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ARMA BRANCA
USO DE ARMA PROIBIDA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
OFENSAS GRAVES
DESFIGURAÇÃO GRAVE E PERMANENTE
ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE
Sumário
A expressão arma branca abrange todo um conjunto de instrumentos cortantes ou perfurantes, normalmente de aço, a maioria deles utilizados habitualmente nos usos ordinários da vida, mas podendo sê-lo também para ferir ou matar. Quando a alínea f) do artigo 3 do Decreto-Lei n.207-A/75, de 17 de Abril, se refere a outros instrumentos sem aplicação definida quer significar que se trata de objectos que normalmente os cidadãos não trazem consigo e, por isso, a anormalidade da sua detenção terá de ser justificada. Integra a prática do crime previsto e punido pelo artigo 275 ns.1 e 3 do Código Penal, com referência ao artigo 3 n.1 alínea f) do Decreto-Lei n.207-A/75, de 17 de Abril, a detenção de uma navalha de barbeiro (arma branca), utilizada pelo arguido numa discoteca com o propósito antecipado de molestar a integridade física do ofendido, não se mostrando a qualquer título justificada a posse dessa navalha. A desfiguração a que se refere a alínea a) do artigo 144 do Código Penal perfila-se enquanto uma alteração substancial da aparência do lesado, a sua gravidade será aferida em função da intensidade da lesão (quantidade da lesão, local e sua visibilidade) e das “relações naturais e sociais” do lesado, devendo ser tido em conta a particular situação da pessoa ofendida, a sua profissão, idade, sexo, entre outros factores, e o efeito que a lesão pode assumir no quadro da sua vida de relação. Por outro lado a desfiguração há-de ser permanente, com o significado que os efeitos da lesão sofrida são duradouros, sendo previsível que perdurem por um período de tempo indeterminado. Deve ser considerada desfiguração grave e permanente a causada pelo arguido na pessoa do ofendido, com uma navalha de barbeiro, que provocou, sem qualquer possibilidade de melhoria, parestesia do lábio inferior esquerdo, deformidade nasal que consiste num desvio da ponta do nariz, facilmente detectável por qualquer pessoa e dismorfia entre a face direita e a face esquerda, também facilmente detectável, determinando tais lesões no ofendido, considerada a sua idade (31 anos) e a sua profissão de delegado de informação médica, um dano estético de grau 6 na escala de 1 a 7.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Na comarca de....., julgado em processo comum, com intervenção do Tribunal singular, após pronúncia, o arguido Manuel....., com os sinais dos autos, foi condenado:
a) pela prática de um crime de detenção e uso de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 275º, nº 3º, do CP, com referência ao artigo 3º, nº 1º, al.f) do Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril, na pena de 4 meses de prisão; e,
b) pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, previsto e punível pelos artigos, 144º e 146º, com referência ao artigo 132º, nº 2º, als. d), g) e h), do CP, na pena de 4 anos de prisão;
c) em cúmulo jurídico das penas referidas em a) e b ), na pena única de 4 anos e 2 meses de prisão.
A decisão observou os pertinentes preceitos tributários.
Inconformado o arguido interpôs recurso.
Na motivação apresentada formula as seguintes conclusões (transcrição):
1. O arguido Manuel..... deverá ser absolvido do crime de detenção e uso de arma proibida uma vez que a navalha de barbeiro não é uma arma branca de disfarce, não estando incluída a navalha na alínea a) excluída está a hipótese de a inserir na alínea c), pois o legislador quis claramente distinguir as armas brancas de outros instrumentos sem aplicação definida que normalmente os cidadãos não trazem consigo, e por isso a anormalidade da sua detenção ter de ser justificada.
Não assim quanto à navalha de barbeiro que o arguido trazia consigo pois é utilizada todos os dias nos usos ordinários da sua vida (fazer a barba e algumas vezes na sua actividade agrícola).
2. O arguido deverá ser condenado pela prática de um crime à integridade física simples na pena de 2 anos de prisão tendo em conta que não houve desfiguração grave e permanente e perigo para a vida do ofendido.
As lesões foram corto-contusas, superficiais e praticamente recuperadas pela cirurgia e de que resultaram apenas pequenas cicatrizes, para além das lesões terem apenas provocado 10 dias de doença com incapacidade para o trabalho.
