Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA FORTUITA
INADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Sumário
A sentença proferida ao abrigo do disposto no n.º 8 do artigo 188.º do CIRE não é passível de recurso.
Texto Integral
I. Relatório
Caixa Geral de Depósitos, SA, ao abrigo do disposto no artigo 643.º do CPC, veio reclamar do despacho do tribunal a quo pelo qual não foi admitido o recurso que interpôs e que é referente à sentença proferida pela 1.ª instância.
Nesta última, invocando-se o n.º 8 do artigo 188.º do CIRE, decidiu-se: “(…) não se mostram indiciados factos suficientes para o preenchimento de qualquer um dos fundamentos previstos no art, 186º, do CIRE. // Pelo exposto, decide-se qualificar como fortuita a insolvência de VM.”
Dela discordando, recorreu a aqui reclamante em 11/07/2025.
Como conclusões, formulou as seguintes: “(…) III- Por requerimento aperfeiçoado de 03/03/2025, a CGD veio aperfeiçoar o seu requerimento para abertura do incidente de qualificação da insolvência de VM como culposa. // IV- Sumariamente, os factos - Da insolvência culposa do Insolvente por alegadamente ter (a) destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, do seu património e; (b) disposto dos bens em proveito pessoal e prosseguir, no seu interesse pessoal, uma exploração deficitária, não obstante saber ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência - alíneas a) e d) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE: O comportamento de VM perante a credora CGD foi sempre de obviar a um qualquer contacto e/ou negociação – inexistentes, portanto – o que motivou, até, a instauração da acção executiva, aos 21/07/2023. // V- Sendo que, apenas foi penhorado, aos 12/04/2024, um saldo bancário, da titularidade do avalista HH, no valor de €493,13. // VI- Apresenta-se, pois, crê-se, ocultando, propositadamente, rendimentos, e não se dignando, sequer, a informar (documentando) o próprio Administrador de Insolvência e os seus credores, designadamente, e desde logo, o valor que efectivamente recebe; cfr. o relatório do art.º 155.º do CIRE de 29/01/2025 nos autos principais, pág. 1 e o requerimento da CGD de 10/02/2025, com a referência 51321552. // VII- Tal indiciosa ocultação de património torna-se mais visível, porque, segundo esclarece o Sr. Administrador de Insolvência no seu relatório, por um lado, da pesquisa que efectuou junto do Serviço de Finanças, resultou a inexistência de bens sujeitos a registo – circunstância que suscita a dúvidas quanto à bondade/veracidade de tal despojamento; cfr. pág. 3 do relatório; e , por outro lado, o Insolvente reside na casa da companheira – o que, por se encontrar indemonstrado -, o que, propicia, identicamente, incertezas quanto ao efectivo beneficiário/titular de tal residência; idem, pág. 3. // VIII- De outro modo, o Insolvente mantém-se descaradamente em actividade, sem nada pagar aos credores; cfr. doc. 1 supra junto e docs. 5 a 13 juntos ao requerimento da CGD de 13/02/2025 neste apenso. // IX- Da insolvência culposa do Insolvente por incumprir, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º - alínea i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE: Sob outro prisma, o Insolvente furtou-se, crê-se, intencionalmente, à citação para os presentes autos insolvenciais e ausenta-se de esclarecimentos em outros autos, como sejam os autos cautelares n.º 13509/23.9T8LSB do Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 21, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, nos termos supra enunciados. // X- Da insolvência culposa do Insolvente por ter prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência - alínea g) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE: O Insolvente foi accionista e administrador único da sociedade “Aromateca, Consultoria e Formação da Restauração, S.A.” – sociedade que liderava um conjunto de restaurantes de nome em Lisboa -, a qual foi declarada insolvente no processo n.º 15677/24.3T8LSB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 3 – tendo o aqui Insolvente avalizado/prestado fiança em operações bancárias daquela; cfr. pág. 2 do relatório. // XI- E foi igualmente sócio e gerente da sociedade unipessoal por quotas denominada “Fabulousevasion, Unipessoal, Lda.”, a qual foi declarada insolvente no processo n.º 22744/23.9T8LSB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 4 - tendo o aqui Insolvente similarmente dado o seu aval em operações bancárias desta; cfr. págs. 2 e 3 do relatório. // XII- Mais, a dívida actual, segundo as reclamações de créditos apresentadas, é superior a €3.000.000,00; idem – o que, já confirmou na aludida lista do art.º 129.º do CIRE, junta ao apenso A, onde reconheceu créditos no valor global de €3.651.971,21. // XIII- Destaca-se, um crédito da Segurança Social no valor global de € 148.503.15 já de 2021, e, ainda, um crédito de uma pessoa singular, RR, actualmente insolvente, no valor de €70.460,00, cujo desrespeito (da conduta perpetrada) já foi judicialmente reconhecido em 2017; cfr. doc. 2 junto ao requerimento de 13/02/2025 no presente apenso. // XIV- A sua conduta arrogada pelo Insolvente, neste contexto – entenda-se, avolumar injustificadamente dívidas - enquadra-se no art.º 186.º, n.º 2, alínea g) do CIRE. // XV- Da insolvência culposa do Insolvente por incumprir, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º - alínea i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE: Sob outro prisma, o Insolvente furtou-se, crê-se, intencionalmente, à citação para os presentes autos insolvenciais e ausenta-se de esclarecimentos em outros autos, como sejam os autos cautelares n.º 13509/23.9T8LSB do Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 21, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, nos termos supra enunciados. // XVI- Incumpre, ainda, com a Segurança Social desde 2021 e perante RR desde 2017; cfr. doc.s 1 e 2 juntos ao requerimento da CGD de 13/02/2025 no presente apenso. // XVII- Em síntese, crê-se que, o Insolvente devia já há muito ter-se apresentado à insolvência. // XVIII- Impõe-se, em suma, concluir que a insolvência é culposa por tiver sido criada e/ou agravada em consequência da actuação, dolosa, do Insolvente – sendo a conduta deste, no mínimo, enquadrável no art.º 186.º, n.