A existência de contrato de trabalho afere-se com recurso ao regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes, sendo que na falta de uma data precisa, é adequado atender ao “tempo” que se retira da factualidade apurada.
(Sumário elaborado pelo Relator)
*
AA, por si e como representante legal dos seus filhos menores BB e CC, instauraram ação especial, emergente de acidente de trabalho, contra B... – Companhia de Seguros, SA, tendo formulado os seguintes pedidos:
“Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada e, ser declarado que o Sinistro está a coberto daApólice nº ...05;
E em consequência ser a Ré Seguradora condenada a pagar aos Autores:
a) - indemnização relativa ao período Incapacidade Temporária Absoluta referente a 288 dias, no valor de 6.959,34€.
b) - uma pensão anual vitalícia relativa ao período Incapacidade PermanenteAbsoluta no valor de 27.589,96€;
c) - subsídio por situações de elevada incapacidade permanente no valor de 5.792,29€;
d) - prestação suplementar para assistência a terceira pessoa, no valor de 5.792,29€.
e) - ao pagamento dos medicamentos, tratamentos e deslocações, no valor de 5.747,25€;
f)- ao pagamento da institucionalização do Sinistrado nos cuidados continuados, no valor de 1.502,80;
g) - prestação por morte, no valor de 3.780,00€; h) - subsídio por morte na quantia de 7.421.68€;
i) - a pagar o funeral do Sinistrado, no valor de 1.725,00€;
j) - despesas de transporte de deslocação, no valor de 15,00€
k) - aos menores uma pensão anual e temporária, no montante de 2.520,00€ para cada um.
l)- Juros de mora, sobre as quantias vencidas e vincendas até integral e efetivo pagamento.
m)- condenada no pagamento de custas e procuradoria condigna.”
“Deve ser dado provimento ao Chamamento requerido e, deve a presente ação ser considerada improcedente, com as legais consequências”
“Nestes termos e com o douto suprimento, deve a chamada ser absolvida do pedido pela R. seguradora por não ser responsável pela produção do acidente e consequente reparação, em virtude da inexistência de contrato de trabalho com o sinistrado, que apenas lhe prestava serviços na qualidade de trabalhador independente e ter celebrado contrato de seguro com a R., sobre a qual recai a responsabilidade da reparação.”
“Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente o pedido principal e absolver deste a seguradora e totalmente procedente o pedido subsidiário e, em consequência:
A) condenar a entidade empregadora A..., Unipessoal, Lda a pagar aos autores as seguintes prestações referentes ao período temporal que mediou entre o acidente, a data da alta e do óbito;
I) Indemnização, nos termos dos Arts. 23º, al. b), 47º, n.º 1, al. a), 48º, n.º 1 e n.º 3, al. d) e 50º da Lei n.º 98/2009, do período de Incapacidade Temporária Absoluta (288 dias) em valor a liquidar (= € RA: 365 x 70 % x d);
II) Pensão anual e vitalícia a liquidar ulteriormente, nos termos dos Arts. 23º, al. b), 47º, n.º 1, al. c), 48º, n.º 2 e n.º 3, al. a), 71º e 75º da Lei n.º 98/2009, devida desde 03/11/2020 (o dia seguinte ao da alta do Sinistrado – Art. 50º, n.º 2 da Lei n.º 98/2009), no valor a liquidar (P=RA x 0,8), acrescida de 10% desta por cada pessoa a seu cargo, até ao limite a retribuição no valor; a ser paga em 1/14 até ao 3.º dia cada mês e ainda os subsídios de férias e de natal, de idêntico montante, a serem pagos em junho e em novembro (Art. 72º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 98/2009), a qual deverá ser atualizada em 1%, nos termos da Portaria n.º 6/2022, de 4 de janeiro e em 8,4%, nos termos da Portaria n.º 24-A/2023, de 9 de janeiro.
