PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
APRECIAÇÃO LIMINAR
ABUSO DO DIREITO PROCESSUAL
USO DA AÇÃO PARA FIM DIVERSO DO LEGAL
Sumário

I – Se é verdade que a protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie a pretensão formulada em juízo, e que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção, tal busca da Justiça só ocorrerá, se a pretensão for regularmente deduzida em juízo, a lei não determine o contrário ou não existam impedimentos processuais.
II – Contrariamente ao que sucedeu com a revisão do Código de Processo Civil - em que despareceu no processo declarativo o despacho liminar -, no processo de insolvência, manteve-se a necessidade de apreciação liminar para todos os casos, seja o processo instaurado por apresentação do devedor, seja por requerimento de outro legitimado, prevendo, assim, atentos os relevantes interesses envolvidos, a efectuação de um controle judicial prévio, com vista à prossecução do desiderato de assegurar que não sejam decretadas insolvências em situações de manifesta improcedência ou em que se não encontrem preenchidos os necessários pressupostos processuais, para o efeito.
III – O abuso de direito processual corresponde essencialmente ao exercício impróprio, no plano funcional, do direito à acção, distorcendo o direito fundamental a um processo justo e equitativo, na dimensão de garantia de acesso aos tribunais, mediante uma tutela judicial efectiva, o qual deve ser aferido a partir da noção de boa-fé processual objetiva. Verifica-se a violação da boa-fé processual quando ocorre o exercício ilegítimo do direito de acção, em virtude do seu titular ao demandar outra pessoa e atenta a realidade que lhe está subjacente, acaba por exceder manifestamente os limites impostos por um standard de integridade e lealdade procedimental.
IV – Tal ocorre, entre outras situações, quando aquele que tem legitimidade processual faz um uso da acção para um fim diverso daquele para o qual estava legalmente reconhecido, acabando por promover uma lide ilegítima em virtude da mesma ser contrária ao direito substantivo que lhe está subjacente.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório

AA, veio, na qualidade de cabeça de casal da Herança Ilíquida e Impartilhada de sua mãe BB, apresentar à insolvência a referida herança.

Alega, para o efeito, que o activo da herança, é constituído pela importância em dinheiro de € 63.000,00, em poder do Agente de Execução Solicitador CC, à ordem e penhorado, por dívida da falecida a DD, no processo Nº 1008/22...., do Juiz 2 do Tribunal de Execuções de Ansião, importância doada ao cabeça de casal requerente.

A inventariada era titular de um direito de crédito da quantia de € 71.450,00 sobre a sociedade A... Ldª., também doado ao requerente.

Assim, não tem aquela herança valores activos suficientes, que lhe permitam sequer repor o valor da doação invocada, como apesar da penhora daquela importância bancária, único bem activo da herança, não tem a herança valores suficientes para o pagamento da dívida ao referido DD, do montante de € 60.000,00, e legais acréscimos nomeadamente os juros.

Refere que as obrigações da herança dizem respeito aos seguintes credores:

1 – Valor da doação da importância de € 71.450,76, crédito da sociedade A... Ldª, valor jamais pago ao credor AA.

2 – Dívida a DD de € 60.000,00 (Sessenta mil euros) e legais acréscimos, ainda não paga.

Pede a declaração de insolvência da herança e, que, após declaração de insolvência, nos termos do art.º 88 do C.I.R.E seja suspensa da execução identificada no art.º 12º desta petição e a quantia penhorada entregue ao Administrador que vier a ser nomeado nos autos.

*

Por despacho de 3.06.2025, a requerente foi notificada para esclarecer como é que o AA é credor da herança, na medida em que, de acordo com o alegado, o crédito que a falecida tinha sobre a sociedade A... Ld.ª lhe foi doado, o que significa que actualmente o AA tem um crédito sobre a sociedade, mas não sobre a herança, como resultava da sentença proferida no proc. 74/19.... que correu termos no Juízo Central Cível de Leiria- Juiz 4 e junta ao processo de execução nº 1233/24.... que corre seus termos no Juízo de Execução de Ansião- Juiz 2.

Na sequência desse despacho, para além da requerente vir juntar aos autos os elementos solicitados, veio referir que “o cabeça de casal conforme resulta da sentença do processo 74/19...., tem um crédito sobre a referida sociedade A..., constante do Proc. de Exec. Nº 1233/24...., por lhe ter sido doado pela falecida em 2 de Setembro de 2015, e resulta destes autos. Porém, a falecida não doou apenas ao cabeça de casal aquele crédito, correspondente ao que pagou ao crédito Agrícola, em nome daquela sociedade, mas também o remanescente do valor da venda do seu quinhão hereditário na herança do falecido marido EE, que foi de € 150.000,00, e que não foi entregue até hoje nem à mesma falecida, nem ao donatário, e que é a quantia de hoje de € 63.000,000 (sessenta e três mil euros), penhorada no âmbito do processo de Exec. Nº 1008/2...., processo à espera de eventual fase de liquidação para pagamento da divida ao outro credor DD, e motivos pelos quais se requer o prosseguimento do processo de Insolvência.

(…)

d) – De verdade resulta que ao cabeça de casal foram doados os direitos decorrentes da venda do quinhão hereditário da Herança de EE de €150.000,00, sendo o que resta o que está penhorado no processo 1008/2...., no montante de € 63.000,00 (Sessenta e três mil euros), valor pertencente ao referido cabeça de casal, e a que tem direito, e apesar da dívida existente a favor de DD”.

*

Na sequência do despacho proferido a 2.07.25, no qual se referia que, se o remanescente do valor da venda da meação e quinhão hereditário da BB na herança do falecido marido EE, correspondente ao valor que se encontra penhorado no processo de execução nº 1008/22...., foi doado ao cabeça de casal, ele não pertence à herança, mas ao cabeça de casal e, por isso, não pode vir a ser apreendido no âmbito destes autos, nem o cabeça de casal é actualmente titular de qualquer crédito sobre a herança, veio a requerente requerer o prosseguimento dos autos de declaração de Insolvência da herança e referir que:

“1 – A importância doada ao requerente, não lhe foi efectivamete entregue, face ao arresto e penhora referidos no processo de Execução Nº 1008/22...., questão que poderá ter de ser discutida no âmbito dos presentes autos.

Se a posse de tal importância monetária de € 60.000,00 ( sessenta mil euros), deve continuar na herança, ou face ao contrato de doação ser entregue para os devidos efeitos ao donatário AA, independentemente de os herdeiros e aceitantes da herança se continuar vinculados ao pagamento na medida do que receberam da herança, do débito, constante daquela execução, e ao referido credor, é questão em que a declaração de insolvência da herança, produzirá também os necessários e legais efeitos”.

*

Por despacho de 16.07.2025 foi a requerente notificada para se pronunciar sobre a eventual existência da excepção de abuso de direito.

*

A requerente pronunciou-se nos termos constantes do requerimento de 25.07.2025.

*

Pelo Juízo de Comércio de Leiria - Juiz 2 foi proferida a seguinte decisão:

Em face do exposto, julgo verificada a excepção de abuso de direito e, consequentemente, determino o indeferimento liminar da presente acção.

Custas pela requerente (art. 527º do CPC).

Fixo o valor da causa no valor equivalente ao da alçada da Relação, ou seja, em € 30.000,00 (301º do CIRE)

Registe e notifique


*

AA, na qualidade de cabeça de casal da HERANÇA ILÍQUIDA E IMPARTILHADA DE BB, requerente, nos autos supra à margem aludidos e neles melhor identificado, não se conformando com tal decisão dela interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

(…).


*

2. Do objecto do recurso

2.1 – O que resulta dos autos:

1.O Apelante/Requerente, veio, na qualidade de cabeça de casal da Herança Ilíquida e Impartilhada de sua mãe BB, apresentar à insolvência a referida herança, alegando:

1.º

Conforme resulta da certidão judicial do processo de Inventário Nº 204/23.... do Juizo Local Civel de Pombal – J2, emitida em 30-04-2025, com o código de acesso: ......, que se junta e dá por reproduzida, a requerida BB faleceu em 25 de Maio de 2017. ( Doc. Nº 1)

Deixou como seus herdeiros o requerente A., e FF, casada no regime da comunhão de adquiridos com GG, residente na Urbanização ... – ... – ... ...

Conforme resulta da relação de bens junta aqueles autos em 21-06-2023, o activo da Herança, é constituído pela importância em dinheiro de € 63.000,00 (Sessenta e três mil euros), em poder do Agente de Execução Solicitador CC, à ordem e penhorado, por dívida da falecida a DD, no processo Nº 1008/22...., do Juiz 2 do Tribunal de Execuções de Ansião, importância doada ao cabeça de casal requerente. (Doc. Nº 2 )

E ainda a mesma inventariada era titular de um direito de crédito da quantia de € 71.450,00 sobre a sociedade A... Ldª., também doado ao requerente (Doc. Nº 2 )

Mas tal crédito, inexiste ou não terá valor porquanto o património daquela sociedade se dissipou ou mostra-se em poder de terceiros, e a referida sociedade não tem actividade económica há mais de dez anos, sendo oficiosamente declarada dissolvida em 06/11/2024, e assim cancelada a sua matrícula, conforme certidão permanente que se junta e dá por reproduzida para os devidos e legais efeitos. (Doc. Nº 3 )

Assim, não tem aquela herança valores activos suficientes, que lhe permitam sequer repor o valor da doação invocada, como apesar da penhora daquela importância bancária, único bem activo da herança, não tem a herança valores suficientes para o pagamento da dívida ao referido DD, do montante de € 60.000,00, e legais acréscimos nomeadamente os juros.