º 2, alíneas a), d) e i) do CIRE: // XIX- A subsequente tramitação: a 01/04/2025, o Sr. Administrador de Insolvência apresenta o seu parecer, com o seguinte teor sumário: pela análise efetuada, conclui que a situação de insolvência ocorreu em resultado da paragem do negócio no período de COVID19, com total ausência de rendimentos das sociedades de que era administrador único e das quais havia avalizado os financiamentos bancários contraídos pelas sociedades. Propõe a qualificação da insolvência como fortuita. // XX- A 02/04/2025, o Ministério Público afirma que, pareces que o Sr. AI não teve conhecimento dos vários requerimentos apresentados nos autos principais, designadamente os apresentados pelo credor CGD e pelo devedor, porquanto o parecer apresentado pelo Sr. AI é, no entendimento do Ministério Publico, parco em informação concreta e devidamente documentada acerca da real situação do insolvente, nomeadamente na colaboração deste em prestar as informações necessárias e imprescindíveis à tomada de decisão e na salvaguarda dos credores. Assim, requereu que fosse o Sr. AI notificado dos requerimentos e documentos apresentados nos autos principais, a fim de se pronunciar acerca da qualificação da insolvência (ou manter o parecer apresentado). // XXI- Notificado o Sr. Administrador de Insolvência para aperfeiçoar o seu parecer, entendeu que não o tinha e fazer, sendo que, num primeiro moimento, se remeteu até ao silêncio; cfr. despachos de 03/04/2025 e 09/05/2025 e requerimento do Sr. Administrador de Insolvência de 12/05/2025. // XXII- A 09/06/2025, o Ministério Público veem afirmar que afinal concorda com o parecer do Sr. A.I. no sentido de a insolvência dever ser considerada fortuita, atendendo às explicações e justificações dadas face ao requerimento de abertura do incidente apresentado e que se conjugam com o relatório do art. 155 – consigna-se que, num primeiro momento entendeu as explicações e justificações como parcas e, num segundo momento, sem nada ser justificado e/ou aditado entendeuas já serem bastantes. // XXIII- Seguidamente foi proferida a sentença em crise, a qual considerando o facto de a AI e o MP terem proposto a qualificação da insolvência como fortuita e uma vez dos autos não resultam suficientemente indiciados factos que, provados, sejam susceptíveis de integrar a previsão do art.186º n.ºs 1 e 2 do CIRE”, decidiu pela qualificação da insolvência como fortuita. // XXIV-Da nulidade por preterição do direito ao contraditório: a Lei estabelece que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (cfr. art.º 3.º, n.º 3 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). // XXV- Ora, o presente incidente de qualificação da insolvência teve início por iniciativa da ora Recorrente. // XXVI- Os pareceres do Sr. Administrador de Insolvência e do Ministério Público, ao propugnarem a qualificação da insolvência em sentido diferente do peticionado pela Requerente do incidente, não foram notificados, analisados, nem contraditados pela parte requerente do incidente. // XXVII- Por seu lado, o Sr. Administrador de Insolvência disse apenas que a situação de insolvência ocorreu em resultado da paragem do negócio no período de COVID19, com total ausência de rendimentos das sociedades de que era administrador único e das quais havia avalizado os financiamentos bancários contraídos pelas sociedades – o que o Ministério Público considerou insuficiente, para depois, sem nada mais dizer, considerar bastante. // XXVIII- Ora, nos casos em que o juiz pretenda proferir de imediato uma sentença em sentido oposto ao peticionado pelo requerente do incidente de qualificação de insolvência (como ocorreu no presente caso), deve, obrigatoriamente, dar a este último a possibilidade de se pronunciar sobre os elementos e fundamentos trazidos ao processo pelo administrador de insolvência e pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que não sucedeu no caso dos autos. // XXIX-Não o tendo feito, o Tribunal “a quo” proferiu uma decisão-surpresa, na medida em que teve por base pareceres que nunca foram dados a conhecer à Requerente do presente incidente de qualificação de insolvência. // XXX- A mencionada falta traduz-se na omissão de um acto susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, inquinando todo o processado ulterior, pois impediu a ora Recorrente de refutar / contraditar, querendo, os elementos subjacentes, assim como impediu que a sua posição sobre tais elementos viesse a ser ponderada pelo Tribunal “a quo” (…) // XXXI- Face ao que antecede, a decisão imediata de qualificação da insolvência como fortuita, por não ter sido precedida da prévia auscultação da ora Recorrente sobre tais pareceres –, encontra-se, sim, ferida de nulidade (cfr. art.º 195.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE; e cfr, no mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/12/2019). // XXXII- Nulidades de notificação, para exercício do contraditório, que, assim, se invocam para todos os efeitos legais. // XXXIII- Por conseguinte, ao não conceder à Recorrente a possibilidade de se pronunciar previamente sobre os pareceres do Sr. Administrador de Insolvência e do Ministério Público, nem sobre a pretensão do Tribunal de proferir de imediato uma decisão sobre a qualificação no mesmo sentido dos pareceres (questões estas todas capazes de influir no exame e decisão da causa), o Tribunal “a quo” violou o direito ao contraditório da Recorrente, impedindo-a de expor as suas razões e, bem assim, de poder convencer o Tribunal a compor o litígio a seu favor, ou seja, em última instância, a qualificar como culposa a insolvência (cfr. art.º 3.º, n.º 3 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE). // XXXIV- Da errada interpretação e aplicação da lei no julgamento: a Recorrente alegou m factualidade no requerimento que deu início ao incidente de qualificação de insolvência, que não foi considerada na sentença proferida em 20/06/2025. // XXXV- O Tribunal “a quo” deveria ter apreciado todos os factos alegados pela ora Recorrente, discriminando na sentença os factos considerados provados e os factos considerados não provados (cfr. art.º 607.º, n.º 3 do CPC ex vi do art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), o que não foi feito. // XXXVI- Na verdade, na sentença apenas refere sob os pontos 11 a 13 parte muito sucinta da alegação da CGD, cfr. pág. 4 e faz errada sindicância da mesma, sem ordenar e consequentemente produzir a prova requerida pela CGD. // XXXVII- A Recorrente trouxe aos autos circunstâncias que permitiam, em abstrato, qualificar a insolvência como culposa, elencando um conjunto de factos, juntando diversos documentos comprovativos e requerendo diligências de prova tendentes a confirmar a subsunção dos factos às previsões das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE (vide o sumário ante exposto). // XXXVIII- Além de que, no incidente de qualificação de insolvência vigora o princípio do inquisitório que permite ao juiz fundar a decisão em factos não alegados, bem como, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem com, recolher as provas e informações que entender convenientes – reveja-se, pois, a necessidade de se aguardar, ainda, pelo cumprimento do despacho de 27/02/2025 proferido nos autos principais atentas as repercussões na aferição deste apenso, designadamente para efeitos de melhor granjear “a fita do tempo” da factualidade (culposa). // XXXIX- Sucede que os factos invocados pela Recorrente não foram (na sua totalidade) objecto de análise pelo Tribunal “a quo” no âmbito da fundamentação da sentença, assim como não foram os documentos comprovativos juntos, nem as diligências de prova requeridas: PROVA TESTEMUNHAL: Exmo. Senhor Dr. EE, Administrador de Insolvência, Exmo. Senhor Dr. NN e Exma. Senhora Dra. SS. E DEPOIMENTO DE PARTE, a notificar, Exmo. Senhor VM. // XL- Impondo-se pelo exposto revogar a sentença em crise. // Deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, nos termos que vêm descritos, com todas as consequências legais – a saber: - num primeiro momento, ordenar-se o contraditório da Recorrente quanto aos pareces do AI e do MP. - num, segundo momento, ordenar-se as diligências de prova por si requeridas. (…)”.
Pelo insolvente foram apresentadas contra-alegações de recurso, pugnando pelo indeferimento do mesmo e manutenção da sentença recorrida.
Apresentou como conclusões: “1. O CIRE não prevê a notificação ao requerente do teor dos pareceres nem a possibilidade de este sobre eles se pronunciar. // 2. Não existe qualquer previsão legal no sentido invocado pela recorrente, sendo óbvia a inadmissibilidade legal do recurso da decisão que a credora interpôs. // 3. A credora CGD não reclamou ou arguiu a nulidade que agora invoca em fase de recurso no prazo de dez dias que tinha para tal. // 4. A arguição de nulidade processual em sede de recurso e para além do prazo de dez dias subsequentes ao conhecimento da sua prática é manifestamente extemporânea, pela impossibilidade legal de ser arguida como fundamento de recurso. // 5. O incidente de qualificação da insolvência tem a estrutura de uma causa que é disciplinada e regulada por regras processuais próprias especificamente previstas para a tramitação do incidente de qualificação. // 6. Apenas existe necessidade de aplicação das regras gerais do CPC em tudo o que não esteja especialmente previsto e desde que não contrarie as disposições do CIRE. // 7. Aberto o incidente, cumpre ao AI apresentar parecer obrigatório e fundamentado sobre a qualificação da insolvência e, após os autos são continuados com vista ao MP para que fundadamente se pronuncie a respeito, tendo ambos concluindo pela qualificação da insolvência como fortuita. // 8. Se ambos propuserem a qualificação como fortuita, o nº 8 do art.º 188º prevê que ‘o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido. // 9. Este percurso da tramitação do incidente de qualificação de insolvência foi exatamente o que ocorreu nos presentes autos, cumprindo-se assim de forma escrupulosa a lei. // 10. A douta decisão recorrida considerou que a decisão não está dependente da prévia notificação do requerente do incidente. // 11. Os pareceres do AI e do MP foram convergentes na proposta de qualificação da insolvência como fortuita. // 12. Se o Juiz entender que os factos alegados pelo requerente do incidente e outros disponíveis nos autos não são suscetíveis de preencher os pressupostos da insolvência culposa, fundamentadamente[ profere decisão final de qualificação da insolvência como fortuita, como foi cumprido no presente caso. // 13. A douta decisão recorrida ponderou todos os factos alegados pela credora CGD e que agora repete sem critério nas alegações de recurso. // 14. Na sequência dos pareceres convergentes do AI e do MP o Tribunal proferiu decisão final de qualificação da insolvência como fortuita, decisão essa que não corresponde ao exercício de uma faculdade, no sentido de uma opção arbitrária ou discricionária do Juiz pela proposta dos pareceres, mas sim ao resultado da apreciação, valoração e enquadramento jurídico de toda factualidade alegada e da disponível nos autos, tendo a decisão sido devidamente fundamentada juridicamente, como efetivamente sucedeu. // 15. A notificação dos pareceres aos recorrentes não se apresenta como formalidade devida cumprir previamente à prolação da sentença por não conter questões de facto distintas, nem existirem outras questões a apreciar para além das oportunamente submetidas pela credora CGD no requerimento de abertura do incidente. // 16. Inexistiu qualquer nulidade da sentença como é arguida pela recorrente CGD, com fundamento em omissão de pronúncia, nulidade essa que não se verifica, na medida em que, contrariamente ao que a mesma alega, o tribunal a quo pronunciou-se sobre o mérito dos fundamentos alegados pelos credores. // 17. A douta sentença valorizou toda a prova e concluiu que os factos eram juridicamente irrelevantes por inaptos a fundamentar o efeito pretendido pela ora recorrente, refutando quer a violação da obrigação de apresentação à insolvência, quer salientando a ausência de alegação de factos que permitissem concluir que a não apresentação à insolvência agravou essa situação. // 18. Neste contexto cumpria proferir decisão de facto na precisa medida em que o tribunal recorrido considerou que os alegados não detinham qualquer relevância para a qualificação da insolvência como culposa e que agora a CGD replica, sem quaisquer alterações ou nova matéria. // 19. A douta sentença é assim irrecorrível e não padece de qualquer nulidade, nem a mesma existiu no procedimento e processualismos anteriores.”