III) Subsídio por situações de elevada incapacidade permanente, nos termos dos Arts. 23º, al. b), 47º, n.º 1, al. c), 48º, n.º 2, al. a), e 67º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, no valor € 5.792,29 (IASx1,1x12);
IV) Prestação suplementar mensal para assistência a terceira pessoa, a liquidar, paga 14 vezes por ano, nos termos do disposto no art.º53.º a 55.º e 72º, nº 4 da Lei n.º98/2009, de 04/09, no valor de € 635,00 (em 2020), € 665,00 (em 2021) € 705,00 (em 2022) e € 760,00 (em 2023), devida desde o dia seguinte ao da alta, suspensa nos períodos de internamento do sinistrado em hospital, ou estabelecimento similar, por período de tempo superior a 30 dias.
V) Com dependência de ajudas medicamentosas e técnicas no montante de € 5747,25.
VI) juros de mora à taxa legal, sobre cada uma das prestações devidas, desde o respetivo vencimento e até integral pagamento – art.º 135º do CPT.
B) E condenar a entidade empregadora A..., Unipessoal, Lda. a pagar à viúva do sinistrado, enquanto beneficiária legal, as seguintes prestações:
a) – A pensão a liquidar devida a partir 01/03/2023 – artºs 56º nºs 1 e 2, 57º nº 1 al. a) e 59º nº 1 al. a) da Lei 98/09, de 04/09.
b) - A quantia de € 3.170,84 referente a subsídio por morte (artigo 65º/1 e 2 al. a) da Lei 98/09 de 04/09).
c) – A quantia de € 1.725,00 referente a subsídio de funeral, cfr. fls. 326 (artigo 66º/1 a 2 da Lei 98/09 de 04/09.
d) - A quantia de € 15,00 referente a despesas de transporte.
e) - Juros de mora à taxa legal, sobre cada uma das prestações devidas, desde o respetivo vencimento e até integral pagamento – art.º 135º do CPT.
C) Condenar a entidade empregadora A..., Unipessoal, Lda. a pagar a cada um dos filhos do sinistrado – CC e BB, enquanto beneficiários legais, as seguintes prestações:
a) – A pensão anual e temporária no montante a liquidar, devida a partir 01/03/2023 – art.ºs 56º nºs 1 e 2, 57º nº 1 al. c) e 60º nº 1 al. a) da Lei 98/09, de 04/09.
b) - A quantia de € 3.170,84 referente a subsídio por morte, sendo de €1.585,42 (artigo 65º/1 e 2 al. a) da Lei 98/09 de 04/09).
c) - Juros de mora à taxa legal, sobre cada uma das prestações devidas, desde o respetivo vencimento e até integral pagamento – art.º 135º do CPT.
Julgar inteiramente procedente o pedido de reembolso formulado pelo ISS/Centro Distrital de Coimbra e condenar a entidade empregadora A..., Unipessoal, Lda. a pagar a quantia de € 900,09, acrescida de juros de mora desde a citação até integral reembolso.”
(…).
(…).
(…).
“assim, que em caso de procedência do recurso da Ré “A..., Unipessoal, Lda” deverá, então, ser negado provimento ao recurso da Ré seguradora, com a consequente responsabilização e condenação desta pela reparação do acidente, ou seja, nas prestações já fixadas na “Decisão”, na douta sentença recorrida.”
O objeto do recurso é balizado pelas conclusões do apelante, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito, conforme resulta dos artigos 5.º, n.º 3, 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1, e 608.º, todos do CPC.
Assim, importa, no caso, apreciar e decidir:
(recurso da R. Construções)
- se deve ser alterada a matéria de facto apurada na decisão (impugnação da decisão sobre a matéria de facto);
- se o Sinistrado não devia, ao tempo do sinistro, ser considerado trabalhador dependente ou na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviço;
(ampliação do âmbito do recurso a requerimento da R. Seguradora)
- se deve ser alterada a matéria de facto apurada na decisão (impugnação da decisão sobre a matéria de facto);
- se deve ser descaracterizado o acidente por resultar de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei (considerando-se o Sinistrado, ao tempo do sinistro, trabalhador independente);
- ou resultar de exclusiva negligência grosseira do Sinistrado;
- se o comportamento do Sinistrado, por reportado à inobservância das disposições legais de segurança, não se mostrar abrangido pela apólice.
A – Factos provados
A decisão recorrida declarou como provados os seguintes factos:
1. O Sinistrado/falecido, na data do acidente, estava inscrito como Empresário em Nome Individual dedicando-se à construção de edifícios (residenciais e não residenciais), tendo um certificado de Empreiteiro de Obras públicas com o nº ...95... e inscrito no IMPI desde 10/07/2003.
2. Efetuando, nessa qualidade, o pagamento da contribuição da sua Segurança Social.
3. Emitindo faturas/recibos que se juntam como docs nºs 5 e 6, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4. Cobrou os serviços prestados a DD e EE conforme facturas/recibos que se juntam como docs. nºs 7 e 8, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5. A Autora AA deixou de trabalhar no Restaurante e Café C... para prestar apoio e os cuidados ao seu marido.
6. Em virtude do acidente, o Sinistrado necessitou de ajudas técnicas, nomeadamente colchão anti escara, sondas de alimentação, fraldas, sonda vesical.
7. O Sinistrado no período de 02/10/2020 até ao dia 28/02/2023 necessitou de medicamentos, fisioterapia, suplementos alimentares e deslocações de ambulância para consultas e tratamentos, o quer acarretou um custo no valor de 5.747,25.
8. Por virtude da situação Clínica do sinistrado e para descanso da cuidadora, ao longo do período que mediou o acidente e o falecimento do Sinistrado, foi necessário coloca-lo em unidades de cuidados continuados.
9. Para o efeito, foi despendido pela aqui Autora a quantia total de 1.502,80€, referente às unidades de cuidados continuados.
10. A Autora despendeu o valor de 1.725,00€ no funeral do Sinistrado.
11. A Autora despendeu a quantia de 15,00€, referente a despesas de transporte de deslocação a este Tribunal.
12. FF era beneficiário da Segurança Social inscrito no Centro Distrital de Coimbra com o nº ...96.
13. O beneficiário/sinistrado recebeu o subsídio de doença, ininterruptamente desde 20/1/2020 até 6/7/2020 no montante de € 900,09.
14. O local do acidente era uma obra de remodelação e ampliação da habitação unifamiliar.
15. No local existia um tabique (tabua de madeira).
16. O falecido colocou um tabique (tábua de madeira) entre o andaime montado sobre a laje do 1º andar e a parede (muro) existente junto ao beiral, próximo da chaminé a derrubar /demolir.
17. Não existia a linha da vida nem arnês que impedissem a queda em altura.
18. O falecido não usava arnês de segurança.
19. A tarefa a realizar pelo falecido seria a demolição / derrube da chaminé.
20. O utensílio “cinto de segurança” e o “arnês” eram utensílios descritos na lista de distribuição de equipamentos de proteção individual.
21. Na Ficha de Aptidão para o Trabalho da empresa A..., Unipessoal Lda, consta como trabalhador o próprio FF – documento nº 6
22. Na Ficha de distribuição de Equipamentos de Proteção individual nº 10 da Obra Remodelação e Ampliação de uma Habitação Unifamiliar, consta como trabalhador FF, com a categoria de manobrador de Equipamentos, em trabalho de demolição - documento nº 7
23. No Plano de Segurança e Saúde no Trabalho, consta como entidade executante a empresa A... Unipessoal Lda. e o risco de queda em altura decorrente dos trabalhos em coberturas é identificado como risco alto.
24. Consta do Plano de Segurança e Saúde no Trabalho, que é obrigação do empreiteiro assegurar que cada trabalhador da obra possui aptidão física para o exercício das suas funções (ponto 3.5.8)
25. No Plano de Segurança e Saúde no Trabalho, consta, no ponto 3.5.9 que constitui obrigação da entidade empregadora assegurar a formação e informação dos trabalhadores tendo em conta as funções que desempenham e o posto de trabalho que ocupam.
26. O sinistrado frequentou o curso de formação profissional de operador/manobrador de máquinas de movimentação de terras em 20/10/2012 documento nº 8.
