o preceituado no artigo 830º do Código Civil, só é aplicável naqueles casos em que a obrigação de celebrar um contrato resulta dum contrato-promessa.
IV- Assim, como o mandato sem representação tem um fim imediato, que se traduz nos actos a praticar pelo mandatário ou por terceiros, e um objectivo mediato, que obriga o mandatário a transferir para o mandante o efeito daqueles actos, e sendo vedada a execução específica, para cumprimento do fim mediato nos termos do artigo 830.º do Código Civil, resta ao mandante demandar o mandatário pedindo indemnização pelos danos que lhe causou o incumprimento (n.º 1 do artigo 1181.º do Código Civil) ou pedir a condenação deste a cumprir o mandato.

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.



I – Nos presentes autos foi proferida a seguinte decisão:

(…) Pelo exposto, e de harmonia com o disposto nos art.º 595°, n° 1, 01. o). do NCPC, o tribunal decide julgar improcedentes os pedidos formulados sob os pontos 1. a 3. do petitório, absolvendo os réus do pedido nesta parte.


Inconformado o autor interpôs recurso cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:

1- O autor interpôs a presente acção contra os Réus pedindo:

1-Seja reconhecido que os Réus agiram como mandatários, em nome próprio, mas por conta e no interesse do autor e em consequência condenados a reconhecer que o autor é o verdadeiro proprietário da quota-parte de metade do prédio urbano inscrito na matriz no artigo 3011/Areosa e descrita na Conservatória Predial de Viana do Castelo sob o n.º xxxx, correspondente a um prédio de cave, rés-do-chão 1, 2 e 3 andares e logradouro com área total de 6667.9 m2 e absterem-se de, relativamente a esse prédio, praticar quaisquer actos que contraditem o direito do autor, e consequentemente:
2-Ser os Réus condenados na obrigação de transmitir para o A., por força do preceituado no nº1 do art. 1181º do CC, a quota-parte de metade do prédio urbano inscrito na matriz no artigo 3011/Areosa e descrita na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o n.º 4143, correspondente a um prédio de cave, rés-do-chão 1, 2 e 3 andares e logradouro com área total de 6667.9 m2, registado a favor dos Réus pelo registo de aquisição Ap23
3-Mais requer que aos RR., seja imposta uma sanção pecuniária compulsória de € 75,00, por cada dia de atraso na execução do ordenado, devendo ainda os RR., serem condenados no pagamento das custas, procuradoria e demais encargos com o processo.
Subsidiariamente:
Caso assim não se entenda, o que não se concebe, sempre se dirá que existe, por parte dos Réus enriquecimento sem causa, pois, locupletaram-se com o montante gasto pelo autor na aquisição dos referidos prédios (actualmente correspondente ao prédio urbano inscrito na matriz no artigo 3011/Areosa e descrita na Conservatória do Registo Predial de Viana do Castelo sob o n.º xxxx, correspondente a um prédio de cave, rés-do-chão 1, 2 e 3 andares e logradouro com área total de 6667.9 m2), e nas obras levadas a efeito, montantes esses, que teriam que despender caso quisessem ser proprietários da totalidade do referido prédio, ou seja, 754.693,03.

