DESCARATERIZAÇÃO DO ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA PELO SINISTRADO
CULPA GRAVE
Sumário

Deve considerar-se como descaracterizado, ao abrigo do artº 14º, nº 1, al. a), da Lei 98/2009 (LAT), por o sinistrado ter violado, com culpa grave, regras de segurança concretamente determinadas pela entidade empregadora, o acidente em que o mesmo, manuseando um cutelo, foi atingido no dedo polegar da mão quando manuseava uma peça de carne, o que lhe provocou um corte profundo da falange distal do polegar esquerdo com fratura dessa mesma falange sendo que, nessa ocasião, não usava luva de malha de aço, a qual tinha sido posta à sua disposição pela empregadora, tendo ainda recebido desta a adequada formação, bem como avisos quanto à obrigatoriedade da utilização da luva.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – AA, intentou a presente ação especial emergente de acidente de trabalho contra “A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.”, e B..., SA, pedindo que a ação seja julgada procedente, devendo, por via disso:

“I – Serem as RR, condenadas a reconhecerem como de trabalho o acidente descrito na P.I., bem como, a existência de nexo de causalidade entre as lesões elencadas na presente P.I. e o acidente;

II- Serem as RR, condenadas a indemnizar a A. na quantia de € 250,00, a título de despesas com transportes em deslocações tratamentos e consultas médicas, no âmbito da assistência medica recebida na sequência do suprarreferido acidente de trabalho.

III- Serem as RR, condenadas a indemnizar a A. na quantia de €10.011,43, a título de indemnização por incapacidades temporárias.

IV- Serem as RR., condenadas a pagar à A., uma pensão anual e vitalícia (ou obrigatoriamente remível) a fixar de acordo com o grau de Incapacidade Permanente Parcial do A., a calcular/determinar em função do resultado do exame por junta médica a realizar; tendo por base a retribuição anual ilíquida de € 13.698,88, desde o dia seguinte ao da alta, ou seja, 15/06/2023.

V- Serem as RR. condenadas a pagar à A., a quantia de € 100,00 a título de despesas já efetuadas com transportes em deslocações a este Juízo de Trabalho, para realização de perícia médica e outros atos processuais.

VI- Serem as RR., condenadas a pagar à A., todos os tratamentos presentes e futuros de médicos, medicamentosos, terapêuticos, cirúrgicos, de fisioterapia, psicológicos, entre outros, de que este necessite, necessárias para o tratamento das lesões sofridas no acidente de trabalho a que se reportam os presentes autos.

VII- Serem as RR., condenadas a pagar à A., juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde a data do vencimento das prestações pecuniárias em atraso até ao seu efetivo e integral pagamento – cfr. Art. 135º do C.P.T.”

Para tanto, alega, em síntese, tal como consta da sentença impugnada, que:

- No dia 28 de maio de 2022, pelas 07:45 horas, na ..., a sinistrada, ora A., estava na secção do talho, na Rua ..., ..., ... ..., a cortar um cabrito, com um cutelo, tendo com aquele, feito um corte profundo da falange distal do polegar esquerdo com fratura dessa mesma falange, tendo em consequência desse traumatismo resultado cicatriz no dorso do dedo e perda da extensão por secção tendinosa.

- O acidente ocorreu quando a sinistrada estava a trabalhar sob as ordens, direção e fiscalização da sua entidade empregadora, B..., SA, NIF ...93, com sede na Rua ..., ... ..., no estabelecimento supra identificado em 2, em execução de um contrato de trabalho com esta celebrado.

- À data do acidente a sinistrada tinha a categoria profissional de cortadora de carne e auferia a remuneração base mensal de € 740,00 x 14 meses, acrescida de € 5,40 x 242 dias de subsídio de alimentação, e ainda outro subsídio no montante de € 169,34 x 12 meses, a que corresponde a retribuição anual ilíquida de € 13.698,88.

- A entidade empregadora tinha a responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho da sinistrada transferida para a companhia de seguros suprarreferida, pela apólice nº ...17, e em função da retribuição atrás referida.

- Do acidente resultaram para a sinistrada, direta e necessariamente, pelo menos, as lesões examinadas e descritas no relatório pericial de clínica médico-legal de fls. 68 e 69.

