Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
COIMA
SANÇÃO ACESSÓRIA
Sumário
Sumário (da responsabilidade da Relatora): I– Com a alteração introduzida pela Lei n.º 114/2015, passou a ser possível a suspensão da execução da coima, sendo que a redação anterior apenas permitia a suspensão da sanção acessória. II – Contudo, nos termos do citado artigo, a suspensão da execução da coima só é admissível nos casos em que também tenha sido aplicada ao agente uma sanção acessória. III – