SUSPEIÇÃO
APENSAÇÃO
APENSAÇÃO DE AÇÕES
TEMPESTIVIDADE
PRAZO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
QUEIXA-CRIME
INIMIZADE GRAVE
Sumário

I. A pretensão de escusa (ou de suspeição) tem de ser, individualmente, apresentada relativamente a cada processo a cargo do julgador objeto de escusa/suspeição.
II. Todavia, sendo apresentada tal pretensão num apenso, a decisão de deferimento da escusa/suspeição terá abrangência de efeitos relativamente a todos os demais apensos que compõem o mesmo processo.
III. Não se mostra possível a apensação de ações, não só não ocorre nenhuma das situações que, subjetivamente, determinaria a apensação de processos, como, por outro lado, o estado dos processos não é o mesmo.
IV. O incidente de suspeição deve ser deduzido desde o dia em que, depois de o juiz ter despachado ou intervindo no processo, nos termos do artigo 119.º, n.º 2, do CPC, a parte for citada ou notificada para qualquer termo ou intervier em algum ato do processo, sendo que, o réu citado pode deduzir a suspeição no mesmo prazo que lhe é concedido para a defesa – cfr. artigo 121.º, n.º 1, do CPC.
V. Pela regra geral sobre os prazos para a prática de atos processuais (cfr. artigo 149.º, n.º 1, do CPC), o prazo para deduzir o incidente de suspeição é de 10 dias, conforme ao estatuído no artigo 149.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, contando-se a partir do conhecimento do alegado facto que a fundamenta.
VI. As invocação da requerente da suspeição, de que, a sua advogada não conhece o Juiz requerido, nem nunca teve intervenção em processos a este distribuídos, mas “é manifesto que existe grave inimizade daquele em relação à aqui mandatária (…) circunstância, que inequívocamente resulta quer do teor da queixa apresentada contra a aqui mandatária, quer da acusação formulada, é de molde a criar suspeita séria sobre a imparcialidade do Sr. Juíz na condução dos autos principais” e de que o “Sr.Juíz requerido, em circunstâncias idênticas relativamente a outros mandatários, de imediato requereu escusa nos respectivos processos, o que suscita dúvidas acrescidas acerca do critério seguido”, não permitem concluir sobre a existência de grave inimizade entre o Juiz requerido e a requerente ou a sua Advogada, sendo que, a Advogada da requerente da suspeição não conhece o Juiz requerido, não se sintomatizando alguma relação de inimizade, pressupondo esta, claro está, a existência de relação entre os contendores. Do mesmo modo, a questão de o Juiz ter pedido escusa em determinados processos e não o fazer noutro ou noutros não constitui também válido critério ou razão para justificar a suspeição deduzida, não viabilizando, sem qualquer elemento – que não é aduzido pela requerente da suspeição – qualquer juízo conclusivo no sentido de ter sido ou poder ser posta em causa a imparcialidade devida relativamente ao processo a que respeita a suspeição deduzida.
VII. Por seu turno, a existência de um processo criminal com origem em queixa-crime apresentada pelo Juiz contra a Advogada, relativos a factos e mandato de noutro processo é insuscetível de recondução ao conceito de “inimizade grave”, relevante para efeitos de suspeição, previsto no art.º 120.º, n.º 1, al. g), do C. P. Civil. A haver “inimizade grave” essa dirigir-se-ia da mandatária para o julgador, não constituindo “…motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, configurando-se a sua invocação, por parte do mesmo Mandatário, como a utilização de um ato da sua própria autoria (eventuais ilícitos criminais) em proveito próprio (afastamento do juiz do processo).
VIII. A apresentação de queixa-crime constitui exercício de um direito de cidadania não podendo reconduzir-se, só por si, ao conceito de “inimizade”.
IX. O incidente de suspeição tem os efeitos expeditos previstos nos art.ºs 122.º, n.º 2 e 125.º, n.º 1, do C. P. Civil, fazendo intervir o juiz substituto, que o mesmo é dizer, afastando de imediato o juiz de que se discorda, mas não é o meio adequado para prosseguir tal escopo, com a invocação de uma queixa-crime anterior.
X. Ajuizando uma situação de inimizade com o Juiz titular do processo em que iria cumprir mandato forense, pela existência de queixa-crime anterior, deveria a mandatária ter declinado o mandato.
XI. Na atuação da requerente – a parte do processo – verifica-se que, não dispondo de qualquer fundamento objetivo que lhe permitisse suspeitar da imparcialidade do Juiz – o qual, há muito, tramitava os autos -, utilizando uma vicissitude anterior, relacionada com a advogada que mandatou, visou lograr o afastamento do Juiz Titular da condução e decisão do processo (pelo menos, até à decisão deste incidente) fazendo uma utilização desviante do instituto da suspeição, tendo litigado de má fé. A requerente conhecia e não podia deixar de conhecer a gravidade da imputação da suspeição, fundada em inimizade e consequente parcialidade, cerne da função de juiz e causa primeira da sua dignidade, tendo agido, senão com dolo, pelo menos, com negligência grosseira ou grave, pois, uma outra pessoa, colocada na sua situação, não se prestaria a mostrar adesão ou a mandatar a prática do ato processual – de apresentação do requerimento de suspeição - correspondentemente praticado.
XII. A Advogada que subscreveu o requerimento do incidente de suspeição não podia desconhecer os fatos constantes dos autos – e, designadamente, a circunstância de que o Juiz requerido tramitava nos autos na data em que apresentou procuração nos autos - afigurando-se que tal conhecimento deveria ter determinado (se não, a não aceitação de mandato em processo onde figurava juiz relativamente ao qual a mesma advogada tinha o processo criminal que refere), pelo menos, a abstenção de subscrição do requerimento de suspeição que subscreveu, precisa e unicamente, com fundamento na existência de tal processo criminal. Tal circunstância é suscetível de a fazer incorrer nas sanções previstas no artigo 545.º, do CPC, a ponderar pelos órgãos próprios da Ordem dos Advogados.

Texto Integral

Processo nº 18/23.5T8MFR-A.L1
Suspeição
7.ª Secção

*
a) Da apensação:
No requerimento apresentado nos presentes autos em 19-05-2025, a requerente da suspeição concluiu que o incidente suscitado “deve (…) ser julgado tempestivo e ordenada a apensação ao incidente que corre termos na 8ª Secção deste Venerando Tribunal, o que se requer”.
Invocou a referida requerente, nomeadamente, que:
“(…) 22. Em suma, o presente incidente visa apreciar o mesmo fundamento de suspeição já deduzido anteriormente noutro apenso com a mesma parte, mandatária e intervenção do mesmo Juiz.
23. Assim, a não ser que se entendesse que a parte tem de deduzir a suspeição em todos os apensos em que intervém representada pela mesma mandatária, o que carece de todo de fundamento legal, não pode existir intempestividade neste incidente quando se encontra já pendente outro noutro apenso que é anterior e tempestivamente deduzido.
24. Entende a Requerente, salvo melhor opinião, que o presente incidente deve ser apensado ao primeiro a correr termos na 8ª Secção, a fim de pôr termo à confusão originada, a qual, em caso algum poderá ser imputada à Requerente.
25. De resto, por causa do ocorrido nos presentes autos, num outro incidente de suspeição requerido no âmbito de outro processo, a correr termos no Tribunal de Família de Mafra, no qual intervém a mandatária signatária em representação de outra parte, foi desde logo alegado que tal incidente era extensível a todos os apensos, para prevenir entendimentos como o defendido pelo Sr. Juiz Requerido em causa”.
Ora, conforme se assinalou na decisão proferida pelo signatário em 29-02-2024 (processo n.º 666/24.6YRLSB, disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/b12143e5646d112680258ad6004afaed?OpenDocument):
“Respeitando o novo apenso (…) ao mesmo processo/causa onde, nos autos principais, foi já concedida escusa à Sra. Juíza, a decisão que, intuitu personae, reconheceu existir circunstância ponderosa suscetível de poder fazer suspeitar da sua imparcialidade, é extensiva a todos os demais autos que corram por apenso”.
Os incidentes de escusa respeitam à decisão sobre a continuidade de intervenção, ou não, do julgador a quem o processo foi distribuído.
