INCIDENTE DE REVISÃO DA INCAPACIDADE
FATOR DE BONIFICAÇÃO
APLICAÇÃO AUTOMÁTICA
IDADE
Sumário

I – No incidente de revisão da incapacidade para que possa ser aplicado o fator de bonificação 1,5 previsto no ponto 5, a), da TNI não se impõe a verificação de uma modificação na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva ou recaída da lesão.
II – A aplicação de tal fator pode ser feita de forma automática, apenas por força da idade, desde que o sinistrado não tenha anteriormente beneficiado da aplicação daquele fator, no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho ou do incidente de revisão da incapacidade.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Sinistrado: AA.

Entidades responsáveis: A..., Lda

Companhia de Seguros B..., SA.


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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Com data de 22.04.2025 foi nos autos em epígrafe proferida a sentença a seguir transcrita:

O sinistrado AA requer a reavaliação da incapacidade de que se encontra afetado, fixada em 2% de IPP, desde 20 de outubro de 2021, alegando, no essencial, que o seu estado de saúde se agravou em consequência do acidente a que se reporta os presentes autos.

Realizou-se exame de revisão e o perito médico do tribunal concluiu que não ocorreu agravamento da incapacidade do sinistrado.

Sinistrado requereu a realização de exame por junta médica.

Realizada a junta médica, os peritos médicos concluíram, por unanimidade, que não houve agravamento da incapacidade.


*

Inexistem nulidades, exceções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer.

*

Inexiste fundamento para divergir do parecer unânime da junta médica, face aos elementos dos autos e considerando o disposto na tabela nacional de incapacidades.

Assim sendo, decido manter inalterada a IPP de 2% fixada ao sinistrado, nos termos do disposto no art.º 145.º, n.º 6 do CPT.

E não tendo ocorrido agravamento na capacidade de ganho do sinistrado, por se manter o coeficiente de desvalorização, também não há lugar a um qualquer aumento da pensão que lhe foi fixada em 20 de outubro de 2021.

Por conseguinte, julgo improcedente o pedido de revisão da incapacidade.

Valor do incidente: €3.396,26.

Custas do incidente a cargo sinistrado/requerente com taxa de justiça no mínimo legal, sem prejuízo do disposto no art.º 17.º n.º 8 do RCP.

Registe e notifique”.


+

Posteriormente com data de 24.04.2025 veio a ser proferida a decisão que se transcreve:

“- da retificação da sentença:

Compulsados os autos constato que na sentença proferida em 22 de abril de 2025 não foi atendida a recente jurisprudência fixada no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 16/2024, de 17 de dezembro.

Trata-se de uma inexatidão devida a omissão e lapso manifestos e que, como tal, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz (art.º 614.º, n.º 1 do NCPC).

Esta inexatidão poderia também fundamentar um pedido de reforma da sentença, por ter ocorrido um manifesto erro na determinação da norma aplicável (art.º 616.º, n.º 2 do NCPC).

É que não pode olvidar-se que muito embora os acórdãos de uniformização de jurisprudência não tenham a força obrigatória geral que era atribuída aos assentos pelo art.º 2.º do CC (atualmente revogado), certo é que têm um valor reforçado que deriva não apenas do facto de emanarem do pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, como, ainda, de o seu não acatamento pelos tribunais de 1.ª instância e da Relação constituir motivo para a admissibilidade especial de recurso, nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 2, al. c) do NCPC.

Ao que acresce o facto de em matéria de acidentes de trabalho vigorarem os princípios da oficiosidade, indisponibilidade e irrenunciabilidade de direitos e de condenação para além do pedido (art.ºs 26.º, n.º 1, al. e) e 3 do CPT, 12.º, 74.º e 78.º da LAT), que sempre imporiam ao tribunal o cumprimento do dever de retificação oficiosa da decisão em apreço, atenta a sua posição concordante com a jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 16/2024.

Por conseguinte, retifico a sentença anteriormente proferida nos autos a qual passará a ter a seguinte redação:


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Decisão

O sinistrado AA requer a reavaliação da incapacidade de que se encontra afetado, fixada em 2% de IPP, desde 20 de outubro de 2021, alegando, no essencial, que o seu estado de saúde se agravou em consequência do acidente a que se reporta os presentes autos.

Realizou-se exame de revisão e o perito médico do tribunal concluiu que não ocorreu agravamento da incapacidade do sinistrado.

Sinistrado requereu a realização de exame por junta médica.

Realizada a junta médica, os peritos médicos concluíram, por unanimidade, que não houve agravamento da incapacidade.


*

Inexistem nulidades, exceções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer.

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Inexiste fundamento para divergir do parecer unânime da junta médica, face aos elementos dos autos e considerando o disposto na tabela nacional de incapacidades, que concluiu pelo não agravamento das sequelas.

Não obstante, verifica-se que o sinistrado nasceu em ../../1973, pelo que perfez 50 anos em 10 de outubro de 2023, em data anterior à instauração do presente incidente de revisão (8 de novembro de 2023) e nunca beneficiou da aplicação do fator 1.5 previsto na alínea a), do n.º 5, das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada em anexo ao DL n.º 352/2007, de 23 de outubro.

A Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais estabelece nas suas das Instruções Gerais (Anexo I) que:

» número 1: a TNI tem por objetivo fornecer as bases de avaliação do dano corporal ou prejuízo funcional sofrido em consequência de acidente de trabalho ou de doença profissional, com redução da capacidade de ganho;

» número 3: a cada dano corporal ou prejuízo funcional corresponde um coeficiente expresso em percentagem, que traduz a proporção da perda da capacidade de trabalho resultante da disfunção, como sequela final da lesão inicial, sendo a disfunção total, designada como incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, expressa pela unidade;

» número 5: na determinação do valor da incapacidade a atribuir devem ser observadas as seguintes normas, para além e sem prejuízo das que são específicas de cada capítulo ou número:

a) Os coeficientes de incapacidade previstos são bonificados, até ao limite da unidade, com uma multiplicação pelo fator 1.5, segundo a fórmula: IG + (IG × 0.5), se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho ou tiver 50 anos ou mais quando não tiver beneficiado da aplicação desse fator.

b) A incapacidade é igualmente corrigida, até ao limite da unidade, mediante a multiplicação pelo fator 1.5, quando a lesão implicar alteração visível do aspeto físico (como no caso das dismorfias ou equivalentes) que afete, de forma relevante, o desempenho do posto de trabalho; não é cumulável com a alínea anterior;

Deste número 5 das Instruções Gerais da TNI resulta que a atribuição do fator de bonificação 1.5 ocorre em três situações distintas:

i) Se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho, expressão que suscitou a necessidade de intervenção do STJ, para no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 10/2014, de 30 de Junho fixar que a mesma deve ser interpretada no sentido de se referir (..) às situações em que o sinistrado, por virtude das lesões sofridas, não pode retomar o exercício das funções correspondentes ao concreto posto de trabalho que ocupava antes do acidente (IPATH);

ii) Se a vitima tiver 50 anos ou mais quando não tiver beneficiado da aplicação desse fator, sendo a idade do sinistrado que impõe a bonificação, quando esta não tenha ocorrido pelos motivos previstos na 1.ª parte daquela norma;

iii) Quando a lesão implicar alteração visível do aspeto físico que afete, de forma relevante, o desempenho do posto de trabalho [al. b)], sendo que não será atribuída caso a vitima já beneficie da bonificação com um dos fundamentos da alínea anterior, isto é, funciona de forma subsidiária em relação à mesma;

O art.º 26.º, n.ºs 1, al. e) e 3 do CPT consagra o princípio da oficiosidade da ação emergente de acidente de trabalho, um claro desvio ao princípio do dispositivo e ao ónus do impulso processual consagrados no processo civil comum, justificado pelos princípios de interesse e ordem pública que subjazem à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho.

Não estando dependente da vontade das partes o impulso processual destas ações, a inércia das partes não tem influência sobre o processo, designadamente, o efeito de deserção da instância (art.º 281.º do NCPC).

Por sua vez, o art.º 78.º da LAT considera os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida nesta Lei como inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e que gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.

O art.º 12.º da LAT comina com a nulidade a convenção contrária aos direitos ou garantias por ela conferidos ou com eles incompatíveis e os atos e contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos pela mesma.

E o art.º 74.º do CPT consagra uma especialidade relativamente ao que estatui o artigo 609.º do CPC e prevê a denominada condenação extra vel ultra petitum: O juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho.

Recentemente, em 17 de dezembro de 2024, foi publicado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 16/2024, de 22 de maio de 2024 (DR, 1.ª série, n.º 244) que fixou jurisprudência no seguinte sentido:

1 - A bonificação do fator 1.5 prevista na alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais aprovada em anexo ao Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro é aplicável a qualquer sinistrado que tenha 50 ou mais anos de idade, quer já tenha essa idade no momento do acidente, quer só depois venha a atingir essa idade, desde que não tenha anteriormente beneficiado da aplicação desse fator;

2 - O sinistrado pode recorrer ao incidente de revisão da incapacidade para invocar o agravamento por força da idade e a bonificação deverá ser concedida mesmo que não haja revisão da incapacidade e agravamento da mesma em razão de outro motivo;

Retira-se desta jurisprudência, no essencial, que:

» a bonificação de 1.5 das instruções gerais de TNI aplica-se ao sinistrado que tenha 50 anos, quer já tenha essa idade na data do AT ou só posteriormente a venha a atingir, desde que não tenha já beneficiado da aplicação desse fator;

» o sinistrado pode recorrer ao incidente de revisão da IPP para invocar esse agravamento exclusivamente por força da idade;

» a bonificação deverá ser concedida mesmo que não haja revisão da incapacidade e agravamento da mesma em razão de outro motivo;

E embora seja equacionável uma multiplicidade de questões sobre a aplicação prática deste AUJ, o tribunal entende que a sua interpretação que melhor se concilia com os princípios anteriormente enunciados da oficiosidade, indisponibilidade e irrenunciabilidade de direitos em matéria de acidentes de trabalho, é aquela que faz depender a aplicação do fator de bonificação 1.5 em razão da idade das seguintes condições:

» tem de ser instaurado um incidente de revisão de incapacidade;

» cumprindo-se a dilação do ano civil após a fixação da IPP a que alude o art.º 70.º, n.º 3 da LAT;

» a bonificação é aplicada mesmo que não se verifique agravamento das sequelas;

» a bonificação é aplicada mesmo que não tenha sido suscitada pelo sinistrado, com prévio exercício do direito do contraditório, se a sua idade não constar do processo, por forma a evitar decisões surpresa;

» a bonificação é aplicada mesmo que não tenha sido suscitada pelo sinistrado, sem prévio exercício do direito do contraditório, se a sua idade constar já do processo no momento do requerimento de revisão da IPP;

» a bonificação é devida desde a data da entrada do pedido de revisão (e não desde a data em que o sinistrado perfez os 50 anos);

» ao abrigo do dever de gestão processual, o juiz deve informar o sinistrado que perfez 50 anos após a alta de que poderá requerer o incidente de revisão para aplicação desta bonificação;

Muito embora os acórdãos de uniformização de jurisprudência não tenham a força obrigatória geral que era atribuída aos assentos pelo art.º 2.º do CC (atualmente revogado), certo é que têm um valor reforçado que deriva não apenas do facto de emanarem do pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, como, ainda, de o seu não acatamento pelos tribunais de 1.ª instância e da Relação constituir motivo para a admissibilidade especial de recurso, nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 2, al. c) do NCPC.

