Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
INSOLVÊNCIA
REQUISITOS
FACTOS-INDICES
LEGITIMIDADE ACTIVA
SUPRIMENTOS
MÚTUO
Sumário
1- Tem legitimidade processual para requerer o processo de insolvência aquele que se arroga titular de um direito de crédito sobre a sociedade devedora, sendo-lhe exigível para o justificar a menção da sua origem, natureza e montante, tal como se infere do art.º 25.º do CIRE. 2- A complexidade das questões atinentes com a apreciação desse invocado direito de crédito não obsta a que as mesmas sejam analisadas no âmbito do processo de insolvência, que é autossuficiente para as discutir e apreciar. 3- Não é contrato de suprimento, nos termos do disposto no art.º 243.º do CSC, o contrato pelo qual o Requerente, sócio da sociedade detentora da integralidade do capital social da sociedade financiada (Requerida) empresta dinheiro à mesma. 4- Está insolvente a sociedade que se encontra impossibilitada de cumprir as obrigações vencidas e que tenha um passivo manifestamente superior ao ativo, tal como resulta do art.º 3.º n.ºs 1 e 2 do CIRE. 5- Ao credor, requerente da insolvência, incumbe alegar e provar qualquer dos factos-índices da insolvência previstos no n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, tal como decorre do consagrado no art.º 23.º n.º 1 do mesmo código. 6- As sociedades por quotas estão legalmente obrigadas a apresentar e publicar as suas contas, tal como se infere do disposto nos arts.º 70.º do CSC, 3.º, n.º 1, al. n), 15.º, 42.º e 53.º A, n.ºs 1 e 3, do Cód. de Registo Comercial, com vista a dar publicidade à situação jurídica das mesmas. 7- Resultando dos documentos juntos pela própria Requerida aos autos, a existência de dívidas vencidas e cujo pagamento não foi cabalmente demonstrado, resultando também dos autos que a Requerida não procede ao depósito de contas desde a sua constituição no ano de 2021, que não tem contabilista certificado, que vendeu todo o seu património e que integra já, depois de instaurada a ação insolvencial, a lista pública de execuções a que alude a Portaria 313/2009 de 30/03, assim demonstrando a falta ou insuficiência de bens penhoráveis no seu património, verificados estão os “factos índice” referidos nas alíneas b), e) e h) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE. 8- Por ser assim, nada tendo a Requerida demonstrado, no sentido de que tem capacidade para satisfazer as suas obrigações, não poderá a insolvência deixar de ser declarada.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I-/ Relatório:
1. AA, casado, empresário, com residência no Porto, requer que seja decretada a insolvência de ARE…, Lda., pessoa coletiva com sede em Lisboa.
Para tanto, alegou, em síntese:
(i) que a Requerida tem como sócia única a sociedade comercial AS, Lda.;
(ii) que por contrato escrito datado de 08/11/2022, Requerente e Requerida, esta na pessoa do seu gerente, BB, acordaram que aquele emprestava à Requerida a quantia de 85 mil euros e que por contrato verbal, celebrado em fevereiro de 2023, acordaram também que aquele lhe emprestava a quantia de 15 mil euros;
(iii) que ambos os empréstimos tinham vencimento de juros à taxa anual de 5%, obrigando-se a Requerida a restituir os aludidos montantes até ao dia 1 de novembro de 2027;
(iv) que ambos os contratos são nulos por falta de forma legal, à luz dos arts.º 1143.º e 220.º do Cód. Civil, pelo que, nos termos do disposto no art.º 289.º do mesmo código, tem o Requerente direito a que lhe seja restituída a totalidade da quantia de €100.000,00, que é assim imediatamente exigível;
(v) que por contrato celebrado a 06/11/2023, a Requerida declarou vender à sociedade CF Lda. todos os bens imóveis, e únicos bens, de que era proprietária, por um valor inferior ao valor de mercado, em, pelo menos, €800.000,00, não voltando após a aludida venda a praticar qualquer outro ato comercial;
(vi) que com o preço apurado em tal venda, que consubstanciou um ato prejudicial para a Requerida e seus credores, apenas foram pagos dois credores hipotecários (ficando por liquidar as restantes dívidas já vencidas) e o gerente da Requerida, por “suprimentos que fez à sociedade”;
(vii) que a Requerida não procede ao depósito de contas desde a sua constituição no ano de 2021, nos termos do disposto no art.º 70.º do Cód. das Sociedade Comerciais e 42.º do Cód. de Registo Comercial.
(viii) que Requerida tem um passivo de cerca de € 170.000,00, manifestamente superior ao seu ativo, não superior a € 10.000,00 (sem prejuízo do ativo que vier a resultar das pugnadas resoluções em benefício da massa insolvente supra melhor elencadas), tendo capitais próprios negativos e estando em desrespeito do disposto no art.º 35.º do Cód. das Sociedades Comerciais.
Assim, concluiu, a sociedade Requerida encontra-se atualmente impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, tendo um passivo manifestamente superior ao ativo, devendo ser judicialmente declarada a sua insolvência, nos termos do disposto nas alíneas a), b), c), d) e h) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE e art.º 3.º do mesmo código, estando também em desrespeito do disposto no art.º 35.º do Cód. das Sociedades Comerciais.
2. Citada, a Requerida deduziu oposição, nos seguintes moldes:
(i) arguindo a exceção de ilegitimidade do Requerente;
(ii) que a Requerida foi constituída em 21/12/2021, tendo como sócios o Requerente e BB, que, em 02/03/2022, constituíram a sociedade AS, Lda., que, por sua vez, em 28/03/2022, lhes adquiriu as quotas de que eram titulares na Requerida, passando assim a deter a totalidade do capital social desta sociedade;
(iii) Que tudo o assim realizado foi idealizado pelo Requerente e teve como intuito a obtenção de vantagens financeiras e fiscais, funcionando a AS, Lda. e a Requerida como sociedades coligadas, em relação de domínio total, constituindo, conjuntamente, uma unidade económica, controlada pelo Requerente AA e por BB, enquanto titulares, na proporção de metade cada um, da totalidade do capital social da sociedade dominante;
(iv) que Requerente e BB, por intermédio das participações sociais de que são titulares na AS, Lda., agem como verdadeiros sócios da Requerida, e, apesar de o Requerente não o ser formalmente, o crédito por si alegado, nos termos descritos na petição inicial, tem na sua base um contrato de suprimento;
(v) que se o Requerente considera que os empréstimos feitos por BB à Requerida são suprimentos, em coerência terá de reconhecer que os seus alegados empréstimos também o são, razão pela qual, nos termos do art.º 245.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais, não pode requerer, por esses créditos, a insolvência da sociedade, que deve assim ser absolvida da instância;
(vi) não obstante, e contrariamente ao alegado pelo Requerente, este e a Requerida não acordaram a realização de quaisquer empréstimos, tendo o Requerente decidido, de motu proprio, transferir aquelas quantias, sem querer que as mesmas lhes fossem restituídas no futuro, visando, isso sim, retirar o maior lucro possível desse investimento, inexistindo assim da parte da Requerida qualquer obrigação de restituir tais quantias ao Requerente, pelo que este não detém qualquer crédito sobre a mesma. Todavia, argumenta ainda, a existir o crédito alegado e porque, reconhece, as referidas transferências foram, por razões de conveniência, tratadas contabilisticamente como suprimentos, deve concluir-se que o mesmo tem na sua base um contrato de suprimento, com todos os efeitos legais que daí advêm;
Termina, alegando que não se pode concluir que a Requerida se encontre em situação de insolvência, e que o Requerente faz um uso abusivo do processo de insolvência, procurando com a presente ação um objetivo que não se coaduna com a ratio de um processo de execução universal, agindo assim em abuso de Direito.
3. O Requerente respondeu que nunca foi gerente de qualquer das sociedades invocadas, nem seu sócio maioritário, não constituindo suprimentos os empréstimos que fez à sociedade requerida numa altura em que não era já sócio da mesma.
4. Foi elaborado despacho saneador com seleção de factos assentes e temas da prova e, realizado julgamento, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, julgo procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa do Requerente, o que determina a absolvição da Requerida da instância.
Custas pela Requerente.
Valor: o já fixado no despacho saneador.
Notifique e DN.».
5. Não se conformando com a sentença assim proferida, dela apelou o Requerente, recurso que veio a ser julgado por este tribunal e coletivo, que anulou a sentença recorrida, determinando que fosse proferida nova sentença com a correção das patologias relativas à decisão da matéria de facto então elencadas.
6. Veio a ser proferida nova sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, julgo improcedente a ação, absolvendo a Requerida do pedido.
Custas pelo Requerente (art.º 527 do Código de Processo Civil e 304 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Valor: o já fixado no despacho saneador (€ 30.000,01).
Notifique e DN».
7. Não se conformando com a mesma, dela novamente apelou o Requerente que terminou com as conclusões que aqui se sintetizam:
«1. Deve ser alterada a matéria de facto julgada provada e não provada, o que se impõe e exige pelos meios probatórios indicados no corpo das alegações, nos termos assim indicados:
A-/ Alteração da redação dada aos factos 10 a 13 da sentença, devendo ser julgado provado que:
Facto 10: “Por contrato escrito celebrado a 8 de novembro de 2022 Requerente e Requerida, na pessoa do gerente da Requerida BB, acordaram que este emprestava à Requerida a quantia de 85 mil euros”.
Facto 11: “Mais acordaram que a quantia de 85 mil euros emprestada venceria juros à taxa anual de 5% e que a Requerida se obrigava a restituir tal quantia ao Requerente até ao dia 1 de novembro de 2027.”
Facto 12: “Por contrato verbal celebrado em fevereiro de 2023 Requerente e Requerida, na pessoa do gerente da Requerida BB, acordaram que este emprestava à Requerida a quantia de 15 mil euros”
Facto 13: “Mais acordaram que a quantia de 15 mil euros emprestada venceria juros à taxa anual de 5% e que a Requerida se obrigava a restituir tal quantia ao Requerente até ao dia 1 de novembro de 2027.”
B-/ Devem ser julgados não provados os factos 14 a 20 da sentença recorrida.
Ou então, e apenas, ser julgado provado que: «O interessado na compra dos imóveis propôs ao Requerente pagar-lhe 100.000,00€ que este entregou à sociedade, após a construção e venda dos imóveis a construir, o que o mesmo rejeitou». «Posteriormente, propôs-lhe ceder um apartamento tipo T1, avaliado em 210.000,00€ após a construção e venda dos imóveis a construir, o que o mesmo rejeitou».
C-/ Deve ser alterada a redação dada ao facto 21, e devem ser julgados provados os factos vertidos nos artigos 62.º, 63.º e 74.º da petição inicial sob a seguinte redação:
Facto 21: “A dívida à Plural Decimal, Lda. foi integralmente liquidada no âmbito do processo executivo n.º 5299/23.1T8VNF, do Juízo de Execução de Vila de Nova de Famalicão – Juiz 3.”
art.º 62.º: “A Requerida deve a quantia de €14.883,00 à sociedade Prática 04 – Arquitetura e Engenharia Lda. (NIF 513485210), dívida que está vencida e em mora desde 05 de abril de 2023.”
art.º 63º: “A Requerida deve a quantia de €12.600,00 à sociedade CIVI4-Projectistas e Consultores Eng.ª Civil, Lda. | Contribuinte Nº PT503694959, dívida que está vencida e em mora desde 05 de outubro de 2022.”
art.º 74º: “A Requerida, a 31 de dezembro de 2023, tinha um passivo de cerca de € 238.106,55 manifestamente superior ao seu atual ativo de € 5.013,00”.
D-/Devem ser aditados à matéria de facto provada também os seguintes factos:
(i) “A Requerida deve, para além dos outros créditos já assinalados, a quantia de:
I. € 3.321,00 – à sociedade 327 Creative Studio 327, Lda.
II. € 1.900,00 à sociedade Melancia Investimentos Unipessoal Lda.
III. €15.000,00 à sociedade de advogados Telles de Abreu e Associados – Sociedade de Advogados, SP, RL.
IV. € 94.022,82 a BB
V. € 147,01 à Autoridade Tributária
VI. € 333,90 à Segurança Social
VII. € 7.646,09 à Grandemarca, Sociedade Unipessoal Lda.”
VIII. € 4.000,81 a AA e PP”.
(ii) “O contabilista certificado da Requerida cessou funções a 12 de janeiro de 2024 e a Requerida não nomeou novo contabilista desde essa data até ao presente dia.”
E-/ Devem ser dados como provados os factos alegados nos artigos 19.º, 25.º 67.º e 69.º da petição inicial, com a seguinte redação:
art.º 19º: “Estes prédios vendidos a 06 de novembro de 2023 eram os únicos bens imóveis da Requerida.”
art.º 25º (em complemento do facto 3 da sentença recorrida) “por acordo entre a Requerida e a sociedade compradora dos prédios, acima melhor identificada, o preço global ajustado de € 3.190.000,00 foi declarado ser pago da seguinte forma:
A quantia de € 700.000,00 através da assunção pela sociedade compradora de uma dívida da sociedade vendedora perante o credor hipotecário CC, que o representante da sociedade compradora declarou, em nome e representação daquela, assumir a responsabilidade de liquidação até integral pagamento;
A quantia de € 810.000,00 através da assunção pela sociedade compradora de uma suposta dívida da sociedade vendedora perante o seu próprio gerente BB, que o representante da sociedade compradora declarou, em nome e representação daquela, assumir a responsabilidade de liquidação até integral pagamento;
A quantia de € 1.680.000,00 através de dois cheques bancários, quantia que foi totalmente utilizada para pagar dívida da Requerida ao Banco BNI – Banco de Negócios Internacional (Europa), credor hipotecário desta.”
art.º 67º: (em complemento do facto 24 da sentença recorrida) “A Requerida desde 6 de novembro de 2023 não praticou qualquer ato de comércio ou outro.”
art.º 69º: “Os únicos ativos imobiliários da Requerida foram vendidos a 6 de novembro de 2023 por € 3.190.000,00, sendo que a 11 de maio de 2022 os mesmos estavam avaliados em € 3.568.746,00”.