“O deferimento da escusa implica o afastamento do juiz da tramitação dos autos onde foi deferida a escusa e a todos os que a ele forem extensíveis” (assim entendeu o signatário na decisão proferida no processo n.º 2821/21.1T9PDL-I.L1-2, deste Tribunal, em 15-10-2024 e disponível em: https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/87776521a25ddc7b80258be9005cda1b?OpenDocument).
Ou seja: A pretensão de escusa (ou de suspeição) tem de ser, individualmente, apresentada relativamente a cada processo a cargo do julgador objeto de escusa/suspeição.
Claro está que, sendo apresentada tal pretensão num apenso, a decisão de deferimento da escusa/suspeição terá abrangência de efeitos relativamente a todos os demais apensos que compõem o mesmo processo.
No caso dos autos, muito embora o fundamento invocado pela requerente da suspeição seja o mesmo que foi apresentado no âmbito do processo n.º 870/21.9T8MFR-F.L1, que foi distribuído à 8.ª Secção – e no qual, em 14-05-2025, foi proferida decisão sumária) e, sendo embora, a referida requerente da suspeição, interveniente em ambos os processos – o 870/21 e o 18/23 – certo é que, todavia, é manifesto que não se trata do mesmo processo.
Assim, a produção dos efeitos pretendidos com a pretensão de suspeição deduzida no âmbito do processo n.º 870/21 não poderá, logicamente, estender-se a outro processo (aquele a que respeitam os presentes autos).
Mas, também, não se nos afigura possível a apensação de ações.
A apensação de ações é permitida, em processo civil, nos termos consignados no artigo 267.º do CPC, preceito legal que estabelece o seguinte:
“1 - Se forem propostas separadamente ações que, por se verificarem os pressupostos de admissibilidade do litisconsórcio, da coligação, da oposição ou da reconvenção, pudessem ser reunidas num único processo, é ordenada a junção delas, a requerimento de qualquer das partes com interesse atendível na junção, ainda que pendam em tribunais diferentes, a não ser que o estado do processo ou outra razão especial torne inconveniente a apensação.
2 - Os processos são apensados ao que tiver sido instaurado em primeiro lugar, salvo se os pedidos forem dependentes uns dos outros, caso em que a apensação é feita na ordem da dependência, ou se alguma das causas pender em instância central, a ela se apensando as que corram em instância local.
3 - A junção deve ser requerida ao tribunal perante o qual penda o processo a que os outros tenham de ser apensados.
4 - Quando se trate de processos que pendam perante o mesmo juiz, pode este determinar, mesmo oficiosamente, ouvidas as partes, a apensação.
5 - Tendo sido penhorados, em execuções distintas, quinhões no mesmo património autónomo ou direitos relativos ao mesmo bem indiviso, pode o juiz, oficiosamente ou a requerimento da parte, ordenar a apensação ao processo em que tenha sido feita a primeira penhora desde que não ocorra nenhuma das circunstâncias previstas no n.º 1 do artigo 709.º.”.
Ora, não só não ocorre nenhuma das situações que, subjetivamente, determinaria a apensação de processos, como, por outro lado, o estado dos processos não é o mesmo, pois, no referido processo n.º 870/21 foi já proferida decisão, o que, nos presentes autos ainda não ocorreu.
Assim, de acordo com o exposto, indefere-se a apensação requerida.

*
b) Da tempestividade e do mérito do incidente de suspeição:
I.
1. A …, requerida na ação declarativa constitutiva, sob a forma de processo comum, que corre termos sob o n.º 18/23.5T8MFR, no Juízo de Família e Menores de Mafra, veio, por requerimento apresentado em juízo em 04-04-2025, subscrito pela Advogada B …, deduzir incidente de suspeição, relativamente ao Juiz de Direito C …, alegando, em suma, que:
- O Juiz requerido é assistente no Proc. (…)/22.7T9MFR que corre termos no Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz (…), no qual a referida Advogada é acusada por crime de difamação agravada (protestando juntar certidão judicial comprovativa);
- Nesses autos, o Juiz requerido alega, entre outros, existir uma “cabala” ou urdidura contra si visando afetar a sua reputação profissional e pessoal, da qual, alegadamente, também faz parte a Advogada;
- Pese embora a Advogada não conheça o Juiz requerido, nem nunca ter tido qualquer intervenção em processos a este distribuídos, é manifesto que existe grave inimizade daquele em relação à Advogada, circunstância que resulta do teor da queixa apresentada e da acusação formulada, sendo de molde a criar suspeita séria sobre a imparcialidade do Juiz na condução dos autos principais;
- A Advogada juntou substabelecimento nos autos em 03-04-2025;
- Por despacho de 04-04-2025, o Juiz requerido decidiu não fazer uso da faculdade prevista no nº 1 do artº 119º do CPC, remetendo a parte para o presente requerimento, que agora apresenta ao abrigo do disposto na al) g) do nº1 do artº 120º, declarando sentir-se “com todas as condições de imparcialidade para tramitar estes autos.”;
- O fundamento da inimizade deve verificar-se do Juiz para com a parte ou a sua mandatária, não exigindo que seja recíproca;
-  A inimizade relevante deve ser conhecida ou declarada, como no caso dos autos não pode deixar de ser, atenta a pendência do aludido processo crime contra a aqui mandatária por crime de difamação agravada, já com acusação pública proferida;
- Sucede ainda que o Sr. Juiz requerido, em circunstâncias idênticas relativamente a outros mandatários, de imediato requereu escusa nos respetivos processos, o que suscita dúvidas acrescidas acerca do critério seguido, tendo a requerente conhecimento de que, pelo menos em dois casos com intervenção de mandatários em processos distribuídos ao Sr. Juiz, este imediatamente pediu escusa após a junção das procurações aos autos, o que ocorreu nos casos cujo patrocínio foi assumido pelo Sr. Dr. D …, advogado contra o qual o Sr. Juiz requerido apresentou queixa-crime por difamação agravada e ainda nos processos patrocinados pelo Sr. Dr. E …, pelo facto desse advogado ter participado num programa de TV onde foram abordadas questões relativas a este tribunal e ao Sr. Juiz requerido.
2. Na sequência do referido em 1., o Juiz de Direito visado, por despacho de 07-04-2025, veio responder - concluindo pelo indeferimento do incidente suscitado - invocando, nomeadamente, que:
“(…) A suspeição deu entrada no dia 4-4-2025.
E na ação principal, a junção da procuração deu-se no dia 3-4-2025.
E a Sra Advogada, na qualidade de comentadora de Facebook, foi acusada em novembro de 2023:
(…)
Ora, parece-me que está fora de prazo, face ao disposto no artigo 121.º-3 do CPC, que dispõe que “3 - Se o fundamento da suspeição ou o seu conhecimento for superveniente, a parte denuncia o facto ao juiz logo que tenha conhecimento dele, sob pena de não poder mais tarde arguir a suspeição. Observa-se neste caso o disposto no número anterior.”.
Ora a Senhora advogada logo que juntou a procuração deveria ter deduzido suspeição, pois bem conhecia há mais de um ano a acusação que sobre si impendia, e não o fez, afigurando-me assim que o presente incidente de suspeição é intempestivo, e nessa medida rejeitado.
Se assim não se entender, importa analisar os fundamentos invocados pela requerente, que são:
“O Sr. Juiz requerido é assistente no Proc. (…)/22.7T9MFR que corre termos no juíz (…) do Juízo Local Criminal de Lisboa, no qual é acusada a mandatária signatária por crime de difamação agravada.( cfr.certidão que se protesta juntar para os efeitos legais).
2. Nesses autos, o Sr. Juiz requerido alega, entre outros, existir uma “cabala” ou urdidura contra si visando afetar a sua reputação profissional e pessoal, da qual, alegadamente, também faz parte a aqui mandatária.
3. Pese embora o facto de a signatária não conhecer o Sr. Juiz requerido, nem nunca ter tido qualquer intervenção em processos a este distribuídos até agora, é manifesto que existe grave inimizade daquele em relação à aqui mandatária.
4. Tal circunstância, que inequívocamente resulta quer do teor da queixa apresentada contra a aqui mandatária, quer da acusação formulada, é de molde a criar suspeita séria sobre a imparcialidade do Sr. Juiz na condução dos autos principais.
5. A signatária juntou substabelecimento nos autos em 3/04/2025.
6. Por despacho datado de 4/04/2025, o Sr. Juiz requerido decidiu não fazer uso da faculdade prevista no nº 1 do artº 119º do CPC, remetendo a parte para o presente requerimento, que agora apresenta ao abrigo do disposto na al) g) do nº1 do artº 120º.
7. Mais declara no aludido despacho sentir-se “com todas as condições de imparcialidade para tramitar estes autos.”
8. Sucede porém que a verificação do fundamento da suspeição não depende do sentimento subjectivo do juíz impedido (inimizade subjectiva).
9. O que está em causa na suspeição é o próprio prestígio do tribunal, juízo que é feito pela opinião pública no caso de se verificar inimizade declarada do juiz para com a parte ou a sua mandatária, susceptível de perigar, aos olhos dos cidadãos, a falta de serenidade e imparcialidade necessárias ao desempenho normal da função de juiz.
10. É em suma a aparência, ou percepção pública de imparcialidade que a norma visa acutelar, como corolário essencial da ação de julgar e do prestígio do poder judicial.
11. Acresce que o fundamento da inimizade deve verificar-se do juíz para com a parte ou a sua mandatária, não exigindo que seja recíproca.
12. A inimizade relevante deve ser conhecida ou declarada, como no caso dos autos não pode deixar de ser, atenta a pendência do aludido processo crime contra a aqui mandatária por crime de difamação agravada, já com acusação pública proferida.
13. Sucede ainda que o Sr. Juiz requerido, em circunstâncias idênticas relativamente a outros mandatários, de imediato requereu escusa nos respectivos processos, o que suscita dúvidas acrescidas acerca do critério seguido.
14. Com efeito, a requerente tem conhecimento de que, pelo menos em dois casos com intervenção de mandatários em processos distribuídos ao Sr. Juiz, este imediatamente pediu escusa após a junção das procurações aos autos.
15. Tal ocorreu nos casos cujo patrocínio foi assumido pelo Sr. Dr. D …, advogado contra o qual o Sr. Juiz requerido apresentou queixa-crime por difamação agravada,
16. E ainda nos processos patrocinados pelo Sr. Dr. E …, pelo facto desse advogado ter participado num programa de TV onde foram abordadas questões relativas a este tribunal e ao Sr. Juiz requerido.
17. O que justifica a diversidade de critérios em situações semelhantes não se sabe, sendo certo que em todo o caso tal diversidade não pode ficar dependente do sentimento subjectivo do Sr. Juiz.
18. De resto, a única diferença entre as situações é o facto de aqui se tratar de mandatária mulher e naqueles de mandatários homens, o que certamente não poderá justificar a diferente resposta.
19. Do que vem de se expôr resulta com clareza que é manifesto existir fundamento adequado a fazer perigar a imparcialidade ( objectiva) na condução dos presentes autos, devendo a suspeição ser declarada.”
Como já se fundamentou noutro processo, e se referiu já neste, não existe qualquer incapacidade de imparcialidade da parte do signatário, como também da parte da Senhora Advogada, pois aceitou o mandato nessas circunstâncias, a não ser, como parece, que a use para que a requerente afaste o juízo do processo, situação que tem sido usada noutras circunstâncias, embora bem diferentes.
Aqui, como é referido nunca trabalhei com a Senhora Advogada, mas a participação e acusação e na sua qualidade como cidadã, não advogada, e o processo não é dos advogados, é das partes.
E quanto à pessoa que a Sra. Advogada representa, já tramitei outros processos destas partes, sem qualquer incidente, recurso, nada.
O processo pendente contra a cidadã B …, aqui advogada, será julgado e aí apenas se pede que faça justiça, sem que isso me tolhe de qualquer forma no exercício da minha função de administração da justiça nestes autos e apensos, e fá-lo-ei, como sempre, com toda a imparcialidade.
Aliás, mas aqui ao contrário, já me aconteceu ter advogados que já me tinham representado ou representam e ação minhas, onde transmiti logo nos processos que apesar dessa relação me encontrava em condições de imparcialidade para os julgar.
Ou também com amigos ou colegas de faculdade como advogados de uma das partes, e logicamente não pedi qualquer escusa, porque subjetivamente me encontrava, como me encontro aqui, subjetivamente e objetivamente em condições de imparcialidade total para tramitar a presente ação.
Logicamente, reforça-se aqui, a ideia parece ser outra, e agora de forma repetida, é talvez fugir ao juízo de FM de Mafra, violando o princípio do juiz natural, em que advogados, que nem trabalharam comigo em qualquer outra situação processual, portanto na qualidade de cidadãos me difamaram, e encontram-se acusados ou em investigação, impossibilita-me logo de tramitar processos onde estejam constituídos ou nomeados; a ser colhida este entendimento, que neste Juízo de Família e Menores de Mafra está a ser usado, é descobrir a forma de fugir e escolher juízes.
Pois aqui é simplesmente a cidadã, aqui advogada, que terá de assumir a responsabilidade pelo que me fez, caso seja condenada, sem que isso gere em mim qualquer ressentimento, e sendo condenada, que lhe suscite o resultado que o direito penal pede, a ressocialização, aprenda com os erros, que é o lema de vida em comunidade esperado de todos nós.
Depois a requerente refere processos, que não identifica, onde pedi escusa, que não conhece, porque são reservados, e dizer que a única diferença é o fato de ser mulher, logicamente não tem qualquer fundamento.
Sublinha-se pois que se a própria cidadã B … não está em condições de defender os seus clientes na qualidade de advogada, seria ela que deveria ter recusado o mandato, pois da minha parte, nada me causa qualquer perturbação ou dificuldade, encontrando-me integralmente em condições de tramitar o processo com toda a imparcialidade exigida a cada caso, até porque, refere-se e repete-se, a ação colocada e da qual está acusada, é contra a cidadã, não a advogada.
Sem sanção, não nos parece que estes comportamentos se alterem. Deverá na minha perspetiva pois ser sancionada no quadro da má-fé processual dolosa, sendo-lhe aplicada a multa de acordo com o dolo existente, o que se pede.
Pelo exposto, deverá, pois, por intempestivo ou por falta manifesta de fundamento fatual e legal, deverá o presente incidente ser indeferido, o que se pede.
(…)
No demais, abra a secção conclusão neste e no principal à Colega substituta (…)”.
3. Em 07-05-2025 foi proferido despacho proporcionando à requerente a possibilidade de exercício de contraditório relativamente à tempestividade do incidente de suspeição deduzido, arguida pelo juiz visado, cuja apreciação é de oficioso conhecimento, mas sobre a qual, não tinha sido oportunidade à mesma de se pronunciar.
4. Na sequência, por requerimento apresentado em juízo a 19-05-2025, a requerente da suspeição pronunciou-se dizendo o seguinte:
“(…) 1. Em 3/04 a Requerente juntou aos autos de Ação Comum substabelecimento a favor da mandatária signatária requerendo o seguinte: “ Verificando-se in casu o fundamento de suspeição previsto na al) g) do no 1 do artº 120º do CPC, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do artº 121º, requer seja dado cumprimento ao previsto no nº 1 do artº 119º ou, em alternativa, seja proferido despacho nos termos do nº 2 do artº 121 in fine. Mais requer, atenta a proximidade da data designada para julgamento, seja esta dada sem efeito.”
2. Por despacho datado de 4/04 decidiu o Sr. Juiz requerido o seguinte: “ Atento o fato de com as mesmas partes e Patrona agora constituída em substituição do anterior, ter sido deduzido suspeição no processo 870/21.9T8MFR, à qual já respondi e rejeitei, aguardando-se a sua subida e decisão no TRL, dá-se sem efeito sine die a data anteriormente designada para a realização da diligência de julgamento aqui agendada. No entanto, essa suspeição não tem efeitos nestes autos, pelo que também aqui terá de ser intentada um nova, porque da minha parte, como respondi no 870/21.9T8MFR-F, sinto-me com todas as condições de imparcialidade para tramitar estes autos.”
3. No mesmo dia 4/04, atento o teor do despacho, por cautela de patrocínio, a Requerente deduziu novo incidente de suspeição, aqui em causa. 4. Ora, foi neste novo incidente de suspeição no apenso de Ação Comum que veio o Sr. Juiz Requerido, por despacho de 7/04, responder ao incidente e alegar a sua intempestividade nos seguintes termos: “ Ora, parece-me que está fora de prazo, face ao disposto no artigo 121º-3 do CPC, que dispõe que “3 - Se o fundamento da suspeição ou o seu conhecimento for superveniente, a parte denuncia o facto ao juiz logo que tenha conhecimento dele, sob pena de não poder mais tarde arguir a suspeição. Observa-se neste caso o disposto no número anterior.”.Ora a Senhora advogada logo que juntou a procuração deveria ter deduzido suspeição, pois bem conhecia há mais de um ano a acusação que sobre si impendia, e não o fez, afigurando-me assim que o presente incidente de suspeição é intempestivo, e nessa medida rejeitado.”
