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FURTO
VALOR DIMINUTO
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
IN DUBIO PRO REO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário
Iº Tendo o arguido, em declarações prestadas na audiência, admitido que, contra a vontade e sem consentimento do proprietário, se introduziu no prédio do ofendido e tentou penetrar na casa de habitação deste através de uma janela da garagem, que tentou arrombar, não viola os princípios da presunção de inocência ou do “in dubio pro reo” a sentença em que se dá como provado que ele quis apoderar-se do máximo de bens e dos bens mais valiosos que aí encontrasse e lhe fosse possível levar consigo, decisão que releva do mais elementar bom senso e da experiência comum; IIº A doutrina tem afirmado, quase unanimemente, que, no crime de furto, o valor patrimonial da coisa subtraída constitui elemento implícito do tipo; IIIº Exigindo o crime de furto uma subtracção e uma apropriação física de uma coisa móvel, esta, sem ter que ser susceptível de apreensão material, há-de possibilitar uma imediata disposição física e, por conseguinte, ser controlável, quantificável e dotada de utilidades susceptíveis de apropriação individual, ou seja, com valor económico ou patrimonial e juridicamente relevante; IVº Falta esse elemento do tipo objectivo do crime de furto se o tribunal recorrido dá como provado, apenas, que os arguidos quiseram fazer seus todos os objectos de valor que encontrassem no interior da garagem do prédio do ofendido e que pudessem carregar consigo, sem que tenha indagado e referido o seu valor concreto ou, sequer, mencionado quais os objectos que, encontrando-se nessa garagem, podiam ter sido subtraídos pelos arguidos. Vº Não é satisfatória e não colhe apoio na doutrina a solução de considerar esse valor diminuto, e assim desqualificar o furto para o crime matricial, quando se desconhece o valor das coisas subtraídas, ou que o agente tentou subtrair; VIº A solução mais correcta, quer do ponto de vista técnico-jurídico, quer na perspectiva do respeito pelos princípios da legalidade e da tipicidade, é considerar que há insuficiência da matéria de facto para a decisão e determinar o reenvio do processo para novo julgamento, limitado ao apuramento desse facto. (Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º …, corre termos pelo 1.º Juízo de Competência Criminal da Comarca de … e ao qual foi apensado, para julgamento conjunto, o processo comum n.º … do 3.º Juízo Criminal da mesma Comarca, …, …. e …, todos devidamente identificados nos autos, foram submetidos a julgamento, acusados pelo Ministério Público da prática, os dois primeiros, em co-autoria material, de um crime de furto qualificado na forma tentada, o segundo, em autoria singular e em concurso real, como reincidente, de um crime de furto simples, um crime de burla informática e um crime de falsificação de documento e a terceira, em autoria singular, de um crime de favorecimento pessoal na forma tentada.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, por acórdão de 20.05.2010 (fls. 344 e segs.), a arguida … foi absolvida e os demais foram condenados:
Ø o arguido J…, pela prática, em co-autoria material, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 203.º, n.º 1, 204.º. n.º 2, al. e), com referência aos artigos 202.º, al. d), 22.º, 23 e 73.º, todos do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período, acompanhada de regime de prova;
Ø o arguido B…, pela prática, em concurso real:
§ em co-autoria material, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 203.º, n.º 1, 204.º. n.º 2, al. e), com referência aos artigos 202.º, al. d), 22.º, 23 e 73.º, todos do Cód. Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão,
§ em autoria material, de um crime de furto simples previsto e punível pelo art.º 203.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 1 (dum) ano de prisão;
§ em autoria material, de um crime de burla informática previsto e punível pelo art.º 221.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão;
§ em autoria material, de um crime de falsificação de documento previsto e punível pelo art.º 256.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal na pena de 1 (um) ano de prisão. Em cúmulo jurídico, foi este arguido condenado na pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
Inconformado com tal decisão, o arguido B… dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, concluindo assim a respectiva motivação (em transcrição):
A) Foi dado como provado, pelo acórdão recorrido, a fls. 348, “(do Processo n.º …): 16. No dia 18 de Junho de 2008, pelas 22h e 30m, os arguidos J… e B… decidiram entrar na casa situada no n.º …, da Estrada de …, nesta localidade, pertença de P…, e apoderar-se dos bens de valor que ali encontrassem”.
B) O arguido J… negou a prática e disse desconhecer também que o seu co-arguido, ora Recorrente, os tenha praticado, o que não mereceu qualquer credibilidade ao Tribunal.
C) O Recorrente afirmou que foi uma coisa de momento e que nem tinha necessidade de roubar, conforme gravação referida.
D) Já a testemunha P… disse que o valor dos bens, no mínimo seria superior a € 150,00, conforme gravação referida.
E) Isto é, o acórdão recorrido aceitou de forma pacífica, sem o devido escrutínio, que se alguém entra numa residência para furtar, vai furtar forçosamente tudo o que de valioso aí se encontrar.
F) Ou seja, sem conseguir apurar, em concreto, qual a verdadeira intenção do Recorrente, que até podia querer furtar objectos insignificantes, de baixo custo.
G) Segundo o sumário do Acórdão do S.T.J., de 12.11.1997; CJ, Acs. Do STJ, V, tomo 3, 323, “- I – Quando não for possível quantificar o valor da coisa móvel subtraída ou tentada subtrair, deve considerar-se o mesmo como diminuto”.
H) O acórdão recorrido, ao não valorar devidamente o dolo do Recorrente em relação aos objectos tentados furtar e considerar que seriam todos os valiosos que encontrasse e que conseguisse transportar, violou os princípios constitucionais da presunção de Inocêncio e o in dubio pro reo, consagrados no artº 32º da Constituição da República Portuguesa.
I) Bem como fez errada aplicação do disposto nos artºs 22º, 23º, 73º, 202º, alínea d) 203º e 204º, nº 2, alínea e) do Código Penal, porquanto não há lugar à qualificação do furto, face ao diminuto valor, em virtude de ser aplicável o estatuído no artº 204º, nº 4, deste diploma legal”.
Em síntese – remata o recorrente – deve ser condenado, como reincidente, mas pela prática de um crime de furto simples na forma tentada, com as inevitáveis repercussões na pena única resultante do novo cúmulo jurídico a efectuar.
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Na 1.ª instância, o digno Magistrado do Ministério Público apresentou resposta, que conclui nos seguintes termos:
1 - Os factos apurados traduzem a prática pelo arguido B…, em co-autoria material, como reincidente, e para do mais, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 203º, n.º 1, 204º, n.º 2, al.) e), com referência aos arts. 202º, al.) d), 22º, 23º e 73º, todos do Código Penal, a que corresponde a pena de 40 dias a 5 anos e 4 meses de prisão.
2 - Recorta-se adequada, por proporcional e suficiente à culpa do agente, e conforme aos demais critérios definidores do art.º 71º do Código Penal, a pena de 2 anos e 6 meses de prisão imposta pela prática de tal infracção.
3 - Como adequada se recorta a pena única de 4 anos de prisão emergente do cúmulo a que se procedeu com as demais penas parcelares a que o recorrente foi condenado (e que nenhuma censura lhe suscitaram).
Por isso entende que a decisão recorrida deve ser mantida.
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Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que manifesta a sua adesão à posição expressa pelo Ministério Público na 1.ª instância, acrescentando:
§ o recorrente refere a existência do vício da insuficiência da matéria de facto, mas do texto do acórdão recorrido resulta bem claro que estão reunidos todos os factos integradores dos crimes por que foi condenado, bem como de atenuantes e agravantes que influenciaram a determinação da medida da pena;
§ o que o recorrente terá querido dizer é que a prova dos factos quanto ao valor dos bens de que queria apoderar-se foi insuficiente, mas aqui funcionou a livre convicção dos julgadores, que, ao afastarem a hipótese de os bens de que o arguido quis apoderar-se terem valor diminuto, decidiram de acordo com as regras da experiência comum e do bem senso.
Por isso o seu parecer é no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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Logo no início da motivação do seu recurso, o recorrente refere a “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artº 410º, nº 2, alínea a) do C.P. Penal)” e o “erro notório da apreciação da prova (artº 410º, nº 2, alínea c) do C. P. Penal” como vícios de que enferma a sentença recorrida.
Porém, lida a motivação e respectivas conclusões, constata-se que nenhuma outra referência é feita ao segundo dos apontados vícios da decisão, ou seja, o recorrente não concretiza qual ou quais os pontos do texto do acórdão impugnado evidenciam o erro na apreciação da prova.
Esta é uma situação recorrente e, apesar de ser vasta e esclarecedora a jurisprudência sobre o assunto, ainda se confunde o erro notório na apreciação da prova (que tem de resultar sempre do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum) com o erro de julgamento da matéria de facto (só) detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência em primeira instância.
Acontece que doutrina e jurisprudência estão em total sintonia neste ponto: são de conhecimento oficioso os vícios da decisão em matéria de facto (os vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal), mesmo quando o recurso esteja limitado à matéria de direito (Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 1052; na jurisprudência, por mais recente, o acórdão do STJ de 09.06.2010,www.dgsi.pt/jstj).
Sendo delimitado pelas conclusões da motivação (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj), o objecto do recurso centra-se, pois, nas seguintes questões:
§ erro notório na apreciação da prova, com eventual violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo; e
§ insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
II – Fundamentação
Para uma correcta decisão das questões colocadas à apreciação deste tribunal pelo recorrente, e de outras que, eventualmente, se imponha conhecer, por serem de conhecimento oficioso, é fundamental conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida, pelo que aqui se reproduzem (ipsis verbis) os factos que o tribunal recorrido deu como provados e não provados: Factos provados
A. Relativa às acusações:
(Do Processo nº …)
1. A hora não exactamente apurada, entre as 20h e 30m e as 21 h e 30m, do dia 23 de Abril de 2007, quando passava pelo parque da Universidade Atlântica, em Tercena, o arguido B… abriu uma das portas do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula …, pertença de …, o qual se encontrava ali estacionado e fechado apenas no trinco.
2. Depois, o arguido retirou de dentro de tal carro um blusão de marca Gant, no valor de 150,00€, algumas chaves, um cartão de crédito visa Unibanco, um cartão de contribuinte e outro da segurança social, uma mochila no valor de 25,00€ contendo uns calções no valor de 25,00€, uma camisola no valor de 15,00€, um par de meias de nadador salvador, uns calções de Iicra no valor de 9,00€, uns chinelos no valor de 9,90€, uma touca e uns tampões de natação nos valores de 5,90€ e 4,90€, uns óculos de natação no valor de 7,90€ e um colete reflector, e levou consigo tais objectos.
3. Ao agir de tal forma, quis o arguido fazer seus os supra mencionados artigos, bem sabendo que actuava contra a vontade e em prejuízo do respectivo dono, neste caso o ….
4. De seguida, o arguido B… deslocou-se a casa da sua tia M…, sita em S. …, a quem solicitou a sua condução a casa.
5. Quando, já depois das 22 horas daquele mesmo dia, pararam para abastecer o carro em que seguiam nas bombas da Repsol, situadas em …, o arguido B… decidiu usar o cartão de crédito que tinha retirado ao ….
6. Assim, o arguido dirigiu-se para o interior da loja do posto e solicitou um iogurte Dan up no valor de 1,80€, uma embalagem de Bolycau, no valor de 2,00€, um pacote de vinte volumes de tabaco John Player Special, no valor de 55,00€, e um pacote de vinte volumes de tabaco Marlboro, no valor de 63,00€.
7. Para pagamento destes bens, no valor global de 121,80€, o arguido entregou o cartão de crédito da Unibanco do …, o qual foi colocado na ranhura do terminal da loja que, procedendo à leitura da respectiva banda óptica, efectuou automaticamente a solicitação para autorização da compra.
8. Quando foi imprimido o talão de autorização, o arguido, pelo seu próprio punho, escreveu neste a palavra "Migas", como se de uma assinatura se tratasse.
9. Entregando o citado talão ao empregado da loja, o arguido abandonou o local levando consigo os bens acima mencionados, que fez seus.
10. Sabia o arguido que o cartão de débito em causa não lhe pertencia, tal como sabia que não tinha autorização para o seu uso, por parte do respectivo titular, designadamente fazendo-o passar nos terminais de leitura e fornecendo, assim, a informação contida na sua banda magnética, passível de autorizar débitos na conta respectiva.
11. Sabia, também, que ao inscrever a palavras "Migas" no talão comprovativo da compra como se de uma assinatura se tratasse, punha em crise a confiança merecida pela generalidade dos comerciantes e entidades bancárias na autenticidade das autorizações de pagamentos a crédito.