- No referido relatório pericial de clínica médico-legal de fls. 68 e 69, efetuado pelo perito médico neste Juízo do Trabalho, foi arbitrada à sinistrada, a partir de 15-06-2023, dia seguinte à data da altura, uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 6%.

- A sinistrada despendeu €100,00 (50,00 cada viagem) com transportes nas suas deslocações obrigatórias a este Juízo do Trabalho para realização de perícia médica e atos judiciais, cujo pagamento reclama.

- A sinistrada despendeu pelo menos a quantia de € 250,00, a título de despesas com transportes em deslocações para tratamentos e consultas médicas, no âmbito da assistência medica recebida na sequência do suprarreferido acidente de trabalho.

- Não tendo recebido o valor devido pelas incapacidades temporárias de que andou portadora, no montante de 10.011,43€.

- Mais alega a autora que não existiam nas instalações da 2ª R., luvas de malha de aço para a A., pois, as que existiam eram velhas e largas, não permitindo à A. a destreza para serem usadas com segurança, pois, ficavam largas na mão.

- Por outro lado, só existiam disponíveis para todos os trabalhadores desse sector do talho e carnes, 3 luvas em malha de aço, uma de tamanho grande, outra de tamanho médio, outra de tamanho pequeno.

- Mais, o acidente ocorreu em plena pandemia do Covid 19, no qual era impeditivo ou pelo menos recomendado não partilhar equipamentos ou luvas usadas por terceiros, com vista a impedir a disseminação de contágio do Covid 19.

- Daí, a A. bem como a maioria das restantes colegas de trabalho, com o conhecimento dos seus superiores, não fazerem uso dessas luvas de malha de aço.

- Conclui assim que o acidente de trabalho ocorreu, por a 2ª R., não proporcionar o equipamento de segurança à A., nomeadamente luvas de malha de aço, bem como por as superiores da A., trabalhadoras da 2ª R., permitirem que os trabalhos de corte de carne e desmanche de peças de carne fossem realizados sem o uso de luvas de malha de aço.

- Por outro lado, a A. nunca teve qualquer formação, antes do acidente de trabalho, no que toca às regras de saúde e de segurança no trabalho, nomeadamente, que equipamento e procedimentos devia respeitar, tomar e usar, aquando procedesse ao corte de carne e peças de carne, incluindo, se devia usar luva de malha de aço, e em que circunstâncias.

Pede por isso a autora a condenação das rés nos pedidos acima referidos.


+

Contestou a Ré Seguradora alegando, em breve síntese, não aceitar a sua responsabilidade, por entender que o sinistro ocorreu por a Autora ter adotado uma conduta temerária em alto e relevante grau, o que determina a descaracterização do acidente, ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º 1, al. e b) da L.A.T.

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Contestou a Ré entidade empregadora defendendo, quanto ao sinistro, que não teve qualquer culpa na sua ocorrência, já que facultou o adequado equipamento de proteção, ministrou formação para o seu uso e alertou para a obrigatoriedade do mesmo ser utilizado aquando das operações de corte de carne e manuseamento de facas, não lhe podendo por isso ser assacada qualquer responsabilidade na reparação do acidente objeto dos autos.

+

Citado o Instituto de Segurança Social, IP, veio o mesmo apresentar pedido de reembolso, alegando que pagou à sinistrada, na qualidade de seu beneficiário, a título de subsídio de doença o montante de 2.923,27 (dois mil, novecentos e vinte e três euros e vinte e sete cêntimos), cujo reembolso reclama.

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Por despacho de fls. 186, datado de 26.02.2024, foi a autora convidada a aperfeiçoar a sua petição inicial no que respeita às despesas médicas, medicamentosas e de transporte alegadas, convite a que acedeu a fls. 188.

***

II. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, tendo sido selecionada a matéria de facto considerada assente com enunciação dos temas de prova e, no prosseguimento dos autos veio a ser proferida sentença em cujo dipositivo se lê:

“Assim sendo, e tendo em conta os considerandos tecidos, decide-se julgar totalmente improcedente a ação e, em consequência, decide-se absolver as rés “A... – Companhia de Seguros, S.A.”, e B..., SA, de todo o peticionado”.