27. FF era o encarregado da obra.
28. O horário de trabalho de FF era igual ao de todos os demais trabalhadores da empresa A... Unipessoal Lda.
29. A obra onde ocorreu o evento que deu origem à presente ação – Remodelação e Ampliação de Habitação Unifamiliar – foi adjudicada ao empreiteiro geral A... Unipessoal Lda.
30. Consta do Plano de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho que “compete aos intervenientes na execução da empreitada a todos os níveis, cumprir e garantir o cumprimento das determinações que constam desse Plano” e, em particular, à Entidade
Executante, “Respeitar o disposto na legislação em matéria de segurança … cooperar com todas as entidades presentes na obra no sentido de garantir o desenrolar dos trabalhos em boas condições de segurança … assegurar a formação e informação aos trabalhadores, nomeadamente … correta utilização dos equipamentos de proteção individual… garantir o disposto na Legislação relativamente a acidentes de trabalho”.
31. Na definição de Objetivos (ponto 2.1) o Plano de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho refere “realizar todos os trabalhos de forma a proporcionar a todos os trabalhadores da obra condições de segurança…”.
32. Na fixação de regras para atingir os objetivos, o Plano de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho refere: “cumprir toda a legislação e regulamentação do âmbito da segurança e saúde no trabalho” e “promover as ações necessárias para dar instruções adequadas aos trabalhadores, para que seja compreendido por todos as ações a implementar para assegurar a segurança no trabalho”.
33. Do Plano de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho, consta como risco especial “demolições” (ponto 2.5) e acrescenta “Para os trabalhos referidos… o empreiteiro definirá… as medidas preventivas e de proteção adequadas para garantir a segurança…”
34. Do Plano de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho consta no ponto 4.5.4, o Plano se Proteções Coletivas e no ponto 2.5.5 o Plano de Proteções Individuais.
A decisão recorrida declarou não provados os seguintes factos:
Da petição inicial:
Artº 26º como trabalhador independente [para o caso de se entender que tem algum conteúdo fáctico], prestando os seus serviços
Artº 29º E para fazer face aos seus pagamentos, cobrava à referida Empresa pelos seus serviços prestados…
art 31º prestava tais serviços, na qualidade de Trabalhador Independente [para o caso de se entender que tem algum conteúdo fáctico]
Da contestação da seguradora:
37 - onde o falecido se encontrava aquando da queda.
40 - O falecido caiu, desemparado, porque não usava nenhum meio de proteção individual
41 – Para aceder ao telhado, o falecido subiu pelo andaime montado no interior da obra
42 - nem plataformas móveis
44 – Não existia guarda-corpos.
45 – Não existia qualquer plataforma de trabalho interior
52 – A chaminé começou a tombar para dentro do edifício e o falecido manteve-se em cima do tabique (madeira).
53 – O tabique estava solto.
55 – Quando a chaminé tombou, caiu sobre o tabique (solto) arrastando este e o falecido.
56 – Ato contínuo, o falecido foi arrastado pela queda da chaminé.
81 – das 08:00 horas às 17:00 horas.
“Inexistem outros factos articulados pelas partes suscetíveis de inclusão entre os factos provados e não provados, quer por encerrarem matéria conclusiva e/ou de direito quer por traduzirem mera impugnação da matéria alegada na petição inicial ou instrumental para a apreciação da causa.”
Como referido supra, os presentes autos reportam-se a saber se ocorreu um acidente de trabalho, se ocorreu violação de normas de segurança ou negligência grosseira por parte do sinistrado que o descaracteriza, e, não se verificando, a determinação dos danos indemnizáveis, respetivo cálculo e responsável.
Vejamos então as questões suscitadas pelo recurso.
(…).
A Recorrente pugna que a sentença em crise errou ao considerar o Sinistrado, ao tempo do sinistro, trabalhador dependente ou na dependência económica da pessoa em proveito da qual prestava serviço, violando o disposto nos artigos 34.º e 349.º do CC, 7.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, 8.º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, e 3.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
Alega para o efeito que se mostra violado o princípio do ónus da alegação e prova, pois, que tal ónus incumbia aos AA./ beneficiários, nos termos dos artigos 342.º e 349.º do CC.