O Tribunal a quo, através de despacho proferido em 02/09/2025, não admitiu o recurso interposto pela recorrente, ora reclamante, nos seguintes termos:
“Mediante requerimento autuado em 13.02.2025 a credora CGD, SA alegou o que considerou conveniente para efeitos de qualificação da insolvência como culposa, ao abrigo do disposto no art. 188º, n.º1, do CIRE. // Por despacho proferido em 14.03.2025 foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência. // Em 01.04.2025 o AI apresentou parecer fundamentado e concluiu propondo a qualificação da insolvência como fortuita, em cumprimento do disposto no art. 188º, n.º6, do CIRE. // Aberta vista ao Ministério Público, conforme previsto no art. 188º, n.º6, do CIRE, este pronunciou-se, em 09.06.2025, no sentido de a qualificação da insolvência dever ser considerada fortuita. // Por decisão proferida em 20.06.2025, devidamente fundamentada, foi considerada como fortuita a insolvência de VM. // Por requerimento apresentado em 11.07.2025 a credora CGD, SA requereu a interposição de recurso da decisão proferida. // Apreciando: // Dispõe o art. 188º, n.º 8, do CIRE, que, se tanto o AI como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insuscetível de recurso. // No caso em apreço, as propostas do AI e do Ministério Público coincidiram na qualificação da insolvência como fortuita e, na subsequente ponderação judicial fundamentada, não se vislumbraram razões de facto ou de direito que justificassem o prosseguimento dos autos com vista à apreciação da culpa do insolvente. // Cumpridos os referidos pressupostos, por inadmissibilidade legal, não se admite o recurso interposto pela credora CGD, SA // Custas do incidente a cargo da requerente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC – art. 7º, n.º4, e tabela anexa ao RCJ. // Notifique. // Não se admitindo o recurso, inexistem motivos para apreciar as questões ali suscitadas, sublinhando-se apenas que no incidente de qualificação de insolvência a respetiva tramitação encontra-se especificamente regulada no art. 188º, não se prevendo a realização de atos/notificações para além das ali expressamente previstas, e que obedece às características genéticas do processo de insolvência, sem que isso acarrete vícios de inconstitucionalidade, como já diversas vezes afirmado na jurisprudência constitucional.”
Não se conformando com tal despacho, reclamou a recorrente, peticionando que seja admitido o recurso que por si foi interposto.
Para tanto alegou: “(…) 4- No seu recurso, a Requerente, ora Reclamante, abordou, entre outros, dois vectores: // i) Da nulidade por preterição do direito ao contraditório; // ii) Da errada interpretação e aplicação da lei no julgamento. 5- Ou seja, invocou a nulidade da decisão, nos termos do art.º 615º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil, por.: (i) nulidade por preterição do direito ao contraditório; e (ii) a nulidade da sentença por omissão (parcial) de pronúncia. 6- Concretizando, a intento da nulidade de tal decisão por preterição do direito ao contraditório, aduziu que o presente incidente de qualificação da insolvência teve início por iniciativa da ora Reclamante, e esta nunca foi notificada: // - do parecer do Sr. Administrador de Insolvência, nem do seu teor/sentido; // - da concessão de prazo para, querendo, exercer o seu direito ao contraditório relativamente ao mesmo; // - do parecer do Ministério Público, nem do seu teor/sentido; // - da concessão de prazo para, querendo, exercer o seu direito ao contraditório relativamente ao mesmo; // - da pretensão do Tribunal “a quo” de proferir de imediato uma decisão sobre a qualificação da // insolvência no mesmo sentido dos pareceres do Sr. Administrador de Insolvência e do Ministério Público – sentido oposto ao requerido pela Recorrente; nem da concessão de prazo para, querendo, se pronunciar sobre a mesma. 7- Os Tribunais Superiores têm entendido que, apesar de a Lei não se referir expressamente à notificação dos pareceres do administrador de insolvência e do Ministério Público ao requerente do incidente de qualificação, o requerente do incidente tem, sim, o direito a exercer o contraditório antes de ser proferida a sentença, quando o tribunal pretender seguir os referidos pareceres no sentido da qualificação como fortuita, sob pena de nulidade (cfr., no sentido ora propugnado, a título de exemplo, o Tribunal da Relação do Porto, em 22/03/2018, no processo n.º 7882/16.2T8VNG-B.P1, o Tribunal da Relação de Évora, em 10/02/2010, no processo n.º 1086/08.5TBSLV-B.E1, e, ainda, o Tribunal da Relação de Lisboa, em 03/10/2017, no processo n.º 2774/15.5T8FNC-B). 8- Os pareceres do Sr. Administrador de Insolvência e do Ministério Público, ao propugnarem a qualificação da insolvência em sentido diferente do peticionado pela Requerente do incidente, não foram notificados, analisados, nem contraditados pela parte requerente do incidente. 9- Acresce que, o Sr. Administrador de Insolvência disse apenas que a situação de insolvência ocorreu em resultado da paragem do negócio no período de COVID19, com total ausência de rendimentos das sociedades de que era administrador único e das quais havia avalizado os financiamentos bancários contraídos pelas sociedades – o que o Ministério Público considerou insuficiente, para depois, sem nada mais dizer, considerar bastante. 10- Ora, nos casos em que o juiz pretenda proferir de imediato uma sentença em sentido oposto ao peticionado pelo requerente do incidente de qualificação de insolvência (como ocorreu no presente caso), deve, obrigatoriamente, dar a este último a possibilidade de se pronunciar sobre os elementos e fundamentos trazidos ao processo pelo administrador de insolvência e pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, o que não sucedeu no caso dos autos. 11- Tanto mais que, o que o n.º 8 do art.º 188.º do CIRE prescreve é que “se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido (…).”. Ou seja, não é um procedimento automático, ao invés do que parece resultar do despacho sob reclamação. Terá, pois, o juiz de, no mínimo, atender às circunstâncias aduzidas pelo Requerente e formular o seu próprio juízo crítico, observando o contraditório. 12- Não o tendo feito, o Tribunal “a quo” proferiu uma decisão-surpresa, na medida em que teve por base pareceres que nunca foram dados a conhecer à Requerente do presente incidente de qualificação de insolvência. 