***

III – Inconformado veio a sinistrada apelar, alegando e concluindo:

(…).


+

Respondeu o B..., concluído:

(…).


+

O Exmº PGA emitiu fundamentado parecer no sentido de que “como se decidiu no citado Acórdão de 9/02/2024, também aqui, por deficiência e também falta de fundamentação, face ao disposto no artigo 662º, n.º 2, al. c) do CPC, deve ser anulada a sentença, a fim do Tribunal a quo fundamentar devidamente a matéria de facto, designadamente, os factos impugnados pela recorrente”, devendo “a decisão proferida ser mantida nos seus precisos termos”.

+

Ambas as partes apresentaram resposta a este parecer.

***

IV – A 1ª instância considerou provados os seguintes factos[1]:

Factos alegados na petição inicial:

1) A sinistrada (ora A.) nasceu a ../../1992.

2) No dia 28 de Maio de 2022, pelas 07:45 horas, na ..., a sinistrada, ora A., estava na secção do talho, na Rua ..., ..., ... ..., a cortar um cabrito, com um cutelo, tendo com aquele, feito um corte do polegar esquerdo.

3) O acidente ocorreu quando a sinistrada estava a trabalhar sob as ordens, direção e fiscalização da sua entidade empregadora, B..., SA, NIF ...93, com sede na Rua ..., ... ..., no estabelecimento supra identificado em 2, em execução de um contrato de trabalho com esta celebrado.

4) À data do acidente a sinistrada tinha a categoria profissional de cortadora de carne e auferia a remuneração base mensal de € 740,00 x 14 meses, acrescida de € 5,40 x 242 dias de subsídio de alimentação, e ainda outro subsídio no montante de € 169,34 x 12 meses, a que corresponde a retribuição anual ilíquida de € 13.698,88.

5) A entidade empregadora tinha a responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho da sinistrada transferida para a companhia de seguros suprarreferida, pela apólice nº ...17, e em função da retribuição atrás referida.

6). Do acidente resultaram para a sinistrada, direta e necessariamente, as lesões examinadas e descritas nos autos de fls. 26 e 38 do Apenso B, aqui dados por reproduzidos.

7) No referido Apenso, foi arbitrada à sinistrada uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 5,91%, desde 28.12.2023.

8) A sinistrada não está paga das indemnizações devidas a título de incapacidades temporárias.

9) A sinistrada despendeu €100,00 (50,00 cada viagem) com transportes nas suas deslocações obrigatórias a este Juízo do Trabalho para realização de perícia médica e atos judiciais, cujo pagamento reclama.

10) A sinistrada despendeu pelo menos a quantia de € 250,00, a título de despesas com transportes em deslocações para tratamentos e consultas médicas, no âmbito da assistência medica recebida na sequência do supra referido acidente de trabalho.

11) A. realizou as seguintes deslocações, em carro próprio, suportando o custo das respetivas deslocações para consultas e/ou tratamentos, prestados pela seguradora ou que constituíram terapêutica adequada à melhoria do seu quadro clínico subsequente às lesões físicas contraídas no acidente:

a. 02/06/2022 – Deslocação da ... ao Hospital Luz em Coimbra, para consulta marcada pela R. Seguradora;

b. 28/06/2022 – Deslocação da ... ao Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco para consulta na especialidade de Ortopedia;

c. 26/07/2022 – Deslocação da ... ao Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco para consulta na especialidade de Fisiatria;

d. 20/09/2022 – Deslocação da ... ao Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco para consulta na especialidade de Ortopedia;

e. 21/09/2022 – Deslocação da ... ao Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco para tratamento de fisioterapia;

f. 26/09/2022 – Deslocação da ... ao Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco para tratamento de fisioterapia;

g. 27/10/2022 – Deslocação da ... ao Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco para consulta de Fisiatria;

h. 27/12/2022 – Deslocação da ... ao Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco para consulta de Fisiatria;

i. 28/02/2023 – Deslocação da ... ao Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco para consulta de Fisiatria;

j. 04/05/2023 – Deslocação da ... ao Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco para consulta de Fisiatria;

k. 07/12/2023 – Deslocação da ... ao Hospital Amato Lusitano em Castelo Branco para consulta de Fisiatria;

12) A A. não utilizava luva em malha de aço aquando do acidente.