Assim a referida sociedade encontra-se em situação de insolvência, sendo a mesma actual.

Existem encargos fiscais da herança que não podem ser assumidos, pois que é notória a impossibilidade da herança cumprir as obrigações a que se encontra adstrita.

Pois de verdade os bens móveis relacionados também nenhum valor económico têm.

Assim, não tem aquela herança valores activos suficientes, que lhe permitam sequer repor o valor da doação invocada, como apesar da penhora daquela importância bancária, único bem activo da herança, não tem a herança valores suficientes para o pagamento da dívida ao referido DD, do montante de € 60.000,00, e legais acréscimos nomeadamente os juros.

3. Na 1.ª instância determinou-se:

Notifique a requerente para, em 5 dias, juntar aos autos habilitação de herdeiros por óbito de BB ou certidão da nomeação de AA, como cabeça de casal, ocorrida no processo de inventário.

Notifique o requerente para, no mesmo prazo:

- juntar a lista dos bens da herança;

- a lista de credores, devendo esclarecer como é que o AA é credor da herança, na medida em que, de acordo com o alegado, o crédito que a falecida tinha sobre a sociedade A... Ldª foi-lhe doado, o que significa que actualmente o AA tem um crédito sobre a sociedade, mas não sobre a herança.

É o que resulta da sentença proferida no proc. 74/19.... que correu termos no Juízo Central Cível de Leiria- Juiz 4 e junta ao processo de execução nº 1233/24.... que corre seus termos no Juízo de Execução de Ansião- Juiz 2. Aliás, a execução é proposta pelo aqui cabeça de casal contra a sociedade A... Ldª para ressarcimento deste crédito.

4. No entretanto, foi junto ao processo o seguinte requerimento:

FF, casada, nif nº ...44, residente em Rua ..., ..., ... – ..., na qualidade de irmã do requerente da Insolvência e, portanto, filha também de BB, falecida no estado de viúva e residente que foi no lugar de ... – HH – ... ..., do concelho ...,

Tendo tido conhecimento por informação prestada em outros processos judiciais, que se encontram a correr termos, de que o seu irmão AA, requereu a insolvência da herança aberta por óbito da mãe de ambos, a referida BB, Vem expor e requerer a V.Exª o seguinte:

1 – O requerente, seu irmão, na petição de insolvência apresentada, falta de forma conscienciosa à verdade, com uma única intenção, ou seja, impedir que o tio de ambos DD, irmão do falecido pai – EE, possa ser pago do crédito que possui pela quantia que se encontra penhorada no processo nº 1008/22.... do Juízo de Execução Ansião – Juiz 2, no montante de 63.000,00€ e, arrestada que foi em 9/2/2015, no procedimento cautelar nº 302/15.... da Instância Central Cível de Leiria – Juiz 1.

2 – É que, o requerente perfeito conhecimento possui de que em consequência da morte de seu pai EE, a meação pertencente ao cônjuge sobrevivo – BB e o seu quinhão hereditário por morte do referido seu marido, foi objeto de venda no processo de execução instaurado pela Banco 1..., C.R.L, sob o nº 159/14.... do Tribunal Judicial de Ansião.

3 – Esta meação e quinhão hereditário fora adquirido através de venda judicial por II, pessoa bem conhecida do requerente.

4 – Em consequência da aquisição da meação e quinhão hereditário, por parte desta II, veio a correr termos o inventário nº 3457/16.... do Juízo Local Cível de Pombal – Juiz 2, no qual o requerente exerceu as funções de cabeça de casal.

5 – Neste processo de inventario procedeu-se à partilha de todos os bens que constituíam a herança aberta por óbito do pai – EE, nomeadamente bens móveis, imóveis e as quotas sociais da sociedade – A..., Ldª, quotas estas que à data constituam as verba nº 5 e 6 do referido inventário e que adquiridas foram pela dita interessada II porque adquirente foi da meação e quinhão hereditário da falecida BB, II, no referido proc. de Execução nº 159/14.....

6 – Com esta aquisição das quotas sociais, o eventual imobilizado que à sociedade pertencia, acompanhou as quotas sociais adquiridas pela referida – II e não constituía tal imobilizado bens a partilhar.

7 – No que diz respeito a eventuais bens que pudessem existir à data do óbito da referida BB, porque faziam parte quer da meação quer do quinhão hereditário de que a falecida mãe, BB era titular e objeto da venda, já se encontravam vendidos através do mencionado processo nº 159/14.... instaurado pela credora Banco 1..., CRL.

8 – Portanto se ocorreu eventual omissão de bens no inventário nº 3457/16...., o que somente por mero raciocino se admite, a meação e o respetivo o quinhão hereditário sobre tais bens, já havia sido adquirida pela referida II, porquanto não se podem autonomizar.

9 – Por conseguinte, salvo melhor opinião, entende a ora interessada e contrariamente ao alegado pelo requerente, que, a quantia arrestada e posteriormente penhorada, no valor de 63.000,00€, deverá ser excluída do inventário nº 204/23...., porquanto em consequência do dito arresto e consequente penhora, a falecida BB já dela não podia dispor e bem assim os seus herdeiros, ou seja, quer a ora requerida igualmente já dela não podiam nem podem dispor,

10 – Tanto mais que tal quantia se encontra por ordem do Tribunal em poder do Agente de Execução CC no processo nº 1008/22.... do Juízo de Execução de Ansião, para proceder à entrega ao credor – DD, ficar assegurada, a qual somente ainda não foi entregue, mercê dos vários recursos e reclamações que o requerente foi interpondo, mas de forma inglória, mercê da sua improcedência

11 – Quanto ao alegado crédito que o requerente diz possuir sobre a sociedade A..., Ldª, porque as respetivas quotas sociais, como atrás se referiu , foram adquiridas no inventário pela interessada II, e por conseguinte o respetivo imobilizado nenhuma relação possui com a herança aberta por óbito de BB, e por conseguinte, jamais o requerente se poderá pretender pagar com a quantia penhorada de 63.000,00€, e não 60.000,00€, como requerente refere no artº 6º da petição.

12 – Por conseguinte, atenta a ausência de qualquer passivo, nenhuma razão assistirá ao requerente para instaurar este processo de insolvência tanto mais que, o crédito de que diz ser titular no valor de 71.450,00€ é sobre a sociedade A..., Ldª e não sobre a Herança da BB, a qual, não se encontra impartilhada, como falsamente o requerente pretendeu transmitir ao Tribunal e, portanto, inexistem bens a partilhar.

13 – Também o requerente não fala a verdade quando refere no artº10º da sua petição que o crédito pertencente ao credor JJ é de 60.000,00€, quando perfeito conhecimento possui, porque judicialmente reconhecido é de 63.000,00€, esquecendo-se que são devidos juros mas da responsabilidade do requerente AA e da ora e aqui requerente.

14 – Portanto é totalmente falso o que o requerente alega na petição apresentada, pois o único credor é o DD e o pagamento deste crédito já se encontra garantido pela penhora já atrás referida quanto no montante de 63.000,00€, o qual se encontra à ordem do Agente de Execução CC, com escritório em ..., conforme o próprio requerente reconhece no artº 3º da sua petição.

15 – Por conseguinte, dúvidas não existem de que o requerente fez uso indevido deste expediente processual, unicamente para atrasar e entravar a entrega da dita quantia de 63.000,00€ ao credor aqui referido, e quando bem sabe que os vários recursos interpostos foram improcedentes e, portanto de forma indevida, pelo que deverá ser condenado como litigante de má fé, com as legais consequências.

Deverá, portanto, indeferir-se o requerido.

Requer a prestação de declarações por parte da ora requerente.

5. No seguimento do ordenado (Ponto 3) diz o Requerente/Apelante:

Na sequência da notificação que lhe foi feita, vem juntar aos autos:

1 – Certidão judicial do Proc. Inventário Nº 204/23.... do 2º Juízo Cível do Tribunal de Pombal nesta Comarca (Doc. Nº 1) , onde consta a nomeação do requerente como cabeça de casal, por despacho de 16/02/2023 – Refª. 102908568.

2 – Lista dos bens da Herança (Doc. Nº 2)

3 – Lista dos credores da Herança (Doc. Nº 3)

4 - Do crédito do cabeça de casal sobre a Herança

a ) – De verdade, o cabeça de casal conforme resulta da sentença do processo 74/19...., tem um crédito sobre a referida sociedade A..., constante do Proc. de Exec. Nº 1233/24...., por lhe ter sido doado pela falecida em 2 de Setembro de 2015, e resulta destes autos.

Porém,

b) – A falecida não doou apenas ao cabeça de casal aquele crédito, correspondente ao que pagou ao crédito Agrícola, em nome daquela sociedade, mas também o remanescente do valor da venda do seu quinhão hereditário na herança do falecido marido EE, que foi de € 150.000,00, e que não foi entregue até hoje nem à mesma falecida, nem ao donatário, e que é a quantia de hoje de € 63.000,000 (sessenta e três mil euros), penhorada no âmbito do processo de Exec. Nº 1008/2...., processo à espera de eventual fase de liquidação para pagamento da divida ao outro credor DD, e motivos pelos quais se requer o prosseguimento do processo de Insolvência.

c) – Tal resulta da petição inicial do referido processo Nº 74/19...., conforme 4º a 14º desta peça processual que se junta e do que consta precisamente também do alegado no artº15º e 22º da mesma peça, e dos documentos que aí estão anexos (Doc. Nº4)

d) – De verdade resulta que ao cabeça de casal foram doados os direitos decorrentes da venda do quinhão hereditário da Herança de EE de € 150.000,00, sendo o que resta o que está penhorado no processo 1008/2...., no montante de € 63.000,00 (Sessenta e três mil euros), valor pertencente ao referido cabeça de casal, e a que tem direito, e apesar da dívida existente a favor de DD (Doc. Nº 4 ).

6. Despacha, assim, a 1.ª instância:

“De acordo com o requerimento da requerente, a falecida BB doou ao cabeça de casal o remanescente do valor da venda da sua meação e quinhão hereditário na herança do falecido marido EE, correspondente ao valor que se encontra penhorado no processo de execução nº 1008/22.....

Ora, se o valor foi doado ao cabeça de casal não pertence à herança de BB, mas ao cabeça de casal e, por isso, não pode vir a ser apreendido no âmbito destes autos, nem o cabeça de casal é actualmente titular de qualquer crédito sobre a herança.

Mas mesmo que assim não se entendesse e se considerasse que o valor pertence à herança e o cabeça da casal era titular de um crédito sobre a herança, o certo é que o seu crédito, no âmbito do processo de insolvência, teria sempre a natureza de crédito subordinado, por ser pessoa especialmente relacionada (é administrador da herança e ser descendente do autor da sucessão – art. 49º, nº1, al. b) e 3 do CIRE) e, por isso, seria graduado depois dos restantes créditos sobre a insolvência, ou seja, depois do crédito do DD (art. 48º, al. a) e 49º, nº 1), al. a) e 3 do CIRE).

Deste modo, notifique a requerente para, em 5 dias, se pronunciar e informar se, em face do que foi referido, ainda mantém interesse no prosseguimento do presente processo.

7. AA, na qualidade de cabeça de casal da Herança Ilíquida e Impartilhada de, BB, na sequência da notificação que lhe foi feita, vem requerer:

(…)

B) – O prosseguimento dos autos de declaração de Insolvência da herança, porquanto:

1 – A importância doada ao requerente, não lhe foi efectivamete entregue, face ao arresto e penhora referidos no processo de Execução Nº 1008/22...., questão que poderá ter de ser discutida no âmbito dos presentes autos.

Se a posse de tal importância monetária de € 60.000,00 ( sessenta mil euros), deve continuar na herança, ou face ao contrato de doação ser entregue para os devidos efeitos ao donatário AA, independentemente de os herdeiros e aceitantes da herança se continuar vinculados ao pagamento na medida do que receberam da herança, do débito, constante daquela execução, e ao referido credor, é questão em que a declaração de insolvência da herança, produzirá também os necessários e legais efeitos.

2 – A qualificação da relação jurídica do referido AA, com a posse daquela mesma quantia, na sequência da declaração de insolvência, se manifesta na existência de um crédito, comum ou subordinado, será questão a nosso ver a decidir em sede de Reclamação de Créditos, ou mesmo da necessária revindicação, quando e só, tal importância se encontrar na posse da herança.

3 - Por outro lado, a Herança não tem bens activos suficientes para pagamento das suas dívidas, também em discussão no Inventário, cuja certidão já foi junta a estes autos.

Motivos pelos quais se impor o prosseguimento dos autos, com as legais consequências.

E.R.D

(…)

Na sequência da notificação que lhe foi feita, vem referir o seguinte:

1 – A herança cuja declaração de insolvência se requer, conforme resulta dos autos, foi aceite pelos seus herdeiros, o requerente cabeça de casal e a sua irmã FF, a benefício de Inventário.

2 - A referida sociedade encontra-se como também resulta dos autos, na situação de Insolvência, porquanto o valor do seu património, não suporta o valor das suas dívidas, mesmo a do invocado crédito de DD.

3 – A responsabilidade do pagamento do invocado crédito de DD, conforme sentença do Processo Nº 1092/15.... – Juízo Central Cível – J2 , de 28-10-2021, confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 5-04-2022, é da responsabilidade da herança da falecida, mas com a consequente “responsabilidade dos herdeiros deste, na medida do que receberam enquanto herdeiros de BB” (Texto de tal sentença)

4 – E ainda que tal medida não se mostre definida mesmo na referida Execução Nº 1008/22...., onde se converte, um arresto efectuado em vida da falecida, numa penhora já concretizada num tempo jurídico diferente, e de uma nova realidade jurídica que é o património autónomo aceite, da Herança Impartilhada da falecida BB, e execução, apesar de tudo, ainda não decidida, onde se continua a defender a não existência de notificação à falecida do referido arresto.

5 – Motivos pelos quais, o requerente entende que é na posse desta realidade jurídica –Herança – que devem estar todos os seus bens sob a Administração da Cabeça de Casal, ou no presente caso, a proceder o presente pedido,sob a Administração do Administrador Judicial, para que definitivamente sejam liquidados todos os deveres e direitos da referida Herança aceite.

6 – E o meio próprio, apesar do constante do aliás douto despacho que se impugna, e conforme jurisprudência do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto à luz do previsto no artº 88 do C.I.R.E, é o processo de Insolvência referido que suspende nos termos legais aquela invocada execução. (Proc. Nº 1008/22....) (Vide artº 13º da petição inicial)

7 – E conforme jurisprudência dos nossos tribunais entre outros Ac. Trib. Rel. Lisboa –Ac. de 28/01/2025 – Proc. Nº 19145/24.5T8LSB.L1-1, onde se sumariou que: “Constituindo a herança um património autónomo destinado a extinguir-se com a partilha, faz mais sentido fazer coincidir a sua situação de insolvência, com a mera superioridade do passivo sobre o activo “

E

“ V - No caso em apreço, tratando-se da ré de uma herança indivisa assume especial relevância o conceito de insolvência previsto disposto no n.º 2 do art.º 3º do CIRE que fica preenchido, com a manifesta superioridade do passivo em relação ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis, consagrando-se aqui o critério do balanço ou do ativo patrimonial. Ambos os critérios - de fluxo de caixa e o do balanço - são alternativos para as entidades previstas no n.º 2 do art.º 3º do CIRE.

VII - Os factos enunciados nas alíneas do n.º 1 do art.º 20º do CIRE são apenas "indício" ou presunção de insolvência e não de efetiva impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, presunção que pode ser ilidida face à prova da sua solvência.”

8 – Significa assim, que assiste ao requerente como cabeça de casal, apesar do invocado processo de execução, de fazer extinguir de vez todos os direitos e obrigações da Herança Indivisa, em conformidade com os diferentes títulos que a suportam, e o meio próprio, face à situação patrimonial da Herança é o presente processo de Insolvência.

9 – E a questão dos direitos e obrigações de terceiros, da mesma Herança, entre os quais hipotéticos direitos de crédito da requerente, poderão vir a ser dirimidas no lugar próprio, em sede de reclamação de créditos, ou de acções declarativas próprias, mesmo de reivindicação deduzidas no âmbito do presente processo.

10 – E conforme também Ac. Trib. Rel. Porto, Proc. Nº 255/24.5T8STS-C.P1, aí se decidiu:

III – Apesar de ser aceite pelos herdeiros, expressa ou tacitamente, a herança, que ainda não foi por eles partilhada, constitui uma universalidade de bens, um património autónomo, podendo ser declarada insolvente a pedido daqueles.

11 – Donde, apesar da presunção do tribunal, apesar de não se mostrar demonstrado, sequer se o Arresto referido nos autos se mostra tempestivamente efetuado, e notificado em vida à falecida, para se poder falar de um “ Arresto efectuado em data anterior à doação “ , o que que é certo é que estamos perante um legitimo exercício de direito de acção por parte do requerente do presente processo, pois perante a clara situação de insolvência da herança indivisa , impõe-se ao mesmo nos termos constitucionais - , consagrados no artº 20º da C.R.P, exercer tal direito legitimo no sentido de obter decisão judicial que aprecie a situação invocada, e com tal processo em nada o requerente ultrapassa o fim próprio do direito, no contexto em que ele deve ou pode ser exercido, e contexto que é legitimo, e visa extinguir in “ totum “ a Herança .

12 – De verdade, “ o exercício nos autos, não excede manifestamente os limites que cumpre observar “ em função dos interesses que legitimamente, atribuem poderes ao cabeça de casal, entre os quais, adentro dos seus poderes de Administração, legitimamente poder requerer o presente pedido de declaração de insolvência.

13 – A existência de um ou mais processos executivos nunca poderá ser impedimento, do exercício desse poder, de requerer a insolvência, até porque em nada o presente processo, fará diminuir os direitos desse processo executivo, e do respectivo crédito, independentemente da sua sujeição, a qualquer e necessária repartição ou graduação de crédito, atenta a natureza do mesmo.

14 – Além do que, conforme decisão constante no processo Nº 3311/21.8T8LRA.C1 da 2ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/02/2023;

“ O abuso do direito (cf. art. 334º do C.Civil) pode ser objeto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não está vedado ao Tribunal ainda que a sua invocação constitua questão nova, mas isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso do direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos.”