2. Ao nível do enquadramento jurídico, deverá assim ter-se em atenção que o Requerente celebrou contratos de empréstimo com a Requerida, sendo como tal seu credor, seja por força dos contratos celebrados, seja por força da nulidade dos mesmos, por vício de forma, que é de conhecimento oficioso.
3. Os créditos que podem fundar o pedido de insolvência não têm de estar vencidos ao tempo do pedido de insolvência para existir legitimidade para requerer a declaração de insolvência.
4. Não é contrato de suprimento, nos termos do disposto no art.º 243º do CSC, o contrato pelo qual sócio não maioritário do capital social da sócia da sociedade financiada empresta dinheiro àquela.
5. A pluralidade de credores não é um requisito do processo de insolvência, nem uma condição para a sua procedência.
6. A sociedade Requerida está insolvente por estar impossibilitada de cumprir as obrigações vencidas e por ter um passivo manifestamente superior ao ativo.
7. O gerente da Requerida, depois de vender todo o seu património e pagar-se na quantia de € 810.000,00, ausentou-se do país, nunca mais tendo praticado qualquer ato em representação desta sociedade, nem sequer tendo nomeado contabilista certificado após a renúncia do profissional que tinha tal incumbência.
8. A Requerida, embora esteja legalmente obrigada a tal, nos termos do disposto no art.º 70.º do Cód. das Sociedades Comerciais e 15.º e 42.º do Cód. de Registo Comercial, não apresentou e publicou as suas contas relativamente aos anos de 2021, 2022, 2023 e 2024.
9. Face à atual configuração legal dos arts.º 748.º a 750.º do CPC, aos objetivos prosseguidos pelo legislador com a criação da lista pública de execuções, disponibilizada na Internet, com dados sobre execuções frustradas por inexistência de bens penhoráveis (criada e regulada pela Portaria n.º 313/2009, de 29/03, e sucessivas alterações), as garantias de segurança quanto à inclusão e fidedignidade das informações nela contidas, e ao facto da pessoa inscrita ser a única que dispõe de legitimidade para requerer a alteração ou retificação dessa informação (sendo, por isso, o responsável pela fidedignidade e atualidade da informação nela contida), impõe-se interpretar restritivamente a al. e), do n.º 1, do art.º 20.º do CIRE, no sentido de que a inscrição do requerido naquela lista constitui prova bastante da falta ou insuficiência de bens penhoráveis no seu património que permitam liquidar o crédito detido sobre aquele pelo Requerente da insolvência, sendo que a Requerida, já depois de instaurada esta ação, foi incluída na lista pública de execuções.
10. Está, no caso dos autos, preenchido o disposto nos arts.º. 3.º, n.ºs 1 e 2 e art.º 20.º alíneas a), b), c), e) e h) do CIRE., não tendo a Requerida feito prova da sua solvência.
11. Violou a sentença Recorrida o disposto os arts.º 410.º, 415.º e 574.º do Cód. Proc. Civil, arts.º 376.º, 601.º e 1142.º do Cód. Civil e arts.º 3.º, 11.º, 20.º e 30.º, n.º 3 do CIRE.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão Recorrida e substituída por outra que declare a situação de insolvência da Requerida, atenta a legitimidade do Requerente, com todas as demais consequências legais. Só assim se fazendo a já acostumada justiça.
8. Em contra-alegações, a Requerida pugnou pela improcedência da apelação e confirmação da sentença Recorrida, defendendo também que o Requerente faz um uso abusivo do processo de insolvência, procurando com a presente ação um objetivo que não se coaduna com a ratio de um processo de execução universal, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelo fim económico do processo de insolvência, agindo assim com abuso do direito.
9. Admitido o recurso interposto e remetidos os autos a este Tribunal da Relação, foi corrigido o modo de subida do recurso, que passou a ser tramitado nos próprios autos de insolvência e não em separado como determinado pela 1ª Instância.
10. Colhidos então os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
*
II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, tal como decorre dos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam assim à apreciação deste Tribunal consistem em:
(i) Apreciar da requerida junção aos autos dos documentos juntos com as alegações de recurso e contra-alegações;
(ii) Apreciar a impugnação da matéria de facto;
(iii) Apreciar se estão reunidos os pressupostos para declarar a insolvência da Requerida;
(iv) Aferir se o Requerente age em abuso de direito ao fazer uso do processo de insolvência.
*
III-/ Fundamentação de facto:
Foi assim que o Tribunal da 1ª Instância julgou a matéria de facto:
A - De facto:
Conforme já considerada assente na sessão de audiência de julgamento de 13/09/2024, por documento, acordo e confissão estão provados os seguintes factos com interesse para a decisão:
Da petição inicial:
1. A Requerida é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de imóveis e revenda de adquiridos; administração e arrendamento de imóveis próprios e de terceiros, incluindo atividades de alojamento local; serviços de consultoria de gestão imobiliária; serviços de marketing e publicidade para o sector imobiliário; consultoria para os negócios e a gestão, assim como nas áreas administrativa, financeira, recursos humanos, marketing e compras de materiais, equipamentos e serviços- cfr. Certidão comercial da Requerida junta como doc. 1.
2. É atualmente, e desde 28 de março de 2022, sócia única da Requerida a sociedade comercial AS, Lda. com o NIPC 516793640.
3. Por contrato celebrado a 6 de novembro de 2023, no cartório notarial do Dr. José Idalécio Martins, a Requerida declarou vender à sociedade CF Lda. com o nº de pessoa coletiva 516612549, e esta declarou comprar, mediante o preço global de € 3.190.000,00 (três milhões cento e noventa mil euros) os seguintes prédios urbanos (de ora em diante os “Prédios”):
· Prédio Urbano sito na Rua …, concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº … e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. … (pelo valor de € 810.000,00);
· Prédio Urbano sito na …, concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº … e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. … (pelo valor de € 810.000,00);
· Prédio Urbano sito na Rua …, concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº … e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. … (pelo valor de € 785.000,00);
· Prédio Urbano sito na Rua …, concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº … e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. … (pelo valor de € 785.000,00) – cfr. (docs. 6 e 7) *
Renumerados sequencialmente:
4. A Requerida Aristoslice, Real Estate, Lda. foi constituída em 21 de dezembro de 2021, com o capital social de 10.000,00€, tendo como sócios o Requerente AA e BB, titulares, cada um, de uma quota com o valor nominal de 5.000,00€ - ver doc. 1 junto com a petição inicial (corresponde ao art. 1º da contestação).
5. Posteriormente, em 02/03/2022, os mesmos AA e BB constituíram a sociedade AS, Lda., com o NIPC 516 793 640– doc. 1 e 2 (corresponde ao art. 2º da contestação).
6. Também ela com um capital social de 10.000,00€, dividido em duas quotas com o valor nominal de 5.000,00€, pertencentes a cada um dos referidos sócios. (corresponde ao art. 3º da contestação).
7. Por sua vez, em 28/03/2022, a AS, Lda. adquiriu ao Requerente AA e a BB as quotas de que os mesmos eram titulares na Requerida Aristoslice, Real Estate, Lda. – doc. 3 (corresponde ao art. 4º da contestação).
8. Passando assim a deter a totalidade do capital social desta sociedade (corresponde ao art. 5º da contestação). * E por acordo: (indicando-se num só ponto, os anteriormente Pontos 6 a 9, matéria agrupável por dizer respeito a uma só temática as entregas de valores pelo Requerente, datas, valores e não restituição - por forma a não alterar a sequência numérica atribuída aos factos como assentes:
9. O Requerente entregou à Requerida, em 09/11/2022, a quantia de 85 mil euros através de transferência bancária realizada da conta com o número IL290111180000188124979, por si titulada no Israel Discount Bank, para a conta com o IBAN … titulada pela Requerida no BNI, Banco de Negócios Internacional. – doc. 3 junto com a p.i.
A Requerida não restituiu até ao presente dia qualquer montante daqueles referidos 85 mil euros.
O Requerente entregou à Requerida, em 16/02/2023, a quantia de 15 mil euros através de transferência bancária realizada da conta com o nº 484-06-7152206 por si titulada no Israel Discount Bank para a conta com o IBAN … titulada pela Requerida no BNI, Banco de Negócios Internacional. – doc. 5 junto com a p.i.
A Requerida não restituiu até ao presente dia qualquer montante daqueles referidos 15 mil euros. * Quanto à matéria controvertida (abarcada nos temas da Prova), com relevo para a decisão a proferir nos autos, provou-se que:
10. Mostra-se junto um escrito de acordo celebrado a 8 de novembro de 2022 com o nome do Requerente e Requerida, do qual consta uma rúbrica identificada como sendo da pessoa do Requerente e outra do gerente da Requerida BB, do qual resulta ter sido acordada a entrega à Requerida da quantia de 85 mil euros.
11. Que do mesmo acordaram que a quantia de 85 mil euros entregue venceria juros à taxa anual de 5% e que a Requerida se obrigava a restituir tal quantia ao Requerente até ao dia 1 de novembro de 2027.
12. Mostra-se junto um escrito de acordo com data de 17 de fevereiro de 2023 com os nomes do Requerente e identificação da Requerida, não assinado nem rubricado do qual resulta ter sido acordada a entrega à Requerida da quantia de 15 mil euros.
13. Dele consta que mais acordaram que a quantia de 15 mil euros entregue venceria juros à taxa anual de 5% e que a Requerida se obrigava a restituir tal quantia ao Requerente até ao dia 1 de novembro de 2027. * Mais se provou da petição e contestação, indicando-se à frente de cada facto ou conjunto de factos a origem do articulado respetivo:
14. Logo após a sua constituição, a Requerida teve de recorrer a financiamento para adquirir os imóveis e poder suportar custos com obras, legalizações e alvarás, com vista à sua posterior revenda (art. 26 da PI e art. 111 da contestação).
15. Neste sentido, foi solicitado um empréstimo ao BNI – Banco de Negócios Internacional, S.A., no valor de 1.680.000,00€ e um financiamento a …, no montante de 700.000,00€ (art. 25 com reporte ao preço aludido no art. 18 da PI e 112 da contestação).
16. Tendo sido constituídas hipotecas sobre os referidos imóveis.
Para suportar os custos com os juros de tais empréstimos e com as obras e legalizações em curso, houve ainda a necessidade de os sócios capitalizarem a sociedade. (idem).
17. No início de fevereiro de 2023, numa fase em que tais custos se agravaram, o Requerente AAafastou-se da Requerida.
O que obrigou o sócio BB a sozinho, injetar várias quantias na sociedade e a custear com dinheiro próprio os juros dos empréstimos contraídos (art. 113 e segs, da contestação).
18. O Requerente havia manifestado não estar disponível para pagar quaisquer montantes referentes a tais empréstimos enquanto os imóveis não fossem vendidos.
BB, que reside em Israel, teve então de se deslocar várias vezes a Portugal para se reunir com o banco.
Dado que o Requerente, a residir no Porto, deixou de se interessar pela sociedade e pelos seus negócios.
Face a esta conduta do Requerente, BB, porque já tinha financiado a Requerida com 840.000,00€ e não pretendia injetar mais dinheiro na mesma e porque estava a ser pressionado por credores e fornecedores, manifestou a intenção de vender os prédios (art. 115 a 122 da oposição).
19. Intenção que foi levada ao conhecimento do Requerente, que nunca respondeu nem manifestou qualquer opinião (art. 123 da oposição).
20. Foi então que o Banco BNI, depois de sondar vários potenciais interessados, apresentou à Requerida um interessado em comprar os imóveis com a assunção de todas as responsabilidades perante os credores sociais.
Ocorreram então negociações, cujo desenvolvimento o Requerente esteve sempre a par, através de emails trocados que iam sempre com o seu conhecimento.
Existiu sempre o propósito de o fazer intervir nessas mesmas negociações.
No entanto, o Requerente mantinha-se sempre em silêncio.
O interessado na compra dos imóveis acabou por conseguir encontrar-se com o Requerente, tendo-lhe proposto pagar os 100.000,00€ que este transferiu para a sociedade, o que o mesmo rejeitou.
Posteriormente, propôs-lhe ceder um apartamento tipo T1, avaliado em 210.000,00€ exigindo o Requerente lhe fosse pago o triplo do valor que entregara à Requerida (arts. 123 a 130 da oposição).
21. A Plural Decimal, Lda. instaurou uma ação declarativa contra a Requerida reclamando o pagamento de serviços por si prestados. A Requerida foi condenada, à revelia, no pagamento da quantia de 19.657,25€ acrescida de juros. Na sequência de tal sentença, foi instaurado o competente processo executivo, no qual a Requerida teve de pagar um total de 24.042,31€.
A dívida à Plural Decimal, Lda. foi integralmente liquidada no âmbito do processo executivo n.º 5299/23.1T8VNF, do Juízo de Execução de Vila de Nova de Famalicão – Juiz 3.
E as dívidas às sociedades CIVI4 – Projectistas e Consultores Eng.ª Civil, Lda. e Prática 04 – Arquitetura e Engenharia, Lda. já foram saldadas.