Fatos alegados pelo Instituto de Segurança Social IP:

13) O Instituto de Segurança Social, IP, pagou à sinistrada, na qualidade de seu beneficiário, a título de subsídio de doença o montante de 2.923,27 (dois mil, novecentos e vinte e três euros e vinte e sete cêntimos).

Fatos alegados na contestação da ré seguradora:

14) Aquando do corte do cabrito referido em 2), a mão esquerda da trabalhadora/sinistrada segurava a peça de cabrito e a mão direita manuseava o cutelo;

15) Quando a trabalhadora/sinistrada bateu com o cutelo na peça de cabrito, cortou o polegar da mão esquerda;

16) Foi o contacto da lâmina do cutelo que provocou a lesão do polegar da mão esquerda.

17) Resulta das Instruções de Trabalho, com as Regras de Segurança a serem utilizadas no talho que, relativamente aos Equipamentos de Protecção Individual, nomeadamente, “* É obrigatório o uso de luva de malha de aço com antebraço nas operações de corte, desmancha, desossa e afiação de facas no fusil; * É obrigatória a utilização de avental de malha de aço nas operações de desmancha e desossa.

18) À autora foi dada formação para a execução dos trabalhos que habitualmente exercia, no talho da loja do B..., S.A.,

19) As referidas Instruções encontravam-se afixadas em local visível e de livre acesso, na zona de trabalho, no talho.

20) À autora tinha à disposição equipamentos de proteção individual, nomeadamente, luva de malha de aço, fornecidos pela entidade empregadora.

21) A autora tinha perfeito conhecimento que, na execução de trabalhos de corte de peça de carne, era obrigatória a utilização de luva de malha de aço,

22) e que, no momento do sinistro dos presentes autos, de forma consciente e deliberada, não utilizava a luva de malha de aço.

23) A trabalhadora/sinistrada encontrava-se a proceder aos trabalhos de corte/desmanche de uma peça de carne, na secção do talho, não utilizando naquela circunstância a luva de malha de aço, cuja utilização era obrigatória, permitindo, de forma consciente e voluntária, o contacto do cutelo que manuseava com a mão direita, no polegar da mão esquerda, provocando o seu corte.

24) A trabalhadora/sinistrada não impediu o contacto da lâmina do cutelo com o seu dedo polegar da mão esquerda,

25) Sendo certo que devia ter utilizado a luva de malha de aço, que lhe havia sido fornecida pela entidade empregadora, evitando e prevenindo que as mãos ficassem no raio de contacto da lâmina do cutelo por si utilizado.

26) A Autora bem sabia que era obrigatório o uso de luva de malha de aço nas operações de corte, desmanche, desossagem e afiação de facas no fusil, e a sua não utilização colocaria em risco a sua integridade física,

27) dado que o risco de contacto da lâmina dos utensílios de corte, como o cutelo, nos dedos e mão da Autora era real.

Fatos alegados na contestação da ré entidade empregadora:

28) À data do sinistro existia uma luva de malha de aço para cada trabalhador do talho.

29) Luvas essas que se encontravam em boas condições de utilização,

30) E que estavam no local para serem obrigatoriamente usadas pelos trabalhadores do talho da loja, sempre que realizassem operações de corte.

31) À hora a que ocorreu o sinistro, a Autora estava sozinha na secção de talho.

32) O sinistro ocorreu no horário de abertura da loja, estando a Autora sozinha no local.

33) Pelo que, a mesma tinha ao seu dispor todas as luvas de aço e malha de aço que existiam no talho.

34) A Ré exige que as luvas de malha de aço sejam frequentemente higienizadas, sendo certo que o cumprimento de tal operação permite que as luvas sejam usadas por qualquer colaborador da loja, seja em que período for, mesmo durante os períodos em que vigoraram normas referentes à pandemia Covid 19.

35) A Autora recebeu diversas formações.