15 – Donde, alegar-se por parte do tribunal que “ o efeito útil pretendido pelo cabeça de casal, AA, com a declaração de insolvência da herança aberta por óbito da sua mãe, é impedir que o credor DD venha a receber, no âmbito do processo de execução que instaurou e acima referido, o valor que foi arrestado e posteriormente convertido em penhora para pagamento do crédito que tem, arresto esse efectuado em data anterior à doação do referido valor ao aqui cabeça de casal “ ,

Constitui manifestamente facto novo e não alegado, sequer nos autos, para além de se pretender invocar que os titulares de crédito em execução, têm sempre direito de cobrar os seus créditos nestes processos executivos , independentemente de um processo de insolvência do devedor que lhe seja posterior, o que a nosso ver viola expressamente o disposto no art.º 88 do C.I.R.E , e que com tal principio se mostrará sempre e em todos os casos, defensável, ao qual sempre se oporá a sua “ ratio legis “

Termos em que se requer o prosseguimento dos autos, com o deferimento da insolvência requerida, com todas as legais consequências.


*

Para a boa decisão, interessa considerar os seguintes factos:

1)- Por sentença proferida nos autos de Acção de Processo Comum n.º1092/15...., que correu termos pelo Juízo Central de Leiria, J2, datada de 29.10.2021 e confirmada pela Acórdão da Relação de Coimbra de 7.04.2022 e já com trânsito em julgado, foram os habilitados réus AA e FF condenados no pagamento ao autor, DD, o valor de 60.000,00€, acrescido de juros contados desde a citação e até integral pagamento.

Da sentença proferida consta:

Daqui decorre a legitimidade substantiva passiva de BB pelo pagamento da dívida ao autor com a consequente responsabilidade dos habilitados réus na medida do que receberam enquanto herdeiros de BB.

2)- A Ré BB foi citada na acção por carta enviada em 27.3.2015.

3)- A Acção descrita em 1) entrou em juízo em 26.03.2015, aí figurando como primitiva ré, BB que viria a falecer na pendência da acção, em 25.05.2017. AA e FF foram ali habilitados para prosseguirem na acção na qualidade de réus no lugar da falecida ré.

4 )- Previamente à instauração da acção descrita em 1), o DD intentou contra BB procedimento cautelar de arresto, entrado em juízo em 26.01.2015, que correu termos inicialmente sob o n.º302/15...., e posteriormente, em virtude da instauração da acção principal descrita em 1), foi apensado àquela e passou a correr termos.

5)- No âmbito do Procedimento Cautelar descrito em 4), por sentença proferida em 09 de Fevereiro de 2015, transitada em julgado, foi decidido:

6)- Em 10.02.2015, no âmbito do procedimento cautelar CC foi notificado por carta registada com aviso de recepção nos seguintes termos:

“Assunto: Arresto de créditos

Fica V.Exa. notificado, de que, para garantia e pagamento da quantia aqui requerida, fica arrestado à ordem deste tribunal e processo, o remanescente em dinheiro resultante do produto da venda do património da requerida: BB, estado civil: Viúvo, Endereço: ..., ..., ... ... no referido processo de execução n.º 159/14...., cuja venda foi efetuada em 15 de janeiro de 2015, na 2ª Sec. Execução - Instância Central de Pombal J1.

Fica ainda notificado, de que pode no prazo de 10 dias, fazer as declarações que entender quanto ao direito do requerido e ao modo de o tornar efetivo.

A falta de tal declaração será entendida como reconhecimento da obrigação, nos termos estabelecidos para a nomeação do crédito à penhora.

Logo que a dívida se vença, se não contestar, deverá(ão) ser obrigatoriamente depositado(s) na Banco 2... à ordem da Procedimento Cautelar (CPC2013), Processo nº 302/15...., do Leiria - Inst. Central - Secção Cível - J1 do Comarca de Leiria, devendo ser junto à providência o documento desse depósito.

7)- O agente de execução nomeado na Execução n.º159/14.... e referido em 6), informou no procedimento cautelar, em 16.02.2015, que em reconhecimento da obrigação de nomeação do crédito, que:

Encontra-se depositado na conta-cliente a quantia de 78.643,34€ conforme se poderá alcançar através da liquidação do julgado em anexo.

As partes foram notificadas da liquidação do julgado em 16.2.2025, aguarda-se o respetivo prazo de reclamação.

8) – No procedimento cautelar, em 26.02.2015, BB foi notificada nos seguintes termos:

“ Assunto: Notificação por carta registada com AR

Nos termos do disposto no art.º 366.º, nº 6.º do Código de Processo Civil, fica V. Ex.ª notificado para, querendo, e em alternativa:

· Recorrer, no prazo de 15 dias, nos termos gerais, do despacho que decretou a providência, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não deveria ter sido decretada. Caso a decisão inclua a inversão do contencioso, pode impugná-la no mesmo prazo;

· Deduzir oposição, no prazo de 10 dias, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução. Caso a decisão inclua a inversão do contencioso, pode impugná-la no mesmo prazo.

Com a oposição deve oferecer o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova.

A notificação considera-se efetuada no dia da assinatura do AR, não se suspendendo o prazo durante as férias judiciais.

Ao prazo, acresce uma dilação de: 0 dias.

No caso de pessoa singular, quando a assinatura do Aviso de Receção não tenha sido feita pelo próprio, acrescerá a dilação de 5 dias ( art.º s 228.º e 245.º do CPC).

A dilação aplicável, individualmente considerada ou o somatório delas, nunca pode ser superior a 10 dias (nº 3 do Art.º 366.º do CPC).

Terminando o prazo em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte.

Fica advertido de que é obrigatória a constituição de mandatário judicial.

Juntam-se, para o efeito, um duplicado da petição inicial, cópias dos documentos que se encontram nos autos e cópia do despacho que ordenou a providência”.

9)- Em 11.03.2015, BB deduziu oposição ao arresto.

10)- Em 28.08.2025, a BB veio requerer a redução do arresto.

11)- Por decisão de 1.09.2015, foi julgada improcedente a oposição e mantido o arresto decretado.

12) - Em 1.09.2025, a BB foi notificada electronicamente da decisão referida em 11).

13)- No dia 02 de Setembro de 2015, BB declarou, por documento particular autenticado, sob a epígrafe “Doação”, doar ao seu filho AA, além do mais, a quantia de 78.643,34 € que é o remanescente do produto da venda da sua meação e quinhão hereditário por óbito do seu marido EE e outras quantias a que tenha direito no processo executivo n.º159/14...., da Comarca de Leiria, Instância Central – 2.ª Secção de Execução – J1.

14) - Por despacho proferido em 16.09.2015 no âmbito do procedimento cautelar e na sequência de requerimento aí apresentado pela ré BB em 10.09.2015, foi decidido reduzir o arresto à quantia de 63.000,00 € nos termos e para os efeitos do artigo 735º, nº3 do CPC.

15) – DD intentou em, 6.06.2022, contra AA e FF acção executiva que corre seus termos com o nº 1008/22.... no Juízo de Execução de Ansião, a qual tem como título executivo a decisão referida em 1).

16)- Nos autos execução referidos em 15), o agente de execução lavrou auto de penhora datado de 03.07.2022, no qual consta na identificação dos bens penhorados um crédito com a seguinte descrição “Conversão em penhora da quantia de SESSENTA E TRÊS MIL EUROS, arrestada no âmbito do Procedimento Cautelar, a correr termos no Juízo Central Cível de Leiria - Juiz 1, sob o número 302/15....”.

17)- Em 12.09.2022, AA deduziu oposição à penhora.

18) – Por decisão de 20.02.2023, a oposição à penhora foi julgada improcedente.

19)- AA recorreu, mas por Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.09.2023 foi julgado improcedente o recurso.

20) – AA recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, mas o recurso não foi admitido.

21)- Por Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.04.2025 foram julgadas improcedentes as nulidades imputadas por AA ao Acórdão da Relação de Coimbra de 26.09.2023.

22) – AA, por requerimento de 30.04.2025, veio invocar a nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.09.2023, a qual por Acordão de 24.06.2025 foi julgada improcedente.

23)- Por requerimento de 10.07.2026 veio o AA pedir a reforma do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.06.2025.

24) - Da relação de bens junta a estes autos pela requerente, consta:

- a importância de € 63.000,00, em poder do Solicitador CC - ..., no âmbito do processo Nº 1008/22....;

- bens móveis;

25) – A requerente indica como credores da herança:

- DD, com um crédito no montante de € 60.000,00;

“- divida ao cabeça de casal da importância de € 78.643,34, quantia remanescente do produto da venda da meação e quinhão hereditário por óbito do marido falecido EE, valor sobrante do Proc. Nº 154/14.... do Tribunal de Execução de Ansião – J1 , e que apesar da doação efectuada em 2 de Setembro de 2015, através do contrato de doação, outorgado em documento particular autenticado, não foi entregue ao mesmo cabeça de casal, apesar da sua reclamação, face à penhora referida efectuada no processo mº 1008/2.... – J2”.