5. Ora, salvo o devido respeito, a interpretação feita do nº 3 do artº 121º do CPC está errada.
6. Desde logo porque parte de uma permissa errada - A parte não sabe, nem tem de saber, de um fundamento de impedimento que reside na mandatária.
7. Nem a mandatária sabe, nem tem de saber, antes da intervenção num processo, quem é o juiz ao qual este se encontra distribuído.
8. Ou seja, o fundamento da suspeição só passou a existir a partir do momento em que a mandatária interveio nos autos, e após a primeira intervenção/despacho do juiz.
9. Só após o conhecimento pela mandatária da identidade do juiz que intervém na causa, o que sempre exige uma intervenção deste, é que se pode afirmar que o fundamento existe e passa a ser conhecido desta, e comunicado à parte.
10. Foi o que sucedeu nos autos de promoção e proteção, o primeiro em que a mandatária signatária interveio ( 870/21.9T8MFR-D).
11. Nesses autos, a Requerente juntou procuração a favor da mandatária em 4/03/2025.
12. No dia seguinte realizou-se conferência de pais, na qual a Requerente não esteve presente, assim como a atual mandatária.
13. Da realização dessa conferência, sem a presença de duas das progenitoras das crianças objeto de proteção, a mandatária, assim como a requerente, apenas tiveram conhecimento em 17/03, data em que foram notificadas da designação de nova data e da ata da conferência do dia 5/03 subscrita pelo Sr. Juíz requerido.
14. Foi este, e nenhum outro, o momento em que o fundamento da suspeição passou a ser conhecido pela Requerente e sua mandatária, nos aludidos autos de Promoção e Proteção a correr por apenso, o que vale quer para esse apenso quer para todos os outros, incluindo o atual.
15. A Requerente deu entrada do primeiro incidente de suspeição, nesses autos de Promoção, no dia 25/03/2025, oito dias após esse conhecimento, o que afasta qualquer intempestividade.
16. O incidente a que agora se responde foi o segundo, no âmbito de processo a correr com a mesma parte e juiz, pois esta já havia suscitado a suspeição em 25/03 no primeiro apenso em que a mandatária interveio.
17. Tal incidente, ao contrário do que entende o Sr. Juiz Requerido, é extensível a todos os apensos em que intervém a Requerente e a mandatária signatária.
18. Porém, atento o teor do despacho proferido nos autos de ação comum ( cfr. 2), remetendo a Requerente para suscitar novo incidente de suspeição também nesses autos, por cautela de patrocínio, veio esta requerer novo incidente.
19. Foi neste novo incidente que foi invocada a pretensa intempestividade, embora já estivesse pendente a suspeição requerida em 25/03, à qual de resto o Sr. Juiz Requerido faz referência no despacho proferido em 4/03.
20. Assim, nestes autos de ação comum, na data em que juntou substabelecimento - 3/04, a parte denunciou ao Juiz a existência do fundamento de suspeição ( cfr. 1), que conheceu no apenso de Promoção, nos termos do nº 3 do artº 221º do CPC, requerendo que, atento o incidente já deduzido no outro apenso, o Sr. Juiz, querendo, pedisse escusa.
21. Como no dia seguinte foi proferido o despacho a que se aludiu em 2., remetendo a parte para novo incidente de suspeição a requerer neste apenso, a Requerente apresentou novo requerimento de suspeição em 4/04.
22. Em suma, o presente incidente visa apreciar o mesmo fundamento de suspeição já deduzido anteriormente noutro apenso com a mesma parte, mandatária e intervenção do mesmo Juiz.
23. Assim, a não ser que se entendesse que a parte tem de deduzir a suspeição em todos os apensos em que intervém representada pela mesma mandatária, o que carece de todo de fundamento legal, não pode existir intempestividade neste incidente quando se encontra já pendente outro noutro apenso que é anterior e tempestivamente deduzido.
24. Entende a Requerente, salvo melhor opinião, que o presente incidente deve ser apensado ao primeiro a correr termos na 8ª Secção, a fim de pôr termo à confusão originada, a qual, em caso algum poderá ser imputada à Requerente.
25. De resto, por causa do ocorrido nos presentes autos, num outro incidente de suspeição requerido no âmbito de outro processo, a correr termos no Tribunal de Família de Mafra, no qual intervém a mandatária signatária em representação de outra parte, foi desde logo alegado que tal incidente era extensível a todos os apensos, para prevenir entendimentos como o defendido pelo Sr. Juiz Requerido em causa.
26. Em face do que vem exposto, inexiste qualquer intempestividade do presente incidente, muito menos pelos motivos alegados pelo Sr. Juiz Requerido.
Nestes termos, deve o presente incidente ser julgado tempestivo e ordenada a apensação ao incidente que corre termos na 8ª Secção deste Venerando Tribunal, o que se requer.
Requer ainda a Vª Excelência seja a Requerente isentada do pagamento de eventuais custas por decaimento neste incidente, cuja instauração foi determinada exclusivamente por decisão do Sr. Juiz Requerido”.
*
II. Considerando o que resulta dos elementos documentais dos autos, mostra-se relevante para a decisão do incidente requerido, a consideração da seguinte factualidade:
1. Em 09-01-2023,F … apresentou, junto do Juízo de Família e Menores de Mafra, petição inicial,  - dando origem aos autos de processo n.º 18/23.5T8MFR - na qual vem, “nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 1839.º e 1841.º do Código Civil, requerer a propositura pelo Ministério Público de Acção Declarativa Constitutiva sob a forma de processo comum, em vista de:
(i) Reconhecimento da paternidade relativa ao menor G …, nascido em
27/10/2017, (…), com a consequente revisão da sentença que decretou co-adopção; e,
(ii) Impugnação da paternidade presumida e ao reconhecimento da paternidade relativa à menor H …, nascida em 24/07/2022 (…);
CONTRA:
1) A …, (…), e;
2) I … (…)”.
2. Em 10-01-2023, o Juízo de Família e Menores de Mafra proferiu – nos referidos autos principais - o seguinte despacho:
“Intenta o A, o pretenso pai biológico da criança, a presente ação de impugnação e investigação da paternidade, e fá-lo contra os RR. constantes do registo no assento de nascimento da criança.
Coloca-se aqui a questão da legitimidade passiva, pois não restam dúvidas que não sendo A., a investigante, a criança, tem de ser também R. 1, e não consta como tal na petição inicial.
Notifique pois A. para aperfeiçoar a petição inicial em conformidade, sob pena de se verificar a exceção de ilegitimidade passiva plural, aqui por exigência de litisconsórcio necessário, e com ela decorrer uma decisão de indeferimento liminar”.
3. Por requerimento de 12-01-2023, o autor apresentou petição inicial aperfeiçoada.
4. Em 17-01-2023, o Juízo de Família e Menores de Mafra proferiu – nos referidos autos principais - o seguinte despacho:
“Cite os RR. para contestarem, representando o Ministério Público a criança. – cf. artigo 21.º do CPC.
(...)
Considerando a força probatória dos testes hematológicos, que desde logo poderão resolver o presente litígio, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, 411.º e 547.º do CPC, determina-se a realização dos mesmos de imediato.
Notifique as partes para o efeito do artigo 477.º do CPC, e nada tendo a opor, solicite ao INML, com recolha ao A. e RR., concedendo-se um prazo de 30 dias, aguardando os autos em conformidade (…)”.
5. Na sequência, por requerimento apresentado em juízo em 15-03-2023, as rés A … e I … vieram juntar procurações forenses constituindo mandatários o Dr. J …, a Dra. L …, a Dra. M … e a Dra. N …, ali identificados.
6. Em 17-03-2023 foi apresentada nos autos contestação em nome das referidas rés A … e I ….
7. Em 03-04-2025, a ré A …, apresentou nos referidos autos, requerimento de junção de substabelecimento sem reserva do Dr. J … a favor da Advogada, Dra. B ….