12. Fê-lo porque quis obter para si os bens que comprou sem despender dinheiro sua pertença.
13. Por causa da apresentação do cartão de crédito feita pelo arguido e da assinatura que lavrou no talão emitido, foi debitado na conta associada, titulada pelo …, o valor de 122,32€
14. Em todas as situações descritas o arguido B… agiu de forma deliberada, livre e consciente.
15. Sabia que as suas condutas são proibidas por lei e penalmente punidas.
(Do Processo nº …):
16. No dia 18 de Junho de 2008, pelas 22h e 30m, os arguidos J… e B… decidiram entrar na casa situada no nº 30, da Estrada de …, nesta localidade, pertença de P…, e apoderar-se dos bens de valor que ali encontrassem.
17. Para o efeito, os arguidos deslocaram-se até àquele sítio no carro do arguido J…, com a matrícula …, munidos de dois escopros.
18. Na execução do plano que tinham, o arguido J…o permaneceu nas imediações daquela casa, enquanto o arguido B… se deslocou até à garagem onde, usando as ferramentas atrás mencionadas, começou a desferir pancadas na respectiva janela, para abri-la.
19. No momento em que o arguido B…. se apercebeu que estava gente em casa, e que o respectivo dono tinha vindo à janela, abandonou os seus intentos e colocou-se em fuga, vindo posteriormente a encontrar-se com o arguido J…, abandonando os dois o local.
20. Ao agir da forma descrita, quiseram os arguidos fazer seus todos os objectos de valor que encontrassem no interior daquela garagem e que pudessem carregar consigo, mesmo sabendo que não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade e em prejuízo do respectivo dono.
21. O que apenas não conseguiram fazer por ter o arguido B… sido interceptado no momento em que tentava abrir a janela daquele recinto.
22. Por causa das pancadas desferidas na janela da garagem, esta sofreu estragos cuja reparação importou 250,00€.
23. Os arguidos agiram os dois de forma deliberada, livre e consciente, de acordo com o que entre si tinham decidido fazer.
24. Sabiam que as suas condutas são proibidas por lei e penalmente punidas.
25. Em acto seguinte à sua condução à Esquadra da Polícia de Segurança Pública de …., em ordem a proceder-se à sua identificação por suspeita de envolvimento nos factos criminosos atrás indicados em 16 a 24, o arguido B…, que não tinha consigo qualquer documento de identificação, disse chamar-se B… e ter nascido a 26.09.1980.
26. Depois, o arguido telefonou à sua namorada, a arguida …, para que esta se deslocasse àquela esquadra.
27. Nestes termos, a arguida … deslocou-se a tal local e, perante os agentes da Polícia de Segurança Pública, que elaboravam o expediente, identificou-se como namorada do arguido B… e, ao lhe ser perguntado se aquele se chamava B… e se a sua data de nascimento era …, a mesma confirmou tais factos.
28. Ao agir da forma descrita, foi intenção da arguida fazer com que o auto de notícia e todo o expediente anexo fosse elaborado com o nome de B… e não com a identificação do arguido B….
29. De tal forma, o arguido B… não seria devidamente identificado e, como tal, responsabilizado pelos factos criminosos que tinha acabado de cometer.
30. A arguida actuou de forma deliberada e voluntária, com a consciência que estava a confirmar declarações que não correspondiam à verdade, de forma a desviar do arguido B… as suspeitas sobre os factos criminosos que sabia ter cometido.
31. 0 que apenas não conseguiu fazer porque os agentes, desconfiados das informações que lhes foram prestadas sobre a identidade do arguido, acabaram por conduzi-lo às instalações da Polícia Judiciária para resenha, onde vieram a constatar que se tratava de B… .
32. Sabia esta arguida que a sua conduta é proibida por lei e penalmente punida.
B. Relativa às condições pessoais de cada um dos arguidos:
B1- Do arguido J:
33. O arguido negou a prática dos factos apurados em audiência de discussão e julgamento.
34. Aos 19 anos de idade teve os primeiros contactos com substâncias estupefacientes, num percurso em escalada, desde a heroína até ao craque.
35. Em termos laborais trabalhou como ajudante de despachante, operador de máquinas e depois como taxista, actividade que exercia em Lisboa, por conta de outrem, antes da actual situação.
36. Encontra-se internado na Associação de Recuperação de Toxicodependentes, …, desde Novembro de 2008, prevendo-se a sua transição para a 3ª fase do Projecto Terapêutico – fase de reinserção.
37. De acordo com informação prestada pela própria instituição, durante a estadia na Comunidade, o arguido tem demonstrado aceitação das regras, organização e sentido de responsabilidade no trabalho, bem como uma postura adequada, sendo a sua evolução gradual e positiva (cf. fls. 327).
38. Depois de concluir o programa, o arguido pretende regressar a Lisboa e lá reorganizar a sua vida, ocupando a antiga morada, e retomar a profissão de taxista, para além de se reaproximar da filha, de 22 anos, que vive com uma tia, na zona do ….
39. Dos averbamentos ao certificado de registo criminal do arguido J… mais se apura que:
a- Por Acórdão de 09.01.1987 (Processo nº …, do 1º Juízo Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado tentado, na pena de 7 meses de prisão, pena que cumpriu até 6 de Julho de 1989.
b- Por Acórdão de 23.11.1988 (Processo nº …., do 1º Juízo Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado, cometido a 10.03.1988, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, a qual cumpriu até 10 de Maio de 1989.
c- Por Acórdão de 03.07.1989 (Processo nº …., do 1º Juízo Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado, cometido a 22.07.1987, e em cumulo com a pena descrita em b. supra, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, a qual cumpriu.
d- Por Sentença de 03.10.1990 (Processo nº …., do 3º Juízo Correccional de Lisboa) foi condenado por crime de furto, cometido a 02.11.1987, na pena de 60 dias de prisão, substituídos por multa.
e- Por Sentença de 11.02.1992 (Processo nº …, do 3º Juízo Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado tentado, cometido a 16.03.1986, na pena de 1 ano de prisão, a qual foi declarada perdoada.
f- Por Acórdão de 21.04.1992 (Processo nº …, do 1º Juízo Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado, na pena de 1 ano de prisão, a qual foi declarada perdoada.
g- Por Sentença de 26.10.1994 (Processo nº …, da 6º Vara Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado, cometido a 02.08.1986, na pena de 2 anos de prisão, pena declarada perdoada.
h- Por Acórdão de 28.01.1997 (Processo nº …, da 7º Vara Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado na forma tentada, cometido a 06.03,1995, na pena de 8 meses de prisão.