A alteração estética na aparência do ofendido para ser grave e permanente devia ser extensa e intensa o que mesmo tendo em consideração o relatório médico que com todo o respeito entendemos estar manifestamente exagerado não será o caso das lesões presentes do ofendido João......
Lesões irreversíveis:
- Parestesia no lábio inferior, entre as duas cicatrizes.
- Deformidade nasal, traduzida por um desvio moderado da parte nasal para esquerda.
3. Dos factores indicados no artigo 132º para o agravamento do crime, os únicos que se poderiam enquadrar na actuação do arguido seriam o motivo fútil (alínea c) do uso do meio insidioso (alínea f) ora não foi apurado o motivo pelo qual o arguido começou a agredir o ofendido João....., logo não pode verificar-se este elemento agravativo da conduta do arguido neste caso concreto.
O crime de ofensas corporais graves ou com perigo de vida só compreende as situações em que tais ofensas, em concreto produzem um perigo sério, actual, efectivo e não remoto ou meramente presumido para a vida do ofendido .
(Ac. Rel. de 9 de Abril de 91).
4. Tendo em conta o artigo 50º do CP deverá ser suspensa a execução da pena por um período de 5 anos, tendo em conta a conduta anterior e posterior aos factos do arguido, delinquente primário, encontra-se social e profissionalmente inserido, ajuda o seu pai, dedica-se à agricultura, frequentou o curso de jovem empresário agrícola tendo projectos já aprovados pelo ‘Ifadap’. E possui o 11º ano .
Caso assim se não entenda:
5. Deverá o arguido ser condenado em pena de multa, nos termos do artigo 70º do CP. Pelo crime de detenção de arma proibida pelas razões supra referidas.
6. Ser condenado por um crime de ofensas à integridade física grave e qualificada na pena de 30 meses de prisão.
A pena não pode, em algum caso ultrapassar a medida da culpa, nem mesmo por razões de prevenção geral e muito menos ser aumentada de 3 anos e 5 meses para 4 anos como fez o Mmº. Juiz, sem se saber bem porquê, fazendo tábua rasa quer da conduta posterior aos factos do arguido, quer da melhoria estética na face do ofendido devido á melhoria das lesões verificadas com o decurso do tempo após o primeiro julgamento.
A medida da pena é a medida necessária à integração do indivíduo na sociedade, e ficou provado que o arguido está social e profissionalmente inserido.
Como dizia o Prof. Beleza dos Santos "A pena deve representar um pronto castigo, um adequado meio de intimidação e um processo de regeneração".
Não se poderá esquecer que não ficou provado qual o motivo da agressão, e de que a convicção do tribunal quanto aos factos dados como provados ancorou-se nas declarações do ofendido, que fez tábua rasa de todos os depoimentos das testemunhas do arguido e do seu próprio depoimento. ("as testemunhas de defesa, bem como as declarações do ofendido/arguido Manuel..... não mereceram credibilidade, uma vez que estão em contradição com a versão apresentada pelo ofendido/arguido João.....).
Não teve em conta as várias testemunhas que falaram em murros e pontapés, em empurrões, o que não faz sentido pois não é credível que uma pessoa agrida outra como fez o arguido se não tivesse havido qualquer provocação, ameaça ou insulto.
Se assim não fosse como se explicaria o comportamento do arguido Manuel..... ao querer falar com o ofendido antes da agressão?
Como se explica que o arguido com uma navalha na mão e com a sua composição física permitisse ao ofendido provocar-lhe várias escoriações e a perda do segundo dente incisivo superior esquerdo desferindo-lhe socos e pontapés?
Admitindo-se que o aspecto da "convicção e credibilidade" é subjectivo, tem que rejeitar-se a existência de qualquer contradição entre os depoimentos das testemunhas de defesa do arguido, porque eles são concordantes em afirmar que pelo menos antes da agressão houve encontrão do ofendido ao arguido, pelo que não se entende terem sido inconvincentes porque contraditórios com a versão do ofendido.
A sentença recorrida violou os artigos, 70º, 71º, 72º, 143º, 144º,146º, com referência ao artigo 132º, e ainda 265º (?-275º), todos do CP; deve ser revogada e substituída por outra que condene ou absolva o arguido Manuel..... nos termos referidos.
Respondeu o Ministério Público em ordem à manutenção da decisão recorrida.
Nesta Instância o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer, nele vindo a concluir como o Ministério Público na 1ª Instância.