8. No dia 04-04-2025 o Sr. Juiz de Direito visado proferiu o seguinte despacho:
“Requerimento que antecede:
Atento o fato de com as mesmas partes e Patrona agora constituída em substituição do anterior, ter sido deduzido suspeição no processo 870/21.9T8MFR, à qual já respondi e rejeitei, aguardando-se a sua subida e decisão no TRL, dá-se sem efeito sine die a data anteriormente designada para a realização da diligência de julgamento aqui agendada.
No entanto, essa suspeição não tem efeitos nestes autos, pelo que também aqui terá de ser intentada um nova, porque da minha parte, como respondi no 870/21.9T8MFR-F, sinto-me com todas as condições de imparcialidade para tramitar estes autos.
Nada sendo deduzido no prazo legal, abra conclusão.
Notifique e desconvoque por qualquer meio expedito, atenta a proximidade.
E remeta o requerimento que antecede e este à suspeição pendente no 870/21.9T8MFR-F, para conhecimento (…)”.
*
III. Nos termos do disposto no nº. 1 do artigo 120.º do CPC, as partes podem opôr suspeição ao juiz quando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, o que ocorrerá, nomeadamente, nas situações elencadas nas suas alíneas a) a g).
Com efeito, o juiz natural, consagrado na CRP (cfr. artigos 32.º, n.º 9 e 203.º), só pode ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves.
E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
A dedução de um incidente de suspeição, pelo que sugere ou implica, deve ser resguardado para casos evidentes que o legislador espelhou no artigo 120.º do CPC, em reforço dos motivos de escusa do juiz, a que se refere o artigo 119.º do CPC.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
“A imparcialidade, como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo ou preconceito, em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-02-2013, Pº 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1, rel. SANTOS CABRAL).
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
“De acordo com o entendimento uniforme da jurisprudência (…), a imparcialidade pode ser avaliada sob duas vertentes, a subjetiva e a objetiva, radicando a primeira na posição pessoal do juiz perante a causa, caracterizada pela inexistência de qualquer predisposição no sentido de beneficiar ou de prejudicar qualquer das partes, e consistindo a segunda na ausência de circunstâncias externas, no sentido de aparentes, que revelem que o juiz tem um pendor a favor ou contra qualquer das partes, afectando a confiança que os cidadãos depositam nos tribunais” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-05-2024, Pº 5423/22.1JAPRT-A.P1, rel. PAULA PIRES).
Por outra parte, a consideração da existência de motivo sério e grave adequado a pôr em causa a imparcialidade do julgador, há-de fundar-se em concretas circunstâncias e não em juízos ou conjeturas genéricas e imprecisas.
Conforme se referiu na decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Évora de 08-05-2024 (Pº 254/22.1T8LGS.E1, rel. TOMÉ DE CARVALHO):
“Para que se possa suscitar eficazmente a suspeição de um juiz não basta invocar o receio da existência de uma falta de imparcialidade é necessário que esse receio nasça de alguma das circunstâncias integradas na esfera de protecção da norma.
A aferição da suspeição deve ser extraída de factos ou eventos concretos, inequívocos e concludentes que sejam susceptíveis de colocar em causa a independência e a imparcialidade do julgador e a objectividade do julgamento”.
*
IV. Colocados os parâmetros enunciados que importa observar, analisemos a situação concreta apreciando se o incidente de suspeição deverá proceder ou improceder.
Previamente, porém, cumpre aferir da respetiva tempestividade na sua dedução.
O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (cfr. artigo 3.º, n.º 3, do CPC), contraditório esse que foi observado.
O incidente de suspeição deve ser deduzido desde o dia em que, depois de o juiz ter despachado ou intervindo no processo, nos termos do artigo 119.º, n.º 2, do CPC, a parte for citada ou notificada para qualquer termo ou intervier em algum ato do processo, sendo que, o réu citado pode deduzir a suspeição no mesmo prazo que lhe é concedido para a defesa – cfr. artigo 121.º, n.º 1, do CPC.
O pedido de suspeição contém a indicação precisa dos factos que o justificam (cfr. artigo 119.º, n.º 3, do CPC).
Pela regra geral sobre os prazos para a prática de atos processuais (cfr. artigo 149.º, n.º 1, do CPC), o prazo para deduzir o incidente de suspeição é de 10 dias, conforme ao estatuído no artigo 149.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (assim, a decisão individual do Tribunal da Relação de Évora de 22-03-2021, Pº 75/14.5T8OLH-DJ.E1, rel. CANELAS BRÁS).
O prazo de 10 dias para suscitar a suspeição, conta-se a partir do conhecimento do alegado facto que a fundamenta.
O fundamento de suspeição pode, contudo, ser superveniente, devendo a parte denunciar o facto logo que tenha conhecimento dele, sob pena de não poder, mais tarde, arguir a suspeição – cfr. artigo 121.º, n.º 3, do CPC.
Conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-11-2023 (Pº 1812/18.4T8BRR-H.L1-4, rel. ALVES DUARTE), “cabe ao presidente da Relação territorialmente competente para conhecer desse incidente apreciar a tempestividade da sua dedução”, constituindo tal tempestividade uma questão de oficioso conhecimento.
Conforme deriva do requerimento de suspeição de 03-04-2025, o mesmo visa colocar em crise a intervenção do Sr. Juiz de Direito nos autos.
Sucede que, não obstante a requerente do incidente de suspeição tenha tido anterior intervenção nos autos, face ao momento em que foi requerida a suspeição e atendendo a que a procuração foi apresentada nos autos em 03-04-2025, a dedução da suspeição em 04-04-2025 não pode considerar-se intempestiva ou extemporânea.
*
V. Em face do referido, cumpre conhecer do incidente de suspeição deduzido.
Importa considerar que, de acordo com os elementos constantes dos autos, não se justificam, nem se mostram pertinentes ou necessárias outras diligências, cumprindo julgar o incidente – cfr. artigo 123.º, n.º 3, do CPC.
O princípio da independência dos tribunais, consagrado no artigo 203.º da Constituição (“os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”), implica uma exigência de imparcialidade.
A Justiça é feita caso a caso, tendo em consideração a real e objetiva situação a dirimir.
O Juiz não é parte nos processos, devendo exercer as suas funções com a maior objetividade e imparcialidade.
Com efeito, os juízes têm por função ser imparciais e objetivos, fundando as suas decisões na lei e na sua consciência.
Como dispõe o artigo 4.º, n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores.
De acordo com o n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, a independência dos magistrados judiciais manifesta-se na função de julgar, na direção da marcha do processo e na gestão dos processos que lhes forem aleatoriamente atribuídos.
O legislador preocupou-se em identificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que o Juiz não deva intervir em determinada causa, condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que, o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes, poderá estar envolto em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
“Para tanto, foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento” (assim, a decisão do Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2004, Pº 329/04-1, em http://www.dgsi.pt).
Assim, no n.º 1 do artigo 120.º do CPC consagram-se diversas situações em que, as partes podem invocar a suspeição do juiz, por ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, o que ocorrerá, nomeadamente:
a) Se existir parentesco ou afinidade, não compreendidos no artigo 115.º, em linha reta ou até ao 4.º grau da linha colateral, entre o juiz ou o seu cônjuge e alguma das partes ou pessoa que tenha, em relação ao objeto da causa, interesse que lhe permitisse ser nela parte principal;
b) Se houver causa em que seja parte o juiz ou o seu cônjuge ou unido de facto ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta e alguma das partes for juiz nessa causa;
c) Se houver, ou tiver havido nos três anos antecedentes, qualquer causa, não compreendida na alínea g) do n.º 1 do artigo 115.º, entre alguma das partes ou o seu cônjuge e o juiz ou seu cônjuge ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta;
d) Se o juiz ou o seu cônjuge, ou algum parente ou afim de qualquer deles em linha reta, for credor ou devedor de alguma das partes, ou tiver interesse jurídico em que a decisão do pleito seja favorável a uma das partes;
e) Se o juiz for protutor, herdeiro presumido, donatário ou patrão de alguma das partes, ou membro da direção ou administração de qualquer pessoa coletiva parte na causa;
f) Se o juiz tiver recebido dádivas antes ou depois de instaurado o processo e por causa dele, ou se tiver fornecido meios para as despesas do processo;
g) Se houver inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários.