2- O Tribunal “a quo” proferiu despacho saneador, que julgou improcedente os pedidos formulados pelo autor sob os pontos 1 a 3 do petitório (mantendo apenas o pedido subsidiário de enriquecimento sem causa), absolvendo os réus dos pedidos nesta parte.
3-Para tanto considerou que “:.. No mandato para adquirir, perfilhada que seja a tese da dupla transferência sucessiva, o mandato alberga a obrigação típica de um pactumcontrahendo, pelo que estará sujeito à exigência de forma decorrente do disposto no nº 2 do art.º 410º CC.E, assim sendo, é por demais evidente que, a demonstrar-se a factualidade alegada pelo próprio autor, as partes terão celebrado, um contrato nulo, por falta de forma. Esta nulidade é invocável a todo o tempo e é do conhecimento oficioso, nos termos do art.º 286º, do CC e a sua verificação tem os efeitos previstos no art.º 289º, do mesmo compêndio legal. Concomitantemente, não pode o autor exigir o cumprimento do contrato e, nomeadamente, a transmissão do prédio identificado no petitório a seu favor. Certamente, por isso mesmo, o autor nem sequer deduz um verdadeiro pedido de execução específica. Assim sendo, é manifesta a improcedência dos pedidos deduzidos a título principal, restando apreciar a pretensão do autor à luz do enriquecimento sem causa…”
4-Ora, salvo o devido respeito, não pode o autor concordar com tal decisão.
5-Com efeito, o Tribunal “a quo” ao decidir como decidiu não fez uma correcta e adequada aplicação do direito, violando dessa forma o direito substantivo.
6- É hoje comummente aceite, quer na doutrina quer na jurisprudência, que o contrato de mandato sem representação, no que respeita à forma é consensual, vigorando o princípio da liberdade da forma previsto no artigo 219.º do C.C. (vide a Ac. S.T.J. de 22-02-2000, Col.Ac. S.T.J., VIII, 1º, 114; Ac. S.T.J. de 11-05-2000, Bol. 497357).
7- Vaz Serra,ao estabelecer a distinção entre procuração e mandato, (R.L.J. Anos 112-222e 109-225), refere que …”O mandato, por sua vez, é independente da procuração, podendo ser com representação ou sem ela. A procuração, salvo disposição em contrário, tem de revestir a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar (art. 262º, nº2), enquanto o mandato não está sujeito a forma especial…” (sublinhado e negrito nosso).
8- Por isso, o mandato sem representação pode ser concluído sem observância de forma especial, nos termos gerais decorrentes do art. 219º do C.C.
9-Também nesse sentido pronunciou-se novamente o STJ no acórdão proferido em 12-01-2012 (proc. 987/06.0TBFAF.G1.S1 – 2.ª secção), ao considerar: “…Por ser sem representação, não lhe é exigível forma superior ao acordo verbal, conforme resulta do referido art.º 219.º…”
10- Por outro lado, não podemos olvidar que o artigo 410.º n.º 2 do C.C. (norma em que o Tribunal à quo se baseia para sujeitar o contrato de mandato sem representação à forma escrita), trata-se de uma norma excepcional, legislada para o âmbito específico, do contrato promessa.
11- Pese embora, o artigo 11.º do CC disponha que “…as normas excepcionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva…”
12- Todavia, salvo melhor opinião, a interpretação extensiva será sempre de afastar quando se pretende aplicar a norma a casos diferentes daqueles para o qual se legislou (como sucede “in casu”).
13- Pois, o regime previsto no n.º 2 do 410.º do C.C., está delimitado para os casos para os quais foi estabelecido, isto é, contrato promessa, não tendo elasticidade para abranger situações novas, sob pena, da excepção se transformar em regra.
14- Acresce que, o artigo 1180.º n. 1 do CC não confere ao mandante, de forma potestativa, a aquisição dos direitos adquiridos em execução do mandato, impondo antes ao mandatário a obrigação de providenciar pela transferência de tais direitos.
15- Transferência esta, que o autor, face à recusa dos réus, pede nos presentes autos, até porque, a transferência dos direitos adquiridos para o mandante é insusceptível de execução específica, vide acórdão do STJ de 26/09/2010, processo nº476/99.P1.S1, em www.dgsi.pt.
16 – Ou seja, no caso em apreço, apenas era possível ao autor, pedir, como pediu, a condenação dos réus a transferir para si a posição contratual que adquiriram.
17- Mas nunca a faculdade de obter uma sentença constitutiva de tal efeito, não se compreendendo por isso a razão do Tribunal “a quo” ter afirmado que “… certamente por isso, o autor nem deduz um verdadeiro pedido de execução específica…”
18- Face ao exposto, o Tribunal “a quo” andou mal ao entender que a demostrar-se a factualidade alegada pelo autor, o contrato de mandato não representativo celebrado com os réus, teria de observar a forma decorrente do n.º 2 do artigo 410.º CC, ou seja, documento escrito.
19- Tese difícil de compreender, até por contrariar o entendimento dos Tribunais Superiores, incluindo do Supremo Tribunal de Justiça que, de forma unânime, têm entendido, que é bastante acordo verbal.
20- Tudo visto, impõe-se que seja dado provimento ao presente recurso, dado que o despacho em crisefez uma errada e inadequada aplicação do direito, violando o disposto nos artigos 219.º, 410.º n.º 2, 1180.º e 1181.º, todos do Código Civil.
21- Devendo por isso, ser revogada nesta parte a decisão proferida e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos relativamente aos pedidos 1 a 3 do petitório.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – É pelas conclusões do recurso que se refere e delimita o objecto do mesmo, ressalvadas aquelas questões que sejam do conhecimento oficioso – artigos 635º e 639º Código de Processo Civil -.