À data, apenas está em falta o pagamento devido à Telles de Abreu e Associados – Sociedade de Advogados, SP, RL, no valor de € 587,20, sendo que estão em curso negociações entre as partes com vista à regularização da dívida, as quais, segundo a Requerida, serão concluídas em breve (art. 102 a 105 e 132 a 139 da oposição).
22. A Requerida não procede ao depósito de contas desde a sua constituição no ano de 2021, e também no de 2022.
E ainda que:
23-A Requerida regularizou os pagamentos perante a Administração Tributária e Instituto de Segurança Social.
24- O gerente da Requerida mora em Israel e que a Requerida tem a sua sede social localizada num escritório de advogada.
25- Do teor do relatório de contas e anexos de 2023 da Requerida, sob o ponto 12-10 consta: “Discriminação de outras dividas a pagar- sócios AA- € 100.645,98 em 31/12/2023”.
26-Da certidão permanente junta como doc. 1 com a PI resulta registada a transmissão de quotas que Requerente e BB detinham na Requerida para a sociedade AS, Lda. com data de 11/05/2022.
E da certidão permanente junta com a contestação como doc 1 -extraído em 09/05/2024- a essa mesma data, eram sócios da AS, Lda. Requerente e BB, ambos com quota de € 5000 cada. Sociedade esta com data de constituição no registo em 03/03/2022. *
Factos Não provados
Por não terem sido alvo de qualquer prova de carácter documental, testemunhal ou outra e terem sido contrariados conforme supra analisado, não lograram prova os como tal assinalados, nomeadamente:
a) A Requerida tem um passivo de cerca de € 170.000,00 e um ativo não superior a € 10.000,00.
Deve a quantia de € 14.883,00 à sociedade Prática 04 – Arquitetura e Engenharia Lda. (NIF 513485210), dívida que está vencida e em mora desde 05 de abril de 2023 (doc. 14), dívida que advém de serviços relativos à elaboração de projetos de engenharia para os prédios urbanos acima melhor identificados que a Requerida solicitou e ajustou, mas cujo valor acordado de retribuição acima identificado nunca pagou.
A Requerida deve a quantia de € 12.600,00 à sociedade CIVI4-Projectistas e Consultores Eng.ª Civil, Lda. Contribuinte Nº PT503694959, dívida que está vencida e em mora desde 05 de Outubro de 2022 (doc. 15), dívida que advém de serviços relativos à elaboração de projetos de especialidades para os prédios urbanos acima melhor identificados que a Requerida solicitou e ajustou, mas cujo valor acordado de retribuição acima identificado nunca pagou.
A Requerida deve a quantia de € 13.950,00 à sociedade Plural Decimal LDA, com o NIPC 514841915 dívida que está vencida e em mora desde 05 setembro de 2022 (docs. 13 e 14), dívida que advém de trabalhos diversos de construção civil que a Requerida solicitou e ajustou, mas cujo valor acordado de retribuição acima identificado nunca pagou (factos inseridos no Tema 2 da Prova).
*
A resposta não provado emerge não só da falta de prova respetiva como da prova dos factos que resultaram, provados e que constam do Ponto 21 da matéria de facto provada que contrariam os apontados.
Quanto aos valores do ativo e passivo são os seguintes de acordo com o Balanço junto aos autos em 30/07/2024 (fls. 221):
- Em 31-12-2022: ativo de € 3.166.407,68 dos quais €3.113.190,53 de inventário e o restante de depósitos bancários (€ 53.217,15), e passivo de € 3.281.205,17. E total do capital próprio e passivo: € 3.166.407,68
- Em 31-12-2023: ativo de € 5013 e passivo de € 238.106,55. E total do capital próprio e passivo: € 5013. *
b) A Requerida, pelo menos nos anos de 2023 e 2024, suspendeu o pagamento de todas as suas obrigações vencidas, com exceção dos pagamentos realizados aquando da transmissão dos prédios urbanos suprarreferidos e que visaram somente a extinção das hipotecas sobre os prédios transmitidos e o pagamento do suposto crédito do gerente único da Requerida em seu benefício exclusivo (factos inseridos no Tema 3 da Prova).
A resposta não provado emerge da falta de prova respetiva produzida por qualquer dos meios de prova admitidos nos autos. *
c) A Requerida não tem qualquer funcionário ou representante em Portugal, cessou a sua atividade junto da Autoridade Tributária, no ano de 2024 não praticou qualquer ato de comércio ou outros factos inseridos no Tema 4 da Prova).
A resposta não provado emerge da falta de prova respetiva produzida por qualquer dos meios de prova admitidos nos autos.
d) Os únicos ativos da Requerida foram vendidos por um valor inferior ao seu valor de mercado (factos inseridos no Tema 5 da Prova).
A resposta não provado emerge da falta de prova respetiva produzida por qualquer dos meios de prova admitidos nos autos. Designadamente não se provou que o valor de mercado, fosse no total, 4.000.000,00€. *
e) E, através desse negócio, a Requerida procedeu à efetiva liquidação de todo o seu património em benefício do seu gerente único (factos inseridos no Tema 6 da Prova).
A resposta não provado emerge da falta de prova respetiva produzida por qualquer dos meios de prova admitidos nos autos. ***
IV-/ Da requerida junção de documentos em fase de recurso:
Com as alegações do primeiro recurso intentado, em 04/11/2024, o Recorrente juntou aos autos um documento superveniente (datado de 31/10/2024) procurando com o mesmo provar que, já após a prolação da sentença recorrida (em 11/10/2024), chegou ao seu conhecimento a instauração, contra a Requerida, pela sociedade Grandemarca, Sociedade Unipessoal Lda., de uma ação para cobrança de crédito de €7.646,09, referente a serviços prestados por aquela à Requerida, dívida vencida desde fevereiro de 2023. Documento que a Requerida impugnou, juntando agora, em contra-alegações, a sentença proferida no âmbito do aludido processo, na sequência de um acordo feito entre as partes ali envolvidas, homologando a transação havida, documento igualmente impugnado pelo Recorrente.
Em 24/01/2025, veio também o Recorrente aos autos informar que sob o nº 15161/23.2T8PRT, corria termos no Juiz 3 do Juízo de Execução do Porto, Comarca do Porto, processo de execução contra a Requerida, sendo exequente XX e YY, execução que veio a ser extinta por inexistência de bens penhoráveis, anotando que a Requerida consta – desde 17/01/2025 – da lista pública de execuções, divulgada ao público pelo portal CITIUS e criada nos termos da portaria 313/2009, 30 de março, o que a Recorrida solicitou fosse desentranhado.
Com o segundo recurso interposto (agora em apreciação), para além de reiterar o pedido de junção do primeiro dos documentos juntos, junta agora a lista pública de execuções promovida pelo portal Citius, de onde consta que sob o nº 15161/23.2T8PRT, correu termos no Juiz 3 do Juízo de Execução do Porto, Comarca do Porto, processo de execução contra a Requerida, pelo valor de €4.000,81, sendo a execução extinta por inexistência de bens penhoráveis.
Vejamos então.
Diz-nos o art.º 651.º do CPC, que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o art.º 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. Por sua vez, prevê o art.º 425.º do mesmo diploma que: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”
Donde, e em suma, apenas em casos verdadeiramente excecionais é possível a pretendida junção de documentos em fase de recurso, sendo que a mesma fica dependente da alegação e prova de determinados pressupostos.
Da leitura dos normativos invocados resulta então que, depois do encerramento da discussão da causa, as partes apenas poderão juntar documentos em duas situações: quando sejam objetiva ou subjetivamente supervenientes (tendo em conta o encerramento da discussão na audiência final); ou, quando a respetiva necessidade se revelar em função da sentença proferida, o que, como dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (CPC Anotado, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, pág. 552/523) «pode revelar-se pela imprevisibilidade do resultado (v. g. quando a sentença se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes ou quando se funde em regra de direito cuja aplicação ou interpretação as partes não previram)».
Ora, no caso em apreço, dúvidas não há, os documentos que se pretendem juntar são posteriores ao encerramento da audiência de discussão e julgamento dos autos, visando-se, contudo, comprovar com os mesmos a existência de mais dois créditos, não alegados em 1ª Instância. Por ser assim, argumenta a Recorrida, não poderiam já ser alvo de discussão na decisão recursiva, por se tratar de questão nova.
Não havendo dúvida que os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo, certo é que, com os sobreditos documentos, pretende o Recorrente reforçar o que já alegara em sede inicial: que a Recorrida está impossibilitada de cumprir com as suas obrigações vencidas, não sendo sequer detentora de quaisquer bens penhoráveis, pelo que as ocorrências assim alegadas são justificativas da apresentação dos aludidos documentos – ou seja, pretende-se, com a alegada existência de mais credores, demonstrar que a Recorrida os omitiu nos autos, o que indicia e agrava a sua situação de impossibilidade de cumprir com as obrigações vencidas, não sendo detentora de qualquer património.
Por conseguinte, nada obsta à sua junção aos autos nesta fase processual, por serem objetivamente supervenientes e não se afigurarem impertinentes para a decisão da causa, numa avaliação global e conjugada de todas as provas nela produzidas.
Vão assim admitidos os documentos juntos em alegações pelo Recorrente e em contra-alegações pela Recorrida, posteriormente a apreciar em sede de decisão de recurso. *
V-/ Do mérito do recurso:
Neste segundo recurso, o apelante volta a apontar vários vícios e erros técnicos à nova sentença proferida nos autos, alegando que a mesma não sanou totalmente as patologias que lhe foram apontadas por este tribunal, reiterando algumas das incongruências oportunamente apontadas, agora incorporando na motivação da matéria de facto inúmeros factos e conclusões que assume como provados para fundar os seus juízos e decisões, quando tal factologia não resulta evidenciada na decisão tomada, contradizendo-se nos seus termos e fundamentos, ora dizendo que o dinheiro entregue pelo Requerente à Requerida não corresponde a um “empréstimo”, para depois afirmar que não restam dúvidas que se trata de “suprimento” por constar dos elementos contabilísticos a dívida a sócio, qualidade que assumia à data (quando dos factos provados resulta o seu contrário, ou seja, ao tempo da celebração dos contratos, o Requerente não era sócio da Requerida) para depois concluir que, afinal, aquelas entregas mais não foram que um “investimento” que não é empréstimo, sendo manifesta e evidente a confusão expressa na sentença proferida nos autos, que, inclusivamente, chega a utilizar na sua convicção um documento cujo desentranhamento foi ordenado (nota de rodapé 14 de pág. 18 e 19 da sentença e despacho proferido em ata da audiência de julgamento de 20/09/2024) e que na verdade não se encontra já junto aos autos (ver PDA de 08/10/2024).
Não obstante, todos os vícios e patologias apontados, são, na verdade, agora passíveis de sanação, pela apreciação da abordagem feita pelo Recorrente nos autos, deixando cair a arguição de quaisquer nulidades, restringindo agora a sua pretensão recursória à impugnação da matéria de facto inserta na decisão recorrida. Impugnação que, a final, também não prima pelo rigor, ao ignorar e omitir, em sede de conclusões recursivas, factos que, estando interligados com os que impugnou, igualmente importará alterar e/ou eliminar quer da factualidade assente quer da não provada, o que, ainda assim, acaba por sanar ao elencar no final toda a matéria reordenada que o tribunal deve considerar para a decisão a tomar.
Vejamos então.
(i) Da impugnação da matéria de facto:
Nesta matéria, cumpre atentar que o tribunal da Relação tem autonomia decisória, devendo, na reapreciação da decisão de facto, observar o que dispõe o art.º 662.º do CPC, avaliando todas as provas carreadas para os autos, sem estar sujeito às indicações dadas pelas partes em recurso. Não obstante essa autonomia decisória, a mesma deverá fazer-se sempre sem prejuízo da perceção que a oralidade e imediação em 1ª instância proporciona, designadamente ao nível da valorização dos depoimentos das testemunhas e das declarações de parte, em face das particularidades que resultam, muitas vezes, de uma avaliação limitada a uma audição sem vídeo, que não capta os gestos e expressões faciais de quem se encontra a depor em julgamento e que obstaculiza a que a instância superior possa também inquirir e dialogar com a prova, obtendo no imediato os esclarecimentos que julgaria ser próprios e adequados à matéria que lhe cumpre apreciar/reapreciar e julgar (veja-se, a este propósito, o acórdão proferido em 02/11/2017, no TRG, no âmbito do proc. n.º 42/14.9TBMDB.G1, relatado por António Barroca Penha).
Acresce que, deduzida impugnação contra a matéria de facto, cumpre sempre verificar se estão preenchidos todos os requisitos enunciados no art.º 640.º do CPC, tendo presente que o Recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição do recurso, (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (ii) os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados e (iii) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Fazendo depois apelo ao Acórdão do STJ n.º 12/2023, de 14/11 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14), na interpretação do mesmo, teremos então que atentar que aquela primeira menção (i) deve constar das conclusões do recurso, já as (ii) e (iii) devem constar da sua motivação e assim do corpo das alegações.
Deste modo, no conhecimento da impugnação deduzida, cumpre não esquecer, por um lado, o consagrado no art.º 341.º do CC, que nos diz que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos, e, por outro lado, que no nosso sistema jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova, devendo sempre atentar-se nas regras sobre o ónus da prova que constam dos arts.º 342.º a 346.º do CC, e bem assim no disposto no art.º 414.º do CPC, que estabelece que na dúvida sobre a realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, deve a mesma resolver-se contra a parte à qual o facto aproveita, sendo que se impõe sempre às partes alegar e demonstrar os factos essenciais para a causa, pedidos e exceções nela formulados.