*

2.2– Da nulidade da sentença;

Neste particular, escreve a Apelante:

(…)

Já no requerimento apresentado nestes autos em 22/07/2025 (aqui dado por reproduzido), alegamos estarmos perante a evidência de uma presunção do julgador, determinado a fazer um pré-julgamento, resultante do aí afirmado de que:

“15 – Donde, alegar-se por parte do tribunal que “ o efeito útil pretendido pelo cabeça de casal, AA, com a declaração de insolvência da herança aberta por óbito da sua mãe, é impedir que o credor DD venha a receber, no âmbito do processo de execução que instaurou e acima referido, o valor que foi arrestado e posteriormente convertido em penhora para pagamento do crédito que tem, arresto esse efetuado em data anterior à doação do referido valor ao aqui cabeça de casal “ ,

Constitui manifestamente facto novo e não alegado, sequer nos autos, para além de se pretender invocar que os titulares de crédito em execução, têm sempre direito de cobrar os seus créditos nestes processos executivos , independentemente de um processo de insolvência do devedor que lhe seja posterior, o que a nosso ver viola expressamente o disposto no artº 88 do C.I.R.E , e que com tal principio se mostrará sempre e em todos os casos, defensável, ao qual sempre se oporá a sua “ratio legis”

De verdade, apesar de a Meritíssima Juiz a quo na sua, aliás, douta sentença, e respectivas motivações, alegar por duas vezes, não assentar a sua decisão na certeza do direito, ao invocar “E, ressalvada sempre melhor opinião,…” e “Ou seja, salvo o devido respeito por opinião diversa,…” Ignorando claramente o disposto nos artigos 51º e 46º, nº 2 do CIRE, 601º do CC e 735º do CPC e os princípios dos artigos 3º, 20º e 27º do CIRE, que prescreve a possibilidade do indeferimento liminar apenas até ao 3º dia útil subsequente à distribuição,

Construindo assim decisão extemporânea (para além do 3º dia útil), sem cumprimento dos necessários procedimentos subsequentes, constituindo assim manifesta nulidade aqui invocada nos termos legais,

Porquanto a massa insolvente, e a sua composição, se define após o cumprimento do disposto no art. 128º do CIRE (Reclamação de créditos), havendo assim possibilidade de existirem outras dívidas, tais quais como dívidas fiscais e à Segurança Social (A falecida foi gerente comercial de uma sociedade comercial dissolvida oficiosamente),

O tribunal, servindo-se deste facto novo – ou presunção – não alegado, produziu sentença, - construindo um privilégio para o declarado credor DD (titular apenas de um crédito comum e nada mais), contra outro hipotético credor, abdicando de acionar a execução universal, e reduzindo a sentença ao privilégio decorrente do titular do crédito único, resultante de uma penhora (Processo Nº 1008/22....), como se a execução singular fosse a única via, atentando contra o exercício do direito legítimo (Aliás já em audiência, no Inventário Judicial Proc. Nº 204/23...., Juízo Local Cível de Pombal - Juiz 2, como consta dos autos) da requerente, expresso nos artigos 3º, nº1 e 3º, e 20º do CIRE, violando expressamente o disposto nos artigos 3º, 88º, nº 1 e 793º do CPC), pois que, contra o privilégio inexistente do credor reconhecido  (independentemente de existirem outros), a Meritíssima Juiz viola assim expressamente o disposto daquela norma que prescreve:

“Qualquer credor pode obter a suspensão da execução, a fim de impedir os pagamentos, mostrando que foi requerida a recuperação de empresa ou a insolvência do executado.”

Donde como já alegado, o, aliás, douto despacho-sentença, viola, para além dos normativos invocados, o disposto no art. 20º da CRP, impedindo o acesso ao direito e aos tribunais, para que a A. possa defender os seus interesses legalmente protegidos, e ainda o disposto no art. 1º do CIRE, impedindo sem fundamento o prosseguimento de um processo de execução universal (Também prescrito no já referido art. 793º do CPC), e ainda assim, violando, também, o disposto no art. 2º a 7º do CPC.

É assim manifesto, que a presente decisão, para além de estar ferida de inconstitucionalidade, é nula, nos precisos termos do disposto no art. 195º do CPC, até por manifesta inobservância do disposto no artigo 27º do CIRE, quanto aos requisitos e prazo de indeferimento liminar, e como tal deve ser declarada, com as legais consequências, nomeadamente a do prosseguimento dos autos, em conformidade com o disposto no art. 615º, alínea b) e c) do CPC.

De verdade, a decisão tomada contra o prescrito no art. 27º do CIRE viola claramente o exame e a decisão a causa.

(…)

Avaliando.

As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no artigo 615.º do Código do Processo Civil – que será o diploma a citar sem menção de origem. Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença – tratando-se de um despacho de indeferimento liminar da petição/requerimento inicial e não de uma sentença - ou saneador sentença -, não é aplicável, quanto à fundamentação de facto, o disposto no art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, sendo absolutamente pacífico que a exigência legal de fundamentação se realiza com a menção das razões que justificam o indeferimento.

As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos - por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade -, não se confundindo com erros de julgamento - error in judicando -, que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má percepção da realidade factual - error facti - e/ou na aplicação do direito - error júris -, de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação.

A norma do artigo 615.º, n.º 1, determina que a sentença é nula, nomeadamente, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão - al. b) -; os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível – al. c) -; o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento – al. d);

 A respeito da obscuridade e ambiguidade da sentença, dizia o Professor Alberto dos Reis - Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, pág. 151-, que a “(…) sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”, explicitando que “(…) num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”, mencionando ser “(…) evidente que em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade” por “(…) se a determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.

Ora, é obscuro o que não é claro, aquilo que não se entende. E é ambíguo o que se preste a interpretações diferentes, sendo que a lógica argumentativa da decisão da 1.ª instância pode estar errada, mas não é contraditória entre si. Não é qualquer obscuridade ou ambiguidade que é sancionada com a nulidade da sentença pela alínea c) do nº 1 do artigo 615º, mas apenas aquela que faça com que a decisão seja ininteligível. A ambiguidade ou obscuridade que possam ocorrer na sentença só integrarão a nulidade decisória prevista neste normativo se algum desses vícios tornarem a decisão incompreensível, por inacessível ao intelecto, impedindo a compreensão da decisão judicial por fundadas dúvidas ou incertezas.

Por outro lado, ao juiz é proibido que se ocupe de questões que as partes não tenham suscitado, a menos que a lei lhe permita ou lhe imponha o conhecimento oficioso - art.º 608.º, n.º 2 -, que é o caso do instituto do abuso do direito, e para cujo conhecimento se avisou antecipadamente a ora Apelante - por despacho de 16.07.2025 referiu-se que se afigurava que o efeito útil pretendido pelo cabeça de casal, AA, com a declaração de insolvência da herança aberta por óbito da sua mãe é impedir que o credor DD venha a receber, no âmbito do processo de execução que instaurou, o valor que foi arrestado e posteriormente convertido em penhora para pagamento do crédito que tem, arresto esse efectuado em data anterior à doação do valor ao aqui cabeça de casal. A requerente foi então notificada para se pronunciar sobre a eventual excepção de abuso de direito.

Mais, a interpretação/solução jurídica pertence ao julgador, que não está amarrado ao entendimento das partes, sendo que a conclusão da 1.ª instância - o efeito útil pretendido pelo cabeça de casal, AA, com a declaração de insolvência da herança aberta por óbito da sua mãe, é impedir que o credor DD venha a receber, no âmbito do processo de execução que instaurou e acima referido, o valor que foi arrestado e posteriormente convertido em penhora para pagamento do crédito que tem, arresto esse efetuado em data anterior à doação do referido valor ao aqui cabeça de casal – não constitui facto, mas interpretação jurídica dos factos esmiuçados nos autos e que não necessitava de alegação, atenta a possibilidade do conhecimento oficioso da matéria pelo juiz nesta fase preliminar dos autos - exigindo apenas o contraditório nos termos da norma do n.º 3 do artigo 3.º - , não constituindo, também e por isso, qualquer afronta ao disposto nos artigos 51º e 46º, nº 2 do CIRE, 601.º do Código Civil e 735.º do CPC e os princípios dos artigos 3º, 20º e 27º do CIRE, que prescreve a possibilidade do indeferimento liminar apenas até ao 3º dia útil subsequente à distribuição – o (aparente) atraso processual apenas pode constituir procedimento administrativo/disciplinar -; até porque o tribunal ,antes de decidir a final, despachou no sentido do aperfeiçoamento do requerimento inicial e auscultou a parte na questão da existência do abuso de direito na actuação processual desta – dando cumprimento às normas dos artigos 27.º n. 1 al. b) e 28.º in fine

Nas palavras da julgadora da 1.ª instância- que pelo acerto acompanhamos:

O vício da alínea c) do nº1 do art.º. 615º do CPC só ocorre quando os fundamentos de facto e de direito invocados na decisão conduzem de acordo com um raciocínio lógico a resultado oposto ao que foi decidido, ou seja, quando a fundamentação apresentada justifica uma decisão precisamente oposta à tomada.

Ora, em nosso entender, e independentemente do seu mérito, não existe qualquer contradição entre a decisão proferida e os fundamentos que a sustentam. A recorrente diz que a decisão é ambígua. Mas não esclarece onde consta a ambiguidade. E, na nossa opinião, ela não existe. A decisão, ressalvada sempre melhor opinião, não assenta em qualquer presunção, mas nos elementos constantes dos autos e referidos na decisão que permitem, a nosso ver, concluir nesse sentido. Conclusão que é reforçada pelo que é alegado pela recorrente nas conclusões 7º, 10º e 11º do recurso.

E, a ser assim, entendemos que não se verifica a nulidade prevista na al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC. O vicio do art. 615º, nº 1, al. d) deve ser articulado com o nº 2 no artº 608º do CPC, onde se dispõe que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo não se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.” No caso, a petição inicial foi indeferida liminarmente e, por isso, não houve conhecimento do mérito da causa. Por outro lado, tendo-se entendido que o exercício do direito de acção da requerente era abusivo, verificando-se, assim, a excepção de abuso de direito, o conhecimento desta prejudica necessariamente o conhecimento do pedido deduzido pela requerente, bem assim, as restantes questões por ela suscitadas. Não se verifica, assim, a nulidade do art. 615º, nº 1, al. d) do CPC.