36) E recebeu formação especifica em segurança e higiene no trabalho na área de talho, recebeu formação para obtenção do cartão de manipulador de carnes, toda em data anterior ao sinistro:

37) Além das formações recebidas, a equipa de gerência de loja dá expressas indicações aos colaboradores da área talho para que estes usem os equipamentos de proteção individual.

38) Indicações que foram dadas em diversos dias à própria Autora e bem assim aos demais colaboradores da área de talho da loja.

39) Se a autora estivesse a utilizar a luva de malha de aço no momento em que sofreu o acidente este não se tinha produzido,

40) A Autora teria evitado o corte e todas as demais consequências que poderá ter sofrido em consequência.

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Factos não Provados:

Não resultaram provados, com relevo para a decisão da causa, os seguintes factos:

Fatos alegados pela autora:

1) Não existiam nas instalações da 2ª R., luvas de malha de aço para a A.

2) As que existiam eram velhas e largas, não permitindo à A. a destreza para serem usadas com segurança, pois, ficavam largas na mão.

3) Por outro lado, só existiam disponíveis para todos os trabalhadores desse sector do talho e carnes, 3 luvas em malha de aço, uma de tamanho grande, outra de tamanho médio, outra de tamanho pequeno.

4) O acidente ocorreu em plena pandemia do Covid 19, no qual era impeditivo ou pelo menos recomendado não partilhar equipamentos ou luvas usadas por terceiros, com vista a impedir a disseminação de contágio do Covid 19.

5) Daí, a A. bem como a maioria das restantes colegas de trabalho, com o conhecimento dos seus superiores, não fazerem uso dessas luvas de malha de aço.

6) Após o acidente em causa, a 2ª R. disponibilizou aos trabalhadores do talho e sector de carnes, equipamento individual no qual constava luvas de malha de aço pessoais e de acordo com o tamanho das mãos dos trabalhadores.

7) Tendo os trabalhadores, incluído a A., assinado documento de recebimento dessas luvas de malha de aço.

8) A A. nunca teve qualquer formação, antes do acidente de trabalho, no que toca às regras de saúde e de segurança no trabalho.

9) Nomeadamente, que equipamento e procedimentos devia respeitar, tomar e usar, aquando procedesse ao corte de carne e peças de carne.

10) Nomeadamente se devia usar luva de malha de aço, e em que circunstâncias.


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V - Conforme decorre das conclusões da alegação da recorrente que, como se sabe, delimitam o objeto do recurso, as questões a decidir podem equacionar-se do seguinte modo:

1. Se há lugar à alteração da matéria de facto.

2. Se o acidente se encontra descaraterizado não dando lugar à reparação.

Da alteração da matéria de facto:

(…).

Da descaracterização:

Na tentativa de conciliação realizada na fase não contenciosa em que intervieram, para além do magistrado do MºPº, a sinistrada e a companhia de seguros, não foi possível colocar um termo ao processo porque a sinistrada entendeu ser portadora de uma IPP superior a 6%, enquanto a seguradora entendeu existir violação das regras de segurança por parte da sinistrada (não utilização de equipamento de segurança nomeadamente a não utilização de luva em malha de aço).

Iniciada a fase contenciosa com apresentação da p.i. a sinistrada demandou não só a seguradora como também a empregadora alegando que, para o caso de se entender que a seguradora não tem qualquer responsabilidade na reparação, sempre esta responsabilidade deve recair sobre a empregadora na medida em que o acidente ocorreu devido a inobservância de regras de segurança por parte do empregadora[2] (por não proporcionar o equipamento de segurança à A., nomeadamente luvas de malha de aço; por as superiores da A., trabalhadoras da empregadora, permitirem que os trabalhos de corte de carne e desmanche de peças de carne, fossem realizadas sem o uso de luvas de malha de aço e por não lhe ter sido ministrada qualquer formação, antes do acidente de trabalho, no que toca às regras de saúde e de segurança no trabalho)[3].