Além disso, estando nós no âmbito de um processo insolvencial, onde rege o princípio do inquisitório, previsto pelo art.º 11.º do CIRE, pode/deve o julgador tomar em consideração factos que não foram alegados pelas partes, mas que integram as previsões normativas convocadas para a verificação da situação de insolvência.
Feita esta contextualização, cumprido que foi pelo Recorrente o seu ónus, importa agora conhecer da impugnação deduzida quanto ao julgamento da matéria de facto.
A-/ Factos provados 10 a 13:
Alega o Recorrente que tais factos (que têm correspondência com o por si alegado nos artigos 3º, 4º e 7º da sua p.i.) devem ver alterada a sua redação, fazendo anotar na mesma os “empréstimos” que foram alegados e resultaram provados em julgamento, como o impõem os documentos 2 e 4 juntos com a petição inicial (traduzidos e juntos com o requerimento de 19/09/2024), declarações de parte prestadas pelo Recorrente, depoimento da testemunha …, Relatório de gestão e demonstrações financeiras do ano de 2023, e anexo, junto como documento 6 da contestação/oposição, e pelo contabilista …, antigo contabilista certificado da Requerida em 30/07/2024, e anexo III- Lista detalhada dos credores da sociedade a 31/12/2023 - junto com o mesmo requerimento.
Essencialmente, o que pretende o Recorrente é que seja dado por provado, assim se alterando os factos em análise, que “emprestou” à Recorrida 85mil euros, por contrato escrito, e 15mil euros, por acordo verbal. Foram esse os factos por si alegados em p.i. e que com a prova arrolada pretendeu demonstrar.
Ora, inexistindo quaisquer dúvidas que o Requerente entregou à Requerida os valores de 85mil euros e 15mil euros, em dois momentos temporais distintos, valores que a Requerida não restitui (o que foi expresso e consignado no ponto 9 da matéria de facto provada), importaria então apurar se as entregas daqueles valores o foram com a condição de serem restituídos, como alegado em petição inicial.
Em resposta ao recurso, defende a Requerida que não foi demonstrada a existência de acordos de empréstimo, nunca tendo sido acordada a restituição dos valores entregues, assim como não foram convencionados quaisquer juros. Esquece-se a Requerida que em contestação, pese embora alegue que o Requerente injetou por moto próprio na sociedade aqueles valores, com vista a um investimento, não sendo acordada a restituição dos mesmos, argumentou também que aquele aporte monetário consubstanciou, por parte do Requerente, um suprimento feito à sociedade Requerida, na qual o mesmo, ainda que não formalmente, era sócio (ou seja, em tal alegação, admitiu que os valores entregues eram para ser devolvidos, ainda que argumentando que os mesmos consubstanciavam verdadeiros “suprimentos”, e que assim foram contabilisticamente tratados, sendo certo que na ata 13 junta aos autos, em que alega expressar as razões da venda dos imóveis, ali faz igualmente alusão a “suprimentos” por parte do Requerente, logo, valores a serem devolvidos).
E a prova de que assim foi é também permitida pelos meios probatórios a que apela o Recorrente com vista a obter a alteração da factualidade assente.
Desde logo, os dois documentos - 2 e 4 - juntos com a p.i. nos autos. Pela análise de ambos verificamos que as partes denominaram os aludidos escritos como “acordo de crédito”, neles consignando que o credor (ora Recorrente) “acordava emprestar certas quantias em dinheiro à sociedade” (Recorrida), com “vencimento de juros e reembolso na totalidade em 01-11-2027”.
O primeiro dos documentos, datado 08/11/2022, mostra-se rubricado pelo Recorrente e pelo gerente da Recorrida, tal como reconhecido pelo primeiro em julgamento, quando ouvido em declarações de parte. Não tendo sido realizada perícia à letra, nada nos leva a não crer em tais declarações, ou em concluir pela falsidade das mesmas e pela falsidade da rúbrica aposta no dito documento, falsidade que, de forma expressa, a Requerida, na verdade, também de forma perentória, não invocou.
O segundo, datado de 07/02/2023, não se mostra nem assinado nem rubricado, argumentando a Recorrida que, por ser assim, não é apto a provar que o teor do mesmo foi objeto de acordo entre Requerente e Requerida, nomeadamente quanto aos juros e à alegada obrigação de restituição. É um facto. Não obstante, sobre este contrato, e novamente, depôs o Requerente em sede de depoimento e também em declarações de parte, dali resultando que o valor entregue seria com a condição da sua devolução por parte da Requerida, explicando ainda que tudo fora sempre acordado e negociado, não presencialmente, mas por contatos telefónicos e via WhatsApp, entre Requerente e gerente da Requerida (dizendo que, contrariamente ao sucedido com o doc. 2, nunca recebeu uma versão assinada por representante da Requerida do doc. 4). Não obstante, as entregas foram feitas e ambas foram contabilisticamente registadas na sociedade Requerida, que se comprometeu a devolver os montantes em causa até novembro/2027.
Tendo as declarações de parte, enquanto meio de prova, a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis, ainda que reclamando do julgador um cuidado acrescido na sua apreciação em face do interesse pessoal no desfecho da ação, não vemos razão para, ouvidas as declarações do Requerente, livremente apreciadas, este tribunal as possa colocar em crise, na medida em que não foram abaladas por outro meio de prova (desde logo pelo próprio teor e sentido da oposição deduzida nos autos, como acima vimos). Sendo que, sobre esta matéria, importa ainda atentar no depoimento da testemunha, …, mulher do Requerente, que aludiu às conversas que teve com o seu marido sobre a questão, em face do elevado montante que estava em causa nos dois “empréstimos” que o seu marido lhe disse que iria fazer.
Já a testemunha ... (gerente da sociedade CF Lda., sociedade que comprou os imóveis da Requerida em novembro de 2023) não acompanhou os pressupostos que fundaram a entrega de tais quantias pelo Requerente, pois só o conheceu, tal como a Requerida e seu gerente, pouco tempo antes da celebração do aludido contrato de compra e venda de 06/11/2023, ou seja, após aquelas entregas. Decorrendo, aliás, do seu depoimento, que a restituição - dos montantes entregues pelo Requerente à Recorrida - era para ser concretizada, tanto que, no decurso das negociações que antecederem a contratualização de novembro/2023, com vista a ter o acordo do Requerente para o negócio em causa, disse ter apresentado ao mesmo uma solução para essa devolução, que passava pela assunção da dívida e pagamento posterior da mesma, tendo então proposto ao Requerente pagar-lhe o valor que aquele investira, no final do projeto ou entregar-lhe nessa altura um apartamento T1, que, segundo diz, valeria cerca de duzentos e tal mil euros, propostas que o mesmo não aceitou. Daqui resulta, pois, que ainda que a proposta não fosse de pagamento imediato, a mesma girava sempre à volta da ideia da devolução (restituição) dos valores por aquele entregues. Entregas que, dúvidas não há, foram consignadas no Relatório de gestão e demonstrações financeiras do ano de 2023, junto como documento 6 da contestação/oposição, e pelo contabilista ..., em 30/07/2024, ali sendo tratadas como “suprimentos”.
Por conseguinte, não se compreende que a sentença recorrida, mais uma vez, argumente que o que estava em causa era um “autêntico investimento” em função do qual o Recorrente deixaria de ser credor da Requerida. Se na ideia da sentença o “investimento” feito está associado a uma ideia de risco, não estando garantida a recuperação das quantias disponibilizadas, não vemos razão para que a testemunha (onde a sentença recorrida alicerça grande parte da sua convicção) tivesse a preocupação de explicar ao Requerente que o valor por este “financiado” lhe seria devolvido, ainda que apenas no final do projeto (nada se sabendo quanto tempo demoraria o projeto e garantias de tal pagamento).
Aqui chegados, independentemente do teor conclusivo da expressão “empréstimo” (que, ainda assim, tem uso corrente e é comumente aceite tratar-se de algo que é entregue com a condição da sua devolução) o que importava, ao nível factual, era dar por assente as aludidas entregas - como foram - e os acordos que lhe estavam subjacentes - que agora importa aportar à matéria de facto provada - pois que não vemos como se possa concluir de forma diferente na conjugação dos elementos probatórios apontados.
Por ser assim, e sem mais, procede-se à alteração da redação dos aludidos pontos da matéria de facto, que passa, contudo, a ter a seguinte redação:
«10. Com data de 08/11/022, Requerente e Requerida celebraram um acordo, que denominaram de “acordo de empréstimo”, nos termos consignados no documento n.º 2 junto com a p.i., do qual resulta ter sido acordada a entrega à Requerida da quantia de 85 mil euros.
11. Mais ali acordando que a quantia de 85 mil euros entregue venceria juros à taxa anual de 5% e que a Requerida se obrigava a restituir tal quantia ao Requerente até ao dia 1 de novembro de 2027.
12. Requerente e Requerida acordaram também verbalmente a entrega pelo primeiro da quantia de 15 mil euros, que venceria juros à taxa anual de 5% e que a Requerida se obrigava a restituir até ao dia 1 de novembro de 2027.
13. Nesse sentido foi elaborado o escrito datado de 17 de fevereiro de 2023 que não chegou a ser assinado nem rubricado por qualquer um dos ali identificados outorgantes».
*
B-/ Factos provados 14 a 20:
Defende o Recorrente que toda esta matéria de facto deve ser julgada não provada, não só porque encerra em si conclusões não fácticas de caráter jurídico, e erradas, mas também porque quanto às mesmas não foi produzida qualquer prova, consubstanciando, aliás, factos completamente acessórios e irrelevantes para o objeto do processo, que é apurar da insolvência da Requerida.
Argumenta a Recorrida, por sua vez, que a matéria constante dos factos 14 a 20 da sentença é relevante para apurar uma questão essencial dos presentes autos: a existência e natureza do crédito alegado pelo Requerente.
Analisando os factos insertos nos pontos da matéria de facto aqui impugnada estamos certos, na verdade, que os mesmos não revestem interesse para o desfecho dos autos.
Com efeito, impõe o n.º 4 do art.º 697.º do CPC que, na sentença, juiz declare quais os factos que julga provados e não provados, sinalizando cada um dos factos essenciais (nucleares ou complementares) que foram alegados no processo por cada uma das partes, de forma a cobrir todas as soluções plausíveis de direito, podendo ainda, e se tanto se mostrar necessário, apelar a factos complementares e concretizadores (ver, o que aqui seguimos de perto, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, obra citada, págs. 741/744).
Deve, pois, nortear a sentença, cuja leitura se quer simples, escorreita e linear, no que à matéria de facto concerne, a declaração dos factos essenciais que constituem a causa de pedir e que ao demandante compete alegar, como decorre do art.º 5.º do CPC (aplicável ex vi art.º 17.º do CIRE).
Por conseguinte, tendo por certo que a causa de pedir consiste no facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, estando em causa um processo de insolvência, em que o visado é uma pessoa coletiva, a causa de pedir comporta a alegação da impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas e a verificação de um passivo manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis, conforme decorre do art.º 3.º do CIRE, competindo ao Requerente do processo a alegação e prova de um dos factos índice elencados no art.º 20.º do mesmo diploma legal e à Recorrida a demonstração da inexistência de tais factos ou a demonstração da inexistência da situação de insolvência, cuja declaração pode assim impedir, demonstrando a sua solvência, nos termos do art.º 30.º n.ºs 3 e 4 do CIRE.
Para além esses factos, essenciais e nucleares, por individualizadores do direito que se pretende exercer e que concretizem aquela causa de pedir e exceção, como vimos, temos ainda os factos complementares, constitutivos do direito ou das exceções, embora não identificadores do mesmo, os factos concretizadores de anteriores afirmações de pendor mais genérico que tenham sido feitas, podendo ainda ser usados factos instrumentais que são aqueles que permitem a afirmação, por indução, de outros factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da exceção (ver, novamente, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, obra citada, págs. 29/31).
Ora, a factualidade vertida nos pontos fáticos impugnados, sem entramos concretamente na apreciação dos meios de prova utilizados para motivarem a convicção do tribunal a quo - que duvidamos o pudessem atestar (não o permitindo, desde logo, o meio de prova onde foi largamente sustentada a decisão do tribunal recorrido, ou seja, o depoimento de ..., que apenas relatou terem sido realizadas duas reuniões com o Requerente, onde lhe propôs liquidar o crédito daquele, pagando-o no final dos projetos que iria assumir, ou seja, após a construção dos empreendimentos, tendo tudo o mais declarado pela aludida testemunha sido transmitido pelo gerente da Requerida e outros, sendo certo que, no mais, inexiste prova documental que suporte em larga medida a matéria aí dada por provada) - afigura-se-nos, na verdade, consubstanciadora, na sua totalidade, de meros factos acessórios e instrumentais, que não devem constar da factualidade apurada, que, como vimos, deve ser limpa e linear, com vista ao pedido que foi formulado nos autos - a insolvência da Requerida - nenhum deles encerrando em si a essencialidade ou complementaridade que tanto permite concluir ou infirmar.
Nem a mesma serve, como pretende a Recorrida, para apurar a existência e natureza do crédito alegado pelo Requerente, já espelhado nos pontos 10 a 13 dos factos provados.
Todo o exposto impõe que, simplesmente, tal factualidade seja simplesmente eliminada e expurgada da sentença em crise, nenhuma outra se vislumbrando com verdadeiro interesse para a questão dos autos: apurar da insolvência da Requerida.