13- A mencionada falta traduz-se na omissão de um acto susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, inquinando todo o processado ulterior, pois impediu a ora Reclamante de refutar / contraditar, querendo, os elementos subjacentes, assim como impediu que a sua posição sobre tais elementos viesse a ser ponderada pelo Tribunal “a quo” (…). 14- Face ao que antecede, a decisão imediata de qualificação da insolvência como fortuita, por não ter sido precedida da prévia auscultação da ora Reclamante sobre tais pareceres –, encontra-se, sim, ferida de nulidade (cfr. art.º 195.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE; e cfr, no mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/12/2019). 15- Nulidade(s) de notificação(ões), para exercício do contraditório, que a ora Reclamante invocou em sede de recurso; na perspectiva acabada de expor, são estas sindicáveis por meio de recurso, ao invés do que refere o tribunal “ a quo”, no despacho sob reclamação. 16- Tem também cabimento legal, em sede de recurso o segundo argumentário da ora Reclamante: nulidade por omissão parcial de pronúncia. 17- Vejamos, a intento da errada interpretação e aplicação da lei no julgamento, a ora Reclamante alegou factualidade no requerimento que deu início ao incidente de qualificação de insolvência, que não foi considerada na sentença proferida em 20/06/2025. 18- Incorrendo em omissão de pronúncia. 19- O Tribunal “a quo” deveria ter apreciado todos os factos alegados pela ora Reclamante, discriminando na sentença os factos considerados provados e os factos considerados não provados (cfr. art.º 607.º, n.º 3 do CPC ex vi do art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), o que não foi feito. 20- Na verdade, na sentença apenas refere sob os pontos 11 a 13 parte muito sucinta da alegação da CGD, cfr. pág. 4 - e faz errada sindicância da mesma, sem ordenar e, consequentemente, produzir a prova requerida pela CGD. 21- A ora Reclamante trouxe aos autos circunstâncias que permitiam, em abstrato, qualificar a insolvência como culposa, elencando um conjunto de factos, juntando diversos documentos comprovativos e requerendo diligências de prova tendentes a confirmar a subsunção dos factos às previsões das alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE. 22- Sumariamente, Da insolvência culposa do Insolvente por alegadamente ter (a) destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, do seu património e; (b) disposto dos bens em proveito pessoal e prosseguir, no seu interesse pessoal, uma exploração deficitária, não obstante saber ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência - alíneas a) e d) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE: O comportamento de VM perante a credora CGD foi sempre de obviar a um qualquer contacto e/ou negociação – inexistentes, portanto – o que motivou, até, a instauração da acção executiva, aos 21/07/2023. 23- Sendo que, apenas foi penhorado, aos 12/04/2024, um saldo bancário, da titularidade do avalista HH, no valor de €493,13. 24- Ausência de património penhorável que, então, se tornou do conhecimento da CGD, e que se afigura incompreensível, dado que o Insolvente é um reconhecido chef, que também lidera um conjunto de restaurantes em Portugal. 25- Apresenta-se, pois, crê-se, ocultando, propositadamente, rendimentos, e não se dignando, sequer, a informar (documentando) o próprio Administrador de Insolvência e os seus credores, designadamente, e desde logo, o valor que efectivamente recebe; cfr. o relatório do art.º 155.º do CIRE de 29/01/2025 nos autos principais, pág. 1 e o requerimento da CGD de 10/02/2025, com a referência 51321552. 26- Tal indiciosa ocultação de património torna-se mais visível, porque, segundo esclarece o Sr. Administrador de Insolvência no seu relatório, por um lado, da pesquisa que efectuou junto do Serviço de Finanças, resultou a inexistência de bens sujeitos a registo – circunstância que suscita a dúvidas quanto à bondade/veracidade de tal despojamento; cfr. pág. 3 do relatório; e , por outro lado, o Insolvente reside na casa da companheira – o que, por se encontrar indemonstrado -, o que, propicia, identicamente, incertezas quanto ao efectivo beneficiário/titular de tal residência; idem, pág. 3. 27- De outro modo, o Insolvente mantém-se descaradamente em actividade, sem nada pagar aos credores; cfr. doc. 1 supra junto e docs. 5 a 13 juntos ao requerimento da CGD de 13/02/2025 neste apenso. 28- Da insolvência culposa do Insolvente por incumprir, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º - alínea i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE: Sob outro prisma, o Insolvente furtou-se, crê-se, intencionalmente, à citação para os presentes autos insolvenciais e ausenta-se de esclarecimentos em outros autos, como sejam os autos cautelares n.º 13509/23.9T8LSB do Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 21, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, nos termos supra enunciados. 29- Da insolvência culposa do Insolvente por ter prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência - alínea g) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE: O Insolvente foi accionista e administrador único da sociedade “Aromateca, Consultoria e Formação da Restauração, S.A.” – sociedade que liderava um conjunto de restaurantes de nome em Lisboa -, a qual foi declarada insolvente no processo n.º 15677/24.3T8LSB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 3 – tendo o aqui Insolvente avalizado/prestado fiança em operações bancárias daquela; cfr. pág. 2 do relatório. 30- E foi igualmente sócio e gerente da sociedade unipessoal por quotas denominada “Fabulousevasion, Unipessoal, Lda.”, a qual foi declarada insolvente no processo n.º 22744/23.9T8LSB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 4 - tendo o aqui Insolvente similarmente dado o seu aval em operações bancárias desta; cfr. págs. 2 e 3 do relatório. 31- Inclusivamente, beneficiou de um financiamento, por via da “Aromateca, Consultoria e Formação da Restauração, S.A.”, seu administrador único, já em 2021, datando a sua insolvência de 2024; cfr. art.ºs 41.º a 46.º da petição inicial de insolvência e doc. 6 ali junto. 32- Mais, a dívida actual, segundo as reclamações de créditos apresentadas, é superior a €3.000.000,00; idem – o que, já confirmou na aludida lista do art.º 129.º do CIRE, junta ao apenso A, onde reconheceu créditos no valor global de €3.651.971,21. 33- Destaca-se, um crédito da Segurança Social no valor global de € 148.503.15 já de 2021, e, ainda, um crédito de uma pessoa singular, RR, actualmente insolvente, no valor de €70.460,00, cujo desrespeito (da conduta perpetrada) já foi judicialmente reconhecido em 2017; cfr. doc. 2 junto ao requerimento de 13/02/2025 no presente apenso. 