i- Por Acórdão de 13.02.1997 (Processo nº …, da 4º Vara Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado, cometido a 07.07.1994, na pena de 7 meses de prisão.
j- Por Acórdão de 11.03.1997 (Processo nº …, da 3º Vara Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado, na forma tentada, cometido a 22.02.1995, na pena de 8 meses de prisão.
k- Por Acórdão de 14.03.1997 (Processo nº …, da 2º Vara Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado na forma tentada, cometido a 20.05.1994, na pena de 1 ano de prisão.
l- Por Acórdão de 23.05.1997 (Processo nº … da 8º Vara Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado, na forma tentada, cometido a 30.06.1994, na pena de 1 anos e 6 meses de prisão.
m- Por Sentença de 22.01.1998 (Processo nº …, do 3ºJuízo Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado, cometido a 27.05.1993, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão.
n- Por Acórdão de 30.09.1998 (Processo nº …, da 7º Vara Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado, cometido a 05.10.1994, na pena de 18 meses de prisão.
o- Por Acórdão de 29.01.1999 (Processo nº …, da 1º Vara Criminal de Lisboa) foi condenado pelos crimes de furto qualificado, falsificação de documento e burla, cometidos a 25.08.1994, na pena de 7 meses de prisão, por cada um deles, e, em cúmulo, na pena de 4 anos e 8 meses de prisão, entretanto objecto de perdão, tendo sido considerada expiada, face ao tempo de prisão já cumprido pelo arguido, por decisão de 13.05. 1999.
p- Por Acórdão de 02.06.1999 (Processo nº …, da 8º Vara Criminal de Lisboa) foi condenado pelos crimes de receptação dolosa, na pena de 1 ano de prisão, e de dois crimes de falsificação de documentos, na pena cada um deles de 1 ano e 6 meses de prisão, cometidos em Março de 1995, e, em cúmulo jurídico que englobou penas parcelares referidas supra noutros processos, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, a qual foi julgada inteiramente cumprida e extinta com efeitos a partir de 26.04.2000, tendo sido concedida liberdade condicional pelo prazo pelo prazo de duração igual ao tempo que lhe faltava cumprir a contar da data da libertação, conforme despacho proferido em 29.09.1999.
q- Por Acórdão de 03.10.2000 (Processo nº …, da 1º Vara Criminal de Lisboa) foi condenado por crime de furto qualificado, cometido em 30.09.1994, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, cuja execução foi declarada suspensa por 2 anos, tendo sido declarada extinta, por decisão de 06.01.2003.
B2- Do arguido B…:
40. O arguido confessou parcialmente a prática dos factos, mostrando arrependimento.
41. O seu processo educativo decorreu num contexto marcado pela instabilidade afectiva das figuras protectores, com a separação dos pais quando contava cerca de um ano de idade, passando a viver com os avós paternos. Entre os 7 e os 11 anos, esteve enquadrado em instituição religiosa. Nunca estabeleceu contactos significativos com a figura paterna.
42. O seu percurso escolar foi pautado pelo insucesso, relacionado com desmotivação e dificuldades de aprendizagem, não chegando a cumprir o 2º ciclo. Mais tarde, concluiria, em meio prisional, o 8º ano de escolaridade.
43. Teve várias experiências de trabalho, com carácter indiferenciado e precário, nas áreas da construção civil, serralharia e restauração.
44. Iniciou o consumo de produtos estupefacientes aos 16 anos de idade, altura em que, também, teve o primeiro contacto com o sistema da justiça, por que foi condenado, por crime de roubo, em pena de prisão.
45. Libertado condicionalmente em 2004, intensificou o consumo de estupefacientes, sem enquadramento habitacional e laboral permanentes.
46. Por esta altura, iniciou uma relação de namoro com a arguida …, relação que se manteve, vivendo os elementos do casal ora juntos, ora separados, consoante a capacidade económica para se sustentarem autonomamente, já que ambas as famílias de origem se recusaram a recebê-los juntos. No inicio de 2007, nasceu um filho do casal, que, inicialmente, foi retirado por determinação judicial e entregue a uma instituição, sendo, mais tarde, confiado à avó materna.
47. À data da prática dos factos, ocorridos em 2008, o arguido encontrava-se numa situação de acentuada dependência aditiva, na sequência do insucesso de uma tentativa de tratamento efectuada no Centro … e desenquadrado em termos laborais.
48. Dos averbamentos ao certificado de registo criminal do arguido B… mais se apura que:
a- Por Acórdão de 06.04.2001 (Processo nº …, da 1º Vara Mista de Sintra), transitado em julgado em 25.01.2002, foi condenado por quatro crimes de roubo, cometidos em 11.03.2000 e 29.04.2000, três deles na forma agravada, na pena, cada um deles, de 2 anos de prisão, e o quarto, na forma simples, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 10 meses de prisão, que o arguido cumpriu entre 25.07.2000 e 25.05.2004 (cf. certidão de fls. 18 e ss do Anexo 1).
b- Por Acórdão de 04.03.2008 (Processo nº …, do 1º Juízo Criminal de Oeiras), transitado em julgado em 26.11.2008, foi condenado, como reincidente, por factos ocorridos em Julho de 2005, pela prática de cinco crimes de furto, na forma consumada, na pena, cada um deles, de 10 meses de prisão, e de um crime de furto, na forma tentada, na pena de 7 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sob a condição de o arguido se sujeitar ao acompanhamento, com regime de prova.
c- Por Acórdão de 09.05.2008 (Processo nº …., da 1º Vara Criminal de Lisboa), transitado em julgado em 27.10.2008, foi condenado pela prática dos crimes de homicídio negligente, ofensa à integridade física por negligencia, condução perigosa de veiculo rodoviário, condução sem habilitação legal e furto qualificado, praticados em 24.08.2007, na pena única de 6 anos de prisão.
d- Por Sentença de 14.05.2008 (Processo nº …, do 6º Juízo Criminal de Lisboa), transitada em julgado em 03.06.2008, foi condenado por crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, praticado em 04.02.2007, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
e- Por Acórdão de 26.03.2009 (Processo nº …, do 2º Juízo Criminal de Silves), transitado em julgado em 04.05.2009, foi condenado por dois crimes de furto qualificado, cometidos em 29.06.2008, na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.
f- Por Sentença de 30.04.2009 (Processo nº …, do 3º Juízo Criminal de Cascais), transitada em julgado em 20.05.2009, foi condenado por crime de furto, cometido em 18.10.2006, na pena de 10 meses de prisão.