*
C-/ Facto provado 21:
No que concerne à factualidade aqui em causa, defende o Recorrente que, sob os artigos 62.º, 63º e 74.º da p.i., alegou determinada factualidade que não foi considerada na sentença recorrida, que sobre a matéria em causa, deu apenas como provado o facto 21 e não provados os factos vertidos na al. a).
Vejamos então.
Para motivar o facto dado por provado em 21.º e não provados sob a al. a), consignou-se na sentença recorrida que:
«Resulta ainda provado (o Ponto 21) quanto ao montante das dívidas aos referidos credores- que se mostram patentes da lista detalhada dos credores da sociedade à data de 31/12/2023- relatório de gestão - Anexo III junto em 29/07/2024 pelo Contabilista certificado. Conjugado com o teor do depoimento da testemunha ... e doc. 6 junto com a contestação (acordo e liquidação no processo executivo referido em 21 relativo à Plural Decimal LDA)».
«A resposta não provado emerge não só da falta de prova respetiva como da prova dos factos que resultaram, provados e que constam do Ponto 21 da matéria de facto provada que contrariam os apontados.
Quanto aos valores do ativo e passivo são os seguintes de acordo com o Balanço junto aos autos em 30-7-2024 (fls. 221):
- em 31-12-2022: ativo de € 3.166.407,68 dos quais €3.113.190,53 de inventário e o restante de depósitos bancários (€53.217,15), e passivo de € 3.281.205,17. E total do capital próprio e passivo: € 3.166.407,68
- em 31-12-2023: ativo de € 5013 e passivo de € 238.106,55. E total do capital próprio e passivo: € 5013».
Apreciando a impugnação deduzida pelo Recorrente, em face da prova produzida nos autos, resulta, na verdade que:
(i)- No que concerne ao facto alegado no art.º 62.º da p.i. (dívida à sociedade Prática 04 - Arquitetura e Engenharia Lda.), foi junto, como documento 14 da petição inicial, a fatura emitida pela aludida credora à Requerida, com data de vencimento de 05/04/2023, pelo valor de €14.883,00;
(ii)- da informação prestada pelo contabilista da Requerida, ..., no requerimento de 30/07/2024 (lista detalhada dos credores da sociedade a 31/12/2023), resulta que tal dívida, em 31/12/2023, não estava ainda liquidada, tendo a mencionada fatura sido aceite e integrada na contabilidade e escrita da Requerida. No aludido documento, todavia, foi sinalizado, que a 17/07/2024 fora recebida uma comunicação do gerente da Requerida, dizendo que aquela dívida tinha sido paga em 20/10/2023 pela empresa CF Lda. (a sociedade representada pela testemunha ..., que, como vimos, comprou os imóveis da Requerida em novembro de 2023);
(iii)- não foi junto aos autos qualquer recibo ou comprovativo de tal pagamento;
(iv)- por requerimento de 13/09/2024 a Requerida juntou, como documento 1, um acordo de pagamento, celebrado entre a credora Prática e a sociedade CF, em 12 de março de 2024 - documento que, ainda assim, foi impugnado pelo Requerente – de onde resulta, todavia, que a credora, conforme resulta da cl. 5ª desse contrato, somente exonerará a Requerida após efetivo recebimento do seu crédito, recebimento que não foi comprovado nos autos;
(v)- em depoimento, a testemunha ... declarou que ainda não pagou a totalidade dessa dívida, mas apenas parte da mesma, sem esclarecer quanto, sendo que nenhum comprovativo foi junto aos autos desse pagamento. Ou seja, e concluindo, no que concerne ao valor aqui em causa, verifica-se que a dívida não foi saldada em 20/10/2023, como contabilisticamente tratado, não se encontrando ainda liquidada, não existindo qualquer documento comprovativo dessa liquidação.
(vi)- No que concerne ao facto alegado no art.º 63.º da p.i. (dívida à sociedade CIVI4-Projectistas e Consultores Eng.ª Civil, Lda.), como documento 15 da petição inicial, foi junta a fatura emitida pela aludida credora à Requerida, com data de 05/09/2022, e vencimento em 30 dias, no valor total de €15.498,00.
(vii)- da informação mencionada em (ii) tal dívida importava, em 31/12/2023, a €15.498,00, tendo a aludida fatura sido aceite e integrada na contabilidade e escrita da Requerida;
(viii)- Não consta dos autos absolutamente nenhuma prova de que tal valor tenha sido pago, não tendo sido junto qualquer comprovativo bancário desse pagamento, nem tão pouco qualquer declaração de quitação da credora (recibo);
(ix)- a própria testemunha ..., no seu depoimento, refere que tal dívida não está paga, pois, a credora não aceitou a sua proposta de pagamento, ainda que afirme ser sua intenção clara de a pagar.
As faturas a que aqui nos reportamos consubstanciam documentos particulares, que, por ser assim, gozam, nos termos do disposto no art.º 376.º, n.º 1, do Cód. Civil, de força probatória plena quanto à materialidade das declarações atribuídas ao seu autor, se apresentados contra este. Por outro lado, sendo emitidas e integradas na contabilidade da Requerida, a esta competia então o ónus da prova do seu pagamento, como facto extintivo da obrigação constituída, nos termos do n.º 2 do art.º 342.º do CC, o que não fez. Só os recibos são documentos de quitação e nenhum outro meio de prova foi produzido que atestasse aquele pagamento, aqui não relevando promessas de pagamento ou acordos futuros, o que obstava a que o facto 21 e os não provados sob a al. a) tivessem sido julgados nos termos em que o foram pela sentença recorrida.
Acresce que, (x)- do Balanço anexo ao Relatório de gestão e demonstrações financeiras do ano de 2023, junto com a oposição aos autos, aprovado e assinado pelo gerente da Requerida, nessa sua qualidade, resulta linear que, à data de 31/12/2023, a Requerida tinha um ativo de €5.013,00 e um passivo de €238.106,55, factos que foram considerados na sentença recorrida ao nível da fundamentação para o facto não provado do art.º 74.º da petição inicial (passivo superior ao ativo). Naturalmente que tais factos importam à discussão da causa, nenhum sentido fazendo que os mesmos constem na fundamentação da decisão de facto da sentença e não no elenco dos factos que importam para a decisão a proferir, razão pela qual aos mesmos será aditado.
(xi) Finalmente, e no que concerne à sociedade Telles de Abreu e Associados - Sociedade de Advogados, SP, RL, que na sentença se julga estar apenas por liquidar o valor €587,20, estando em curso negociações com vista à sua regularização, nenhum documento comprovativo de tal pagamento foi junto, sendo que do julgamento apenas resultou que a sociedade da testemunha … se encontra a negociar o pagamento da mesma. Com efeito, no seu depoimento o mesmo referiu que estava em negociações com a referida sociedade de advogados, mas que ainda não tinha pago tal dívida da Requerida. Ora, sendo a própria Requerida quem, em 13/05/2024 (lista de credores que apresentou com a sua contestação), informou nos autos ser sua credora, pelo valor de €15.000,00, a aludida sociedade de advogados, e inexistindo qualquer comprovativo nos autos desse pagamento, terá que proceder a impugnação deduzida e eliminar-se do facto 21 a aludida menção (aditando-se tal facto nos termos que adiante iremos considerar).
Donde, e sem mais, acolhendo a argumentação do Recorrente, impõe-se o seguinte:
Alterar a redação do facto 21:
“O valor devido à Plural Decimal, Lda. foi integralmente liquidado no âmbito do processo executivo n.º 5299/23.1T8VNF, do Juízo de Execução de Vila de Nova de Famalicão – Juiz 3.
Aditar os seguintes factos:
- «A sociedade Prática 04 – Arquitetura e Engenharia Lda. emitiu e enviou à Requerida a fatura n.º 2023/95, com data de vencimento de 05/04/2023, pelo valor de €14.883,00.
- «A sociedade CIVI4-Projectistas e Consultores Eng.ª Civil, emitiu e enviou à Requerida a fatura n.º 2022/145, com data de 05/09/2022, e vencimento em 30 dias, no valor global de €15.498,00.
- «No Balanço anexo ao Relatório de 31 de dezembro de 2023 está expresso um passivo de €238.106,55 e um ativo de €5.013,00».
*
D-/ Aditamento de factos à luz do art.º 11º do CIRE:
(i) Alega ainda o Recorrente ser ininteligível o raciocínio lógico que permitiu ao Tribunal ignorar por completo a lista de dívidas/credores informada pelo antigo contabilista da sociedade e constante do documento 3 (anexo III) junto com o requerimento de 30/07/2024, somente credibilizando o que a Requerida alegou na sua contestação e o que o comprador de todo o ativo da Requerida declarou em julgamento. Por ser assim, defende, devem ser elencados nos factos provados as dívidas que a Requerida tem, expressas no Anexo III junto com o requerimento de 30/07/2024, onde, como vimos já, estão identificados todos os credores e dívidas da Requerida a 31/12/2023.
Não há como não acompanhar o assim alegado. O Relatório de gestão e Balanço, reportados a 31/12/2023, foram juntos pela própria Requerida aos autos, estando assinados pela gerência. Com a contestação, juntou também, como vimos, a lista dos seu credores, onde identificou apenas a sociedade Telles de Abreu e Associados, pelo valor de €15.000,00 e BB, pelo valor de € 94.022,87. Em 30/07/2024, a solicitação do Requerente, o contabilista certificado da Requerida juntou novamente aos autos o aludido relatório e balanço, ali anexando também a lista detalhada de credores (a 31/12/2023) e um extrato de conta. Das diligências feitas com vista a que fossem juntos aos autos balanço, lista de credores e património imobiliário atualizado da sociedade Requerida, a mesma limitou-se a afirmar que, tendo o anterior contabilista cessado funções, ainda não designara um novo.
Como tal, não coincidindo a lista de credores reportada a 31/12/2023 com a lista apresentada na contestação, o que não se mostra justificado pela Recorrida, que se limita a afirmar que a sociedade CF, Lda. assumiu todas responsabilidades da Requerida perante os credores sociais, inexistindo, na verdade, documentação que tanto comprove (ou seja, que demonstre o pagamento efetivo das anunciadas dívidas), devem as mesmas ser elencadas nos factos provados.
O que, de resto, também acontece no que concerne às dívidas à Autoridade Tributária e à Segurança Social, pois que, ainda que de baixo valor, não resulta dos autos a sua efetiva liquidação (sendo certo que foi dado por provado sob o n.º 23 que a Requerida regularizou os pagamentos perante a AT e o ISS, o que foi motivado no teor dos documentos juntos em 30/07/2024 pelo contabilista certificado da Requerida, em particular do Relatório de gestão, e do teor da nota de citação pessoal da Requerida, quanto ao valor em dívida e referência e documento de movimento bancário de liquidação do valor respetivo em dívida à AT, de € 300,91 (fls. 284 e 285), e ao ISS no valor de € 335,57, conforme documento de pagamento e comprovativo do detalhe de operação bancária de pagamento (fls. 286 e 287)). Ora, na verdade, a dívida revelada pelo contabilista existe a 31/12/2023, os valores a que a sentença faz referência ainda que parecidos, não são iguais àquela listagem (€147,01 e €333,90) sendo a documentação junta anterior à mesma. A Requerida não pôs em causa a informação prestada pelo contabilista, nem tão pouco demonstrou o efetivo pagamento ou extinção de qualquer daquelas dívidas.
Acresce ainda - como se infere dos documentos juntos após a prolação da primeira sentença dos autos - a existência uma ação para cobrança do valor de €7.646,09 à sociedade Grandemarca, Sociedade Unipessoal Lda., referente a serviços prestados à Requerida, dívida vencida desde fevereiro de 2023, mas que, como também resulta dos documentos juntos, agora pela Requerida em contra-alegações, terá sido alvo de uma transação entre as partes, desconhecendo-se o que entretanto se passou, pelo que não teremos em consideração o facto aqui inserto.
Não obstante, e agora com interesse para os autos, demonstrado foi que a Requerida foi incluída, em 17/01/2025, na lista pública de execuções do portal Citius, nos termos previstos na Portaria n.º 313/2009, de 29/03, por força da instauração do processo executivo que, sob o n.º 15161/23.2T8PRT, correu termos no Juiz 3 do Juízo de Execução do Porto, Comarca do Porto, instaurada por XX e YY contra a Requerida, no valor de €4.000,81, julgado extinto por inexistência de bens penhoráveis, em 13/12/2024, o que aditaremos, à matéria de facto provada.
Pelo que, em conclusão, fazendo apelo ao consagrado no art.º 11.º do CIRE que se impõe como oficioso ao julgador, impunha-se dar por provado que:
“A Requerida tem ainda como credores:
I. a sociedade 327 Creative Studio 327, Lda., pelo valor de € 3.321,00;
II. a sociedade Melancia Investimentos Unipessoal Lda., pelo valor de € 1.900,00;
III. a sociedade de advogados Telles de Abreu e Associados – Sociedade de Advogados, SP, RL., pelo valor de €15.000,00;
IV. BB, pelo valor de € 94.022,82;
V. Autoridade Tributária, pelo valor de € 147,01;
VI. Segurança Social, pelo valor de € 333,90;
VI. XX e YY, pelo valor de € 4.000,81.
Eliminando-se, por se tratar de matéria interligada com a aqui apreciada, dos factos provados, o facto 23.
(ii) Por fim, alega ainda a Recorrente que o antigo contabilista da sociedade comunicou a sua cessação de funções ao gerente daquela em 12 de janeiro de 2024 (cfr. documento 1 junto com o requerimento de ... de 30/07/2024) e a própria Requerida, por requerimento de 13/09/2024, como vimos acima, confirmou não ter designado novo contabilista certificado, facto que tem alguma relevância na decisão da causa, na ponderação de todos os factos alegados pelo Recorrente, razão pela qual se aditará o mesmo aos factos provados.