Regista-se, que já posteriormente ao AUJ n.º 16/2024, foi prolatado o acórdão da RL de 3 de julho de 2024, relatado por Manuela Fialho, no qual foi apreciado o caso de uma sinistrada com IPP de 4%, que formulou pedido de revisão e não se provou agravamento da IPP.

Depois do AT e antes do incidente de revisão a sinistrada perfez 50 anos.

A primeira instância julgou improcedente o incidente de revisão porque a sinistrada não requereu a bonificação em função da idade.

E a Relação de Lisboa aplicou o fator de bonificação 1.5 em razão da idade desde a data da formulação do pedido de revisão, ao abrigo da oficiosidade e indisponibilidade dos direitos em matéria de acidentes de trabalho e também com fundamento na jurisprudência fixada no AUJ n.º 16/2024.

E, assim sendo, em conformidade com os princípios anteriormente enunciados aplicáveis nesta matéria e com a jurisprudência fixada no AUJ n.º 16/2024, impõe-se o reconhecimento do agravamento da incapacidade do sinistrado decorrente da aplicação do referido fator 1.5 e, consequentemente, fixa-se a IPP do sinistrado em 3% desde 8 de novembro de 2023 (data da dedução do incidente).

Atendendo a que o sinistrado auferia à data do acidente retribuição anual de €17.000,00, que se encontrava parcialmente transferida para a seguradora pelo montante de €13.810,00, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 23.º, al. b), 47.º, 48.º, n.º 3, al. c), 71.º e 72.º da NLAT e dos artigos 43.º e 51.º do DL n.º 143/99, de 30 de abril, é-lhe devido, por força da IPP de 3% de que é portador, o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de €357,00 (€17.000,00x70%x3%), sendo €290,00 (€13.810,00x70%x3%) da responsabilidade da seguradora e €67,00 (€3.190,00x70%x3%) da responsabilidade da empregadora.

No entanto, e uma vez que o sinistrado já recebeu o capital de remição da pensão correspondente à IPP de 2%, no valor de €238,00, apenas tem direito à respetiva diferença, anual e vitalícia de €96,66, com inicio em 8 de novembro de 2023, acrescida dos juros de mora computados à taxa legal de 4% desde a data do vencimento até integral pagamento;

- condeno A..., Lda. a pagar-lhe o capital de remição da pensão anual e vitalícia de €22,34, com inicio em 8 de novembro de 2023, acrescida dos juros de mora computados à taxa legal de 4% desde a data do vencimento até integral pagamento;

Fixo ao incidente o valor resultante do disposto no art.º 120.º, n.º 1 do CPT.

Custas do incidente a cargo da seguradora e empregadora”.


***

II – Inconformado, veio a Seguradora apelar, alegando e concluindo:

(…).


+

Respondeu o Ministério Público, (o que fez em nome próprio e porque estão em causa direitos indisponíveis e não em patrocínio do sinistrado, que devidamente patrocinado por mandatário judicial, nada disse), concluindo:

(…).


***

III. A factualidade a considerar é a narrada no relatório do presente acórdão.

***

IV. Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas respetivas conclusões, as questões que importa dilucidar e decidir são as seguintes:

1. Se a sentença é nula.

2. Se não devia ter sido aplicado o fator de bonificação 1.5 previsto na alínea a) do nº 5 das instruções Gerais da TNI por não ter existido agravamento da IPP atribuída ao sinistrado.

Da nulidade da sentença:

Alega a recorrente que a insuficiente e obscura fundamentação não permite à Apelante conhecer efetivamente as razões de facto e de direito que conduziram à decisão.

A decisão do Tribunal a quo é, por isso, nula, conforme disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

Decidindo:

Como é por demais sabido, “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”. - Manual de Processo Civil de A. Varela e outros. 2ª edição, págªs 686 a 691

No que concerne à falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão a que alude a alínea b) do nº 1 do artº 615º do CP, ensina-nos Alberto dos Reis que: “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade (…)”- Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pag.140.

O mesmo entendimento tem sido defendido por Doutrina mais recente.

Refere Lebre de Freitas, in Código Processo Civil, pag.297 que “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação”.

No mesmo sentido diz o Conselheiro Rodrigues Bastos, que “a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença” (cfr."Notas ao Código de Processo Civil", III, pag.194).

A nível jurisprudencial, desde há muito que os tribunais superiores, pacificamente, têm considerado que a nulidade prevista na alínea b) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta.

Ora, na decisão impugnada dá-se como provado que o sinistrado “nasceu em ../../1973, pelo que perfez 50 anos em 10 de outubro de 2023, em data anterior à instauração do presente incidente de revisão (8 de novembro de 2023) e nunca beneficiou da aplicação do fator 1.5 previsto na alínea a), do n.º 5, das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada em anexo ao DL n.º 352/2007, de 23 de outubro”.