49. O arguido B… tem uma acentuada propensão para a prática de ilícitos criminais, em especial contra o património, não tendo as condenações já aplicadas e o tempo de reclusão por si sofrido constituído motivos bastantes para o afastar da vida criminosa.
B3- Da arguida …:
50. A arguida confessou na sua essencialidade a prática dos factos, mostrando-se arrependida, e justificando os mesmos pelo facto do arguido B… ser o seu companheiro e pai do seu filho, nascido em 2007.
51. Após a separação dos pais, aos 17 anos de idade da arguida, esta manteve coabitação com o progenitor, por este apresentar melhores condições habitacionais e financeiras para a apoiar, tendo mantido contactos regulares com a mãe.
52. Ao nível do plano escolar, a arguida concluiu no ano de 2002 o curso de animadora sócio-cultural e assistente familiar na Fundação …, que lhe conferiu equivalência ao 12º ano de escolaridade e que lhe permitiu integração no mercado de trabalho na área da geriatria. Em 2004/2005, reintegrou o sistema de ensino no âmbito da licenciatura em Serviço Social, cujos gastos foram suportados pelo progenitor, tendo frequentado a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias durante cerce de um ano.
53. Aos 22 anos de idade, a arguida encetou um relacionamento afectivo com o arguido B…, tendo vivido em união de facto com o mesmo, durante cerca de dois anos e sempre que as condições económicas o permitiam, o que só não ocorre actualmente por o mesmo se encontrar preso.
54. A impossibilidade de conciliar financeiramente os estudos com a união de facto motivou a desistência do curso. Esta união e a decisão daí advinda contrariavam a vontade dos pais, cuja autonomização da filha sentiam como precoce.
55. Com esta relação afectiva, o quotidiano da arguida centrou-se em torno do companheiro e da problemática de toxicodependência deste, situação que viria a envolver a arguida em comportamentos desviantes, face à permeabilidade à influência daquele e à sua dependência emocional e afectiva.
56. Em 23.04.2007, nasceu o filho do casal.
57. No sentido de organizar o seu modo de vida e de contribuir para o sustento do filho, aos cuidados da avó materna, em 01.04.2008, a arguida celebrou contrato de trabalho com a “…, SA”, exercendo funções de segurança privada, com um salário mensal líquido de 650 euros.
58. A arguida tem beneficiado do apoio dos pais
59. Dos averbamentos ao certificado de registo criminal da arguida … mais se apura que:
a- Por Acórdão de 26.03.2009 (Processo nº …, do 2º Juízo Criminal de Silves), transitado em julgado em 22.05.2009, foi condenada por dois crimes de furto qualificado, cometidos em 29.06.2008, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa sob condição de pagamento por igual período de tempo.
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O tribunal considerou não provado que, quando o arguido B… telefonou à arguida … para que esta se deslocasse à esquadra, lhe tenha dito que era com o fim de confirmar a identificação por si prestada.
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A) Erro notório na apreciação da prova – a presunção de inocência e o “in dubio pro reo”.
Do art.º 410.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal decorre que o erro notório é um vício da decisão que, para se ter por verificado, exige que nele confluam os seguintes requisitos:
§ a notoriedade do erro e
§ que este resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
O erro notório na apreciação da prova leva a uma conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum, desconhecedor dos meandros jurídicos, notado sem qualquer esforço.
Notório é o erro indiscutível, facilmente perceptível pelo comum dos observadores, que é facilmente cognoscível pela generalidade das pessoas, de tal modo que não haja motivo para duvidar da sua ocorrência Há nesta definição uma aproximação ao conceito de factos notórios do processo civil (cfr. art.º 514.º do Cód. Proc. Civil), que não nos parece descabida. Assim também, o acórdão do STJ de 06.04.1994, CJ XIX, T. II, 185). .
Há erro notório “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida” (acórdão do STJ de 04.10.2001 (CJ/Ac STJ, IX, T. III, 182) Para uma exaustiva delimitação (negativa e positiva) do erro notório na apreciação da prova, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 1102-1103..
O recorrente não nos diz onde vislumbra o erro notório (aliás, como já se referiu, limita-se a invocá-lo no início da motivação do recurso) e também nós não o descortinamos.
Bem pelo contrário, nada permite afirmar que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, decorra a existência de tal erro. O que se evidencia é a falta de notoriedade de qualquer erro da sentença.
Na realidade, o que o recorrente faz é impugnar a decisão sobre matéria de facto, que considera incorrectamente julgada porque o tribunal teria apreciado e valorado mal a prova produzida em audiência, violando os aludidos princípios.
Entre o princípio da livre apreciação da prova e o princípio basilar da presunção de inocência, de que o “in dubio pro reo” é uma das suas várias dimensões, existe uma estreita conexão.
O princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental num Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só), a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
Sobre as repercussões extra-processuais do princípio, cfr. o estudo de José Souto Moura, “A questão da presunção de inocência do arguido”, Rev. do Ministério Público n.º 42, 31 e segs.
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Como bem faz notar Cristina Líbano Monteiro (“Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimba, 1997, pág. 53), o princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, encontra no “in dubio pro reo” o seu limite normativo e “livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca de razoabilidade ou da racionalidade objectiva” Assim, também, o acórdão do STJ de 11.07.2007 (www.dgsi.pt), onde se pode ler: “o princípio in dubio pro reo representa a outra face do princípio da livre apreciação da prova; configura um limite normativo a este princípio ante uma dúvida positiva e racional que impeça um juízo de certeza condenatória – o qual não exclui a possibilidade de as coisas se passarem num dado sentido, mas não afasta a consistente hipótese do contrário –, ou seja, se a prova é insuficiente ou contraditória vale o princípio in dubio pro reo.
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O princípio do “in dubio pro reo” não é mais que uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos , ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Um non liquet sobre um facto da acusação recai materialmente sobre o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, pois que sobre o arguido não impende qualquer dever de colaboração na descoberta da verdadeImporta, no entanto, aqui fazer notar que esta não é a única perspectiva do princípio e do seu âmbito de aplicação. Por exemplo, o entendimento do Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, vol. I, 217) é o de que o in dubio pro reo se assume como um princípio geral de processo penal, não circunscrito a matéria de facto, antes podendo a sua violação conformar também uma verdadeira questão de direito que cabe dentro dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça. É esta, também, a posição defendida por Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 1102) que considera não constituir o vício de erro notório na apreciação da prova a violação do princípio in dubio pro reo. Porém, o STJ tem rejeitado a possibilidade de invocar o princípio em sede de interpretação ou de subsunção legal dos factos.