*
E-/ Aditamento dos factos alegados nos artigos 19.º, 25.º, 67.º e 69.º da petição inicial, cuja redação assim propõe:
19.º “Estes prédios vendidos a 06 de novembro de 2023 eram os únicos bens imóveis da Requerida.”
25.º “por acordo entre a Requerida e a sociedade compradora dos prédios, acima melhor identificada, o preço global ajustado de € 3.190.000,00 foi declarado ser pago da seguinte forma:
A quantia de € 700.000,00 através da assunção pela sociedade compradora de uma dívida da sociedade vendedora perante o credor hipotecário CC, que o representante da sociedade compradora declarou, em nome e representação daquela, assumir a responsabilidade de liquidação até integral pagamento;
A quantia de € 810.000,00 através da assunção pela sociedade compradora de uma suposta dívida da sociedade vendedora perante o seu próprio gerente BB, que o representante da sociedade compradora declarou, em nome e representação daquela, assumir a responsabilidade de liquidação até integral pagamento;
A quantia de € 1.680.000,00 através de dois cheques bancários, quantia que foi totalmente utilizada para pagar dívida da Requerida ao Banco BNI – Banco de Negócios Internacional (Europa), credor hipotecário desta.”
67.º “A Requerida desde 6 de novembro de 2023 não praticou qualquer ato de comércio ou outro.”
69.º “Os únicos ativos imobiliários da Requerida foram vendidos a 6 de novembro de 2023 por €3.190.000,00, sendo que a 11 de maio de 2022 os mesmos estavam avaliados em € 3.568.746,00.
Vejamos.
No que concerne ao alegado no art.º 19.º da p.i., e estando nós no quadro insolvencial de uma empresa, naturalmente que a alegação, e prova, de que a mesma vendeu todo o seu património imóvel tem interesse à sorte dos autos.
Ora, tal facto não foi impugnado pela Requerida na oposição apresentada, conforme resulta do teor do art.º 56º da oposição/contestação apresentada, não tendo a Requerida contraposto ser proprietária de qualquer outro bem imóvel para além dos vendidos a 06/11/2023, o que resulta igualmente demonstrado pelo elementos documentais juntos pelo contabilista da sociedade, de onde decorre que o seu único ativo é de €2.010,20 de inventários e de €3.000 de outros créditos a receber (ainda que não descriminados), razão pela qual, e sem mais, nos termos do disposto no art.º 574.º do CPC, por se reputar com interesse para a decisão da causa, tal facto será dado por provado.
No que concerne ao alegado no art.º 25.º da p.i., que resulta da escritura de compra e venda junta aos autos, diz a Recorrida que não possui a relevância que o Recorrente lhe atribui, sendo que a respetiva matéria não diz respeito nem à existência e natureza do crédito invocado pelo Requerente nem à alegada situação de insolvência da Requerida. A sentença recorrida nada refere quanto a este facto, não o inserindo na matéria de facto provada.
Não obstante, o mesmo está demonstrado nos termos exatos do teor da escritura pública de compra e venda junta aos autos e dada por provada no facto 3, afigurando-se relevante para se apurar o destino dado pela Requerida ao preço recebido pela venda do património e dívidas liquidadas pelo mesmo, razão pela qual será aditado à matéria de facto provada.
No que concerne ao alegado no art.º 67.º da p.i. não temos prova suficiente para o dar por provado. Com efeito, a Autoridade Tributária nunca deu resposta à solicitação do Tribunal a 17/07/2024 quanto à comunicação da cessação de atividade da Requerida, sendo certo que a “prática de ato do comércio” reveste natureza algo conclusiva, que não justifica o aditamento aos factos apurados, como pretende o Recorrente. Indefere-se, pois, a presente impugnação.
Por fim, o alegado no art.º 69.º da p.i. resulta já dos factos provados em 3, nada obstando, todavia, a que seja dado por provado o valor pelo qual, previamente, foram avaliados os aludidos imóveis. Com efeito, tal avaliação consta dos documentos 9 e 10 juntos com a petição inicial, documento 1 junto com o requerimento de 13/09/2024, e do depoimento da testemunha ... que os admitiu conhecer, o que, será assim objeto de aditamento. Consequentemente, importa eliminar dos factos não provados a al. d) que, mais a mais, se afigura totalmente conclusivo, devendo ser arredado da factualidade inserta na sentença.
Igualmente iremos eliminar dos factos não provados as als. b) e e) por se tratarem de meras conclusões que podem/devem ser extraídas dos restantes factos apurados e posteriormente em sede de enquadramento jurídico.
Pelo exposto, e sem mais, em parcial procedência da impugnação da matéria de facto terão as alterações introduzidas de ser consideradas com vista ao enquadramento jurídico da pretensão recursória, assim se resumindo as mesmas:
Eliminação dos seguintes factos:
(i) Factos 14 a 20 e 23;
(ii) Factos não provados sob as alíneas a), b), d) e e).
Alteração da redação: Dos factos provados 10 a 13 e 21 nos seguintes termos:
10. Com data de 08/11/022, Requerente e Requerida celebraram um acordo, que denominaram de “acordo de empréstimo”, nos termos consignados no documento n.º 2 junto com a p.i., do qual resulta ter sido acordada a entrega à Requerida da quantia de 85 mil euros.
11. Mais ali acordando que a quantia de 85 mil euros entregue venceria juros à taxa anual de 5% e que a Requerida se obrigava a restituir tal quantia ao Requerente até ao dia 1 de novembro de 2027.
12. Requerente e Requerida acordaram também verbalmente a entrega pelo primeiro da quantia de 15 mil euros, que venceria juros à taxa anual de 5% e que a Requerida se obrigava a restituir até ao dia 1 de novembro de 2027.
13. Nesse sentido foi elaborado o escrito datado de 17 de fevereiro de 2023 que não chegou a ser assinado nem rubricado por qualquer um dos ali identificados outorgantes.
21. O valor devido à Plural Decimal, Lda., foi integralmente liquidado no âmbito do processo executivo n.º 5299/23.1T8VNF, do Juízo de Execução de Vila de Nova de Famalicão - Juiz 3.
Aditamento dos seguintes factos:
3-a) Na aludida escritura foi acordado que o preço global de € 3.190.000,00 seria pago da seguinte forma:
• A quantia de € 700.000,00 através da assunção pela sociedade compradora de uma dívida da sociedade vendedora perante o credor hipotecário CC, que o representante da sociedade compradora declarou, em nome e representação daquela, assumir a responsabilidade de liquidação até integral pagamento;
• A quantia de € 810.000,00 através da assunção pela sociedade compradora de uma dívida da sociedade vendedora perante o seu próprio gerente BB, que o representante da sociedade compradora declarou, em nome e representação daquela, assumir a responsabilidade de liquidação até integral pagamento;
• A quantia de € 1.680.000,00 através de dois cheques bancários, quantia que foi totalmente utilizada para pagar dívida da Requerida ao Banco BNI – Banco de Negócios Internacional (Europa), credor hipotecário desta.
E ainda (seguindo a ordem numérica estabelecida na sentença em recurso, ainda que eliminados estejam os factos 14 a 20):
27. O contabilista certificado da Requerida cessou funções a 12 de janeiro de 2024 e a Requerida não nomeou novo contabilista.
28. Os prédios vendidos a 06 de novembro de 2023 eram os únicos bens imóveis da requerida, tendo os mesmos sido avaliados em 11 de maio de 2022 em € 3.568.746,00.
29. A sociedade Prática 04 – Arquitetura e Engenharia Lda. emitiu e enviou à Requerida a fatura n.º 2023/95, com data de vencimento de 05/04/2023.
30. A sociedade CIVI4-Projectistas e Consultores Eng.ª Civil, Lda. emitiu e enviou à Requerida a fatura n.º 2022/145, com data de 05/09/2022, e vencimento em 30 dias, no valor global de €15.498,00.
31. Do Balanço anexo ao Relatório de 31 de dezembro de 2023 está expresso um passivo de €238.106,55 e um ativo de €5.013,00.
32. “A Requerida tem ainda como credores:
I. a sociedade 327 Creative Studio 327, Lda., pelo valor de € 3.321,00;
II. a sociedade Melancia Investimentos Unipessoal Lda., pelo valor de € 1.900,00;
III. a sociedade de advogados, SP, RL., pelo valor de €15.000,00;
IV. BB, pelo valor de € 94.022,82;
V. Autoridade Tributária, pelo valor de € 147,01;
VI. Segurança Social, pelo valor de € 333,90;
VI. XX e YY, pelo valor de € 4.000,81.
***
(ii) Do enquadramento jurídico:
A-/ Do crédito do Requerente e da legitimidade para requer a insolvência
Com a presente ação, o Requerente pediu que a sociedade Requerida, sua alegada devedora, fosse declarada em situação de insolvência; pretensão que, tendo sido julgada improcedente, motivou o presente recurso.
Dos autos resulta que a primeira questão que neles foi debatida prende-se, essencialmente, com o alegado crédito do Requerente, da sua existência ou inexistência, e, no caso da primeira, da sua qualificação jurídica.
Como sabemos, a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, tal como resultado do art.º 20.º do CIRE, competindo ao credor Requerente daquela declaração justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito, como se infere do art.º 25.º do mesmo diploma legal.
Por ser assim, a doutrina e jurisprudência têm vindo a sustentar que quem se arrogue credor, ainda que o seu crédito seja controvertido e litigioso, esteja sujeito a condição ou não esteja vencido, pode intentar uma ação pedindo a declaração de insolvência do seu devedor (ver, nesse sentido, Catarina Serra, em “Lições de Direito de Insolvência, 3ª edição, Almedina, pág. 138 e o acórdão do nosso STJ, de 29/03/2012, proferido no proc. 1024/10.5TYVNG.P1.S1, relatado por Fernandes do Vale, disponível na dgsi).
Não obstante, uma vez que o processo de insolvência, na sua parte inicial, se restringe a um processo de partes - nos autos, Requerente e Requerida - o mesmo só poderá prosseguir demonstrada a existência do crédito que está na base daquele pedido de insolvência.
Defendeu a Recorrida, em contra-alegações, que a natureza litigiosa do crédito do Requerente - ainda que não constituindo obstáculo a que o seu alegado titular requeira a insolvência do devedor, podendo, no próprio processo de insolvência, apresentar provas dos factos por si alegados - por carecer de uma aprofundada indagação, não compatível com uma apreciação sumária dos factos, própria da finalidade e caráter urgente do processo de insolvência, compeliria a que a mera dúvida quanto à existência do crédito, obrigasse a que se julgasse improcedente o requerimento de insolvência.
Não lhe assiste qualquer razão.
Temos por assente que o processo de insolvência é autossuficiente (como o já defendemos no âmbito do proc. 20658/24.4T8LSB.L1-1, por nós relatado em 11/02/2025 e disponível na dgsi) e, por isso, o próprio para, independentemente da natureza e complexidade do litígio, apurar da legitimidade substantiva do credor Requerente que invoca um crédito litigioso, para tanto se apelando às palavras de Soveral Martins (“Um Curso de Direito da Insolvência”, 2015, p. 52) quando diz que “… o tribunal pode decidir que não está provada a existência do crédito. Mas isso é coisa diferente de afirmar que não decide porque a questão… é complicada. Quantas questões complicadas e complicadíssimas eram apreciadas e (bem) decididas em processos sumários e sumaríssimos».
Donde, assente que o processo de insolvência é autossuficiente e o próprio para resolver as questões nele suscitadas, realizado o julgamento, onde foi amplamente discutida a natureza do crédito do Requerente, concluímos agora, em face do resultado da impugnação deduzida, que o mesmo resulta de um aporte financeiro feito à sociedade Requerida, em duas tranches, num valor total de 100mil euros, com a condição da sua devolução.
Argumenta a Requerida que, a reconhecer-se a existência de um crédito a favor do Requerente, sempre se deveria considerar que o mesmo tem, na sua base, um contrato de suprimento, o que o impediria, por ser assim, de requerer a insolvência da Recorrida.
Na verdade, os credores por suprimentos, tal como resulta do n.º 2 do art.º 245.º do CSC, «não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade (…)», norma que deve ser objeto de uma interpretação atualista, à luz do art.º 9.º do CC, na medida em que o termo ali consignado “falência” corresponde hoje, em moldes gerais, ao termo “insolvência”, como decorre do DL n.º 53/04, de 08/3, que aprovou o CIRE.
E, assim sendo, constituindo esta norma societária uma lei especial em relação ao CIRE, que não foi por este código revogada, o titular de créditos por suprimentos (que, à luz das disposições conjugadas dos arts.º 48.º al. g) do CIRE e 245.º n.º 3 do CSC, constituem créditos subordinados, que serão pagos em último lugar e que só podem ser reembolsados aos credores depois de inteiramente satisfeitas as dívidas para com terceiros) fica assim impedido de apresentar requerimento de insolvência.
Ora, nos termos do disposto no art.º 243.º do CSC, considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência.
Este tipo de contratos, constituindo uma das mais antigas práticas de financiamento societário, é similar ao contrato de mútuo, mas tem na sua base, como elemento essencial típico, as partes que nele outorgam: o sócio e a sociedade.
Ora, dos factos apurados nos autos resulta à saciedade que o Requerente, à data dos celebrados contratos, não era sócio da sociedade requerida.