A 1ª instância especificou os fundamentos de facto e, depois, aplicou a estes o direito considerando o que foi decidido no acórdão uniformizador.

Inexiste qualquer falta absoluta de fundamentação pelo que a sentença não é nula

Da aplicação do fator de bonificação 1.5:

A apelante entende que o fator 1.5 não pode ser aplicado pelas razões que aduz nas suas doutas alegações que aqui, por questão de economia, se dão por reproduzidas, mas que sinteticamente se podem resumir no seguinte: o fator 1.5 não podia ser aplicado sem que tivesse havido um agravamento da incapacidade e o acórdão uniformizados é inconstitucional por violar os princípios constitucionais s da igualdades, da imparcialidade e da justa reparação.

Decidindo:

Como é do conhecimento da comunidade jurídica, a ausência de reconhecimento de qualquer agravamento da incapacidade no incidente de revisão não vinha obtendo uma resposta uniforme nos tribunais da Relação no que respeita à aplicação do fator 1.5, pelo que, com data de 22/05/2024, foi proferido o acórdão do STJ n.º 16/2024 que fixou a seguinte jurisprudência:

“1. A bonificação do fator 1.5 prevista na alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais aprovada em anexo ao Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro é aplicável a qualquer sinistrado que tenha 50 ou mais anos de idade, quer já tenha essa idade no momento do acidente, quer só depois venha a atingir essa idade, desde que não tenha anteriormente beneficiado da aplicação desse fator; 2. O sinistrado pode recorrer ao incidente de revisão da incapacidade para invocar o agravamento por força da idade e a bonificação deverá ser concedida mesmo que não haja revisão da incapacidade e agravamento da mesma em razão de  outro motivo”.

Neste acórdão refere-se, além do mais, o seguinte:

“A questão que se coloca no presente recurso é a de saber se o fator de bonificação previsto no n.º 5 a) das Instruções gerais da TNI é automaticamente aplicável quando o sinistrado, que não tinha 50 anos à data da alta médica, tenha 50 anos ou mais à data da revisão da incapacidade.

Ora esta questão de grande sensibilidade social tem sido objeto de respostas contraditórias nos nossos Tribunais.

(…)

A Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro, e que faz parte integrante daquele diploma, constando do seu anexo I, contém nas Instruções Gerais a Instrução 5 a) segundo a qual “na determinação do valor da incapacidade a atribuir devem ser observadas as seguintes normas, para além e sem prejuízo das que são específicas de cada capítulo ou número: a) os coeficientes de incapacidade previstos são bonificados, até ao limite da unidade, com uma multiplicação pelo fator 1.5, segundo a fórmula. IG + (IG x 0.5), se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho ou tiver 50 anos ou mais quando não tiver beneficiado da aplicação desse fator”. Tratou-se neste ponto de uma evolução sensível quanto ao que dispunha a anterior Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93 de 30 de setembro, cuja Instrução 5 a), previa que “na determinação do valor final da incapacidade devem ser observadas as seguintes normas, para além e sem prejuízo das que são específicas de cada capítulo ou número: a) sempre que se verifique perda ou diminuição de função inerente ou imprescindível ao desempenho do posto de trabalho que ocupava com carácter permanente, os coeficientes de incapacidade previstos são bonificados com uma multiplicação pelo fator 1.5, se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho ou tiver 50 anos ou mais” .

Face à nova Tabela de Incapacidades a bonificação é atribuída automaticamente desde que a vítima tenha 50 anos ou mais. A Instrução 5 a) prevê, com efeito, duas situações distintas que considera suficientemente graves para que a bonificação tenha lugar: a circunstância de a vítima não ser reconvertível ao seu posto de trabalho e a sua idade (ter 50 anos ou mais). Sendo certo que de um acidente de trabalho resulta uma perda de capacidade de trabalho ou de ganho o legislador considera que essa perda é agravada pela idade do sinistrado. Não se trata de uma presunção– seja ela absoluta ou relativa – mas sim do reconhecimento de uma “realidade incontornável”, como lhe chamou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-10-2016, que explica esta opção legislativa:

“O envelhecimento é um fenómeno universal, irreversível e inevitável em todos os seres vivos. É certo que envelhecer difere de indivíduo para individuo, uma vez que o processo de envelhecimento pode ser acentuado ou retardado em razão de vários fatores, entre outros, desde logo os de natureza genética, mas também dos que respeitam às condições e hábitos de vida do indivíduo e dos seus comportamentos (…)

Em termos gerais e abstratos, é do conhecimento da ciência médica e, nos dias que correm, com toda a informação disponível e divulgada e com os cuidados de saúde a que se tem acesso, também da generalidade das pessoas que, após os 50 anos há um acentuar desse processo natural, que se vai agravando progressivamente com o aumento da idade. A título de mero exemplo, é consabido que a partir dos 50 anos de idade, independentemente do estado dessaúde do indivíduo, seja homem ou mulher, a medicina recomenda que se observem especiais cuidados preventivos de saúde, sendo aconselhável a realização de determinados exames de diagnóstico que normalmente não são prescritos antes de se atingir essa idade. É na consideração desta realidade incontornável que o legislador entendeu atribuir a bonificação do fator 1.5, reconhecendo que, em termos gerais e abstratos, a vítima de acidente de trabalho que fique com determinada incapacidade permanente terá uma dificuldade acrescida, como consequência natural do organismo, para o desempenho de uma atividade profissional”.