Na contestação, a seguradora, reafirmando a posição por si já assumida na tentativa de conciliação alegou que o acidente ocorreu por inobservância por parte da trabalhadora das normas de segurança no trabalho (artº 8 da contestação) para, na parte final da sua contestação, enquadrar o comportamento da sinistrada na causa de descaraterização prevista na alínea b) do nº 1 do artº 14º da LAT (negligência grosseira), causa de descaraterização esta que não se confunde com a causa prevista na alínea a) do mesmo normativo, sendo que as duas causas de descaraterização não podem coexistir desde logo porque, decidindo-se pela descaraterização com base na inobservância das regras de segurança, deixará de poder verificar-se a negligência grosseira na medida em que esta terá de revestir a característica de exclusividade.

A empregadora na sua contestação começa por alegar que para a eventualidade da presente ação ser julgada procedente, deverá o tribunal julgar verificada a transferência da responsabilidade indemnizatória para a Ré A..., S.A.

Mais alega que não tem qualquer culpa na eclosão do acidente, tendo facultado o adequado equipamento de proteção, ministrado formação para o seu uso e para a obrigatoriedade do seu uso e ordenou que o mesmo fosse sempre usado aquando das operações de corte e manuseamento de carne e facas.

A sentença concluiu que o acidente não ocorreu em resultado da inobservância por parte da entidade empregadora das regras sobre segurança e saúde no trabalho.

E passou a analisar a questão de saber se o acidente ocorreu devido a negligência grosseira da sinistrada por entender ter a seguradora invocando como causa de descaraterização o disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 14.º da LAT.

Ora, como se disse a seguradora na tentativa de conciliação imputa a eclosão do acidente à inobservância por parte da sinistrada de regras de segurança, o que reafirmou na sua contestação:

Importa, assim, saber se se verificou a alegada inobservância.

Relativamente ao fundamento de descaracterização previsto na segunda parte da alínea a), do nº 1, do art. 14º, exige-se que: a) as condições e regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou pela Lei se mostrem conexionadas com o risco decorrente da atividade profissional exercida, ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua atividade laboral; b) o sinistrado tenha conhecimento de tais condições e regras de segurança; c) que se verifique o nexo de causalidade entre o ato ou omissão cometida pelo trabalhador e o acidente de que este foi vítima, ocasionado por violação das referidas regras; e d) inexistência de causa justificativa tal como esta se encontra definida no nº 2 do citado artº 14º.

O ónus da prova da descaracterização, como facto impeditivo do direito do trabalhador à reparação cabe à entidade responsável por essa mesma reparação.

Como norma de segurança instituída pelo empregador da sinistrada, encontra-se a regra do uso obrigatório de luva de malha de aço com antebraço nas operações de corte, desmancha, desossa e afiação de facas no fusil.

Esta norma, instituída pelo empregador, encontra-se conexionada com o risco decorrente da atividade profissional e da execução do trabalho que estava a ser executada pela sinistrada.

Com efeito, a atividade desempenhada implicava para a sinistrada um risco traduzido na possibilidade de vir a sofrer um corte na mão ou até noutra parte do corpo.

Por outro lado, a sinistrada, como resulta, da matéria de facto, tinha perfeito conhecimento da norma instituída pelo seu empregador, ou seja, que tinha de utilizar luvas de malha de aço, conhecimento aquele que resulta não só da formação que lhe foi ministrada como também das expressas indicações que são feitas pela empregadora aos colaboradores da área talho para que estes usem os equipamentos de proteção individual, não se esquecendo ainda que as instruções se encontravam afixadas em local visível e de livre acesso, na zona de trabalho.

Relativamente ao nexo de causalidade, aplicando aqui[4] o que o STJ decidiu no AUJ6/2024, de 13 de maio (Diário da República n.º 92/2024, Série I de 2024-05-13) 1 não temos dúvidas de que, atentas as circunstâncias do caso concreto, a violação por parte da sinistrada das mencionadas regras de segurança se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, pelo que se encontra verificado o imprescindível nexo de causalidade.

Na verdade, bastava um ligeiro desvio na trajetória do cutelo para que o seu gume viesse a atingir a mão da sinistrada e não a peça de carne que pretendia cortar.

Por último, não ocorreu qualquer causa justificativa para o não cumprimento ou observância por parte da sinistrada da regra sobre segurança que lhe tinha sido comunicada.

Mas, para que esta causa de descaraterização opere é necessário que a violação das regras de segurança pelo sinistrado se fique a dever a um comportamento subjetivamente grave, a uma culpa grave do sinistrado.