Ainda assim, argumenta a Requerida - estando nós perante sociedades coligadas, em relação de domínio total - AS, Lda. e Requerida - constituindo, conjuntamente, uma unidade económica, controlada por Requerente e por BB, enquanto titulares, na proporção de metade cada um, da totalidade do capital social da sociedade dominante, assim agindo como verdadeiros sócios da Requerida, ainda que não o sejam formalmente - nada obsta a que o crédito do Requerente seja considerado como tendo na sua base um contrato de suprimento, como, de resto, foi contabilisticamente tratado na sociedade requerida. Isto porque, alega, o Requerente acaba por ter uma participação na empresa financiada, o que o coloca em posição privilegiada face aos demais credores sociais, por ter acesso a informação que os restantes credores sociais não têm, podendo tomar decisões da mutuária ou decidir como deverão ser conduzidos os seus negócios, tendo, pois, uma real influência na mesma, seja através do direito de voto, seja através do acesso a toda a informação da empresa.
Não cremos, todavia, que os autos e a factualidade apurada espelhem essa realidade, ficando muito aquém a factualidade apurada para tanto sustentar.
Relembrando os factos:
- A requerida é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de imóveis e revenda de adquiridos e outros, tendo sido constituída em 21/12/2021, com o capital social de 10.000,00€, tendo como sócios o Requerente, AA, e BB, titulares, cada um, de uma quota com o valor nominal de 5.000,00€;
- Posteriormente, em 02/03/2022, os mesmos AA e BB constituíram a sociedade AS, Lda., com um capital social de 10.000,00€, dividido em duas quotas com o valor nominal de 5.000,00€, pertencentes a cada um dos referidos sócios;
- Em 28/03/2022, a AS, Lda. adquiriu ao Requerente, AA, e a BB as quotas de que os mesmos eram titulares na Requerida Aristoslice, Real Estate, Lda., passando assim a deter a totalidade do capital social desta sociedade.
Nada mais se apurou, para além dos aportes monetários do Requerente à Requerida e acordos que os sustentaram em novembro/2022 e fevereiro/2023.
Ora, ainda que a lei societária tenha estabelecido regras próprias no que concerne a sociedades coligadas, e, dentro destas, de sociedades em relação de domínio total (arts.º 482.º, 488.º e 491.º do CSC), certo é que em nenhuma daquelas regras a pretensão da Requerida tem sustentabilidade legal, não o tendo também no regime específico dos contratos de suprimento previstos no art.º 243.º do mesmo diploma legal.
Acresce que, não obstante a inegável relação de domínio de uma sociedade por outra (a requerida tem como sócia única a sociedade de que Requerente e gerente da Requerida são sócios) certo é que o Requerente não tem uma participação maioritária na sócia da sociedade Requerida (sendo detentor de 50% do aludido capital social), não tendo também, ao contrário do alegado pela Recorrida, quaisquer maioria no direito de voto, qualquer direito de voto especial, não sendo gerente de nenhuma das sociedades, não tendo acesso privilegiado à informação societária da Requerida, ou qualquer responsabilidade pela contabilidade e escrita comercial da mesma. Podia/pode até ter, mas, o certo é que nenhuma prova foi produzida sobre esta matéria, tanto mais que a Requerida não foi ouvida e prescindiu do depoimento do seu contabilista.
Visando a regulamentação de empréstimos feitos por sócios à sociedade proteger a mesma e os seus credores de ocorrerem reembolsos privilegiados aos sócios, que poderiam valer-se da sua posição na sociedade para convencionarem um reembolso lesivo da sociedade ou dos interesses dos terceiros credores desta, certo é que não se vislumbram razões nos autos, nem as mesmas foram demonstradas por qualquer forma, para que os empréstimos concedidos pelo Requerente à sociedade requerida não tenham a configuração de simples mútuos.
Veja-se sobre esta temática, e com particular interesse para a decisão aqui em causa, os ensinamentos de Raul Ventura (Sociedade por Quotas, Vol II, Comentário ao Cód. das Sociedades Comerciais, Almedina, 1996, págs. 98 e 99) que ali escreveu «Se o empréstimo é feito à sociedade por um sócio de sociedade coligada com esta (e que não é sócio da sociedade beneficiária), não vejo motivo para a qualificação como contrato de suprimento. A coligação entre sociedades, não torna o sócio de uma sócio de todas as outras, nem se vislumbra na lei algo que force o sócio, por exemplo, de uma sociedade dominante a conceder um empréstimo a esta para ela por sua vez emprestar à sociedade dominada.».
Isto posto, a tese esgrimida pela Requerida (a que a sentença recorrida simplesmente aderiu), ainda que contraditória nos seus próprios termos, ora defendendo que não existe empréstimo algum, mas apenas investimento de risco, ora defendendo que se trata de um suprimento feito à sociedade por parte de quem, não sendo formalmente sócio da mesma, atua como tal, não tem sustentabilidade legal nem foi sequer demonstrada nos autos qualquer factualidade que ditasse/reclamasse diferente solução jurídica.
Por conseguinte, ficamos então restringidos à existência de dois contratos de mútuo, tal como definidos pela lei civil no seu art.º 1142.º, os quais, tal como resulta também do art.º 1143.º do Cód. Civil, só seriam válidos se, de valor superior a (euro) 25.000, fossem celebrados por escritura pública ou por documento particular autenticado e se superior a (euro) 2500 se o fossem por documento assinado pelo mutuário.
Nos autos, a entrega pelo Requerente de 85.000,00 euros à sociedade requerida, ainda que feita por contrato escrito, não o foi por escritura pública, sendo que a entrega dos 15mil euros não se encontra sequer titulada por documento assinado pela Requerida.
Por ser assim, estamos perante dois contrato nulos, por falta forma, nos termos conjugados dos arts.º 1143.º e 220.º do Cód. Civil, nulidade que, de resto, sendo de conhecimento oficioso (art.º 286.º do CC) tem efeito retroativo, com a restituição singela do que tiver sido prestado (art.º 289.º do CC), que é assim imediatamente exigível.
Por isso, e sem mais, apurado o crédito do Requerente, titulado por dois empréstimos feitos à Requerida, cumpre agora analisar da verificação ou não dos pressupostos que determinam a insolvência desta. *
B-/ Da alegada verificação dos requisitos da insolvência e prosseguimento dos autos:
De acordo com a alegação e no enquadramento jurídico feita pelo Requerente, a Requerida está em estado de insolvência, o que cumpre declarar, à luz do disposto nos arts.º 3.º e 20.º n.º 1, alíneas a), b), c), d), e) e h) do CIRE.
Vejamos então.
A lei insolvencial dá-nos, no art.º 3.º n.º 1 do CIRE, um conceito geral de insolvência, que se verifica pela impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, e no n.º 2 um conceito especial, para as pessoas coletivas e (…), que fica preenchido pela manifesta superioridade do passivo em relação ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis. Este segundo critério, designado critério do balanço ou do ativo patrimonial, como salienta Catarina Serra (obra citada, pág. 61), só releva se a situação de superioridade do passivo sobre o ativo for significativa assim se justificando a tutela do direito insolvencial. Como relatado por esta secção, em 12/11/2019, por Amélia Rebelo, no proc. 14089/18.2T8LSB-A.L1-1, com interesse para a questão «A existência de ativo inferior ao passivo é legalmente apta a indiciar a situação de insolvência (cfr. art.º 3.º, n.º 2 e 3 e 20.º, n.º 2, al. h), porém, o contrário já não sucede, ou seja, a existência de ativo superior ao passivo não constitui pressuposto legal de solvabilidade nem sequer indício como tal legalmente previsto pois que, ainda que assim suceda, a devedora é insolvente se, não obstante, estiver impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas».
A situação de insolvência assim definida - que deve decorrer da impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas - deve depois ser preenchida e refletida num dos factos enumerados no n.º 1 do art.º 20.º do CIRE que, demonstrados, fundam e constituem uma presunção de insolvência, competindo depois ao devedor, para a afastar, provar a sua solvência, como se infere do n.º 4 do art.º 30.º do mesmo diploma legal.
Principiando então a nossa análise pelo estatuído na al. a) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, verificamos que o facto-índice aqui previsto respeita à «suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas».
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda (CIRE, 3ª Edição, Quid Juris, 2013, pgs. 199 e 200) sobre a questão aqui em análise «A al. a) reporta-se à hipótese tradicional que se reconduz a uma paralisação generalizada do cumprimento das obrigações do devedor de índole pecuniária. (…).
Assume-se, assim, expressamente, que tal procedimento deve respeitar à generalidade das suas obrigações, o que se compreende visto que se autonomizou, na al. b), como facto-índice próprio, a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelas respetivas circunstâncias, revele a impossibilidade de prover à satisfação pontual da generalidade das suas obrigações».
Ou seja, a situação presuntiva de insolvência nos termos do previsto nesta alínea forma-se quando se demonstra que o devedor suspendeu o pagamento de todas as suas obrigações vencidas, que são aquela que vão surgindo no dia a dia das empresas, com trabalhadores, com o Estado, com fornecedores de bens, de serviços e crédito, consubstanciando esta atitude da devedora a sua efetiva incapacidade de pagar, ao deixar de dar seguimento aos seus compromissos.
No caso em apreço, o Requerente invocou para sustentar o pedido de insolvência, não só o incumprimento por parte da Requerida das obrigações que derivam dos contratos consigo celebrados, como também a existência de outras dívidas vencidas e não liquidada de diversos credores.
A Requerida, por sua vez, juntou aos autos um Relatório de gestão e demonstrações financeiras, afirmando que o mesmo refletia a situação contabilística da Requerida em 31/12/2023, após o que, na sequência do contrato de compra e venda outorgado em novembro/2023, a sociedade CF, Lda. assumiu as responsabilidades da Requerida perante os credores identificados naquele contrato, estando ainda a negociar o pagamento das outras dívidas da Requerida.
Da factualidade apurada resulta assim que a Recorrida não deixou de pagar todas as obrigações vencidas, pois que, em bom rigor, elegeu umas, pagando-as, deixando outras de fora.
Por ser assim, não se encontra preenchida a alínea aqui em análise, que obriga, como vimos, à suspensão do pagamento de todas as dívidas vencidas, de uma forma generalizada que não se verifica nos autos.
Seguindo a nossa análise, pelo estatuído na al. b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE vemos que o facto-índice aqui previsto respeita à «falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade do devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.».
Da norma em causa podemos, desde logo, inferir que não basta para fundamentar uma insolvência o facto de estarmos perante uma dívida elevada que não se encontre satisfeita. O montante e as circunstâncias do crédito invocado como fundamento para o pedido de insolvência deverão revelar que a devedora se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, na linha do estabelecido no art.º 3.º do CIRE.
A falta de cumprimento de uma ou mais obrigações, como se menciona no preceito em análise, terá assim de ser complementada pela comprovação de um quadro factual concreto, que se funda no montante da obrigação incumprida ou nas circunstâncias do incumprimento de tal obrigação, de forma a que se possa concluir pela incapacidade financeira generalizada do devedor, isto é, pela impossibilidade de o mesmo satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
Sobre esta temática, Catarina Serra (na obra citada, pág. 59), diz-nos que “(…) para a insolvência não releva nem o número nem o valor pecuniário das obrigações vencidas. (…) Como bem se compreende, tanto está insolvente quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de montante elevado (o montante em causa é demasiado elevado para que o devedor consiga cumprir) como quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de pequeno montante ou de montante insignificante (o montante em causa é insignificante e ainda assim ele não consegue cumprir)».
Na linha do assim afirmado, pode também ler-se no acórdão do STJ de 24/05/2022, relatado por Maria Olinda Garcia, no proc. 1631/20.8T8BRR.L1.S1, em jurisrudência.pt, que «(…) III - O art.º 20.º, n.º 1, al. b), do CIRE não se basta com a “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações”; exige ainda que esta falta “pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento”, revele impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.»
Neste enquadramento, e retomando ao caso dos autos, também nos mesmos a situação de incumprimento contratual em que sustenta o apelante o pedido de insolvência é suficiente para concluir que a Requerida está numa situação de impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. O que decorre, não só do elevado valor do crédito em dívida ao Requerente, como também das outras dívidas dadas por provadas nos autos, sem que a Requerida tivesse feito prova do seu efetivo pagamento. Denotando as circunstâncias envolventes desse incumprimento a impossibilidade de poder honrar os seus compromisso, pois que, vendeu todo o seu património e optou por pagar apenas a três credores (reconhecendo na ata de 05/09/2023 que não tem capacidade para gerar disponibilidade financeira dado que os projetos se encontravam então parados), não tendo agora património ou liquidez – pelo menos assim o não demonstrou - que permita pagar as dívidas sobrantes. Preenchida está, pois, a presente alínea b) do n.º 1 do art.º 20.º.
Apreciando de seguida o estatuído na al. c) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, vemos que o facto-índice aqui previsto respeita a «Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal atividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo».
Apelando novamente às palavras de Carvalho Fernandes e João Labareda (obra citada, pág. 200, ponto 13) sobre a questão aqui em análise «… estão aqui contempladas duas situações de facto distintas. Uma é a fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor, outra, o abandono do local da sede empresarial ou daquele em que se exercia a respetiva atividade», que é assim deixada «a abandono, deixando a empresa de, por assim dizer, entregue a si própria, sem ter quem conduz os seus destinos».