34- A sua conduta arrogada pelo Insolvente, neste contexto – entenda-se, avolumar injustificadamente dívidas - enquadra-se no art.º 186.º, n.º 2, alínea g) do CIRE. 35- Da insolvência culposa do Insolvente por incumprir, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º - alínea i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE:: O incumprimento do Insolvente para com a CGD ocorre já desde pelo menos 2022, altura em que as sociedades das quais foi garante entraram em mora generalizada, nada tendo sido pago (de expressivo) de então para cá; cfr. art.ºs 17.º e ss da petição inicial da insolvência. 36- E que, apesar de ter sido demandado em acção executiva (proc. n.º 19670/23.5T8LSB), com outros, até à data, a CGD de nada foi ressarcida; cfr. art.º 19.º da petição inicial. 37- Incumpre, ainda, com a Segurança Social desde 2021 e perante RR desde 2017; cfr. doc.s 1 e 2 juntos ao requerimento da CGD de 13/02/2025 no presente apenso. 38- Em síntese, crê-se que, o Insolvente devia já há muito ter-se apresentado à insolvência. 39- Impõe-se, em suma, concluir que a insolvência é culposa por tiver sido criada e/ou agravada em consequência da actuação, dolosa, do Insolvente – sendo a conduta deste, no mínimo, enquadrável no art.º 186.º, n.º 2, alíneas a), d) e i) do CIRE. 40- Além de que, ao contrário o que se retira da decisão sob reclamação (parte final), no incidente de qualificação de insolvência vigora o princípio do inquisitório que permite ao juiz fundar a decisão em factos não alegados, bem como, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem com, recolher as provas e informações que entender convenientes – reveja-se, pois, a necessidade de se aguardar, ainda, pelo cumprimento do despacho de 27/02/2025 proferido nos autos principais atentas as repercussões na aferição deste apenso, designadamente para efeitos de melhor granjear “a fita do tempo” da factualidade (culposa). 41- Sucede que os factos invocados pela ora Reclamante não foram (na sua totalidade) objecto de análise pelo Tribunal “a quo” no âmbito da fundamentação da sentença, assim como não foram os documentos comprovativos juntos, nem as diligências de prova requeridas: PROVA TESTEMUNHAL: Exmo. Senhor Dr. EE, Administrador de Insolvência, Exmo. Senhor Dr. NN e Exma. Senhora Dra. SS. E DEPOIMENTO DE PARTE, a notificar, Exmo. Senhor VM. 42- Logo, os vícios (de nulidade) apontados à decisão de 20/06/2025 são passíveis de recurso, para efeitos de se aferir o pedido formulado pela ora Reclamante: // - num primeiro momento, ordenar-se o contraditório da Recorrente quanto aos pareces do AI e do MP. // - num, segundo momento, ordenar-se as diligências de prova requeridas pela ora Reclamante. 43- Pelo exposto, requer-se que seja dado provimento à presente reclamação e, nessa sequência que, seja, então, proferida decisão de admissão do recurso da ora Reclamante, para os efeitos que vêm indicados. (…)”.
Não consta que à Reclamação tenha sido apresentada alguma Resposta.
Na sequência do ordenado pelo despacho proferido em 24/09/2025, instruiu-se o apenso referente à Reclamação e remeteu-se a mesma a esta instância superior.
II. Os factos
Os factos e ocorrências processuais relevantes para a decisão da presente reclamação são os que resultam do relatório supra enunciado.
III. O mérito da reclamação
O meio de reagir contra uma qualquer decisão judicial é através da instauração de recurso – artigo 627.º, n.º 1 do CPC.[1]
Contudo, do despacho que não admita um recurso, a forma processual de reagir é já através da reclamação prevista no artigo 643.º, n.º 1 do CPC.[2]
Como questão prévia, importa referir que, não obstante a reclamação apresentada não contenha conclusões, tal omissão não obsta à sua apreciação.
Estando em causa a interposição de um recurso, em face do que dispõe o n.º 1 do artigo 639.º do CPC, sempre as respectivas alegações deverão ser estruturadas respeitando os seguintes segmentos: introdução (identificação do processo e das partes da decisão que pretende impugnar), exposição desenvolvida e fundamentada da impugnação, conclusões e pedido[3].
Já a reclamação, tendo uma estrutura semelhante à das alegações de recurso, terá igualmente que ser motivada, da mesma constando a exposição dos fundamentos da revogação do despacho em causa.[4] Porém, já não é requisito essencial à admissibilidade da reclamação que na mesma tenham sido formuladas conclusões[5].
Importa agora aferir se o recurso interposto pela aqui reclamante deveria ou não ter sido admitido.
Como resulta do já exposto está em causa uma sentença proferida no âmbito de um incidente de qualificação da insolvência.
Em face de, tanto o parecer emitido pelo AI, como o que foi apresentado pelo MP, terem sido no sentido de dever a insolvência ser qualificada como fortuita, após análise do caso, veio o tribunal recorrido a decidir igualmente nesse sentido.
Dessa sentença foi interposto recurso, o qual foi rejeitado através do despacho reclamado.
Em face de assim ser, cumpre apenas aferir da correcção deste último despacho (e já não apreciar do mérito da sentença sobre a qual o recurso incidiu).
E, desde já adiantando a nossa posição, não estamos perante uma sentença que assuma recorribilidade, como pretendido pela reclamante.
Senão vejamos.
Resulta do n.º 6 do artigo 188.º do CIRE que, declarado aberto o incidente, o AI (quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1) apresenta parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, terminando depois com a formulação de uma proposta (identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afectadas pela qualificação da insolvência como culposa). Tal parecer vai depois com vista ao MP, para que este igualmente se pronuncie (n.º 7).
Já de acordo com o n.º 8 do mesmo artigo, “Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insuscetível de recurso.”
Ou seja, como expressamente consignado neste número, a sentença proferida e que a ora reclamante pretende impugnar não é passível de recurso.
É certo que, para que julgador decida nos moldes previstos no transcrito n.º 8, sobretudo quando o incidente de qualificação tenha sido da iniciativa de um credor (como aqui sucedeu), sempre lhe será exigível que leve a efeito uma apreciação e valoração da factualidade invocada (ou que resulte do processo) e respectivo enquadramento jurídica, não podendo o mesmo aderir acriticamente aos pareceres apresentados pelo AI e pelo MP. Deverá, pois, o julgador manifestar a sua concordância de forma fundamentada. Porém, no caso, assim sucedeu.