A matéria de facto a ter em conta é a supra referida.
Nos autos, ao abrigo do disposto no artigo 595º do n.º 1, b) do Código de Processo Civil decidiu-se quanto aos pedidos formulados em 1 e 3.
Na petição inicial para além do mais, o autor alegou que quem outorgou as escrituras foi o réu marido, agindo este como seu representante, sendo que o réu assumiu a obrigação de, com a sua esposa, transferir para o autor direito a metade dos imóveis, objecto das escrituras.
Foram adquiridos outros imóveis e posteriormente constituíram uma sociedade imobiliária.
Alega também que desde cada uma das aquisições sempre insistiu com os réus para que lhe formalizassem o acordo, procedendo à transmissão a seu favor da metade dos prédios.
Alega assim, que os factos referidos consubstanciam um mandato sem representação .
No despacho recorrido entendeu-se que o mandato alberga a obrigação típica de um pacto contrahendo, pelo que está sujeito à forma decorrente do disposto no n.º 2 do artigo 410º do Código Civil. E conclui que não tendo havido contrato escrito o mesmo é nulo por falta de forma, nos termos do disposto no artigo 286º do CC, com os efeitos previstos no artigo 289º, pelo que a parte não pode exigir o seu cumprimento.
Em termos gerais ( e sem entrar na decisão sobre o mérito da causa) no mandato sem representação o mandatário é titular dos direitos adquiridos por força dos actos que pratica no exercício do mandato, os quais ingressam na sua esfera jurídica, e não na do mandante. O mandatário sem representação é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos através do mandato, transferência essa que se opera mediante um acto de alienação específica.
O mandatário, embora agindo por conta, e no interesse do mandante, não assume a qualidade de seu representante, e, já que age em nome próprio, adquire todos os direitos e assume todos os deveres que decorrem dos actos que celebra. Porém, uma vez celebrado o negócio, fica obrigado a transferir a titularidade de todos os direitos “adquiridos em execução do mandato” (n.º 1 do artigo 1181.º do Código Civil e, v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2003, de 28 de Janeiro de 1997, de 11 de Maio de 2000 , e de 22 de Janeiro de 2008.