Mais alega que a presunção aplicada pelo Tribunal a quo, reportada ao artigo 12.º do atual Código do Trabalho, carecia da prova da data do início do alegado vínculo laboral.
Finalmente, mesmo aplicando-se o referido artigo, no caso dos autos, não se verificam os requisitos daquela presunção.
Por sua vez, a Recorrida Seguradora pugna que a decisão em crise não violou as referidas disposições legais e/ ou erro de direito no caso em análise.
Os Recorridos Beneficiários também pugnam pela conformidade da sentença em crise.
Alegam, para o efeito, que as presunções são retiradas de um facto conhecido, independentemente de quem o traz a conhecimento ou dele beneficie.
Mais alegam que se verificam os requisitos para o enquadramento da presunção do artigo 12.º do CT.
Vejamos.
A decisão em crise, no âmbito da fundamentação de direito, consignou que:
“O art. 12° n.º 1 do Código do Trabalho estabelece que se presume a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;
b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade;
c) O prestador da atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;
d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma.
e) O prestador da atividade desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.
O art.º 11.º do CT2009 define contrato de trabalho como aquele em que uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra pessoa ou outras pessoas, no âmbito da organização e sob a autoridade destas.
Face a tal disposição legal tem-se entendido que são típicos do contrato de trabalho, por um lado, o elemento de subordinação jurídica quanto ao “modus faciendi” de execução do contrato, traduzida no facto de o trabalhador se encontrar, no exercício da sua atividade, sob as ordens, direção e fiscalização do dador de trabalho e, por outro lado, o elemento de subordinação económica, traduzida no facto de o trabalhador receber certa retribuição do dador de trabalho, constituindo, assim, um status ou situação de vida em que um dos contraentes se acha subalternizado relativamente ao outro.
É a subordinação jurídica o elemento fundamental para se conhecer da existência de um contrato de trabalho, já que este elemento, a existir, determina que se conclua pela existência de relações de trabalho subordinado, por contraposição ao contrato de prestação de serviços, que é fonte da constituição de relações de trabalho autónomo.
A propósito da noção de subordinação jurídica diz-nos o prof. Monteiro Fernandes que esta “consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem (Direito do Trabalho, vol. I, 7.ª edição, p. 105)[1].
No entanto, muitas vezes, como refere aquele professor “a subordinação pode não transparecer em cada momento da prática de certa relação de trabalho...a aparência é de autonomia do trabalhador, que não recebe ordens diretas e sistemáticas da entidade patronal, devendo, no entanto, concluir-se que existe, na verdade, subordinação jurídica” (ob. e loc. cit.). São os casos das actividades exercidas pelos médicos, engenheiros e advogados em que dependência técnica e científica não são necessárias à subordinação jurídica, podendo esta restringir-se a directrizes do empregador em matéria de organização do trabalho, v.g., local, horário.
Por isso a doutrina tem entendido que existe subordinação jurídica sempre que haja a possibilidade de a entidade patronal orientar a atividade laboral em si mesma, ainda que só no que respeita ao lugar ou ao momento da sua prestação[2].
Ora, para se concluir se o trabalhador esta ou não subordinado é necessário, algumas vezes, recorrer a determinados indícios que a doutrina e a jurisprudência têm consagrado, por forma a possibilitar um juízo de aproximação da situação real ao conceito de subordinação no seu estado puro, sendo esse um juízo de globalidade, pois cada índice isolado tem um valor relativo, sem que possa afirmar-se quantos índices se tornam necessários para estar caracterizada uma situação de subordinação ou de trabalho autónomo. Refira-se que é ao trabalhador que invoca a existência de um contrato de trabalho que incumbe o ónus de provar essa existência, através da verificação dos seus elementos constitutivos, pois àquele “que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”, nos termos do disposto no art.º 342.º, n.º 1 C.Civ[3].