Nesta conformidade, e relativamente às nulidades invocadas, decido manter a decisão recorrida.

Improcede, pois, neste particular a Apelação.


*

2.2-Do indeferimento liminar

Se é verdade que a protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie a pretensão formulada em juízo, e que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção, tal busca da Justiça só ocorrerá, se a pretensão for regularmente deduzida em juízo, a lei não determine o contrário ou não existam impedimentos processuais.

Contrariamente ao que sucedeu com a revisão do Código de Processo Civil - em que despareceu no processo declarativo o despacho liminar -, no processo de insolvência, manteve-se a necessidade de apreciação liminar para todos os casos, seja o processo instaurado por apresentação do devedor, seja por requerimento de outro legitimado, prevendo, assim, atentos os relevantes interesses envolvidos, a efectuação de um controle judicial prévio, com vista à prossecução do desiderato de assegurar que não sejam decretadas insolvência em situações de manifesta improcedência ou em que se não encontrem preenchidos os necessários pressupostos processuais, para o efeito.

Ora, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.

Assim, no que respeita à definição da situação de insolvência, esta centra-se na verificação da impossibilidade do devedor cumprir as suas obrigações vencidas, equiparando-se à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação do devedor à insolvência – nº 4, do referido art.º 3º.

É, em bom rigor, inerente à ideia do cumprimento a realização atempada das obrigações a cumprir, visto que só dessa forma se satisfaz, na plenitude, o interesse do credor e se concretiza integralmente o plano vinculativo a que o devedor está adstrito.

A esse propósito, estabelece o artigo 20.º, n.º 1, do CIRE, o seguinte:

A declaração de insolvência de um devedor poder ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados.

No que especificamente diz respeito aos credores, qualquer um, ainda que condicional e independentemente da natureza do seu crédito, pode pedir a insolvência do respectivo devedor – o que inclui, naturalmente, também aqueles sujeitos que são detentores de créditos litigiosos (artigo 579.º, n.º 3 do Código Civil), seja em acção judicial prévia, seja no próprio processo de insolvência, resultando o carácter controverso desses créditos da petição inicial ou da oposição do requerido/ sendo, pois, dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não – necessariamente – quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado. É que a questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da legitimidade “ad causam” para deduzir o pedido de insolvência, a qual apenas contende com a verificação de um pressuposto processual positivo, consubstanciador, em caso de inverificação, de correspondente excepção dilatória, não podendo, pois, aquele ser privado da subsequente possibilidade processual de justificar e provar a real existência do seu invocado crédito.

Ora, depois de determinar certos esclarecimentos à Requerente – representada pelo cabeça de casal e seu assumido credor -  a 1.ª instância entendeu indeferir in limine o requerimento, escrevendo:

(…)

Ou seja, salvo o devido respeito por opinião diversa, entendemos que não há dúvidas que os presentes autos visam apenas satisfazer um interesse do cabeça de casal, o de impedir que o valor penhorado nos autos de execução nº 1008/22.... seja entregue ao exequente para pagamento do crédito que este tem, pretendendo que esse valor venha a ser entregue ao cabeça de casal, por lhe ter sido doado, perdendo o credor a possibilidade de ser ressarcido do seu crédito por aquele valor.

Se assim não fosse, que interesse tinha o cabeça de casal na insolvência da herança? Não se vislumbra qualquer interesse. A herança só tem um credor que é o DD e apenas tem como activo o valor que se encontra penhorado por este credor na execução.

A finalidade do processo de insolvência não é, ao contrário do que a requerente refere, definir se os €60.000,00 penhorados no processo de execução pertencem à herança ou ao cabeça de casal. Para esse efeito, dispõe o cabeça de casal de outros meios para o efeito.

Mas ainda que assim não se entendesse, não há qualquer fundamento para o recurso ao processo de insolvência. A razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade, não tendo nenhum credor quaisquer outros privilégios ou garantias, que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência, e nos precisos termos em que este os reconhece.

Ora, no caso em apreço, e independentemente do já referido, temos apenas um credor. A requerente não indica qualquer outro credor. O cabeça de casal não é titular de qualquer crédito sobre a herança, não sendo, por isso, credor, como já se referiu.

Acresce que, considerando o objectivo do processo de insolvência - processo de execução universal e concursal que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores, cfr. art. 1º do CIRE -, pressupõe no mínimo a existência de mais de um credor pois caso contrário, existindo ou sendo invocado apenas um, os interesses patrimoniais deste apenas justificam o recurso à execução singular.

Na verdade, na ausência de pluralidade de credores, o processo de insolvência não tem como escopo substituir a liquidação/pagamento/cobrança coerciva de dívidas objecto de processo executivo singular já em curso, admitindo que o objectivo da requerente com este processo era efectivamente apenas a apreensão do valor e o pagamento ao credor, o que, como já referimos, entendemos que não é o caso.

Repare-se que no caso está em causa o pedido de declaração de insolvência de uma herança, não estando, por isso, em causa sequer a defesa do interesse público na protecção da economia referido pela doutrina e jurisprudência para a admissibilidade da insolvência com um só credor.

No caso em apreço, não se vislumbra qualquer fundamento/ratio legal para desencadear um processo tendencialmente de execução universal – que acarreta encargos próprios e inevitáveis - quando o resultado que a requerente eventualmente pretende (admitindo que não existe qualquer outro interesse para a declaração de insolvência, nomeadamente, o já referido) não diverge do resultado que seria alcançado (e já em curso) em sede da execução singular já pendente, na estrita medida em que num e outro apenas há a considerar o passivo constituído pelo crédito do credor DD sobre a requerente e estando o seu pagamento assegurado no âmbito da execução com a penhora.

(…)

Embora percebendo os argumentos da 1.ª instância, entendemos, salvo o devido respeito, que não existem fundamentos, neste particular, para o indeferimento liminar. Se por uma lado, a apresentação à insolvência por parte do devedor – no caso a herança ilíquida e indivisa por morte  de BB/ enquanto a herança se mantiver no estado de indivisão, porque nenhum dos herdeiros tem ainda direitos sobre os bens certos e determinados, todos os bens hereditários respondem colectivamente - implica a declaração imediata da situação de insolvência, sem que haja qualquer discussão sobre a causa e sem que haja lugar à audição de quem quer que seja - cfr. o art.28º, do CIRE - torna compreensível a preocupação da lei em que o tribunal se certifique de que não ocorrem vícios insupríveis, nem faltam requisitos legais, para evitar que seja declarada a insolvência e prossigam processos em situações totalmente anómalas - daí que o CIRE tenha mantido a apreciação liminar do requerimento inicial por parte do tribunal, ao contrário do que é hoje a solução geral do processo civil, tendo em vista assegurar que não são declaradas insolvências em casos de manifesta improcedência ou sem que estejam reunidos pressupostos processuais indispensáveis.

A imputação do reconhecimento da situação de insolvência ao devedor apresentante ínsita no artigo 28.º, do CIRE, não conduz/não pode conduzir à imediata prolação da sentença declaratória, uma vez que caberá articular este preceito com o anterior – o artigo 27.º -, de onde decorre a necessidade de uma apreciação liminar quer o processo seja instaurado por apresentação do devedor, quer por requerimento de outro legitimado - vistas as consequências e o regime da insolvência, compreende-se a preocupação da lei em que o tribunal se certifique de que não ocorrem vícios insupríveis nem faltem, de forma manifesta, requisitos legais, para evitar que seja declarada a insolvência e prossigam processos em situações anómalas- Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda em anotação ao artigo 27.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa 2009, pág. 161.

Como é sabido, e como sublinha Luís Manuel Teles de Menezes Leitão - in Direito da Insolvência 2017, 7.ª Edição, Almedina, pág. 87 -, mesmo após a aceitação da herança por qualquer herdeiro, mantém-se a possibilidade de declarar a sua insolvência, dado que esta constitui um património autónomo sujeito a administração do cabeça-de-casal até à sua liquidação e partilha - art.º 2079.º Código Civil - e os patrimónios autónomos estão genericamente sujeitos à insolvência pelas dívidas da herança, atenta a limitação da sua responsabilidade às forças da herança - a razão de ser do processo de insolvência é a de fazer com que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade…, não tendo nenhum credor quaisquer outros privilégios ou garantias, que não aqueles que sejam reconhecidos pelo Direito da Insolvência, e nos precisos termos em que este os reconhece”, sendo que, por força da parte final do art.º 10.º, n.º 1, al. a) do CIRE, a herança manter-se-á imperativamente indivisa até ao encerramento do processo.

Ora, como escreve a Apelante:

O que o cabeça de casal pretender opor-se é que tal entrega se faça sem se se efetive a total e integral liquidação da A. requerente, quanto ao seu ativo e passivo, exercendo assim um direito legítimo previsto no art. 3º, 19º, 20º e 128º do CIRE, contrariamente ao entendido pela Meritíssima Juiz.