E a questão que agora se põe é a de saber se, no caso de o mandatário não cumprir aquela obrigação, como, in casu, alegadamente os réus não cumpriram, o mandante pode recorrer ao instituto da execução específica (artigo 830 n. 1 do Código Civil),
Segundo a tese da dupla transferência, se o mandatário se recusar a transmitir a propriedade para o mandante, este não tem possibilidade de o forçar a tal, assistindo-lhe apenas o direito a uma indemnização de perdas e danos".
Outra tese subscrita nomeadamente (e entre outros) no AC do STJ de 11/5/2000, disponível em www. dgsi.pt defende que o preceituado no artigo 830º do Código Civil, só é aplicável naqueles casos em que a obrigação de celebrar um contrato resulta dum contrato-promessa
E como se refere no citado acórdão segundo o disposto no n. 1 do artigo 1181 do Código Civil, o mandatário sem representação é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato.
A este propósito, diz o Professor Galvão Teles, a fls. 10 do seu Parecer publicado na C.J. Ano VIII (1983), tomo 3, que "O mandatário "nomine próprio", a quem, por ex., foi vendido um prédio e assim o adquiriu, tornando-se dono dele, tem subsequentemente, e por seu turno, de o alienar ao mandante, através de um novo negócio jurídico.
Este novo negócio jurídico não é obviamente uma venda; mas é, em todo o caso, um acto de alienação - uma modalidade alienatória específica, cuja causa justificativa está no cumprimento de uma obrigação advinda do mandato para o mandatário, nas suas relações internas com o mandante".
Outra questão ainda é a de saber se a existir tal mandato, o mesmo é nulo por falta de forma.
Nesta matéria, e entre outros, foi decidido pelo STJ no seu acórdão de12/1/2012, que passamos a citar“ louvando-nos, desde logo, e além do mais, no citado acórdão deste STJ, de 22/6/2004, que afirma que o mandato não representativo é consensual, vigorando, quanto a ele, o princípio da liberdade de forma consagrado no art. 219º.
Esclarecendo Vaz Serra[, distinguindo entre mandato e procuração, que esta, salvo disposição em contrário, tem de revestir a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar (art. 262.º, nº 2), enquanto que o mandato não está sujeito a forma especial. Podendo tal contrato ser concluído sem observância de forma especial, livremente, nos termos gerais (219.º).
Sendo certo que, quanto à matéria da forma, não se estabelece no domínio do mandato sem representação quaisquer exigências.
Por ser sem representação, não lhe é exigível forma superior ao acordo verbal, conforme resulta do referido art. 219.º.
De facto, a disciplina de tal forma de mandato, não tem remissão para o art. 262.º, como a tem a do mandato com representação, por força da remissão constante do art. 1178.º.(…).
O facto de a autora (mandatária), no cumprimento das relações internas firmadas entre ela e o réu (mandante), ter de transmitir para este o prédio que, por efeito do contrato de compra e venda que celebrou com terceiros, ingressou no seu património, consagra o princípio da dupla transferência – do terceiro para o mandatário e deste para o mandante – face aos efeitos meramente obrigacionais que emergem do mandato.
O mandato não representativo, mesmo que esteja em causa a aquisição de um imóvel, é consensual”.
E como se decidiu no Ac do STJ de 29 de Junho de 2010, disponível em www.dgsi.pt, que passamos a citar (…)Aqui chegados, e como o mandato sem representação tem um fim imediato, que se traduz nos actos a praticar pelo mandatário ou por terceiros, e um objectivo mediato, que obriga o mandatário a transferir para o mandante o efeito daqueles actos, e sendo vedada a execução específica, para cumprimento do fim mediato nos termos do artigo 830.º do Código Civil, resta ao mandante demandar o mandatário pedindo indemnização pelos danos que lhe causou o incumprimento (n.º 1 do artigo 1181.º do Código Civil) ou pedir a condenação deste a cumprir o mandato”.
Assim, sendo a questão controvertida e havendo a possibilidade de outras soluções de direito, não estávamos perante aquelas situações previstas no artigo 595º alínea b) do Código de Processo Civil, devendo os autos prosseguir os seus termos para apreciação de todos os pedidos formulados.

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III – Pelo exposto acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação procedente e, em conformidade revogam o despacho recorrido, devendo os autos prosseguir os seus termos para apreciação dos pedidos formulados em 1 a 3.
Custas pelo vencido a final.
Guimarães, 30 de Março de 2017.
Maria da Conceição Correia Ribeiro Cruz Bucho
Maria Luísa Duarte Ramos
António Júlio Costa Sobrinho