Assim, como elementos indiciadores têm a doutrina e a jurisprudência apontado[4]: a) o regime de retribuição, em que uma retribuição certa (em função do tempo) indicia trabalho subordinado, por estar relacionado com a atividade do trabalhador, enquanto o pagamento à unidade ou em montantes incertos e sem periodicidade inculca trabalho autónomo, por relacionado com o resultado; b) a existência de horário de trabalho; c) o local de trabalho, sendo característico do contrato de trabalho a prestação da atividade em instalações do empregador ou em local por este designado (e não no domicílio ou em instalações do trabalhador); d) a existência de controlo externo do modo da prestação da atividade, bem como a obediência a ordens e a sujeição à disciplina da empresa, fazem igualmente presumir a subordinação; e) o carácter genérico do trabalho, porquanto uma prestação indeterminada indicia o contrato de trabalho, enquanto uma determinada indicia a prestação de serviços; f) fornecimento de matérias-primas, equipamentos ou outros elementos pelo dador de trabalho; g) exclusividade; h) inexistência de pessoal assalariado por conta do trabalhador. Além destes elementos, relativos ao momento organizatório da subordinação, costumam referir-se outros de carácter formal e externo, como o cumprimento dos deveres fiscais e para com a segurança social, próprios do trabalho por conta de outrem.
No caso dos autos provou-se que FF, no dia 20/01/2020, encontrava-se numa obra sita no n.º ...1 da Rua ..., em ..., a trabalhar como pedreiro [al. A]. A obra onde ocorreu o evento que deu origem à presente ação – Remodelação e Ampliação de Habitação Unifamiliar – foi adjudicada ao empreiteiro geral A... Unipessoal Lda. [28.].
Na Ficha de Aptidão para o Trabalho da empresa A..., Unipessoal Lda, consta como trabalhador o próprio FF – documento nº 6 [21]. Na Ficha de distribuição de Equipamentos de Proteção individual nº 10 da Obra Remodelação e Ampliação de uma Habitação Unifamiliar, consta como trabalhador FF, com a categoria de manobrador de Equipamentos, em trabalho de demolição [22.].
Além disso FF praticava horário de trabalho que era igual ao de todos os demais trabalhadores da empresa A... Unipessoal Lda. [28.]
E também se provou que FF era o encarregado da obra [27.].
Estão, pois, presentes as características determinantes que consubstanciam um contrato de trabalho (art. 12º do Código do Trabalho) ou, de outro modo, dir-se-á que as relações estabelecidas entre o sinistrado e a interveniente configuram totalmente a existência de um contrato de trabalho.
É certo que o sinistrado se encontrar “enquadrado como trabalhador independente”, quer para efeitos fiscais quer para efeitos de contribuições à segurança social, mas esse facto por si só, analisado à luz dos depoimentos acima referidos, é francamente insuficiente para inferir que se tratava de um mero prestador de serviços.
E o mesmo se diga quanto ao facto de o sinistrado ter contratado com a Ré uma Apólice de Seguro Obrigatório de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes já que esta não infirma por si só que aquele pudesse exercer uma atividade por conta de outrem.
Considerando que o Sinistrado firmara e tinha em vigor com a Ré “B... – Companhia de Seguros, S.A." um acordo escrito, pelo qual esta assumia a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho que o Sinistrado sofresse no seu serviço, enquanto trabalhador independente (por conta própria) e não sendo este o caso, deve a seguradora ser absolvida do pedido, recaindo a responsabilidade sobre a interveniente na sua qualidade de empregadora e sendo certo que, para além do mais, se presume que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços, conforme estabelece o artº 3º, nº 2 da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro (LAT), aplicável ao caso.
Assim sendo, uma vez que o falecido era um trabalhador por conta de outrem e sofreu acidente, no local e tempo de trabalho, que lhe produziu lesão corporal de que resultou redução na capacidade de trabalho ou de ganho e posteriormente a sua morte, estamos perante um acidente de trabalho.”
Adiante-se, desde já, que se concorda com a conclusão a que chegou o Tribunal a quo.
Vejamos porquê.