A este propósito importa, também, atender ao que o Tribunal Constitucional afirmou, em uma das várias ocasiões em que foi chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da atribuição desta bonificação em razão da idade do sinistrado e em que precisamente se pronunciou no sentido de “não julgar inconstitucional a norma que determina a aplicação do «fator de bonificação de 1,5, em harmonia com a alínea a) do n.º 5 do anexo I do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, (Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais)» aos coeficientes de incapacidade previstos nesse diploma quando «a vítima (…) tiver 50 anos ou mais”.

Pode, com efeito, ler-se, no n.º 7 da fundamentação do Acórdão n.º 526/2016 proferido a 4 de outubro de 2016, no processo n.º 1059/15 6:

Assim, as soluções legais do Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, no que diz respeito à Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, são justificadas pela consagração de um regime autónomo, distinto do aplicável ao dano civil, especificamente desenhado para o dano laboral que atinge a capacidade de ganho do trabalhador e também a pessoa.

É neste contexto que surge um regime diferenciado dado a um grupo de trabalhadores face aos restantes trabalhadores, tendo como critério de aplicação a idade (igual ou superior a 50 anos, como se referiu). Pela inserção sistemática, pode concluir-se que o legislador traça uma aproximação entre esta situação e a dos trabalhadores que, embora tenham uma idade inferior a 50 anos, não são reconvertíveis em relação ao posto de trabalho, pois ambos os casos são colocados numa relação alternativa, dando origem (um ou o outro) à aplicação da bonificação. A aproximação destas duas situações também decorre do facto de o trabalhador vítima de acidente ou doença profissional apenas poder beneficiar da bonificação em causa (por um critério ou pelo outro) na ausência de outra bonificação equivalente Em ambos os casos, estamos perante situações de maior dificuldade de acesso ao mercado de trabalho relativamente àquela em que se encontra um trabalhador, também vítima de acidente de trabalho ou doença profissional, mas ainda reconvertível ou de idade mais jovem. Sendo distintas as posições relativas dos trabalhadores, não se configura qualquer violação do princípio da igualdade, pois este pressupõe que se esteja perante situações equivalentes.

Há que reconhecer que no plano normativo não há discriminação alguma: a situação dos trabalhadores vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional que tenham uma idade igual ou superior a 50 anos não é idêntica à dos trabalhadores que não são vítimas daquelas circunstâncias ou com idade inferior a 50 anos. A própria recorrente admite que «a passagem do tempo e a progressão da idade tenham efeitos (positivos e negativos) sobre a capacidade de ganho e a produtividade pessoal dos trabalhadores», e que «o envelhecimento, como o avançar da idade, quando produzam uma diminuição daquela capacidade de ganho, hão de naturalmente poder repercutir- se nos coeficientes de incapacidade» (cfr. o ponto II., n.º 20 das alegações de recurso, fls. 131). O facto de o cálculo da incapacidade em ambos os casos comportar diferenças não justifica que se considere violado o princípio da igualdade, pois estamos perante situações diferenciadas.

Assim, a previsão de um regime mais favorável para os trabalhadores com idade igual ou superior a 50 anos, quando não tenham já beneficiado da aplicação do fator em causa, não é desrazoável ou arbitrária, por assente nas características do mercado de trabalho e da mais difícil inserção neste dos trabalhadores com idade superior a 50 anos. Existem, pois, fundamentos racionais, pois assentes em dados empíricos relacionados com as consequências do envelhecimento do trabalhador e com as características do mercado de trabalho, e objetivos, porque aplicáveis de forma genérica e não subjetiva, por o legislador ter em conta a idade do trabalhador ao estabelecer o regime aplicável ao cálculo das incapacidades dos sinistrados ou doentes no âmbito laboral. Cabe-lhe, assim, escolher os instrumentos através dos quais esta ponderação ocorre, tendo optado, neste caso, por consagrar uma repercussão nos coeficientes através da previsão de uma bonificação. O regime também prevê que a bonificação apenas opera uma vez, não ocorrendo se o fator em causa tiver já sido aplicado por outro motivo. Esta solução encontra-se dentro da margem de livre apreciação do legislador, não se apresentando como desrazoável.

Existindo fundamento material suficiente, razoável, objetivo e racional, para a diferenciação de trabalhadores com idades iguais ou superiores a 50 anos, nomeadamente relacionados com o efeito do envelhecimento na capacidade de ganho e tendo em conta as características do mercado de trabalho nacional, não é possível concluir que a solução tenha um caráter arbitrário ou que exista violação do princípio da igualdade”.

A solução encontrada pelo legislador com a aplicação automática da bonificação de 1.5 ao sinistrado com 50 anos ou mais à data da alta tem a vantagem de evitar a difícil determinação do impacto do envelhecimento sobre cada sinistrado em concreto, que variaria em razão de uma grande diversidade de fatores (o organismo de cada um, mas também, por exemplo, as especificidades da atividade laboral e do setor profissional). Admite-se que se possa falar aqui em uma ficção jurídica, como fez o Parecer do Ministério Público junto neste Tribunal e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01-02-2016, no qual se pode ler que “o legislador “ficcionou” que, a partir daquela idade as lesões tendem a agravar-se com a consequente maior limitação da capacidade de trabalho do sinistrado/trabalhador”.