A corroborar o defendido quanto à irrecorribilidade da sentença visada, veja-se o decidido na decisão sumária da Relação de Évora de 14/04/2016 (Proc. n.º 526/13.6TBPTG-M.E1, relatora Albertina Pedroso), precisamente referente a reclamação interposta sobre despacho que rejeitou recurso, em cujo sumário de pode ler: “I – O artigo 188.º (…) constitui preceito inovador cujo n.º 4 – norma que antecedeu o actual n.º 8 do mesmo artigo - rege precisamente sobre a hipótese (…) de serem coincidentes as posições expressas pelo Administrador de Insolvência e pelo Ministério Público quanto à qualificação da insolvência como fortuita, caso em que o legislador expressamente afasta a possibilidade de a decisão proferida pelo juiz nesse mesmo sentido ser passível de recurso. II - A restrição imposta pelo legislador no referido normativo relativamente ao regime geral de recursos previsto no CPC, e ao próprio regime especial de recursos previsto no artigo 14.º do CIRE, não viola qualquer preceito constitucional, designadamente os arts. 20.º e 202.º da Constituição.”.
Sobre tal matéria também já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no seu acórdão 340/2011 (Proc. n.º 119/11, relator Vítor Gomes), no qual se escreveu que “a norma do n.º 4 do artigo 188.º do CIRE, não viola os artigos 20.º, n.ºs 1 e 2 e 202º da Constituição, (i) quer no segmento em que estabelece que, se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz profere decisão nesse sentido mesmo que haja interessados que tenham manifestado posição diversa, (ii) quer no segmento em que considera tal decisão irrecorrível.”[6]
Mais se defendendo que a norma em apreço “Não viola o n.º 1 do artigo 20.º (direito de acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legítimos), porque a finalidade do incidente e dos efeitos que da qualificação da insolvência como culposa podem decorrer é a tutela do interesse geral e, só reflexamente, o interesse comum dos credores. Não o de cada credor individualizado, que não sofre com o encerramento do incidente privação de qualquer meio de defesa judicial do seu crédito ou de impugnação dos créditos concorrentes, incluindo os daqueles que poderiam ser atingidos por tal qualificação. Deste modo, não sendo o credor individualmente afectado nos seus direitos e interesses legalmente protegidos com a qualificação da insolvência como fortuita, a Constituição não impõe que lhe seja assegurada legitimidade para fazer prosseguir o incidente de qualificação da insolvência”, acrescentando que “o duplo grau de jurisdição apenas está consagrado expressamente como uma das garantias de defesa em processo penal contra decisões condenatórias ou que afectem a liberdade do arguido (artigo 32.º, n.º1, da CRP). Além do âmbito penal, é considerado por alguma doutrina e jurisprudência, embora com fundamentação não inteiramente coincidente, como inerente à protecção contra decisões que imponham restrições a direitos liberdades e garantias pessoais (…). Fora desses domínios específicos, o legislador dispõe de uma larga margem de conformação do direito ao recurso, seja quanto à definição das decisões jurisdicionais susceptíveis de impugnação e aos condicionamentos da recorribilidade, seja quanto aos demais aspectos da sua regulação. O que não significa que o legislador possa proceder arbitrariamente a essa conformação, devendo observar na disciplina dos recursos os princípios constitucionais gerais, designadamente as exigências impostas pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade e, em particular, as exigências do processo equitativo. (…) // Ora, nada tem de arbitrário que se consagre a irrecorribilidade de decisões que conduzem à qualificação da insolvência como fortuita perante a convergência de posição daquelas entidades legitimadas neste domínio específico para defender o interesse geral da comunidade e o interesse comum dos credores. Mesmo que não cobre grande sentido invocar a este propósito a especial celeridade que caracteriza o processo de insolvência porque o incidente tem autonomia, não interferindo com a gestão da massa, a liquidação do activo ou a verificação de créditos, trata-se de decisões que não aplicam sanções, caindo no espaço geral de discricionariedade legislativa em matéria de recursos. Aliás, a situação inversa, de qualificação da insolvência como culposa é que pode justificar imperatividade constitucional de duplo grau de jurisdição pelas consequências agressivas que comporta (…).”
Quanto ao demais invocado pela reclamante, dir-se-á que:
- Nenhuma nulidade foi arguida/reclamada pela mesma junto da 1.ª instância, designadamente com relação a uma putativa violação do princípio do contraditório (sendo que, no caso, nem sequer estamos em face de qualquer nulidade de conhecimento oficioso ou que decorresse da omissão de formalidade de cumprimento obrigatório);
- Igualmente não foi suscitada, junto da mesma instância, a existência de alguma putativa nulidade de que a sentença pudesse padecer – sendo a sentença irrecorrível, o vício de nulidade de que a mesma padeça deverá ser arguida perante o tribunal que a proferiu, como decorre do disposto nos artigos 615.º, n.º 4 e 617.º, n.º 6, 1.ª parte, ambos do CPC;
- Por fim, tão pouco os acórdãos invocados pela reclamante abalam o que supra se deixou exposto (irrecorribilidade da sentença visada).
Dois deles (acórdãos da Relação do Porto em 22/03/2018 e da Relação de Évora em 10/02/2010), reportam-se a situações nas quais foi suscitada, perante a 1.ª instância, a nulidade por violação do princípio do contraditório, nulidade essa que foi julgada improcedente, tendo os recursos incidido sobre os despachos que assim decidiram (ou seja, o objecto de tais recursos não era o mérito de qualquer sentença proferida ao abrigo do artigo 188.º, n.º 8).
Já o terceiro acórdão invocado (acórdão da Relação de Lisboa em 03/10/2017, o qual, ao que se julga, não estará publicado), versa uma situação na qual, o AI e o MP emitiram inicialmente pareceres no sentido de ser a qualificação culposa e, em sede de audiência prévia, vieram a alterar a posição, passando a pronunciar-se no sentido de dever a qualificação ser fortuita com fundamento na “não existência de prova”. Porém, esta Relação considerou que o momento para apresentação dos pareceres já estava ultrapassado e que a pronúncia havia sido no sentido da qualificação da insolvência como culposa. Nessa medida entendendo que a proposta alteração configuraria uma “desistência, em matéria indisponível”, mais acrescentando que, “existindo no processo factos susceptíveis de indiciar a responsabilidade na situação de insolvência do devedor, não pode o Tribunal deles conhecer, impedindo a produção de prova requerida nos autos” (pelo que, para além de não estar em causa a questão de ser ou não a sentença recorrível, diverge do presente caso, no qual os pareceres foram ab inicio no sentido da qualificação fortuita, mais tendo a 1.ª instância apreciado e refutado expressamente as qualificativas invocadas pela reclamante, independentemente da prova que pudesse vir a ser proferida).