Sendo entendido na perspectiva de que respeita a matéria de prova, a sua eventual violação será insindicável pelo STJ, a não ser que o vício decorra, de forma evidente, da decisão recorrida (nomeadamente da fundamentação da decisão de facto).
Mas, se não tem qualquer dever de dizer a verdade, ao contrário do que recorrentemente se propala, também não tem o direito de mentir. Se o arguido não quer contar (toda ou parte da) a verdade, deve remeter-se ao silêncio (assim, o acórdão do TC n.º 172/92, www.tribunalconstitucional.pt)..
Assim, um primeiro aspecto cumpre realçar: o in dubio pro reo só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa.
O segundo aspecto a assinalar é o de que não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”. Tem de ser uma dúvida razoável, que impeça a convicção do tribunal.
Não é razoável, porque meramente subjectiva, a dúvida que brota como efeito de uma consciência indefinidamente hesitante ou exasperadamente escrupulosa, ou até de um deficiente estudo do material probatório.
O terceiro ponto que se nos afigura curial aqui pôr em relevo é o seguinte: não se trata aqui de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dúbio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e não tendo esse juízo factual por fundamento uma inversão do ónus da prova Embora, em bom rigor, não se possa falar em ónus da prova em processo penal. (inversão constitucionalmente proibida por força da presunção de inocência), antes resultando do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Por último, tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há-de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto Neste sentido, o acórdão do STJ de 29.05.2008 (Relator: Cons. Rodrigues da Costa), www.dgsi.pt/jstj ..
O recorrente, depois de transcrever a passagem do depoimento do ofendido P…l em que este, respondendo a pergunta que lhe foi feita, afirma que o recheio da casa está seguro em € 50 000,00 e que qualquer coisa que pudesse ser levada lá de sua casa teria um valor seguramente superior a € 150,00, critica o tribunal porque, na sua perspectiva, este aceitou “sem o devido escrutínio, que se alguém entra numa residência para furtar, vai furtar forçosamente tudo o que de valioso aí se encontrar”, isto sem “apurar, em concreto, qual a verdadeira intenção do agente”. Intenção que, “por hipótese académica”, até poderia ser a de “furtar droga que eventualmente aí se encontrasse” ou então “bebidas alcoólicas para consumir, ambas de valor insignificante”, até porque quem assalta um Banco “não rouba tudo o que de valor com que se depara…pelo contrário, normalmente rouba muito pouco, até porque o tempo escasseia, face à eminência da chegada da polícia”.
Em jeito de conclusão, diz o recorrente que o tribunal pode não aceitar a sua versão, “mas, para a afastar, tem de se estribar em versões ou factos de sentido oposto, que aqui não se verificam”, pelo que “ao não valorar devidamente o dolo do Recorrente em relação aos objectos tentados furtar e considerar que seriam todos os valiosos que encontrasse e que conseguisse transportar” violou os referidos princípios.
Antes de mais, há que realçar que o próprio arguido/recorrente admitiu (“confessou na sua essencialidade a prática dos factos que lhe são imputados”, diz-se no acórdão recorrido) que se introduziu no prédio do ofendido e tentou penetrar na casa de habitação deste através de uma janela da garagem, que tentou arrombar.
Ora, quem assim actua não pretende, certamente, fazer uma visita de cortesia ao dono da casa. O que decorre da experiência comum é que o propósito do agente seja assaltar a casa e (tal como o assaltante de um banco) apoderar-se do máximo de bens e dos bens mais valiosos que encontrar e lhe for possível levar. Não levará, em princípio, as mobílias, mas é previsível (sobretudo quando, como era o caso, tem um comparsa que o aguarda numa viatura automóvel) que se apodere de objectos em ouro, relógios, aparelhos de som e de televisão, computador, objectos decorativos, etc. que, nos dias que correm, existem em qualquer casa de habitação.
O tribunal a quo deu como provado que os arguidos (B… e J….) quiseram “fazer seus todos os objectos de valor que encontrassem no interior daquela garagem e que pudessem carregar consigo” e, como afirma o Sr. Procurador-Geral Adjunto, ao assim decidir, mais que seguir as regras da experiência comum, decidiu com bom senso ou de acordo com aquilo que é o senso comum.
O que, com o devido respeito, raia o absurdo é dizer que os arguidos poderiam querer, apenas, “furtar droga” que encontrassem na casa ou apoderar-se de objectos de valor insignificante.
Nada há, pois, a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção do tribunal, sendo patente a inexistência de quaisquer motivos para se falar em violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
B) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – desconhecimento dos concretos objectos, bem como do respectivo valor quantificado, que o agente subtraiu ou tentou subtrair.
Embora o recorrente seja pouco claro, das conclusões contidas nas alíneas G) e I) é possível perceber que o alegado vício se traduz na falta de indicação do valor dos objectos que tentou furtar, omissão que, na sua perspectiva, levaria a que não pudesse haver qualificação do furto, por aplicação do disposto no n.º 4 do art.º 204.º do Código Penal.
Essa alegação é bem mais consistente e merecedora de cuidada ponderação. Aliás, como já se aludiu, os vícios da decisão em matéria de facto são de conhecimento oficioso.
Assim, se resultar do texto da sentença recorrida a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão proferida, o tribunal deve conhecer do vício.
Há insuficiência da matéria de facto quando faltem factos provados que autorizem a ilação jurídica tirada, que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis.
Como se refere no acórdão do STJ de 19.03.2009 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Souto Moura), “é uma lacuna de factos, que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, e não se confunde, evidentemente, com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados”.
Mais incisivamente, diz-se no já citado acórdão do STJ de 27.05.2010 (Relator: Cons. Raul Borges):
“O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto; ocorre quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. A insuficiência prevista na alínea a) determina a formação incorrecta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa”.
O tribunal deu como provado que, nas referidas circunstâncias de tempo e e lugar, os arguidos J… e B…, em execução de uma decisão conjunta, dirigiram-se ao n.º … da Estrada de …, onde situa a casa de residência de P…, para nela se introduzirem e de lá retirarem os bens de valor que aí encontrassem e de que se apoderariam.
Pondo em prática o plano arquitectado, enquanto o arguido J… aguardava na viatura automóvel na qual se fizeram transportar para o local, o arguido B… dirigiu-se à garagem da casa e, utilizando dois escopros de que se munira, começou a desferir pancadas na janela para abri-la (assim lhe causando danos cuja reparação custará € 250,00), pondo-se em fuga quando o dono da casa se apercebeu do que se passava e veio à janela.