Porque o entendido, contante da mesma sentença de que:

“O cabeça de casal, ao contrário do que alega, não é credor da herança. A BB doou-lhe no dia 2.09.2015, por documento particular autenticado, o valor que atualmente se encontra penhorado no processo de execução nº 1008/22..... Ora, com a doação, efetuada por documento escrito, houve a transferência da propriedade do valor para o cabeça de casal, apesar de o valor nunca lhe ter sido entregue (art. 947º, nº 2 do cc). E existindo a transferência de propriedade, o cabeça de casal não tem qualquer crédito sobre a herança”

Não corresponde efetivamente à verdade, nem ainda ao decidido ou definitivamente assente.

(…)

Se o arresto é válido, e a doação também, esta constituirá sempre a doação de um crédito a favor do cabeça de casal, correspondente ao remanescente do valor de venda do quinhão hereditário da herança do falecido marido do montante de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) e que hoje é precisamente o montante penhorado nos autos de Execução, referido nos autos.

No momento da doação estando aquele valor na posse de terceiro (o Agente de Execução), referido nos autos, não existiu verdadeira tradição da coisa, não se transferiu a propriedade, mas sim constituiu-se um direito de crédito do referido AA, sobre aquela importância, crédito este que tem a mesma natureza do crédito de DD, pois ambos são de natureza comum, impondo-se assim o seu pagamento no processo de execução universal que é a Insolvência.

E assim será sempre este crédito, também uma dívida da herança em partilha, agora insolvente.

É que a herança, como resulta dos autos, foi já aceite a benefício de Inventário, e da penhora do processo executivo, nenhum privilégio existe para o credor DD, sendo o lugar próprio para decisão do seu direito de crédito, precisamente o presente processo de Insolvência.

Com efeito, nada poderá opor-se à requerida suspensão da execução, pois que apesar do referido no invocado art. 822º, nº 2 do CC, ela é legítima e legal e constitui o exercício de um direito legítimo dos credores da executada previsto e definido no art. 793º do CPC e art. 88º do CIRE, efeitos que agora a nosso ver, ilegalmente através da figura do abuso de direito se pretende afastar.

É que contrariamente ao que refere a Meritíssima Juíza, com os presentes autos, não se pretende satisfazer os interesses do Cabeça de Casal, mas tão e só os interesses da Herança Impartilhada da falecida BB, impondo-se a sua liquidação integral e definitiva, mesmo quanto ao efeito da doação efetuada em vida pela falecida, e precisamente nos termos do disposto nos arts. 1º e 3º, nº 2 do CIRE, quando expressamente se refere a situações de “patrimónios autónomos” como será o caso da Herança Insolvente.

É extemporâneo, fazer-se o julgamento no pressuposto que não se sabe, qual o de entender- se existirá apenas um só credor, pois em sede de reclamação de créditos poderão aparecer outros, entre os quais o Estado Português, não estando demonstrado, contrariamente ao constante na aliás douta sentença, que o passivo seja apenas constituído pelo crédito de DD.

Assim,

Contrariamente ao consignado nos autos, a requerente tem todo o interesse na prossecução do presente processo, nos precisos termos dos arts. 1º e 3º, nº 2 do CIRE, devendo assim os mesmos prosseguirem, com as legais consequências, nomeadamente a de declaração da sua insolvência.

Mas, a 1.ª instância, entendeu ainda que (…) como já se referiu e resulta para nós evidente dos autos, o objectivo dos presentes autos não é efectivamente a apreensão do valor e o pagamento ao credor, mas a apreensão no processo de insolvência do valor, para a sua posterior reivindicação pelo cabeça de casal com a consequente inviabilização de qualquer pagamento ao credor pelo referido valor, quando sabemos que o credor obteve o arresto do valor já no ano de 2015, em data anterior à doação efectuada pela falecida BB ao cabeça de casal.

Deste modo, não há que reconhecer à requerente interesse em agir no prosseguimento do presente processo, pois a prossecução de tal interesse excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, o fim económico ou social do direito que lhe assiste, o que se traduz na verificação de abuso do direito, proibido pelo art. 334º do Código Civil.

(…)

Mas também no plano puramente técnico, a matéria do abuso pode surgir. Assim sucederá sempre que as atuações puramente processuais defrontem, nos parâmetros apontados, o princípio da boa-fé.».

Importa também considerar, como bem salienta MARTA ALEXANDRA FRIAS BORGES, in Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-fé, Coimbra, 2014, acessível no seguinte sítio da internet:https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28438/1/A lgumas%20reflexoes%20em%20materia%20de%20litigancia %20de%20ma-fe.pdf, págs. 31-32, o seguinte: “Ao aludirmos ao abuso macroscópico do processo, ocorre-nos de imediato o abuso do direito de ação, isto é, aqueles casos em que o sujeito propõe a ação funcionalizando-a a interesses ou escopos distintos daqueles que justificaram a concessão do direito. Como casos mais flagrantes podemos destacar aqueles em que o autor intenta a ação com o único propósito de “perturbar” a contraparte (lesando-lhe o crédito ou o bom nome e causando-lhe danos não patrimoniais), prejudicar terceiros mediante a simulação da existência de um litígio, ou ainda defraudar a lei para a alcançar de um objetivo ilegal (art. 612º).

O facto de se sancionar o abuso de direito de ação não significa, porém, a denegação do direito de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrado, apenas se procurando garantir que este direito, conferido à coletividade para a defesa dos seus direitos e interesses, não é desviado para a prossecução de fins mesquinhos ou artificiosos. Até porque o direito de ação se apresenta também como um direito de discricionariedade relativa que deve, por isso, ser orientado à pacificação social e à justa resolução do litígio.»

No caso dos autos, em face do que vai dito, importa concluir ser abusivo o exercício do direito de acção invocado pela requerente por contrariar a boa fé e o fim económico e social do direito e, consequentemente, determinar o indeferimento liminar da presente acção”.

Ora, salvaguardando o devido respeito pela decisora da 1.ª instância, entendemos que não resulta dos autos – pelo menos nesta fase liminar – que o requerente, como representante (na qualidade de cabeça de casal) da Herança Ilíquida e Impartilhada de sua mãe BB, e como credor comum - a doação de um crédito a favor do cabeça de casal, correspondente ao remanescente do valor de venda do quinhão hereditário da herança do falecido marido do montante de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros - ao apresentar à insolvência a referida herança abusou desse direito.

Senão vejamos.

A lei exige que as excepções dilatórias insupríveis de que se deva conhecer oficiosamente ocorram de forma evidente – o que, neste momento é claro, manifesto, provado…; não o sendo, teremos de entender que será prematuro, o conhecimento dessas excepções no despacho de indeferimento, quando a decisão apenas assenta numa das possíveis soluções da questão de direito – tal como o conhecimento do mérito no despacho saneador, existindo, na doutrina e na jurisprudência, soluções diferentes, no que respeita à questão em apreço, deve ser dada às partes a possibilidade de as discutirem e bem assim reunir no processo os necessários elementos para que possa ser acolhida uma ou outra das soluções plausíveis de direito/ o conhecimento pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito.

Como é sabido, a Constituição Portuguesa – CRP-está impregnada por uma ideia de justiça, mais precisamente da prevalência da justiça substantiva, o que não afasta uma ideia de justiça processual - artigos 2.º, 13.º -, como decorre expressamente do seu artigo 20.º, n.º 4, ao consagrar o direito fundamental a um processo justo. Este compreende duas vertentes essenciais, que são o direito a um processo equitativo e a obtenção de uma decisão em prazo razoável, mas que se desdobra em outras dimensões, sendo uma delas o direito de acesso à justiça -  A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar/A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação( artigo 3.º do CPC.

Mas essa garantia de acesso aos tribunais está desde logo conformada pelo princípio da boa-fé processual, uma vez que o Código do Processo Civil, através do seu artigo 8.º, consagra que as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior - a responsabilidade por má-fé, consagrada no artigo 542.º e o instituto do uso anormal do processo, preceituado no artigo 612.º (Quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelas partes).

Mas cremos que a boa-fé processual não se fica por estas duas vias - litigância de má-fé; uso anormal do processo -, porquanto seria extremamente redutora, já que aquelas centram-se na correspondente intencionalidade do demandante, quando a boa-fé tanto pode ter uma dimensão subjetiva, como uma dimensão objetiva. E convém recordar que o abuso de direito previsto no artigo 334.º do Código Civil veio consagrar a formulação objetiva da boa-fé - a boa-fé processual, na sua dimensão objectiva, corresponde a um padrão de comportamento procedimental, o qual desdobra-se, entre outros, através da lealdade, fidelidade, confiança, cooperação e informação/ A boa-fé processual abrange todos os processos e em qualquer das suas fases (cautelar, declarativo, executivo), assim como todas as instâncias (1.ª instância, recurso).

A jurisprudência tem vindo, de resto, a aceitar o abuso de direito processual, como ficou registado no Acórdão do STJ de 4.11.2008 (Cons. Fonseca Ramos, www.dgsi.pt) ao considerar que “O princípio da boa-fé não é exclusivo do direito substantivo, também pode ser violado numa perspectiva de actuação processual, mormente pelo recurso a juízo através de acções ou procedimentos cautelares abusivos”. Mais recentemente, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.10.2018 (Des. Fernanda Almeida, www.dgsi.pt) posicionou-se no sentido de que:

 “O abuso de direito no campo processual, numa perspetiva macroscópica, pode aferir-se tendo em conta, designadamente, os seguintes índices: - o exercício gratuito do direito com o único e manifesto propósito de negar interesses dos outros, revelando-se, em contrapartida uma falta de interesse objetivo para o exercente (ex. a vingança e a pura finalidade de prejudicar terceiros);- a afirmação de interesses próprios mas em que se patenteia uma lesão ponderosa (mas de todo escusada) de interesse alheio (ainda que não dolosa); - o exercício do direito desviado do interesse que lhe é imanente e que justificou a sua atribuição, sendo abusiva qualquer situação subjetiva processual que se desvie manifestamente desse interesse;- a ação por má vontade ou para pressionar o lesado (ex., a ação sem fundamento relativa a um imóvel e registo da mesma, com isso podendo impedir a comercialização do imóvel, causando danos em cadeia); - o pedido manifestamente vexatório ou desprovido de qualquer propósito real.”