Nestes termos, bem andou o tribunal a quo ao não admitir o recurso interposto, não podendo a presente reclamação proceder.
IV. Decisão
Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação, confirmando-se o despacho reclamado (de rejeição do recurso), o qual se mantém nos moldes em que foi proferido.
Custas pela reclamante.
Lisboa, 17/10/2025
Renata Linhares de Castro
_______________________________________________________ [1] Cfr. RODRIGUES BASTOS, in Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 211, para o qual os recursos, “em sentido técnico-jurídico, são os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se obtém o reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida”. [2] Dispõe o artigo 643.º, n.º 1 do CPC que “Do despacho que não admita o recurso pode o recorrente reclamar para o tribunal que seria competente para dele conhecer no prazo de 10 dias contados da notificação da decisão”. A tal reclamação pode a parte contrária (recorrido) responder – n.º 2. Sendo a reclamação dirigida ao tribunal superior e, uma vez distribuída ao respectivo relator, o mesmo dela conhece: admitindo o recurso em causa ou mantendo o despacho reclamado – n.ºs 3 e 4 do referido artigo. [3] FRANÇA PITÃO, Código de Processo Civil Anotado, tomo II, pág. 752.
A falta de alegações ou de conclusões acarreta o indeferimento do recurso – artigo 641.º, n.º 2, al. b), do CPC. Como escreve ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, Almedina, 6.ª edição, pág. 183: “O art. 639.º, n.º 3 em conjugação com o art. 641.º, n.º 2, al. b), não deixa margem para dúvidas, devendo o indeferimento do recurso com fundamento na falta de conclusões ser assumido logo no tribunal a quo, sem embargo de oportuna intervenção do tribunal ad quem (arts. 652.º, n.º 1, al. a) e 655.º, n.º 1).” [4] Como se defende na decisão singular do STJ de 22/02/2016 (Proc. n.º 490/11.6TBVNG.P1-A.S1, relator Abrantes Geraldes), “Não sendo enunciado qualquer fundamento para a revogação do despacho de não admissão do recurso, a reclamação prevista no art. 643.º, n.º 1, deve ser objeto de rejeição liminar por aplicação extensiva do disposto no art. 641.º, n.º 2, al. b), 1.ª parte”. [5] Nesse sentido, ABRANTES GERALDES, Recursos …, obra citada, pág. 226, e RUI PINTO, Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2020, págs. 300/331, bem como Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º do CPC, Julgar Online, Maio/2020, pág. 4, nota 8. [6] No mesmo se podendo, ainda ler: “É certo que o carácter dominantemente sancionatório das medidas e a transcendência do seu escopo relativamente aos credores do insolvente, não elimina totalmente o interesse destes na qualificação da insolvência como culposa. Basta ver que uma das medidas que o juiz deve impor é a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos. Ora, esta perda de créditos sobre a insolvência ou sobre a massa é potencialmente vantajosa para os credores, que assim vêm acrescida a probabilidade de obter satisfação para o seu crédito, ou de o ver satisfeito em maior percentagem. // Trata-se, todavia, sempre de um efeito indirecto ou reflexo. Com essa medida não se visa determinar a responsabilidade da pessoa por ela afectada perante os credores, perante a empresa insolvente ou perante a massa. Essa responsabilidade permanece e pode ser objecto de acções autónomas (artigo 185.º). Nem com a sua não decretação fica prejudicada a possibilidade de os interessados, se para tanto tiverem fundamento, impugnarem esses mesmos créditos que poderiam vir a ser declarados perdidos se a situação do devedor fosse qualificada como insolvência culposa. O legislador adoptou uma medida gravosa de perda de direitos, para ser imposta sem necessidade de demonstração de relação de causalidade entre a aquisição do crédito declarado perdido e a específica actuação em função da qual o visado é considerado responsável pela insolvência culposa. Essa medida acresce à inibição para o exercício do comércio ou para o desempenho dos cargos referidos na alínea b) do mesmo preceito e tem uma finalidade acentuadamente de prevenção geral. Os interesses individuais dos credores não podem considerar-se directamente salvaguardados pelas medidas constantes do artigo 189.º, mas sim pelos meios gerais de tutela que conservam e por todos os outros mecanismos previstos no Código, regime este que, atenta a finalidade do processo de insolvência (artigo 1º do CIRE), se afasta, por vezes, do regime geral, sem que tal, por si só, leve à verificação de qualquer inconstitucionalidade (Acórdãos nºs 395/06, 576/06 e 50/09). // Assim, tendo as medidas aplicáveis na situação de insolvência culposa natureza essencialmente sancionatória e de interesse geral de preservação da sã actividade económica, não é arbitrário e, sobretudo, não priva os credores da possibilidade de defesa de uma posição jurídica própria o facto de a lei dispor de tal modo que a legitimidade para fazer prosseguir o incidente em ordem à qualificação da insolvência como culposa acabe por ser restrita ao Ministério Público e ao administrador da insolvência. Esta selectividade dos sujeitos legitimados para fazer prosseguir o incidente não é arbitrária ou desrazoável. O Ministério Público, tendo em atenção o seu estatuto constitucional e legal de defesa da legalidade em geral, necessariamente exterior aos interesses particulares que se movimentam no processo de insolvência. O administrador da insolvência, como órgão executivo da insolvência a quem compete prosseguir os interesses comuns dos “proprietários económicos da empresa” em que a declaração de insolvência torna os credores, pelos interesses reflexos que a declaração pode trazer para a massa e pelo seu estatuto de servidor da justiça e do direito, devendo manter sempre a maior independência e isenção, não prosseguindo quaisquer objectivos diversos dos inerentes ao exercício da sua actividade (artigo 16.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho).”