Foi observado o disposto no artigo 417º, nº 2º, correram os ‘vistos’, e teve lugar a audiência designada no artigo 423º, ambos do CPP.
Trata-se, este, de um segundo julgamento, em função de reenvio determinado pelo Tribunal de 2ª Instância, com vista a, “em sede de decisão de facto, se apurar a caracterização dos efeitos deixados no rosto do ofendido pelas ofensas nele produzidas pelo recorrente, bem como o grau de intensidade e irreversibilidade desses efeitos e a modificação por eles operada no delineamento do mesmo rosto, decidindo-se depois do direito sobre a totalidade do objecto da pronúncia”.
É a seguinte a matéria de facto dada como PROVADA na sentença recorrida:
A. Da discussão da causa no primeiro julgamento realizado neste processo, resultaram provados os seguintes factos, relativamente ao Processo n° ../..:
1. No dia 30/12/99, cerca das 2 horas, na pista de dança da discoteca "M...", sita na Avenida....., nesta cidade, o arguido, de alcunha "R.....", abeirou-se do ofendido João..... e fez-lhe entender que queria falar com ele, pelo que este, face ao ruído ambiente, baixou um pouco a cabeça na direcção daquele.
2. De imediato, sem aviso prévio e sem que nada o fizesse prever, o arguido, abrindo uma navalha de barbeiro, que não foi possível examinar, mas que já empunhava de forma dissimulada e traiçoeira, com movimentos rápidos e precisos, vibrou-lhe seis golpes cortantes na face, sendo que, quando o ofendido procurou reagir, ainda lhe dirigiu mais seis navalhadas, que, no entanto, atingiram apenas a camisola, em lã, que vestia, na zona central do peito e na região da omoplata direita.
3. Em consequência das navalhadas, o João..... sofreu feridas cortocontusas, suturadas com pontos de seda, na região frontal direita, com 3 cms; na região supracilar direita, com 10 cms; no dorso do nariz, com 6 cms; na região malar direita, com 8 cms; na metade esquerda do lábio inferior, de 6 cms, interessando o bordo livre do mesmo e com prolongamento gengival; e no epicentro direito, com 2 cms de comprimento e escoriação no bordo médio do lábio superior.
4. Tais lesões provocaram-lhe, directa e necessariamente, 10 dias de doença, com incapacidade para o trabalho, além de dores consideráveis.
5. O arguido actuou com o firme e antecipado propósito de molestar a integridade física do ofendido, procurando satisfazer o prazer de aleijar e "marcá-lo" de forma gravosa e notória na face.
6. Ciente que o fazia utilizando um instrumento apto a provocar fortes lesões ou, até, a morte.
7. Sabia também que, de qualquer forma, não lhe era permitido deter ou utilizar a navalha em causa em tais circunstâncias, sendo que, aliás, já a trazia consigo na eventualidade de a usar como instrumento de violência.
8. O arguido agiu livre e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
9. O ofendido João..... foi inicialmente assistido no Hospital Distrital de....., para tratamento das lesões sofridas, tendo-se deslocado, logo após os primeiros tratamentos, ao Porto, ao consultório de um médico especialista (cirurgia).
10. Aí, foi submetido a uma primeira intervenção cirúrgica para reconstrução do lábio inferior e correcção cirúrgica da lesão da hemi-face direita, efectuando-se tratamento conservador nas lesões, por motivo de grande edema apresentado.
11. Em 12/01/2000, o ofendido foi submetido a nova intervenção cirúrgica, para correcção das lesões que resultaram da agressão acima referida e que não puderam ser corrigidas na primeira intervenção cirúrgica referida em 10.
12. Nesta segunda intervenção, efectuou-se a reconstrução da cobertura cutânea da região nasal e correcção cirúrgica das lesões da região supra-ciliar direita e região frontal direita.
13. O demandante sofreu dores físicas intensas e ficou psicologicamente muito afectado na sua imagem pessoal, com sinais de depressão e insegurança, tendo necessitado de acompanhamento psiquiátrico.
14. O demandante exerce a profissão de Delegado de Informação Médica.
15. O demandante contava, à data da agressão, 31 anos de idade, era um jovem robusto e saudável, com uma boa imagem física.
16. Após a agressão, sente-se desfigurado, tem receio de "olhar de frente" as pessoas com quem lida, nomeadamente os seus clientes.