De todo o modo, importa salientar que a apreciação sobre se a situação invocada pela requerente da suspeição se enquadra, ou não, na previsão legal do artigo 120.º do CPC, prende-se, tão só, com a materialização - ou não - dos requisitos do incidente, e não, com qualquer apreciação de natureza jurisdicional ou substantiva, relativamente ao mérito da posição esgrimida pela referida requerente da suspeição no processo em questão, o qual, não nos incumbe decidir, nem poderemos efetuar.
*
VI. Colocados os parâmetros enunciados que importa observar, analisemos a situação concreta, apreciando se o incidente de suspeição deverá proceder ou improceder.
Liminarmente, cumpre salientar que não se patenteia no caso dos autos, nem se integra na respetiva previsão normativa, qualquer das circunstâncias a que se referem as alíneas a) a f) do n.º 1, do artigo 120.º do CPC, como justificativas de suspeição do julgador.
Aliás, a requerente invoca vir requerer a suspeição ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 120.º do CPC.
Quanto a esta alínea g) – existência de inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários – tem-se entendido que “não constitui fundamento específico de suspeição o mero indeferimento de requerimento probatório (RL, 7-11-12, 5275/09) nem a inoportuna expressão pelo juiz sobre a credibilidade das testemunhas (RG 20-3-06, 458/06)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 148).
Relativamente ao âmbito de aplicação do preceito, quando estão em causa participações de natureza disciplinar ou criminal, importa apreciar, em concreto, se a situação de contexto determina a conclusão no sentido de existir grave inimizade justificativa do deferimento da suspeição.
De facto, conforme se sublinhou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-04-2023 (Pº 16/23.9YFLSB-A, rel. MARIA DO CARMO SILVA DIAS), “as queixas-crime ou mesmo, por exemplo, participações ao CSM, só por si não constituem fundamento (…). Se assim fosse, então estaria descoberto um expediente para remover qualquer juiz e suscitar a questão da sua imparcialidade, assim se perturbando a atividade dos tribunais, dando cobertura ao uso indevido do processo e contornando as regras da competência e o princípio do juiz natural”.
Tal corresponderá à realidade no que concerne às queixas ou participações deduzidas por advogado contra o magistrado judicial, se nenhuma outra factualidade determina a conclusão no sentido de, não obstante tais queixas e participações, existir grave inimizade.
Ou seja: Ainda que se reconheça a delicadeza da situação e a posição menos cómoda e até algo desagradável em que se encontra o julgador e o advogado, nessa situação, não se vê em que medida está posta em causa a imparcialidade do juiz e que estejamos perante uma situação em que deva ser preterido o princípio do juiz natural (vd. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17-02-2016, Pº 109/12.8TACNT-A.C1, rel. LUÍS RAMOS).
Assim, a posição que uma parte entenda observar relativamente a decisão do julgador, incluindo a formulação de participação que deu origem a inquérito criminal que correu termos relativamente ao julgador ou desencadeou o desenrolar de procedimento criminal, não poderá, por si só, determinar o deferimento de suspeição, com o consequente afastamento do juiz para a tramitação do processo, se nenhuma outra circunstância se denota no sentido de que possa ficar maculada a imparcialidade do julgador relativamente à tramitação e à decisão do processo.
Ora, no caso dos autos, a requerente da suspeição vem invocar, singelamente, o seguinte:
1º O Juiz requerido é assistente no processo que refere no qual a Advogada B … é acusada por crime de difamação agravada, processo onde o juiz alega existir uma “cabala” ou urdidura contra si visando afetar a sua reputação profissional e pessoal, da qual, alegadamente, também faz parte a Advogada;
2º A Advogada não conhece o Juiz requerido, nem nunca teve intervenção em processos, a este distribuídos, mas “é manifesto que existe grave inimizade daquele em relação à aqui mandatária (…) circunstância, que inequívocamente resulta quer do teor da queixa apresentada contra a aqui mandatária, quer da acusação formulada, é de molde a criar suspeita séria sobre a imparcialidade do Sr. Juiz na condução dos autos principais”;
3º A Advogada juntou procuração nos autos em 03-04-2025; e
4º O “Sr. Juiz requerido, em circunstâncias idênticas relativamente a outros mandatários, de imediato requereu escusa nos respectivos processos, o que suscita dúvidas acrescidas acerca do critério seguido”.
Vejamos:
Dos elencados pontos 2º, 3º e 4º não decorre algum aspeto relevante para concluir sobre a existência de grave inimizade entre o Juiz requerido e a requerente ou a sua Advogada.
Note-se que, por um lado, a Advogada da requerente da suspeição não conhece, como refere, o Juiz requerido, facto que é reiterado por este, não se sintomatizando alguma relação de inimizade, pressupondo esta, claro está, a existência de relação entre os contendores.
Do mesmo modo, a questão de o Juiz ter pedido escusa em determinados processos e não o fazer noutro ou noutros não constitui também válido critério ou razão para justificar a suspeição deduzida, não viabilizando, sem qualquer elemento – que não é aduzido pela requerente da suspeição – qualquer juízo conclusivo no sentido de ter sido ou poder ser posta em causa a imparcialidade devida relativamente ao processo a que respeita a suspeição deduzida (sendo esta, aquela que cumpre ao Tribunal, ora decidir).
Mesmo o invocado no ponto 18 do requerimento de suspeição não passa de uma constatação da requerente da suspeição, que nada permite concluir de diverso.
Quanto ao invocado no ponto 1º - a circunstância de o Juiz requerido ser assistente no processo que refere, no qual a Advogada B … é acusada por crime de difamação agravada (referindo que o juiz alega existir uma “cabala” ou urdidura contra si visando afetar a sua reputação profissional e pessoal, da qual, alegadamente, também faz parte a Advogada ) é, na decorrência do que se vem expondo, insuficiente para concluir existir motivo justificativo do deferimento da suspeição.
Na realidade, de tal circunstância não se infere, ipso facto, quebra de imparcialidade devida pelo julgador.
Esta mesma orientação foi sublinhada na decisão individual deste Tribunal da Relação de Lisboa de 03-10-2018 (Pº 11664/16.3T8LSB-A.L1-7, rel. ORLANDO NASCIMENTO), onde se sintetizou que:
“A existência de um processo criminal com origem em queixa-crime apresentada pela Juíza contra o Advogado pelos crimes de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º, n.º 1 e 2, do C. Penal e de difamação caluniosa agravada, p. e p. pelos art.ºs 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, al. b) e 184.º, do C. Penal, relativos a mandato noutro processo é insuscetível de recondução ao conceito de “inimizade grave”, relevante para efeitos de suspeição, previsto no art.º 120.º, n.º 1, al. g), do C. P. Civil.
A haver “inimizade grave” essa dirigir-se-ia do Mandatário para a Juíza, não constituindo “…motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a … imparcialidade” da Juíza, configurando-se a sua invocação, por parte do mesmo Mandatário, como a utilização de um ato da sua própria autoria (eventuais ilícitos criminais) em proveito próprio (afastamento da Juíza do processo) (…)”.
As considerações justificativas expendidas em tal decisão merecem o nosso total acolhimento e são totalmente transponíveis para a situação que nos ocupa, transcrevendo-se e evidenciando-se os segmentos relevantes:
“(…) Os atos processuais da Mm.ª Juíza no processo, praticados no exercício do seu múnus de “gestão processual”, consagrado no art.º 6.º, do C. P. Civil, segundo o qual a condução do processo é um poder/dever do Juiz, não permitem qualquer aproximação a esse conceito de “inimizade” (…).
O que está em causa neste incidente de suspeição não são (…) os atos judiciais que a Mm.ª Juíza praticou no processo, mas sim, (1) primeiramente, a existência de um processo criminal que teve origem numa queixa-crime apresentada pela Mm.ª Juíza contra um Advogado que exerceu mandato noutro processo, por fatos com esse outro processo relacionados, sendo este mesmo Advogado o mandatário da requerente e (2) em segundo lugar se a aceitação de mandato forense por esse Advogado para este processo se pode repercutir na imparcialidade da Juíza Titular do processo.
Quanto à primeira questão, a existência de um processo criminal com origem em queixa-crime apresentada pela Exm.ª Juíza contra o Advogado por fatos relativos a mandato noutro processo.