Nesta conformidade, o abuso de direito processual corresponde essencialmente ao exercício impróprio, no plano funcional, do direito à acção, distorcendo o direito fundamental a um processo justo e equitativo, na dimensão de garantia de acesso aos tribunais, mediante uma tutela judicial efectiva, o qual deve ser aferido a partir da noção de boa-fé processual objetiva. Verifica-se a violação da boa-fé processual quando ocorre o exercício ilegítimo do direito de acção, em virtude do seu titular ao demandar outra pessoa e atenta a realidade que lhe está subjacente, acaba por exceder manifestamente os limites impostos por um standard de integridade e lealdade procedimental.

Tal ocorre, entre outras situações, quando aquele que tem legitimidade processual faz um uso da acção para um fim diverso daquele para o qual estava legalmente reconhecido, acabando por promover uma lide ilegítima em virtude da mesma ser contrária ao direito substantivo que lhe está subjacente.

Ora, como é sabido, a pendência dum processo de insolvência interfere com o desenvolvimento dos pleitos judiciais em que o devedor/insolvente é réu, interferências que se manifestam desde a entrada em juízo do pedido de insolvência até ao encerramento do respectivo processo e que afectam tanto as execuções como as acções, sendo que durante a pendência do processo de insolvência, os créditos sobre o insolvente não podem ser exercidos senão nos termos do CIRE e todo o activo tem que ser reunido no âmbito do processo de insolvência, não podendo um credor, durante a pendência do processo de insolvência, intentar procedimentos que visem fazer-se pagar só ele e em exclusivo por este ou aquele bem que não foi apreendido para o activo.

Ora, tais objectivos perseguidos pelo CIRE e vertidos nestes autos -  com a declaração de insolvência da herança pretende o cabeça de casal, como legal representante da herança não partilhada, que o valor que se encontra penhorado nos autos de execução seja apreendido no âmbito destes autos, como resulta linearmente do requerimento inicial; a suspensão da execução e a entrega do valor ao Administrador de Insolvência; o credor, DD, perde a garantia que tem, ou seja, o arresto e a subsequente conversão do arresto em penhora com efeitos à data da efectivação do arresto (nº 2 do art. 822º do Código Civil) e, consequentemente, deixa a doação do valor efectuado pela BB ao cabeça de casal, em data posterior ao arresto, de ser ineficaz em relação ao credor – não nos permitem de uma forma liminar, como o fez a 1.ª instância, indeferir o pedido de insolvência aconchegando-se no abuso de direito, nomeadamente com o fundamento de que  a intenção do cabeça de casal é reivindicar o valor alegando que o mesmo lhe foi doado e que, na verdade, com os presentes autos o cabeça de casal pretende obter o que não conseguiu obter nos autos de execução e de oposição à execução, ou seja, a entrega dos €63.000,00 penhorados naqueles autos a DD.”

Como escreve a Apelante:

Analisando a fundamentação de direito, entende a Meritíssima Juiz que lhe parece que o presente processo pretende impedir que o credor DD venha a receber, no âmbito do processo de execução que instaurou contra a Herança requerente (seus herdeiros) o valor de uma dívida, inicialmente declarada de €60.000,00 (sessenta mil euros), (efeito útil) – parecendo que esta presunção de utilidade, de privilégio desse credor, lhe adviesse do Facto de este ter instaurando tal processo de Execução.

Ora, de verdade, tal privilégio não existe, pois que a natureza daquele crédito, apesar do aresto e penhora falada nos autos, é tão só um crédito de natureza comum.

De verdade, tal proteção mantém-se afastada dispositivo constante do art. 793º do CPC e 1º do CIRE, ao criar o quadro do processo de Insolvência com natureza universal.

E não está demonstrado, com ampla certeza de que a herança não tenha de cumprir as suas obrigações, entre outras a do referido AA, a título pessoal como melhor defenderemos, e outras desconhecidas que podem existir, entre as quais para com o ESTADO, por dívidas fiscais e à Segurança Social da falecida, que foi gerente comercial.

É que,

Contrariamente ao defendido pela Meritíssima Juiz:

“Na verdade, com os presentes autos o cabeça de casal pretende obter o que não conseguiu obter nos autos de execução e de oposição à execução, ou seja, a entrega dos €63.000,00 penhorados naqueles autos a DD.”

Não.

III – DO DIREITO

De verdade, apesar da abstração em relação ao caso concreto em julgamento nos autos da jurisprudência invocada pelo tribunal, por constituir doutrina em nada enquadrável no caso concreto destes autos, o que é certo é que, conforme já alegamos nos mesmos, antes se nos afigura existir jurisprudência aqui enquadrável, que impõe o afastamento da aplicação do abuso de direito, a decisão constante do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, 2ª Secção, Processo Nº 3311/21.8T8LRA.C1, Acórdão de 07/02/2023, onde consta:

“O abuso do direito (cf. art. 334º do C.Civil) pode ser objeto de conhecimento oficioso e, por conseguinte, o seu conhecimento não está vedado ao Tribunal ainda que a sua invocação constitua questão nova, mas isso não significa que o Tribunal considere ocorrido o abuso do direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos.”

Ou para o caso de firmar o reconhecimento do crédito do cabeça de casal sobre a herança, por não se ter efetuado a tradição da coisa, apesar do documento escrito, pois tal entrega efetiva mostra-se impossível face a apreensão da coisa (dinheiro) pelo agente de execução naquela data de 02/09/2015.

Assim,

Conforme Acórdão do STJ de 08/02/2024, Processo Nº 1550/21.0T8PVZ.P1.S1, in www.dgsi.pt, similarmente se deve entender que:

“A tradição de quantias depositadas para efeitos dos artigos 945.º e 947.º do Código Civil não pode fazer-se através da entrega do cartão de débito ao donatário.”

Ou não pode fazer-se quando a quantia se encontra apreendida pelo agente de execução…

(…)

o momento da doação estando aquele valor na posse de terceiro (o Agente de Execução), referido nos autos, não existiu verdadeira tradição da coisa, não se transferiu a propriedade, mas sim constituiu-se um direito de crédito do referido AA, sobre aquela importância, crédito este que tem a mesma natureza do crédito de DD, pois ambos são de natureza comum, impondo-se assim o seu pagamento no processo de execução universal que é a Insolvência.

E assim será sempre este crédito, também uma dívida da herança em partilha, agora insolvente.

É que a herança, como resulta dos autos, foi já aceite a benefício de Inventário, e da penhora do processo executivo, nenhum privilégio existe para o credor DD, sendo o lugar próprio para decisão do seu direito de crédito, precisamente o presente processo de Insolvência.

Com efeito, nada poderá opor-se à requerida suspensão da execução, pois que apesar do referido no invocado art. 822º, nº 2 do CC, ela é legítima e legal e constitui o exercício de um direito legítimo dos credores da executada previsto e definido no art. 793º do CPC e art. 88º do CIRE, efeitos que agora a nosso ver, ilegalmente através da figura do abuso de direito se pretende afastar.

É que contrariamente ao que refere a Meritíssima Juíza, com os presentes autos, não se pretende satisfazer os interesses do Cabeça de Casal, mas tão e só os interesses da Herança Impartilhada da falecida BB, impondo-se a sua liquidação integral e definitiva, mesmo quanto ao efeito da doação efetuada em vida pela falecida, e precisamente nos termos do disposto nos arts. 1º e 3º, nº 2 do CIRE, quando expressamente se refere a situações de “patrimónios autónomos” como será o caso da Herança Insolvente.

É extemporâneo, fazer-se o julgamento no pressuposto que não se sabe, qual o de entender-se existirá apenas um só credor, pois em sede de reclamação de créditos poderão aparecer outros, entre os quais o Estado Português, não estando demonstrado, contrariamente ao constante na aliás douta sentença, que o passivo seja apenas constituído pelo crédito de DD”.

O interesse acautelado na acção da insolvência é o do interesse da globalidade dos credores, não exigindo a lei, para o decretamento da insolvência que o montante em dívida ou as circunstâncias do incumprimento revelem a impossibilidade definitiva e em absoluto de o devedor satisfazer a totalidade das suas obrigações, mas tão só que os factos indiciadores revelem a impossibilidade de satisfação dessas obrigações pontualmente.

Procede, pois, a Apelação com a consequente revogação do despacho da 1.ª instância, e o prosseguimento da lide com a prolacção do despacho a que alude o artigo 29.º do Cire.

As conclusões (sumário):

(…).


3.Decisão
Assim, na procedência do recurso, revogamos a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Leiria - Juiz 3 ordenando o prosseguimento da instância com a prolacção do despacho a que alude o artigo 29.º do Cire.
As custas deste recurso a suportar -------.
Coimbra, 14 de Outubro de 2025

(José Avelino Gonçalves - Relator)
(Chandra Gracias - 1.ª adjunta)
(Anabela Marques Ferreira – 2.ª adjunta)