Em primeiro, importa assinalar que os artigos 342.º e 349.º, ambos do CC, ao contrário do pugnado pela Recorrente, não impõem como condição para a sua aplicação que a alegação e prova do facto conhecido que permite firmar o facto desconhecido resulte do labor processual/ probatório do Beneficiário.
O que os artigos nos determinam é, antes, a identificação daquele a quem cabe fazer a alegação e prova e, bem assim, as consequências da sua não realização/ concretização, ou seja, a não demonstração da realidade da vida de que a sua posição dependia.
Porém, salvo o devido respeito, tal não obsta que o Tribunal considere os factos trazidos ao seu conhecimento e os valore de forma livre, impendentemente da sua origem, nomeadamente por ser também livre na sua subsunção jurídica.
Aliás, estranho era que o Tribunal a quo perante a alegação e prova de factos que reputa como relevantes, independentemente da sua origem, não os considerasse para efeitos da decisão que, como é mister, se quer conforme à realidade e justa.
Não obstante, mesmo admitindo-se a posição da Recorrente, que não é o caso, importa recordar que no caso em análise, face à posição das partes, teremos certamente de considerar que também é beneficiária daquela alegação e prova a R. Seguradora, nomeadamente por (poder) ver excluída a sua responsabilidade pela liquidação dos créditos decorrentes do sinistro.
Em segundo lugar, dar conta que se conhece que a jurisprudência do STJ “está consolidada de forma uniforme de que estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabelecerem o regime de presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes”(cfr. Ac do STJ de 4 de julho de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1).
Assim como se conhecem as “dúvidas” enunciadas por João Leal Amado a respeito daquela solução jurisprudencial e que o levam a preconizar solução diversa, ou seja, à imediata sujeição às novas normas dos contratos celebrados à sombra das normas anteriores (cfr. Eb_trabalho subordinado_trabalho antónomo2edicao, Centro de Estudos Judiciários, pág. 50 e segs.) e bem assim o Ac do TRL de 3 de dezembro de 2014, proferido no âmbito do processo n.º 2923/10.0TTLSB.L1-4, que aplica a lei vigente à data da cessão do contrato.
Porém, o caso que nos ocupa reveste a particularidade de não estar apurada a data exata em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes, sendo que a sua demonstração corresponde a ónus dos beneficiários.
Não obstante, certos daquela jurisprudência constante e do referido ónus, julgamos que não nos afastamos destes se aplicarmos, como o fez o Tribunal a quo, o regime resultante do Código do Trabalho atual, ou seja, o que resultou da Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro.
Efetivamente, na falta de uma data em concreto julgamos adequado atender ao “tempo” que se retira da factualidade apurada e bem assim da prova produzida, sendo que desta é possível, nem que não seja em termos de mudança na configuração da relação, ficarmo-nos “pelo tempo” em que andaram na obra onde ocorreu o acidente, ou seja, há 5 a 6 meses, como referiu a testemunha GG, ou mesmo retroagir a 2012 (17 de agosto), por ser a data em que o Sinistrado emitiu “recibo verde eletrónico (declaração AT) por serviços de construção prestados a DD (doc. 7 junto com a p.i.).
Em abono da verdade, julgamos que se impõe fazer referência à “fatura-recibo” (declaração AT), de 4 de fevereiro de 2020, emitida em nome do Sinistrado ao adquirente EE por serviços prestados, em particular, para assinalar que esta foi emitida após o acidente (20 de janeiro de 2020) e, no pressuposto que esta efetivamente corresponde a serviços prestados, que as testemunhas HH e GG afirmaram perentoriamente que o “FF só andava em obras do Sr. BB” e que “a trabalhar para outros só fora do horário normal sendo que trabalhou com o FF anos”, teremos de concluir (assumindo o pressuposto) que foi prestado fora de horário normal de trabalho.
Dito isto, seja em qualquer uma das referidas datas, sempre seria aplicável a versão do CT/2009.
Em terceiro lugar, assinalar que se verificam os requisitos para operar a presunção da existência do contrato de trabalho a que alude o referido artigo 12.º do CT.