O STJ outrora entendia que nestes casos para que o acidente fosse descaraterizado não se exigia a prova da culpa do sinistrado na eclosão do evento, bastando a inobservância da regra.

A jurisprudência evoluiu no sentido de se exigir a prova do comportamento subjetivamente grave do sinistrado; e isto, ao que cremos, no seguimento das lições do agora Conselheiro Júlio Gomes que na obra “O Acidente de Trabalho, O acidente de trabalho in itinere e a sua descaraterização” escreveu, designadamente (pgªs 240 a 242) “…não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaraterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, ao que acresce que outras “justificações” poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito da tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deve ser aferida em concreto e não em abstrato e não poderá deixar de atender a fatores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a eventual passividade do empregador perante condutas similares no passado – até porque muitos especialista sublinham que o desrespeito por regaras de segurança resulta muitas vezes, de o trabalhador tentar encentrar “atalhos” para produzir mais rapidamente, sobretudo quando lhe são impostos ritmos de produção muito elevados ou de o trabalho ter sido, anteriormente, elogiado ou apreciado, apesar do empregador bem saber que tinha sido prestado com violação de regras de segurança – e simplesmente, fatores  fisiológicos e ambientais, como o cansaço, o calor ou o ruído existentes no local de trabalho”

Todavia, entendemos que esta culpa grave não poderá ser entendida como equiparada à negligência grosseira sob pena da alínea b) do nº 1 do artºs 14º da LAT ficar vazia de conteúdo.

No caso, a autora no exercício das suas funções de cortadora de carne, utilizou um cutelo para proceder ao corte de um cabrito sem usar para o efeito luva de malha de aço, permitindo assim o contato o gume do cutelo com a sua mão.

A autora tinha disponíveis luvas de malha de aço e sabia da obrigatoriedade da sua utilização para a tarefa que estava a executar. Optou, no entanto, por manusear a peça de carne (cabrito) a cortar com a mão sem qualquer proteção, devendo conhecer que um qualquer pequeno desvio na trajetória do cutelo, para mais impulsionado com alguma força, podia atingir a sua mão.

Como se escreveu na sentença “… a sinistrada estava a desenvolver uma tarefa que implicava o uso de um cutelo, pelo que necessariamente teria de desferir um golpe, que poderia (ou não) acertar no local pretendido, deixando por isso a mão que estava a segurar a peça de carne à mercê da sorte”.

Como tal, entendemos que a sinistrada agiu com culpa grave, razão pela estão reunidos todo os pressupostos da causa de descaratização revista na alínea a) do nº 1 do artº 14º da LAT


***

VI – Termos em que, embora com um enquadramento inteiramente não coincidente com o da 1ª instância, se delibera julgar a apelação totalmente improcedente, com integral confirmação da sentença impugnada:

*

Custas em ambos os recursos a cargo do autor.

*

Sumário[5]:

(…).


*

Coimbra, 24 de outubro de 2025

*

(Joaquim José Felizardo Paiva)

(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)

(Mário Sérgio Ferreira Rodrigues da Silva)



[1] Indo os factos impugnados pela recorrente realçados a negrito.
[2] O que, a verificar-se, faria com que a reparação tivesse de observar o regime previsto no artº 18º da LAT.
[3] Na tentativa de conciliação, que deve servir como delimitadora das questões a decidir na fase contenciosa, a sinistrada não deixou de se conciliar por entender ter o acidente ocorrido devido à inobservância de regras de segurança pela sua empregadora, sendo que não resulta minimamente dos autos que só tivesse conhecimento dos factos em que alicerça essa pretensa violação em data posterior à tentativa de conciliação, tudo até indicando o contrário, ou seja, que na data da realização da tentativa de conciliação não se encontrasse  já na posse de todos os elementos que lhe permitiriam fazer consignar no respetivo auto ter o acidente eclodido em consequência dessa pretensa violação.
[4] Embora o AUJ tenha sido tirado num caso em estava em causa a inobservância de regras de segurança por parte do empregador, não vemos que não possa ter também aplicação quando aquela inobservância seja do sinistrado.
[5] Da exclusiva responsabilidade do relator.