Trata-se, pois, de uma situação de especial gravidade, constituindo um facto-índice da situação de insolvência a fuga ou abandono injustificados do devedor titular de uma empresa. A sua verificação depende, na verdade, que haja afastamento, abandono, sem que exista qualquer responsável pela administração da pessoa coletiva para assegurar a direção dos negócios. Ora, em bom rigor, pese embora o gerente da Requerida tenha a sua morada em Israel e a Requerida a sua sede social localizada num escritório de uma advogada, ainda assim, tais factos são, a nosso ver, por si só, insuficientes para se poder concluir e afirmar o abandono que esta alínea exige. Por ser assim, também aqui, não se encontra preenchida a alínea em análise.
Na continuação da apreciação, agora pelo estatuído na al. d) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, vemos que o facto-índice aqui previsto respeita à «Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos».
Também aqui, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (ob. cit., pág. 201/202) dizem que o facto-indicie em análise dispensa «(…) a aferição dos comportamentos descritos pelo propósito de o devedor se colocar em situação de insolvência, objetivando-os, por assim dizer. Em contrapartida, tornou-se taxativa a relação de comportamentos que fundamentam a instauração da ação. A principal consequência desta nova solução situa-se no plano da prova exigida ao credor, que, precisamente, é agora definitivamente dispensado de alegar e demonstrar qualquer relação entre o facto em que se baseia e a impossibilidade de cumprimento do devedor”».
Em bom rigor, do normativo em análise exige-se que o devedor utilize o património de forma a diminuir o valor do seu acervo de bens e direitos, com inerente e consequente prejuízo para os credores.
No caso que aqui cuidamos, através do procedimento adotado, a devedora dispôs de todo o seu património ativo (bens imóveis), tendo o produto obtido pela operada venda sido distribuído pelos credores hipotecários e pelo gerente da Recorrida. Venda que foi realizada pelo preço global de €3.190.000,00, em 06 de novembro de 2023, tendo os aludidos imóveis sido avaliados em 11 de maio de 2022 em €3.568.746,00.
Ainda que a venda tenha sido realizada por valor inferior ao da avaliação feita cerca de ano e meio antes, e ainda que o legal representante da empresa que adquiriu aquele património tivesse declarado em tribunal que era sua intenção, para além do preço pago, liquidar também outras dívidas da sociedade Requerida, o que indicia um negócio pouco linear, sugerindo que o preço pago é inferior ao valor de mercado, não cremos, ainda assim, que a prova produzida possa, sem mais, tanto alicerçar. Afirmar que com aquela venda o património da Requerida foi dissipado, abandonado, apressadamente liquidado e de forma ruinosa, não tem assento na factualidade apurada. Entendemos, pois, que não se encontra, também aqui, preenchida a alínea em análise.
Não obstante, e ainda assim, sempre teríamos que concluir que aquela venda colocou o único património da Requerida em situação jurídica que limita e dificulta a satisfação dos seus credores com recurso ao mesmo, o que concorre também para a demonstração de ausência de liquidez por parte da devedora, confirmando a situação presuntiva de insolvência prevista na al. b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE (ver nesse sentido, o que aqui apelamos e seguimos, o acórdão do TRL de 17/06/2025, relatado por Fátima Reis Silva, no proc. 3412/24.0T8VFX-B.L1-1, disponível em dgsi, onde a aqui relatora ali foi adjunta).
Passando de seguida à análise do estatuído na al. e) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE vemos que o facto-índice aqui previsto respeita a «insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor».
Alega o Recorrente que tal facto está verificado nos autos, pois, argumenta, em face da atual configuração dos arts.º 748.º a 750.º do CPC, e dos objetivos prosseguidos pelo legislador com a criação da lista pública de execuções, disponibilizada na Internet, com dados sobre execuções frustradas por inexistência de bens penhoráveis (criada e regulada pela Portaria n.º 313/2009, de 29/03, e sucessivas alterações), a alínea aqui em apreço deverá interpretar-se restritivamente, no sentido de que a inscrição da Requerida naquela lista constitui prova bastante da falta ou insuficiência de bens penhoráveis no seu património que permitam liquidar o crédito detido pelo Requerente da insolvência.
É um facto que a portaria em causa dá garantias de segurança quanto à inclusão e fidedignidade das informações nela contidas, sendo a pessoa inscrita a única que dispõe de legitimidade para requerer a alteração ou retificação da informação ali dada, visando-se com a aludida portaria, como dela decorre, evitar o recurso a processos judiciais sem viabilidade e cuja pendência prejudica a tramitação de outros efetivamente necessários para assegurar uma tutela.
Por ser assim, dada a configuração legal hoje existente, e constituindo a insolvência uma execução universal, estamos em crer que figurando a Requerida na lista pública de execuções, nada obsta a que se possa interpretar restritivamente o preceito em análise, dispensando-se o Requerente da insolvência de, previamente à instauração da mesma, lançar mão de uma ação executiva contra a Requerida quando esta figura já naquela lista pública, por falta ou insuficiência de bens penhoráveis no seu património que permitam, por maioria de razão, liquidar o crédito detido pelo Requerente da insolvência. Consideramos assim preenchida a presente alínea e) do n.º 1 do art.º 20.º.
Finalmente, o estatuído na al. h) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, obriga a que «Sendo o devedor uma das entidades referidas no n.º 2 do artigo 3.º, manifesta superioridade do passivo sobre o ativo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado».
O facto-índice aqui em causa está justificado pela definição específica de insolvência estabelecida no n.º 2 do art.º 3.º do CIRE, reportando-se à existência de um passivo manifestamente superior ao ativo e também ao atraso na aprovação e depósito de contas, quando haja a obrigação de proceder aos mesmos. Nas palavras de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (obra citada, pág. 206) «a aprovação e, sobretudo, o depósito de contas concretizam uma obrigação de certas pessoas coletivas, dirigida a permitir o público conhecimento da sua situação económico-financeira, o que constitui um importante elemento de análise e consideração para aqueles que com elas negoceiam, de modo a poderem valorar mais ponderadamente os riscos que correm” por isso “o legislador entendeu por bem ligar ao incumprimento destas obrigações durante um certo prazo – apesar de tudo, curto – a presunção de que indiciam um estado de insolvência, razão pela qual autoriza os credores a agirem em conformidade».
Ora, o dever de prestar as contas do exercício anual e bem assim de, consequentemente, elaborar o relatório de gestão, as contas do exercício e dos demais documentos de prestações de contas e de apresentá-los ao órgão competente para a respetiva aprovação, recai, nas sociedades por quotas, sobre a gerência (art.º 252.º, n.º 1, 259.º, 260.º e 263.º do CSC).
Para o efeito, os gerentes encontram-se obrigados a elaborar anualmente o relatório de gestão, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas e a apresentar esses documentos ao órgão competente para os apreciar e aprovar.
Para além desse dever geral de prestação de contas, como decorre do art.º 70.º do CSC e dos arts.º 3.º, n.º 1, alínea n), 15.º e 42.º do Cód. Registo Comercial, a lei impõe também o registo obrigatório da prestação de contas das sociedades, com vista a dar publicidade à situação jurídica das mesmas.
Tal registo consiste, conforme decorre do art.º 53.º A do Cód. Registo Comercial, no depósito, por transmissão eletrónica de dados de acordo os modelos oficiais previstos em legislação especial, da informação constante dos documentos referidos no art.º 42.º, n.º 1, do mesmo diploma legal. Essa transmissão eletrónica é realizada nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17/01, e alterações subsequentes, que criou a Informação Empresarial Simplificada (IES), sendo assim o pedido de registo feito por via eletrónica e de forma totalmente desmaterializada através do envio da IES, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17/01 (cfr. art.º 13.º-A, da Portaria n.º 1416-A/2006, de 19/12, aditado pela Portaria n.º 562/2007, de 30/04).
Dos factos provados resulta simplesmente que a Requerida não procede, em bom rigor, ao depósito de contas desde a sua constituição no ano de 2021.
Pelo exposto, tem que se concluir também pelo preenchimento do aludido preceito, sendo muito superior a nove meses o atraso na aprovação e depósito das contas da Requerida.
Donde, e em conclusão, provados os factos índice acima elencados, e estando também demonstrado, à luz do art.º 3.º n.º 2 do CIRE, que a Requerida apresentou, em 31/12/2023 um passivo contabilisticamente superior ao seu ativo (resultando, do único Balanço junto aos autos, que em 31-12-2023 detinha um ativo de € 5013 e um passivo de € 238.106,55) presumida está a sua situação de insolvência.
À qual, ainda assim, poderia impedir e obstar, demonstrando a sua solvência nos termos do art.º 30.º n.ºs 3 e 4 do CIRE, sem esquecer que, para a demonstrar, dado tratar-se de uma sociedade, o deveria fazer mediante escrituração devidamente organizada e arrumada.
E, na verdade, não o logrou fazer nem tanto sequer devidamente alegou, limitando a sua oposição à alegada ausência de credores e à ilegitimidade do Requerente para pedir a sua insolvência em face do crédito por suprimentos que argumentava, quando muito, o mesmo deter.
Não infirmou, pois, a Requerida a matéria elencada nos factos-índice alegados pelo Recorrente, não tendo, por sua vez, demonstrado que tem capacidade para pagar as dívidas vencidas que não foram incluídas no contrato de compra e venda de novembro/2023. Relevando na caracterização da insolvência a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, objetivamente apreciada, isto é, independentemente das causas que estiveram na origem dessa situação, é irrelevante que o devedor possa vir a cumprir num momento futuro (negociando-se o cumprimento das dívidas ainda existentes por um terceiro, o que, de resto, não se encontra documentalmente comprovado).
Neste circunstancialismo, contra os factos apurados, nus e crus, sem qualquer subjetividade neles inserta, que suportam, como vimos, presunção consignada no art.º 20.º, n.º 1, als. b), e) e h) do CIRE, nada foi demonstrado pela Recorrida que os possa afastar.
Donde, e sem mais, nada havendo em contrário, cumprirá, então, declarar a insolvência da Requerida nos autos. *
C-/ Do alegado abuso de direito:
Não obstante, e em jeitos de análise final, vemos ainda que a Recorrida alegou que o Requerente faz um uso abusivo do processo de insolvência, procurando com a presente ação um objetivo que não se coaduna com a ratio de um processo de execução universal, excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé e pelo fim económico do processo de insolvência, agindo assim com abuso do direito.
Vejamos então.
Como é consabido, o abuso de direito funciona como uma válvula de escape do sistema jurídico, que deve ser aferida casuisticamente, prescrevendo-se no art.º 334.º do CC a ilegitimidade do exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Justifica-se assim por razões de justiça e de equidade, sendo, nas palavras de Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo 1, 2ª edição, 2000) um «excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do direito sobre os infortúnios do legislador e sobre as habilidades das partes» ensinando também o Professor Antunes Varela (“Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536) que para que para que o exercício do direito seja abusivo «é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder».
De conhecimento oficioso, o abuso de direito deve, contudo, estar sustentado em factos que permitam esse conhecimento pelo tribunal.
No caso vertente, a Recorrida argumenta que ao instaurar a presente ação, o Requerente não pretende a liquidação do património da sociedade com vista a satisfação dos credores, que diz não existir, alegando que o Requerente requer a insolvência da Requerida com o único intuito de pôr em causa negócios celebrados pela sociedade com os quais, aparentemente, não concorda.
Tal questão não foi propriamente tratada na sentença recorrida (onde se afirma, erradamente, que o próprio autor admitiu nos autos que as entregas dos valores a que procedeu podiam ser configuradas como suprimentos, sustentando-o no art.º 34 da resposta à exceção apresentada em oposição, artigo que, todavia, não permite, de forma alguma, tal conclusão).
Não vemos, no entanto, que os autos fornecem elementos para se concluir que o Requerente faz um uso abusivo do direito que lhe assiste de requerer a insolvência da Requerida.
Ainda que o direito de ação, em abstrato, possa estar ferido de abuso, pois embora compreendido no direito fundamental de acesso aos tribunais, consagrado no art.º 20º da C.R.P., pode, ainda assim, não ser tolerado pela ordem jurídica, não sendo de admitir toda e qualquer demanda flagrantemente abusiva (ver nesse sentido o Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 17/10/2023, proferido no âmbito do proc. nº 5788/19.2T8SNT.L3-1, relatado por Manuel Marques, disponível na dgsi) certo é que, para tal se verificar, necessário se mostra estarem preenchidos os pressupostos do estatuído pelo art.º 334.º do CC.
E no caso dos autos, nada disse ocorre. O Requerente, arrogando-se titular de um crédito sobre a Requerida, alega a impossibilidade da mesma o liquidar, bem como a outros créditos já vencidos, por não ter património nem liquidez para o fazer, tanto mais que vendeu os únicos ativos que tinha, distribuindo-se o produto da venda, pelos credores hipotecários e pelo próprio gerente da Requerida (este sim, com suprimentos na mesma).
Não vemos assim, em face da factualidade apurada, determinativa da insolvência da Requerida, qualquer situação de abuso de direito que cumpra acautelar.
Procede, pois, a presente apelação, com a consequente insolvência da Requerida, a ser agora declarada pelo tribunal recorrido de forma a não serem cindidas as menções que obrigatoriamente devem constar da sentença que declara a insolvência, previstas no art.º 36.º do CIRE.
*
VI-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam as Juízas desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a presente apelação, revogando-se a sentença proferida, que deve ser substituída por outra que declare a insolvência da Requerida, completando-se a decisão com os mais demais elementos necessários e exigidos pelo art.º 36.º do CIRE.
Custas do recurso pela Recorrida.
Registe e notifique.
Lisboa, 28-10-2025,
Paula Cardoso
Manuela Espadaneira Lopes
Isabel Maria Brás Fonseca