17. O custo das intervenções cirúrgicas ascendeu a 700.000$00, que o demandante pagou.
18. Para receber tratamentos médicos, o demandante deslocou-se ao Porto 5 vezes, em carro particular, tendo despendido a quantia de 80.000$00.
19. Em medicamentos diversos despendeu o demandante a quantia de 20.000$00.
20. O arguido é uma pessoa bem constituída fisicamente.
21. O arguido dedica-se à agricultura, ajudando o seu pai, frequentou o curso de jovem empresário agrícola e tem projectos nesta área já aprovados pelo Ifadap.
22. O arguido vive com o pai e é filho único.
23. A mãe do arguido encontra-se a trabalhar no estrangeiro.
24. O arguido é solteiro e possui como habilitações literárias o 11º ano.
Após realização do julgamento determinado pelo Tribunal da Relação do Porto, provou-se, com relevo para a decisão final, que:
25. As feridas referidas em 3. e o tratamento das mesmas provocaram dores intensas no João....., de grau 6 na escala de 1 a 7.
26. Em consequência directa e necessária das feridas referidas em 3., o João..... apresenta, sem qualquer possibilidade de melhoria:
a) parestesia do lábio inferior esquerdo;
b) deformidade nasal, que consiste num desvio da ponta do nariz para a esquerda, detectável facilmente por qualquer pessoa que olhe para a sua face;
c) dismorfia entre a face direita e a face esquerda, detectável facilmente por qualquer pessoa que olhe para a sua face.
27. As lesões referidas em 26. provocam no ofendido, considerando a sua idade e a profissão de delegado de informação médica que exerce, um dano estético de grau 6, na escala de 1 a 7.
B. Da discussão da causa no primeiro julgamento realizado neste processo, resultaram provados os seguintes factos, relativamente ao Processo nº ../.. (apenso):
1. No dia 30/12/99, cerca das 2 horas, na pista de dança da discoteca "M.....", sita na Avenida....., nesta cidade, o arguido João..... e o ofendido Manuel..... envolveram-se em luta recíproca, que aconteceu após o ofendido Manuel..... ter agredido o arguido João..... com uma navalha de barbeiro, vibrando-lhe seis golpes cortantes na face e mais seis navalhadas que atingiram apenas a camisola, em lã, que vestia, na zona central do peito e na região da omoplata direita.
2. Na sequência da referida luta, o arguido João..... agrediu o queixoso Manuel..... a soco e a pontapé, atingindo-o por onde podia acertar-lhe, desta forma lhe causando, para além das dores resultantes das pancadas, os ferimentos - escoriação na região frontal e perda do 2º dente incisivo superior esquerdo - que demandaram para a cura, directa e necessariamente, doença por 6 dias e ainda pequena deformidade resultante da perda de um dente da arcada frontal.
3. Agiu o arguido com vontade livre e consciente, pretendendo com a sua conduta evitar ser agredido fisicamente pelo queixoso.
4. O arguido é casado e tem um filho de 6 anos de idade.
5. Aufere o vencimento mensal de 310.000$00.
6. Paga 90.000$00 de renda de casa.
7. A esposa do arguido trabalha.
8. Possui como habilitações literárias uma licenciatura em Ciências Empresariais.
9. O arguido tem tido bom comportamento.
A matéria de facto NÃO PROVADA:
A. Relativamente ao Processo nº ../.., não se provou que:
- o arguido Manuel..... se tenha abeirado do ofendido João..... por não lhe agradar a forma como este, na sua convicção, se exibia, divertindo-se;
- o ofendido, na companhia de outras três pessoas, se abeirou do arguido e depois de o provocar , o agrediu a soco e a pontapé;
- o arguido, colocado numa situação de desvantagem, quatro contra um, limitou-se a defender com uma navalha, pois temeu pela sua integridade física.
B. Relativamente ao Processo nº ../.. (apenso), não se provou:
- que o arguido agiu querendo molestar a saúde e a integridade física do queixoso.