Pela análise, necessariamente perfunctória, de fls. 4 a 32, apesar de delas não constar a queixa-crime apresentada pela Exm.ª Juíza, sabemos que a mesma foi dirigida contra o Exm.º Mandatário da requerente e uma sua constituinte, pelos crimes de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 365.º, n.º 1 e 2, do C. Penal e de difamação caluniosa agravada, p. e p. pelos art.ºs 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, al. b) e 184.º, do C. Penal.
A requerente aduziu também que existe um processo-crime no Tribunal da Relação de Lisboa onde é queixosa uma constituinte do seu Advogado e que este Advogado apresentou no Tribunal da Relação de Lisboa, em nome pessoal, uma participação contra a Exm.ª Juíza por denúncia caluniosa, mas esses fatos não se encontram indiciariamente provados, como consta sob as alíneas b) e c), supra.
A queixa-crime a considerar é, pois, apenas aquela a que respeitam fls. 4 a 32.
Independentemente da substância de tal queixa-crime, o certo é que a mesma foi determinada por atos imputados ao Exm.º Mandatário da requerente e a uma sua outra constituinte, configurando-se a sua invocação, por parte do mesmo Mandatário, como a utilização de um ato da sua própria autoria (eventuais ilícitos criminais) em proveito próprio (afastamento da juíza do processo).
Ora, esta invocação neste processo é insuscetível de recondução ao conceito de “inimizade grave”, relevante para efeitos de suspeição, previsto no art.º 120.º, n.º 1, al. g), do C. P. Civil.
A haver “inimizade grave” essa dirigir-se-ia do Exm.º Mandatário (a quem é imputada a prática dos atos descritos na queixa-crime) para a Exm.ª Juíza requerida, não constituindo “…motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a … imparcialidade” do juiz, não podendo, por isso, ser por ele invocada como fundamento para o afastamento do juiz, por verosimilhante falta de imparcialidade, sob pena de constituir um autêntico beneficio ao indiciado infrator.
Aliás, a apresentação de queixa-crime constitui exercício de um direito de cidadania não podendo reconduzir-se, só por si, ao conceito de “inimizade”.
Apesar de ter apresentado queixa-crime contra o Exm.º Mandatário da requerente por fatos relativos a um outro processo, a Mm.ª Juíza mantém, pois, as condições de imparcialidade, em substância e em aparência, que são apanágio da função de juiz.
Os cidadãos que recorrem a tribunal não têm o direito de escolha de juiz, tout court, e não têm o direito de pedir o afastamento do Juiz, ainda uma forma de escolha, para além dos casos previstos na lei.
Aportamos, assim, à segunda questão, que acima identificámos, qual seja, a de sabermos se a junção de procuração, com outorga de mandato forense por Advogado contra quem a Juíza Titular do processo tenha apresentado queixa-crime, se pode repercutir na imparcialidade dessa Juíza.
O incidente de suspeição tem os efeitos expeditos previstos nos art.ºs 122.º, n.º 2 e 125.º, n.º 1, do C. P. Civil, fazendo intervir o juiz substituto, que o mesmo é dizer, afastando de imediato o juiz de que se discorda, mas não é o meio adequado para prosseguir tal escopo, com a invocação de uma queixa-crime anterior.
Se a existência dessa queixa-crime anterior for de tal modo que a ela se possa associar, verosimilhantemente, o conceito de “inimizade” entre os intervenientes, as respetivas inferências processuais devem ser, primeiramente, extraídas pelo interveniente que também primeiramente se tenha confrontado com a situação em que possa ser relevante uma tal inimizade.
Ajuizando uma situação de inimizade com a Exm.ª Juíza Titular do processo em que iria cumprir o mandat[o] forense, pela existência de queixa-crime anterior, deveria o Exm.º Mandatário ter declinado o substabelecimento.
É que, como refere o requerido, “Não é a Senhora Magistrada que aparece num processo em que o…ilustre Advogado é mandatário mas o contrário”.
O fato de ter sido a Exm.ª Juíza a exarar despacho informativo dando conta da existência de processo criminal anterior não inverte os termos da proposição anterior.
Se entendia que a pendência de processo criminal contra si podia gerar “inimizade” na Exm.ª Juíza, não deveria o Exm.º Advogado aceitar o mandato.
Nos autos não se vislumbram, pois, quaisquer circunstâncias, de natureza objetiva ou subjetiva, suscetíveis de alicerçar um juízo de desconfiança sobre a imparcialidade da Exm.ª Juíza.
O pedido de suspeição não poderá, pois, deixar de improceder, uma vez que não se vislumbram fatos suscetíveis de recondução aos conceitos de “…motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” e/ou de “ inimizade grave”.”.
Ora, de facto, aquando da junção de procuração a favor da Advogada da requerente, há muito que o Juiz requerido tramitava os autos, não podendo a Advogada que aceitou o correspondente mandato desconhecer tal circunstância, que, pelo cumprimento dos seus deveres profissionais, tinha a obrigação de dever conhecer.
Assim sendo, entendemos não se encontrarem reunidos os pressupostos que materializam o incidente de suspeição, o que conduz à sua improcedência.
A responsabilidade tributária incidirá sobre a requerente – vencida (cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC) – da suspeição.
Nos termos do disposto no art.º 123.º, n.º 3, do CPC, quando o incidente de suspeição for julgado improcedente, dever-se-á apreciar se o recusante procedeu de má-fé.
O apuramento da má fé nesse incidente deve ser operado de harmonia com os critérios e pressupostos referenciais plasmados no nº. 2 do artigo 542.º do CPC.
O artigo 8.º do CPC enuncia que “as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado” no artigo 7.º do mesmo Código.
“A litigância de má-fé surge (…) como um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais” (assim, Menezes Cordeiro; Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa «In Agendo», 2006; Almedina, 2006, p. 26, nota 2).
A particular gravidade que assume o abuso processual acontece porque lesa, não apenas a contra-parte, mas, devido ao carácter publicístico do processo, também e sobretudo, a própria administração da Justiça.
O artigo 542.º do CPC censura três comportamentos substantivos contrários à boa fé e um comportamento processual do litigante violador da boa fé devida:
A conduta substantiva sancionável pode consistir:
1) Na dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não deva ignorar (artigo 542.º, n.º 2, alínea a));
2) Na alteração da verdade dos factos ou na omissão de factos relevantes para a decisão da causa (artigo 542.º, n.º 2, alínea b));
3) Na grave omissão do dever de cooperação (artigo 542º, n.º 2, alínea c)).
Em termos de atuação processual sanciona-se o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, por qualquer das partes, a fim de:
i) conseguir um objetivo ilegal;
ii) impedir a descoberta da verdade; ou
iii) protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (artigo 542, n.º 2. alínea d)).
A delimitação da responsabilização por litigância de má fé impõe sempre uma apreciação casuística sobre a integração dos comportamentos sinalizados no âmbito de alguma das previsões contidas no mencionado n.º 2 do artigo 542.º.
A ilicitude pressuposta pela litigância de má-fé distancia-se da ilicitude civil (artigo 483º CC) não apenas porque se apresenta como um ilícito típico (descrevendo-se no artigo 542.º do CPC, analiticamente, as condutas que o integram), mas também porque, ao contrário do que sucede com o ilícito civil, se encontra dependente da verificação de um elemento subjectivo, sem o qual o comportamento da parte não pode ser tido como típico e, consequentemente, como ilícito, aproximando-se nesta medida muito mais do ilícito penal (assim, Paula Costa e Silva; A litigância de má-fé, Almedina, 2008, p. 620).
O litigante tem de atuar imbuído de dolo ou culpa grave. O elemento subjetivo será então considerado não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade.
Releva a má-fé subjetiva - quando a parte que atua de má-fé tem consciência de que lhe não assiste razão - e, em face das dificuldades em apurar a verdadeira intenção do litigante, essa consciência deve manifestar-se perante a violação ou inobservância das mais elementares regras de prudência.
Se o comportamento da parte preencher objetivamente a previsão de alguma das alíneas do artigo 542º, nº 2, do CPC, mas não se patentear o elemento subjetivo, o mesmo não poderá ser qualificado como litigância de má fé. Não haverá lide dolosa nem temerária.