Efetivamente, a atividade era desenvolvida em local determinado pelo beneficiário, no caso, uma obra que lhe fora adjudicada, como outras existiram, tal como disso deram conta as testemunhas HH e GG; os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados, exceto aqueles que de acordo com a prática do setor são “pessoais”, como acontece também com as referidas testemunhas, pertencem ao beneficiário, seja o veículo em que se deslocava, juntamente com os demais trabalhadores, do estaleiro para a obra, sejam as “ferramentas elétricas” e as de porte/ grande; a atividade era desenvolvida num tempo de trabalho, pelo menos no caso da obra em que ocorreu o sinistro, ou seja, nos últimos 5 a 6 meses, determinado pela beneficiária, pois que se juntavam no estaleiro da R. Construtora e se deslocavam na viatura desta para a obra e no regresso da mesma; finalmente que o prestador desempenhava funções de chefia na obra.
Finalmente, que subscrevemos a apreciação efetuada em relação ao “modos faciendi” de execução do contrato, em particular, tendo presente que o legal representante da R. Construtora, como assinalaram as já referidas testemunhas, “todos os dias de manhã destinava o trabalho” ou que “o FF recebia ordens do pai” ou ainda “ás vezes o Sr. II chegava à obra e dizia o que era para fazer”; bem como à subordinação económica, pois que, apesar de não se ter logrado apurar a retribuição (certa) auferida e ainda de também ser apicultor, como assinalou o cônjuge sobrevivo, a verdade é que se apurou que ao longo dos últimos anos, eventualmente após o já referido ano de 2012, que “sempre trabalhou nas obras do pai” e que “o fazia a tempo inteiro”, o que seguramente condiciona o seu status ou situação de vida.
Assim como também secundamos a apreciação efetuada ao nível dos elementos indiciadores que a jurisprudência e a doutrina têm apontado.
Aliás, na ponderação efetuada dos elementos indiciadores, tendo o Tribunal a quo também dado conta dos que nos remetem para o “trabalho independente”, como sejam o regime fiscal e contributivo, a verdade é que estes, de natureza formal, mostram-se eclipsados pelos demais elementos indicadores que conformam o “trabalho dependente”, em particular aos que respeitam ao chamado “momento organizatório” da subordinação.
De facto, os indícios de caracter formal e externo – regime fiscal e de segurança social – não são prevalentes só por si e, como é comum nos contratos de prestação de serviços encapotados, não alteram a natureza das relações efetivamente existentes.
Dito isto, recordando que os Beneficiários lograram demonstrar os pressupostos da presunção da existência de contrato de trabalho, sendo que, por sua vez, a R. Construtora, nos termos do artigo 350.º do CC, não logrou ilidir, mediante prova em contrário, a presunção apurada.
Dito de outra forma, dimensionando-se os elementos em confronto por forma a percecionar que tipo de contrato efetivamente regulava a relação entre o Sinistrado e a R. Construtora, temos então que os Beneficiários lograram demonstrar a existência de um contrato de trabalho.
Nessa medida, improcede a pretensão da Recorrente Construtora.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
Bernardino Tavares
Paula Maria Roberto
Mário Rodrigues da Silva
[1] No mesmo sentido, RC, 24-1-89, CJ, I, p. 98 e mais recentemente RP, 21/10/2019, processo 227/18.9T8MTS.P1, https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/ee8f6630f92978b8802584bf003afee5?OpenDocument e STJ, 12/10/2022, processo 3347/19.9T8BRR.L1.S1, https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/36b86cbaba8d0a2f802588da0049a765?OpenDocument
[2] Monteiro Fernandes, ob. cit. e Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 1992, p. 286 e ss.
[3] STJ, 28-6-94, CSTJ, II, p. 284 e STJ, 1/6/2022, processo nº 21116/18.1T8LSB.L1.S1, https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4f52eea23b7057ad80258856002e55a1?OpenDocument
[4] Motta Veiga, Lições de direito do Trabalho, 1995, p. 356 e ss., parecer da Procuradoria Geral da República de 28-5-81, BMJ, 312, p. 104 e ainda STJ, 17-2-94, Ac. Dout., 391, p. 900.