A MOTIVAÇÃO da decisão, quanto aos factos apurados no julgamento decretado pelo Tribunal da Relação do Porto:
“Provou-se que o arguido Manuel....., sem aviso prévio e sem que nada o fizesse prever, abrindo uma navalha de barbeiro, que não foi possível examinar , mas que já empunhava de forma dissimulada e traiçoeira, com movimentos rápidos e precisos, vibrou ao ofendido João..... seis golpes cortantes na face, sendo que, quando o ofendido procurou reagir, ainda lhe dirigiu mais seis navalhadas, que, no entanto, atingiram apenas a camisola, em lã, que vestia, na zona central do peito e na região da omoplata direita.
Provou-se também que o arguido Manuel..... agiu ciente que o fazia utilizando um instrumento apto a provocar fortes lesões ou, até, a morte e que não lhe era permitido deter ou utilizar a navalha em causa em tais circunstâncias, sendo que, aliás, já a trazia consigo na eventualidade de a usar como instrumento de violência.
O arguido agiu livre e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
Está em causa a aplicação das normas contidas no art. 275º do CP, na versão aprovada pela Lei nº 65/98, de 02-09, em vigor à data dos factos (cfr. art. 2º, nº 1, do mesmo Código).
Dispõe o nº1 do referido art. 275º do CP, na versão mencionada, que "quem importar, fabricar, guardar, comprar, vender, ceder, ou adquirir a qualquer título, transportar, distribuir, detiver usar ou trouxer consigo engenho ou substância explosiva, radioactiva ou própria para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes, fora das condições legais ou em contrário das prescrições das autoridades competentes, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa".
O nº 3 do mesmo artigo (e não o nº 2, como se refere na pronúncia) estabelece que "se as condutas referidas no nº 1 disserem respeito a armas proibidas, nestas se incluindo as que se destinem a projectar substâncias tóxicas, asfixiantes ou corrosivas, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias".
Dispõe o art. 3º, nº1, al.f), do DL nº 207-A/75, de 17-04, que é proibida a detenção, uso e porte de armas brancas ou de fogo com disfarce ou ainda outros instrumentos sem aplicação definida, que possam ser usados como arma letal de agressão, não justificando o portador a sua posse.
No caso dos autos estamos perante uma navalha de barbeiro, que não foi possível examinar .
A al. f) do nº1 do art. 3º do DL nº 207-A/75 (diploma com o qual deve ser conjugado o art. 275º do CP), de 17-04, torna proibidas as seguintes modalidades de armas: a) armas brancas com disfarce; b) armas de fogo com disfarce; c) outros instrumentos sem aplicação definida, que possam ser usados como arma letal de agressão, não justificando o portador a sua posse.
A referida navalha é, sem dúvida, uma arma branca, expressão que abrange todo um conjunto de instrumentos cortantes ou perfurantes, normalmente de aço, a maioria deles utilizados habitualmente nos usos ordinários da vida, mas também podendo sê-lo para ferir ou matar (cfr. Ac. STJ, de 31/11/83, no BMJ, 331º, pag. 357).
Todavia, não é arma branca com disfarce, uma vez que armas com disfarce são aquelas que encobrem a sua verdadeira natureza ou dissimulam o seu real poder vulnerante (por ex., o objecto que parece um isqueiro ou um guarda-chuva mas tem inseridas uma lâmina ou uma arma de fogo ).
Não estando a navalha em causa incluída na previsão das al. a) e b) supra, resta analisar se poderá ser incluída na al. c), i.e., se pode ser considerada outro instrumento sem aplicação definida, que possa ser usado como arma letal de agressão, não justificando o portador a sua posse.
Quando a lei refere "sem aplicação definida", quer significar que se trata de objectos que normalmente os cidadãos não trazem consigo e, por isso, a anormalidade da sua detenção terá de ser justificada.
A convicção do tribunal, quanto aos factos dados como provados, ancorou-se nos seguinte elementos de prova:
- no teor do relatório pericial constante de fls. 254, conjugado com os esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pela Sr. Perita Médica, na presença do examinado, no sentido da matéria dada como provada;
- na observação do examinado, efectuada em audiência de julgamento, quando a Sr . Perita prestava esclarecimentos, donde se concluiu pela evidência das lesões mencionadas para quem olhe para a face do examinado”.
O julgamento foi efectuado sem documentação dos actos de audiência, pelo que o presente recurso é circunscrito à matéria de direito (artigos, 428º e 364º), sem obstáculo, porém, desta Relação poder conhecer amplamente, sendo caso disso, nas hipóteses contempladas nos nºs. 2º e 3º do artigo 410º, todos do CPP.