Sendo assim, e se o legislador entendeu que quando o sinistrado tem 50 anos de idade ou mais se justifica uma bonificação por força da dificuldade acrescida, da maior penosidade laboral, que resulta do envelhecimento, haverá algum motivo que justifique que o sinistrado que tinha menos de 50 anos de idade, mas, entretanto, atinja essa idade, não passe a beneficiar da mesma bonificação?

Uma parte da nossa jurisprudência, como vimos, responde afirmativamente.

Invoca-se, sobretudo, que o legislador não previu qualquer mecanismo processual para revisão automática da pensão em função da idade e que a revisão da pensão seria um meio processual inadequado ou mesmo “enviesado” . Tal “colidiria frontalmente com o princípio estabelecido no artigo 70.º n.º 1 da Lei 98/2009, de onde decorre que no âmbito da revisão da incapacidade, a prestação pode ser alterada, mas desde que se verifique “uma modificação na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado”. Acrescenta-se, ainda, que “a TNI tem natureza meramente instrumental em relação ao regime jurídico substantivo da reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho” e que “não são mais que um conjunto de regras elucidativas da aplicação prática da mesma, no que toca à determinação do coeficiente de incapacidade a atribuir em cada caso concreto, sem porém concorrerem com conteúdo jurídico relevante no regime da reparação dos acidentes, que é domínio da LAT e do seu regulamento”.

Importa, todavia, ter em conta que ao estabelecer em uma norma legal que um sinistrado com 50 anos (ou mais) tem direito a uma bonificação de 1.5 o legislador exprimiu uma opção, a de considerar que a idade representa um agravamento das consequências negativas da perda da capacidade de trabalho ou de ganho decorrente do acidente de trabalho. “Em suma: para o legislador dos acidentes de trabalho a idade do sinistrado – no caso, 50 anos ou mais – é factor relevante, que “acresce” à sua IPP para efeitos de atribuição de incapacidade, fator assente no facto de que a partir dessa idade as condições físicas/psíquicas de qualquer trabalhador se agravam de modo natural”. .

Pode, na realidade, afirmar-se que “o fator de bonificação 1,5, ao invés de violar os princípios da justa reparação e da igualdade, previstos, respetivamente, nos artigos 59.º, al. f) e 13.º da CRP, foi criado no intuito específico de lhes dar integral cumprimento”, como se pode ler no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 14-09-2023, Processo n.º 21789/22.0T8SNT.E1.

Tal opção legislativa deve ser interpretada à luz do disposto no artigo 9.º do Código Civil e tendo em conta designadamente, como bem destaca o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-01-2020, processo n.º 587/06.4TUPRT.4.P1, a unidade do sistema jurídico (n.º 1 do artigo 9.º), por um lado, e, por outro, que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (n.º 3 do artigo 9.º). Seria arbitrária e conduziria a uma diferença de tratamento sem qualquer justificação uma interpretação que apenas atribuísse a bonificação a um sinistrado com 50 ou mais anos à data do acidente, ou melhor, à data em que fixada a incapacidade, mas já não a um sinistrado que tendo menos de 50 anos nesse momento, venha, no entanto, a atingir essa idade – com efeito, se e quando tiver 50 anos este último estará exatamente na mesma situação de agravamento das consequências negativas que justificou a bonificação de que beneficiou o sinistrado que já tinha 50 anos quando se procedeu à primeira avaliação da incapacidade.

Há, pois, que proceder a uma interpretação teleológica, de resto mais conforme com a tutela constitucional em matéria de acidentes de trabalho, e afirmar que o fator de bonificação deve ser atribuído ao sinistrado com 50 anos ou mais, quer tenha já 50 à data em que é avaliada inicialmente a incapacidade, quer tenha menos idade, mas venha a atingir 50 anos. Se, porventura, fosse exato que o legislador não tinha previsto um mecanismo processual para operar esta atualização e a aplicação da bonificação, tal implicaria a existência de uma lacuna a preencher pelo intérprete, já que o direito adjetivo não deve trair o direito material ou substantivo.

Mas, na realidade, a situação cabe na previsão do artigo 70.º da LAT se a mesma for objeto de uma interpretação teleológica. Com efeito, o legislador considerou que a idade do sinistrado – ter este 50 ou mais anos de idade – representa, ela própria, um fator que tem impacto na capacidade de trabalho ou de ganho e que representa um agravamento na situação do trabalhador, mormente no mercado de trabalho. Este agravamento pela idade, reconhecido pelo legislador, poderá ser objeto de um pedido de revisão das prestações.

E não se afigura inútil ou “enviesada” a aplicação do mecanismo da revisão das prestações, tanto mais que o sinistrado tanto pode atingir os 50 anos apenas alguns dias, semanas ou meses após a fixação inicial das prestações, como pode vir a perfazer aquela idade anos ou mesmo décadas após tal fixação inicial, sendo conveniente que a bonificação seja aplicada a uma avaliação e a uma prestação atualizadas. Aliás, até pode suceder, por exemplo, que o incidente de revisão de incapacidade seja requerido pela entidade responsável com fundamento da melhoria da situação clínica (cf. Artigo 70.º, números 1 e 2 da LAT), melhoria essa que pode vir a ser confirmada pela perícia médico-legal singular ou plural, havendo então que multiplicar essa nova IPP, inferior à originária ou até à atribuída num anterior incidente de revisão, pelo fator de bonificação de 1,5, desde que o sinistrado entretanto tenha atingido os 50 anos de idade”[1].