Quiseram, deste modo, os arguidos fazer seus todos os objectos de valor que encontrassem no interior daquela garagem e que pudessem carregar consigo, sabendo que não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade e em prejuízo do respectivo dono.
Constata-se pois que, além de não se referir o seu valor, nem sequer se mencionam os objectos que, encontrando-se na garagem, podiam ter sido subtraídos pelos arguidos.
Ora, a doutrina, sobretudo pela pena do Professor José de Faria Costa, tem afirmado, quase unanimemente, que, no crime de furto, o valor patrimonial da coisa subtraída constitui elemento implícito do tipo Partilhando deste entendimento, Paulo Saragoça da Matta «Subtracção de coisa móvel alheia – Os efeitos do admirável mundo novo num crime “clássico”», estudo publicado na obra colectiva “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, 2003, p. 993e segs.)..
Em anotação publicada na Revista de Legislação e Jurisprudência (Ano 139.º, p. 176 e segs.), aquele professor critica, acerbamente, o acórdão da Relação do Porto de 26.11.2008 (ali reproduzido), em que se defende que “o valor da coisa subtraída não é elemento normativo típico (explícito, nem vector essencial ou estruturante) do tipo base de furto, antes funcionando, quando atinge determinado quantitativo (“valor elevado” ou “valor consideravelmente elevado”), como circunstância qualificativa”.
Argumenta aquele penalista que, dispondo o n.º 4 do art.º 204.º que “não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor”, isso quer dizer que “independentemente da verificação de uma qualquer outra circunstância qualificadora, sendo a coisa de valor diminuto, em caso algum poderemos estar perante um crime de furto qualificado”, o que leva, logicamente, à afirmação de que “se o valor diminuto determina uma punição por furto simples, então, o valor qua tale é elemento do tipo de furto”. E, em jeito de remate: «Razões que nos levam a rejeitar as afirmações do aresto sub iudicio quando ali se refere que “a configuração de um ilícito como furto (…) não precisa da indicação de um valor da coisa subtraída para ser delimitado positivamente, antes tudo dependendo do conjunto dos factos que se apurarem em cada caso concreto”.
Ainda a propósito da norma do n.º 4 daquele art.º 204.º, escreve o Professor José de Faria Costa (“Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, T. II, 1999, 87) que se pode sustentar estarmos perante uma norma de desqualificação, mas prefere “a ideia mais forte e talvez mais expressiva de que neste caso se está perante um contra-tipo. O tipo qualificador cede, nas circunstâncias, quando se faz apelo ao contra-tipo. Ou seja: desta maneira julgamos ser mais consequente a aceitação e a defesa de que se a coisa for de diminuto valor não chega sequer a preencher-se o tipo qualificador, remetendo-se o comportamento proibido para o tipo matricial”.
À questão de saber se o agente deve representar, ainda que de maneira global e difusa, o facto de a coisa furtada ter diminuto valor, responde o autor que “o contra-tipo (…) só deve funcionar se o agente da infracção tiver representado que aquilo que quer furtar tem um diminuto valor”, embora não lhe repugne aceitar que se está perante “uma pura e simples circunstância privilegiadora de aplicação automática e obrigatória”, solução que “os princípios atinentes a uma aplicação e a uma interpretação sustentadas no favor rei” legitimariam.
Estas considerações, fornecendo importante contributo, não são, no entanto, suficientes para resolver a questão com que nos defrontamos.
Exigindo o crime de furto uma subtracção e uma apropriação física de uma coisa móvel, esta, sem ter que ser susceptível de apreensão material, há-de possibilitar uma imediata disposição física e, por conseguinte, ser controlável, quantificável e dotada de utilidades susceptíveis de apropriação individual, ou seja, com valor económico ou patrimonial.
Além disso, sendo “a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica” (Prof. Faria Costa, Ob. Cit., p. 30-31) o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do furto, só pode ser objecto deste crime a coisa que tenha um valor juridicamente relevante.
Admitindo, como admitimos, que a configuração do crime de furto exige a indicação do valor da coisa subtraída, quid juris se inexistir essa indicação?
Embora se possa falar numa orientação dominante, a jurisprudência tem dado respostas diversas a esta questão.
No acórdão do STJ de 10.12.1997 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Brito Câmara) entendeu-se que deve beneficiar-se o arguido e considerar diminuto o valor da coisa:
“Não se conseguindo determinar o valor dos objectos subtraídos pelo arguido, tem de concluir-se, em benefício daquele, que o mesmo é insignificante e diminuto, o que exclui a qualificação do furto, nos termos do disposto pelos artigos 297 n. 3 do CP de 1982 e 204 n. 4 e 202 alínea c) do CP de 1995”.
Na mesma linha e fazendo notar que, em qualquer caso, tem que ficar provada a existência no património do ofendido da coisa que o agente tentou furtar, o (invocado pelo recorrente) acórdão do STJ de 12.11.1997 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Andrade Silva):
“I - (…)
II - Estando a punição do crime de furto relacionada com o valor da coisa móvel subtraída ou tentada subtrair, tem de ser provado qual o valor dos objectos, para se saber se estamos perante crime simples ou qualificado.
II - Quando não foi possível quantificar o valor da coisa, por mais favorável ao arguido tem de entender-se que o seu valor é diminuto.
IV - Todavia, ainda que não se tenha provado o valor concreto da coisa alheia, para que se verifique a tentativa do crime de furto tem de estar provada a existência daquela no património do ofendido, de onde o agente a quer tirar”.
No acórdão da Relação do Porto de 15.04.2009 (www.dgsi.pt/jtrp; Relator: Des. Manuel Braz), é invocado o princípio in dubio pro reo como justificação para a consideração como valor diminuto dos objectos cujo valor real não está determinado:
“Desconhecendo-se o valor dos bens objecto de tentativa de furto, a dúvida sobre se o valor de tais bens é ou não diminuto, porque se refere a um elemento de facto, tem de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”, considerando-se ser esse valor diminuto e, em consequência, a tentativa de furto simples”.
Na mesma linha, embora com algumas “nuances”, estão os acórdãos do STJ de 23.06.2010 (Relator: Cons. Henriques Gaspar) e de 13.05.1998 (Relator: Cons. Martins Ramires).