Certo é que, do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum (cit. nº 2º), não se antolha qualquer dos vícios ali apontados, igualmente se não topando qualquer inobservância de requisito cominado com nulidade e que se não deva considerar sanada.
Definitivamente assentes, assim, os factos vindos de transcrever.
1. O crime de detenção e uso de arma proibida:
Estabelece o artigo 275º do CP:
1 - Quem importar, fabricar, guardar, comprar, vender, ceder ou adquirir a qualquer título, transportar, distribuir, detiver, usar ou trouxer consigo engenho ou substância explosiva, radioactiva ou própria para a fabricação de gases tóxicos ou asfixiantes, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - (...).
3 - Se as condutas referida no nº 1 disserem respeito a armas proibidas, nestas se incluindo as que se destinem a projectar substâncias tóxicas, asfixiantes ou corrosivas, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
4 - (...).
E estatui o artigo 3º, nº 1º, al.f), do Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril, a proibição da detenção, uso e porte de armas brancas ou de fogo com disfarce ou ainda outros instrumentos sem aplicação definida, que possam ser usados como arma letal de agressão, não justificando o portador a sua posse.
Provou-se que:
- de imediato, sem aviso prévio e sem que nada o fizesse prever, o arguido, abrindo uma navalha de barbeiro, que não foi possível examinar, mas que já empunhava de forma dissimulada e traiçoeira, com movimentos rápidos e precisos, vibrou seis golpes cortantes na face do ofendido João....., sendo que, quando este procurou reagir, ainda lhe dirigiu mais seis navalhadas, que, no entanto, atingiram apenas a camisola, em lã, que vestia, na zona central do peito e na região da omoplata direita;
- em consequência das navalhadas, o João..... sofreu feridas cortocontusas, suturadas com pontos de seda, na região frontal direita, com 3 cms; na região supracilar direita, com 10 cms; no dorso do nariz, com 6 cms; na região malar direita, com 8 cms; na metade esquerda do lábio inferior, de 6 cms, interessando o bordo livre do mesmo e com prolongamento gengival; e no epicentro direito, com 2 cms de comprimento e escoriação no bordo médio do lábio superior, lesões que lhe provocaram, directa e necessariamente, 10 dias de doença, com incapacidade para o trabalho, além de dores consideráveis;
- o arguido actuou com o firme e antecipado propósito de molestar a integridade física do ofendido, procurando satisfazer o prazer de aleijar e "marcá-lo" de forma gravosa e notória na face;
- ciente que o fazia utilizando um instrumento apto a provocar fortes lesões ou, até, a morte;
- sabia também que, de qualquer forma, não lhe era permitido deter ou utilizar a navalha em causa em tais circunstâncias, sendo que, aliás, já a trazia consigo na eventualidade de a usar como instrumento de violência;
- e agiu livre e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
Embora perante uma navalha de barbeiro que não foi possível examinar, dúvidas, em nosso entender, não subsistem quanto a tratar-se de arma branca, enquanto instrumento cortante, de aço, habitualmente utilizado na vida das pessoas, mas também podendo sê-lo para ferir ou matar.
E, no caso, face à factualidade assente, tal arma branca funcionou como instrumento sem aplicação definida, já que, como decorre da factualidade assente, extravasando - antecipando-a - qualquer ‘normalidade’ na detenção da navalha de barba, o arguido actuou com o firme e antecipado propósito de molestar a integridade física do ofendido, procurando satisfazer o prazer de aleijar e "marcá-lo" de forma gravosa e notória na face, ciente que o fazia utilizando aquele instrumento apto a provocar fortes lesões ou, até, a morte, sabendo, ainda e também que, de qualquer forma, não lhe era permitido detê-lo ou utilizá-lo em tais circunstâncias, sendo que, já o trazia consigo na eventualidade de a usar como instrumento de violência, sempre agindo livre e voluntariamente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
Tudo isto a excluir qualquer justificação do arguido para a sua detenção (uma navalha de barbeiro numa discoteca...), como a que ensaia em sede de recurso, onde refere que tal ocorria para ‘fazer a barba e algumas vezes (usar) na sua actividade agrícola’.
Como se disse, e repete, face à prova produzida, não se mostra, a qualquer título, maxime de acordo com as regras da experiência comum, justificada a posse da navalha.