Regressando ao caso dos autos, tendo em conta o que ficou transcrito, e revendo a nossa anterior posição[2], também nós entendemos que é de aplicar o fator de bonificação 1,5 previsto na TNI, posto que persistem os pressupostos que determinaram a jurisprudência fixada e não vislumbramos razões convincentes para dela divergir.

Por outro lado, pelos fundamentos constantes do AUJ supratranscrito, não vislumbramos a invocada inconstitucionalidade por violação dos princípios da igualdade e da justa reparação por acidente de trabalho.

Na verdade, como se decidiu no acórdão do STJ de 12/05/2016 que acompanhamos:

“5. Aos anteriores Assentos do Supremo Tribunal de Justiça era atribuída força obrigatória geral pelo art. 2º do CC.

Tal norma foi declarada inconstitucional, na medida em que atribuía aos Assentos força obrigatória geral que os equiparava a outras fontes normativas.

Na sequência de tal decisão, nada obstava a que fosse mantida a figura dos Assentos, restringindo a sua força vinculativa à orgânica judiciária, mas o certo é que o legislador optou pela revogação daquele preceito e pela abolição daquela figura, introduzindo a figura dos acórdãos de uniformização de jurisprudência, com função preventiva ou resolutiva.

Estes arestos que, de início (na reforma de 1995/96), derivavam apenas do julgamento ampliado dos recursos de revista, podem emergir também do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência introduzido na reforma dos recursos cíveis aprovada pelo Dec. nº 303/007 e mantido no CPC de 2013.

Com tal opção, deixou de existir suporte formal para atribuir à jurisprudência uniformizada força obrigatória, mesmo no seio da organização judiciária. Mas daí não decorre que seja desvalorizada ao ponto que é referido pela reclamante, passando os Tribunais e designadamente este Supremo Tribunal de Justiça a decidir os casos em que se suscitem as mesmas questões como se não existissem nem devesse ser respeitados os precedentes jurisprudenciais com o valor reforçado que deriva quer da solenidade do julgamento e do órgão específico de que emanam (Pleno das Secções Cíveis), quer de outros preceitos de natureza instrumental que indiretamente apelam ao seu acatamento pelos Tribunais quando são confrontados com questões de direito idênticas, de natureza essencial e dentro do mesmo quadro normativo substancial.

6. O primado da lei sobre a jurisprudência apresenta-se como uma das características diferenciadoras relativamente aos sistemas anglo-saxónicos.

Nestes, a falta de uma codificação é compensada pelo relevo atribuído aos precedentes jurisprudenciais que vão tecendo a malha da ordem jurídica.

Já entre nós privilegia-se um sistema legal com pretensões de abarcar, em abstrato, todas as situações da vida real, reservando-se para a jurisprudência a função de fonte mediata do direito, na sua vertente interpretativa.

A subalternização da jurisprudência em relação à lei e a recusa em qualificar a primeira como fonte imediata de direito são comuns à generalidade dos sistemas jurídicos de raiz romanística, nos quais a lei ocupa o lugar cimeiro, surgindo a jurisprudência numa posição subordinada.

É pela persuasão, que não pela atribuição de efeitos correspondentes aos de verdadeiras normas, que noutras ordens jurídicas é exercida a influência intr- sistemática da jurisprudência uniformizada através de precedentes que, sendo suscetíveis de ser modificados pelo Tribunal Superior, são, em regra, acatados pelos tribunais de categoria inferior.

Apesar da não vinculação ao sentido assumido pelos Tribunais Superiores, na aplicação do direito os Tribunais têm de necessariamente tomar em consideração os valores da segurança, da certeza jurídica e da eficácia, como fatores que concorrem para a legitimação das decisões judiciais.

Mais do que ocorre com a jurisprudência constante, cujo relevo formal é evidenciado designadamente pelo art. 536º, nº 2, al. b) (repartição de custas) ou pelo art. 656º do CPC (admissibilidade de apreciação de recurso por decisão singular do relator), a jurisprudência uniformizada emanada do Supremo Tribunal de Justiça deve merecer da parte de todos os juízes uma atenção especial, de tal modo que só razões muito ponderosas poderão justificar desvios à concreta resolução da questão de direito.

Por isso, quando porventura haja razões para divergir de tal jurisprudência, a decisão judicial não poderá deixar de ser sustentada em fundamentação convincente, baseada nalguma diferença relevante entre as situações de facto ou novos argumentos que porventura não tenham sido apreciados, de tal modo que a divergência não se justifica por si mesma, antes deve ser encarada como o resultado de um percurso que, sem hiatos, tenha como ponto de partida a letra da lei e percorra todas as etapas intermédias.

7. Porém, o valor reforçado da jurisprudência uniformizada não resulta apenas destas considerações de ordem genérica ou de outras que apelam ao tratamento isonómico de situações idênticas (princípio da igualdade que emerge do art. 8º, nº 3, do CC) ou à tutela dos vetores da certeza e da segurança jurídica na aplicação da lei e na resolução dos litígios.

O legislador, acautelando atitudes de pura rebeldia, associou à figura dos acórdãos uniformizadores regras de natureza instrumental que contribuem para a natural aceitação e acatamento da respetiva jurisprudência pelos tribunais inferiores e pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça.