Já no acórdão de 26.06.1997 (CJ/Acs.STJ, V, T. II, 250) o STJ decidiu que a circunstância de não se ter conseguido apurar o real valor das quantias pecuniárias subtraídas não serve para se desqualificar o furto, nos termos do n.º 3 do artigo 297.º do CP/82 (ou do n.º 4 do artigo 204.º do C.P./95), por isso que, para se considerar tal valor como insignificante (ou diminuto – no segundo caso) seria necessário um juízo positivo sobre esse valor, o que se não verifica.
Em anotação ao já citado acórdão do STJ de 12.11.1997, Simas Santos (RPCC, Ano 8.º, 459 e segs.) defende que, em obediência aos princípios da legalidade e da tipicidade, “só terá lugar a agravação dos nºs. 1 e 2 do artigo 204º C. Penal se o tribunal estabelecer positivamente que o valor da coisa subtraída excede 50 ou 200 UC´s avaliadas no momento da praticado facto e da mesma forma só a constatação, obviamente, positiva, de que se trata de coisa de diminuto valor é que neutraliza a maior ilicitude ou culpa a que se reportam as circunstâncias agravativas previstas nas diversas alíneas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 204º C Penal.
Mais recentemente, a Relação de Coimbra, no acórdão de 03.02.2010 (www.dgsi.pt/jtrc; Relatora: Des. Isabel Valongo) decidiu que, “não se sabendo qual o valor dos bens furtados, não é aplicável o n. 4 do art.º 204º do C.P.”, devendo a sentença ser anulada e o processo enviado ao tribunal recorrido para cumprimento do n.º 3 do artº 358° do CPP”, com o argumento, que vai buscar à doutrina do Professor Faria Costa, segundo o qual o comando do n.º 4 do art.º 204.º do Cód. Penal só opera quando o agente representar que "que aquilo que quer furtar tem um diminuto valor".
Feito este breve excurso pela doutrina e pela jurisprudência sobre o tema, é tempo de tomarmos posição.
Antes de mais, importa recordar que o in dubio pro reo é, essencialmente, uma regra de decisão que só faz sentido que intervenha quando existe uma dúvida fundada e insuperável sobre a verificação de um facto.
Não assim se o facto nem sequer faz parte do thema probandi, como acontece quando a acusação (ou a pronúncia, se a houver) não só omite o valor mas também os concretos objectos que o agente subtraiu ou tentou subtrair.
É o que se verifica no caso em análise, pois o Ministério Público não se preocupou em apurar quais os objectos de que o arguido/recorrente podia ter-se apoderado e retirado da casa do ofendido e limitou-se à referência vaga e inócua de “objectos de valor”.
O tribunal recorrido, por seu turno, limitou-se a reproduzir o que constava da acusação. Isto apesar de, na audiência de julgamento, ter havido uma tentativa, por parte do Ministério Público, de concretizar aquela referência genérica.
Não pode, ainda, invocar-se o in dubio pro reo quando, não sendo possível quantificar o seu valor, sabe-se que objectos foram subtraídos e que, de acordo com as regras de experiência e do conhecimento comum, o seu valor é, seguramente, superior ao valor da UC.
Com efeito, só por absurdo alguém pode sustentar que, por exemplo, um anel em ouro com pedras preciosas incrustadas que foi subtraído do interior de uma casa de habitação, na qual o agente penetrou por arrombamento, deva ser considerado de diminuto valor para desqualificar o furto porque não se determinou o seu valor real.
Não podemos, pois, concordar com a afirmação contida no citado acórdão do STJ de 23.06.2010 de que o “valor das coisas não é (…) revertível à noção de facto notório”.
A falta de determinação do valor da coisa subtraída só poderá traduzir uma dúvida se o facto (valor da coisa) for objecto de prova e não for possível apurar esse valor. Nesse caso, na ausência de quaisquer dados que permitam uma quantificação aproximada e segura, é legítimo lançar mão da regra in dubio pro reo e considerar, para efeitos de desqualificação do furto, diminuto o valor da coisa.
Revertendo, de novo, ao caso dos autos, poder-se-ia dizer que é da experiência comum que em qualquer casa de habitação encontramos uma multiplicidade de objectos com valor superior a € 150,00 (como referiu o ofendido P… em resposta a uma pergunta que o magistrado do MP lhe dirigiu e que o recorrente transcreve na motivação do recurso) e que facilmente seriam retirados e levados pelo arguido B… para deles se apropriar.
Porém, o mesmo não podemos dizer em relação a possíveis objectos guardados na garagem da casa.
Ora, o que o tribunal a quo deu como provado foi que os arguidos B… e J… “quiseram fazer seus todos os objectos de valor que encontrassem no interior da(quela) garagem e que pudessem carregar consigo”.
Voltamos, então, ao ponto de partida: não estando identificados os bens que os arguidos tentaram subtrair e, portanto, sendo desconhecido o respectivo valor, devem considerar-se de valor diminuto e, assim, o furto ser desqualificado para o crime matricial, favorecendo-se, pois, os arguidos, ou deve manter-se o enquadramento jurídico-penal efectuado no acórdão recorrido (furto qualificado, nos termos dos artigos 203.º, n.º 1, 204.º. n.º 2, al. e), com referência aos artigos 202.º, al. d), 22.º, 23 e 73.º, todos do Cód. Penal)?
Apesar da orientação dominante na jurisprudência apontar para a primeira hipótese da alternativa equacionada, pelas razões já expostas, é para nós bem claro que essa solução não é satisfatória e não colhe apoio na doutrina (a não ser que se considerasse, como alguns consideram, que o valor diminuto da coisa configura um elemento negativo do tipo).
A solução que se apresenta como a mais correcta, quer do ponto de vista técnico-jurídico, quer na perspectiva do respeito pelos princípios da legalidade e da tipicidade, é considerar que há insuficiência da matéria de facto para a decisão e determinar o reenvio do processo para novo julgamento, mas limitado ao apuramento dos objectos, bem como ao respectivo valor, que os arguidos tentaram subtrair da garagem da casa do ofendido (assim, Paulo Pinto de Albuquerque, Ob. Cit., págs. 1077 e 1079).
Se desse novo julgamento vier a resultar, como provavelmente acontecerá, uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, haverá que dar cumprimento ao disposto no art.º 358.º, n.º 1, do Cód. Penal.
III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em ordenar o reenvio do processo ao tribunal recorrido para novo julgamento, limitado ao apuramento dos concretos “objectos de valor” que os arguidos B… e J… quiseram subtrair, para deles se apoderarem, da garagem do ofendido P…, bem como do respectivo valor quantificado, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).