Logo, a perfeição do crime previsto e punível pelo artigo 275º, nºs 1º e 3º, do CP, com referência ao artigo 3º, nº 1º, al.f), do citado Decreto-Lei nº 207-A/75, por que se achava pronunciado.
B. O crime de ofensa à integridade física grave e qualificada:
Dispõe o artigo 144º:
Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a:
a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente;
(...);
é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
Estatui o artigo 146º:
1. Se as ofensas previstas nos artigos,143º, 144º ou 145º forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com a pena aplicável ao crime respectivo agravado de um terço nos eus limites mínimo e máximo.
2. São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º.
E estabelece o artigo 132º, nº 2º, todos do CP:
É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(...);
d) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;
(...);
g) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;
h) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;
(...).
Da matéria de facto assente decorre, sem margem para dúvida, que da actividade criminosa do arguido resultou para o ofendido João..... desfiguração grave e permanente.
Perfilando-se a desfiguração enquanto uma alteração substancial da aparência do lesado, a sua gravidade será aferida em função da intensidade da lesão (quantidade da lesão, local em que ocorreu, bem como a sua visibilidade), e das ‘relações naturais e sociais’ do lesado.
Deverá ser tido em conta a particular situação da pessoa ofendida, a sua profissão, idade, sexo, entre outros factores, e o efeito que a lesão pode assumir no quadro da sua vida de relação.
Por outro lado, a desfiguração há-de ser permanente, não com a exigência de perpetuidade, mas com o significado que os efeitos da lesão sofrida são duradouros, sendo previsível que perdurem por um período de tempo indeterminado (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, I,223 e segs.).
O que flui, nesta área, da matéria de facto provada:
Em consequência das navalhadas desferidas pelo arguido, o João..... sofreu feridas cortocontusas, suturadas com pontos de seda, na região frontal direita, com 3 cms; na região supra-ciliar direita, com 10 cms; no dorso do nariz, com 6 cms; na região malar direita, com 8 cms; na metade esquerda do lábio inferior, de 6 cms, interessando o bordo livre do mesmo e com prolongamento gengival; e no epicentro direito, com 2 cms de comprimento e escoriação no bordo médio do lábio superior.
Estas feridas e o seu tratamento provocaram dores intensas no João....., de grau 6 na escala de 1 a 7.
E, em consequência directa e necessária das mesmas, o João..... apresenta, sem qualquer possibilidade de melhoria:
a) parestesia do lábio inferior esquerdo;
b) deformidade nasal, que consiste num desvio da ponta do nariz para a esquerda, detectável facilmente por qualquer pessoa que olhe para a sua face;
c) dismorfia entre a face direita e a face esquerda, detectável facilmente por qualquer pessoa que olhe para a sua face.
Tais lesões provocam no ofendido, considerando a sua idade e a profissão de delegado de informação médica que exerce, um dano estético de grau 6, na escala de 1 a 7.
Desfiguração grave e permanente, pois, a causada pelo arguido na pessoa do ofendido João....., assim se preenchendo o ilícito tipificado no artigo 144º, nº 1º, al.a), do CP.
Mas a actuação comprovada do arguido é, afinal, subsumível ao aludido artigo 146º (Ofensa à integridade física qualificada).
Que, como vimos, exige que as ofensas tenham sido produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente; e são susceptíveis de o revelar, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º.
Como tem sido unanimemente recortado jurisprudencialmente, o que verdadeiramente releva em cada caso, é que as suas circunstâncias analisadas em concreto demonstrem que o agente actuou com uma censurabilidade ou perversidade que justificam uma censura penal que não deve ser encontrada na moldura sancionatória de um tipo legal de crime simples, mas sim noutra moldura, que represente um castigo aumentado - acórdão do STJ, de 10.04.97 (Procº nº 1256/96 - 3ª Sº).
Na verdade, o tipo do artigo 132º consiste em ser o resultado causado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, enumerando o nº 2º deste artigo um conjunto de circunstâncias, não taxativas, susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o nº 1º.
Por isso que pode verificar-se qualquer dessas circunstâncias referidas nas diversas alíneas do nº 2º do artigo 132º e não existir especial censurabilidade ou perversidade justificativa da qualificação, e podem outras circunstâncias, diversas das aí descritas, revelar a censurabilidade e a perversidade pressupostas como qualificativas.
É afinal a problemática ligada à culpa, e uma maior culpa impõe uma maior pena.