O tendencial respeito pela jurisprudência definida através dos acórdãos de uniformização é projetada a partir de diversas normas:

a). Nos termos do art. 629º, nº 2, al. c), do CPC, é sempre admissível recurso de qualquer decisão, independentemente do valor da causa, quando o tribunal de 1ª instância ou a Relação desrespeitem jurisprudência uniformizada;

b). Nos casos em que está vedado o 3º grau de jurisdição por motivos diversos do valor do processo ou da sucumbência, é possível interpelar o Supremo através de recurso de revista quando o acórdão recorrido contrarie outro acórdão da Relação (ou do Supremo), sobre a mesma questão fundamental de direito, mas esse recurso é vedado se acaso o acórdão recorrido tiver aderido a jurisprudência uniformizada (art. 629º, nº 2, al. d));

c). Constitui obstáculo à admissibilidade de revista excecional sustentada em alguma contradição jurisprudencial o facto de o acórdão recorrido ter aderido a uma tese uniformizadora emanada do Supremo (art. 672º, nº 1, al. c));

d). Impede a admissão de revista interlocutória regulada no art. 671º, nº 2, al. b), o facto de o acórdão da Relação ter acatado jurisprudência uniformizada;

e) Na Relação ou mesmo no Supremo o recurso pode ser julgado singularmente pelo relator quando incidir sobre questão que tenha sido decidida de modo uniforme ou reiterado, nos termos dos arts. 656º e 679º (e, por maioria de razão, quando a questão jurídica tenha uma resposta uniformizada pelo Supremo);

f). Ao nível do próprio Supremo Tribunal, a eventual discordância que seja manifestada relativamente a alguma uniformização jurisprudencial impõe ao relator ou aos adjuntos o dever de proporem ao Presidente o agendamento de julgamento ampliado da revista de forma a permitir que o Pleno das Secções Cíveis possa de novo debruçar-se a fim de alterar ou de sustentar a solução já anteriormente uniformizada (art. 686º, nº 2, do CPC);

g) O recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência deve ser liminarmente rejeitado se acaso o acórdão do Supremo que é objecto desse recurso tiver aderido a jurisprudência uniformizada, nos termos do art. 688º, nº 3.

São essas regras que, como a prática o evidencia, têm contribuído para a generalizada aceitação dos acórdãos de uniformização de jurisprudência, de tal modo que, mesmo sem natureza vinculativa formalmente derivada de algum preceito legal, acabam de facto por ser acolhidos pelos tribunais e aceites pela generalidade dos demais profissionais do foro, constituindo a ora reclamante uma exceção que apenas confirma aquela regra.

8. Neste contexto, mesmo sem norma alguma que atribua aos acórdãos de uniformização de jurisprudência a força obrigatória que, por exemplo, está agora prevista no art. 927º do novo CPC brasileiro para as súmulas vinculantes emanadas do  Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, os mecanismos de controlo situados a jusante têm sido suficientes para quebrar certos impulsos geradores de discordâncias injustificadas, prevenir os perigos de um eventual individualismo exacerbado e determinar o corrente respeito pela interpretação uniformizadora assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Ainda que destituída de força obrigatória geral, por via de imposição constante em norma legal, a jurisprudência uniformizadora acaba por se impor aos tribunais inferiores e até ao próprio STJ em recursos posteriores, na medida em que persistam os pressupostos que a determinaram.

Assim, tendo em conta o sentido e o valor que se atribuiu à jurisprudência uniformizada, parece óbvio que, enquanto se mantiverem as circunstâncias em que se baseou a tese do Supremo, os Tribunais Judiciais devem acatá-la, na medida em que, não o fazendo, além de esse não acatamento poder representar uma quebra injustificada do valor da segurança jurídica e das legítimas expectativas dos interessados, podem ser provocados graves danos na celeridade processual e na eficácia dos tribunais, considerando a previsível derrogação da decisão em caso de interposição de recurso” – fim de citação.

Em suma, ao contrário do alegado pela recorrente, tal como consta do acórdão uniformizador de jurisprudência supracitado, “a bonificação do fator 1.5 prevista na alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais aprovada em anexo ao Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro é aplicável a qualquer sinistrado que tenha 50 ou mais anos de idade, quer já tenha essa idade no momento do acidente, quer só depois venha a atingir essa idade, desde que não tenha anteriormente beneficiado da aplicação desse fator; 2. O sinistrado pode recorrer ao incidente de revisão da incapacidade para invocar o agravamento por força da idade e a bonificação deverá ser concedida mesmo que não haja revisão da incapacidade e agravamento da mesma em razão de outro motivo”, inexistindo qualquer violação dos artigos 20.º, 21.º e 48.º, todos da LAT e da instrução n.º 5 da TNI.

Assim sendo, improcedem as conclusões da recorrente, impondo-se a manutenção da decisão recorrida em conformidade.


***

IV – Termos em que se decide julgar a apelação totalmente improcedente com integral confirmação da sentença impugnada[3].

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Custas a cargo da apelante.

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Sumário[4]:

(…).


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Coimbra, 24 de outubro de 2025

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(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Mário Sérgio Ferreira Rodrigues da Silva)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)



[1] Sublinhados e negritos nossos
[2] O acórdão recorrido que deu origem ao AUJ, P. nº 33/12.4TTCVL.C1. de 12.04.2023 desta Relação, foi relatado pelo ora também relator
[3] Sobre a temática em causa e no sentido do decidido no presente acórdão vejam-se, entre outros, os Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 30.01.2025, processo n.º 1258/18.4T8STR.2.E1 e o Ac. da RP de 12.05.2055, P.1664/11.5TTPNF-A.P1 e a decisão sumária proferida no P. 16299/23.1T8LSB.L1.4, todos disponíveis no site da dgsi.
[4] Da exclusiva responsabilidade do relator.