Refira-se, a este propósito, que a reforma do processo civil de 1995-1996 (operada pelo Decreto-Lei n.º. 329-A/95, de 12 de dezembro, Lei n.º 6/96, de 29 de fevereiro e Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de setembro) veio alargar a figura da litigância de má-fé, passando a abarcar não só a lide dolosa, mas também, a lide temerária (esta última ocorrerá quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro – assim, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto; Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pp. 194-195, dando conta de que a lide temerária constitui um “mais” relativamente à lide meramente imprudente, que se verifica quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culposamente, mas apenas com culpa leve).
A lide temerária pode, pois, ser sancionada como litigância de má fé.
Assim, “hoje (…), a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição " cuja falta de fundamento não devia ignorar", ou seja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte como litigante de má fé, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão", pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização” (nesta linha, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-03-2014, Processo 1063/11.9TVLSB.L1.S1, rel. SALAZAR CASANOVA).
O dolo supõe o conhecimento da falta de fundamento da pretensão ou oposição deduzida – dolo substancial direto – ou a consciente alteração da verdade dos factos ou omissão de um elemento essencial – dolo substancial indireto – podendo ainda traduzir-se no uso manifestamente reprovável dos meios e poderes processuais (cfr. Menezes Cordeiro; Da Boa Fé no Direito Civil, 2ª Reimpressão, Colecção Teses, Almedina, 2001, p. 380).
Por seu turno, “há negligência grave, fundamentadora de um juízo de litigância de má-fé, quando o litigante procede com imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um” (assim, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2001, Processo 01A3692, rel. AFONSO DE MELO).
Finalmente, diga-se que “a lei processual castiga a litigância de má-fé, independentemente do resultado. Apenas releva o próprio comportamento, mesmo que, pelo prisma do prevaricador, ele não tenha conduzido a nada. O dano não é pressuposto da litigância de má-fé” (cfr. Menezes Cordeiro; Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa «In Agendo», 2006, p. 26, nota 2). Assim, a condenação não depende dos resultados com a conduta reprovável do tipo das referidas no artigo 542.º, n.º 2, do CPC, serem ou não atingidos (cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-05-2019, Processo 6646/04.0TBCSC.L1.S2, rel. CATARINA SERRA).
Contudo, o julgador deve ser especialmente cauteloso e prudente na aferição das situações passíveis de constituírem litigância de má fé, apenas devendo determinar a condenação se se patentearem as condutas típicas e, bem assim, o dolo ou a grave negligência na sua prática.
Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2018 (Processo 280/18.5T8OAZ.P1, rel. RITA ROMEIRA): “A responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; O autor deve ser condenado como litigante de má-fé se nega factos pessoais que vieram a ser declarados provados”.
Ou seja: “(…) a ousadia de apresentação duma determinada construção jurídica, julgada manifestamente errada, não revela, por si só, que o seu autor a apresentou em violação dos princípios da boa fé e da cooperação, havendo por isso que ser-se prudente no juízo a fazer sobre a má fé processual” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-11-2015, Processo 3067/12.5TBTVD.L1-2, rel. SOUSA PINTO).
No caso da alínea a) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC - “Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar”, como refere Susana Teresa Moreira Vilaça da Silva Barroso (O Abuso de Direito de Ação; Faculdade de Direito da Universidade do Porto, julho de 2016, p. 40), “o conceito de “não devia ignorar” tem uma carga demasiado subjetiva e demasiado pessoal que impossibilita a sua aplicação direta.
É que o enfoque da norma não está na manifesta falta de fundamento, critério mais ou menos objetivo se entendido na perspetiva do “homem médio”, “bonus pater família” etc., mas sim no facto da falta de fundamento “não dever ser ignorada”. Ora esta nuance devolve à norma um caráter de subjetividade que lhe vem introduzir dificuldades interpretativas. Onde está a linha que separa até onde é “aceitável ignorar” e a partir de onde deixa de o ser.
Dito de outra forma, até onde é razoável aceitar estarmos perante o exercício genuíno do direito de ação ou do direito de defesa, e a partir de onde se pode razoavelmente assumir que o agente conhecia (ou devia conhecer) a falta de fundamento?”.
Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má Fé e Tipos Especiais; Almedina, 2022, pp. 389-390) procura responder a estas questões, nos seguintes termos:
“(…) a parte actuará ilicitamente se souber ou se devia saber que a sua pretensão, quer atendendo aos aspectos de facto, quer integradores da potencial causa de pedir, quer atendendo aos efeitos que deles são retirados, através da formulação de um pedido, não é compatível com aquilo que o sistema dita. Com origem localizável em GAIO e com assento no sistema nacional nas diversas fases da sua evolução, identifica-se, através deste tipo, o dever da parte de indagar, antes de propor a acção, da fundamentação da sua pretensão (…).
Assim, relevará uma ligeireza particularmente grosseira quanto ao modo como a parte configura a sua pretensão ou defesa, omitindo, nesta sua atuação, os mais elementares deveres de cuidado e de indagação.
Revertendo ao caso dos autos, na atuação da requerente – a parte do processo – verifica-se que, não dispondo de qualquer fundamento objetivo que lhe permitisse suspeitar da imparcialidade do Juiz, por razões que desconhecemos, a requerente utilizou uma vicissitude anterior, relacionada com a advogada que mandatou, logrando o afastamento do Juiz Titular da condução e decisão do processo (pelo menos, até à decisão deste incidente) fazendo uma utilização desviante do instituto da suspeição.
A imputação de falta de imparcialidade é uma das acusações mais graves que se pode fazer a um juiz no exercício das suas funções, porque a imparcialidade é a primeira condição para o exercício dessas mesmas funções.
Quem não é imparcial não pode ser juiz.
A requerente conhecia e não podia deixar de conhecer a gravidade da imputação da suspeição, fundada em inimizade e consequente parcialidade, cerne da função de juiz e causa primeira da sua dignidade, tendo agido, senão com dolo, pelo menos, com negligência grosseira ou grave, pois, uma outra pessoa, colocada na sua situação, não se prestaria a mostrar adesão ou a mandatar a prática do ato processual – de apresentação do requerimento de suspeição - correspondentemente praticado.
Afigura-se-nos, pois, que ao suscitar o presente incidente, a requerente agiu de má-fé.
Atento o disposto no art.º 27.º, n.º 3, do Regulamento de Custas Processuais, que estabelece a moldura da respetiva multa, por litigância de má fé, entre 2 e 100 UC, e a natureza do processo afigura-se-nos adequado fixar a multa à requerente em 5 (cinco) U.C.’s.
Relativamente à Advogada que subscreve o requerimento do incidente de suspeição, também a mesma não podia desconhecer os fatos constantes dos autos – e, designadamente, a circunstância de que o Juiz requerido tramitava nos autos na data em que apresentou procuração nos autos - afigurando-se que tal conhecimento deveria ter determinado, se não, a não aceitação de mandato em processo onde figurava juiz relativamente ao qual a advogada tinha o processo criminal que refere, pelo menos, a abstenção de subscrição do requerimento de suspeição que subscreveu, precisa e unicamente, com fundamento na existência de tal processo criminal.
Tal circunstância é suscetível de a fazer incorrer nas sanções previstas no artigo 545.º, do CPC, a ponderar pelos órgãos próprios da Ordem dos Advogados.
Conforme se aludiu, a este respeito, na mencionada decisão individual do Tribunal da Relação de Lisboa de 03-10-2018 (Pº 11664/16.3T8LSB-A.L1-7, rel. ORLANDO NASCIMENTO):
“O Advogado que junta o substabelecimento e subscreve o requerimento de suspeição, não podendo desconhecer que os fatos constantes dos autos não permitiam atribuir à Juíza a imputação de falta de imparcialidade que lhe é feita, é suscetível de incorrer nas sanções previstas no art.º 545.º, do C. P. Civil, a ponderar pelos órgãos próprios da Ordem dos Advogados”.
*
VII. Face ao exposto:
a) Indefiro a suspeição deduzida relativamente ao Juiz de Direito C … no incidente em apreço;
b) Tendo a requerente deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar (art.º 542.º, n.º 2, al. a) do C. P. Civil), condeno-a como litigante de má-fé em multa que fixo em 5 (cinco) U.C.’s.
Custas a cargo da requerente do incidente, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) U.C.’s.
Envie certidão de todo o processo ao Presidente do Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados, nos termos do disposto no artigo 545.º do CPC, relativamente à atuação da Advogada B ….
Notifique.

Lisboa, 23-05-2025 (17h.18m.),
Carlos Castelo Branco.