Sendo a culpa um conceito material que se não esgota em cumprir o juízo de censura, mas inclui a razão da censura e, com ela, aquilo que se censura ao agente, torna-se desde logo possível a consideração, através dela, dos elementos do tipo de ilícito: não existe uma culpa jurídico-penal em si, mas só tipos de culpa concretamente referidos a singulares tipos de ilícitos (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, I,218).
A especial censurabilidade ou perversidade do agente é, pois, uma especial culpa por referência à que é pressuposta na moldura penal do tipo simples, assumindo, aqui, a qualidade de uma culpa «normal». Para o preenchimento valorativo do conceito indeterminado contido na palavra «especial» relevará, atenta a natureza material de culpa, a vontade culpável e o seu objecto nas suas manifestações concretas no caso.
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Perfila-se, então, nos autos aquele circunstancialismo revelador da aludida censurabilidade ou perversidade, de tal especial censurabilidade ou perversidade?
A resposta surge-nos afirmativa.
É que a actuação do arguido, como ficou provada, está timbrada, inequivocamente, pela traição, pela aleivosia, pela deslealdade, enformadores do meio insidioso - o que traduz, obviamente, uma maior culpabilidade, justificadora de agravada censura penal.
Na lição de Figueiredo Dias (Ob.cit.,I,38/9), ‘insidioso’ será todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno - do ponto de vista do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto’.
Ora, a insídia é característica patente na comprovada actividade do arguido.
Por outro lado incide sobre a descrita - e provada - actividade criminosa do arguido crime de perigo comum, o do artigo 275º.
Assinale-se, também, que o arguido procurou satisfazer o prazer de aleijar o ofendido João..... - como efectivamente aconteceu com muito dolorosas consequências -, e, ainda, "marcá-lo" de forma gravosa e notória na face, ciente que o fazia utilizando um instrumento apto a provocar fortes lesões ou, até, a morte.
Como se refere, bem, na decisão recorrida, todo este circunstancialismo revela especial perversidade, seja porque existe da parte do arguido uma agressão bárbara, com prazer de causar sofrimento e de marcar (aliás, resultou provado que o arguido actuou com o firme e antecipado propósito de molestar a integridade física do ofendido, procurando satisfazer o prazer de aleijar e "marcá-lo" de forma gravosa e notória na face), dirigida à face do ofendido, utilizando como instrumento do crime uma navalha da barba, actuando de forma nitidamente traiçoeira e inesperada e que só por mero acaso não terminou com a morte do ofendido.
Preenchidas, por conseguinte, as als., d), g) e h), do artigo 132º, nº 2, ex vi artigo 146º, nºs 1 e 2, ambos do CP.
3. A medida da pena:
Ao crime do artigo 275º, nº 3º, cabe pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Ao crime dos artigos 144º e 146º, cabe pena de prisão de 2 anos e 8 meses a 13 anos e 4 meses.
A determinação concreta da medida da pena, nos termos dos artigos 71º e 72º, deve respeitar os limites definidos na lei, sendo feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, considerada a finalidade das penas indicada no artigo 40º, e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, possam depor a favor do agente ou contra ele, designadamente as exemplificativamente alinhadas no nº 2º daquele artigo 71º, todos do CP.
Tendo em conta os factores indicados no artigo 72º, nº 1º e 2º - nomeadamente o altíssimo grau de ilicitude, a intensidade do dolo na modalidade de dolo directo, os sentimentos manifestados pelo arguido e as suas condições pessoais, de que se anota a sua primária delinquência e a inserção social e profissional, e também as acentuadas razões de prevenção geral: a especialíssima necessidade de tutela do bem jurídico violado, a integridade física da pessoa humana, e as razões de prevenção especial de socialização, atenta a indiferença patenteada pelo mal por ele causado -, entende-se confirmar, por adequado e necessário, a manutenção das penas de prisão, parcelares e unitária, aplicadas em 1ª Instância.
Não se mostram violadas as normas, como tal, elencadas pelo recorrente, na motivação.
Termos em que se nega provimento ao recurso, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Nesta Instância suportará o recorrente 6 UCs de taxa de justiça.
Porto, 18 de Dezembro de 2002
António Joaquim da Costa Mortágua
Francisco Augusto Soares de Matos Manso
Manuel Joaquim Braz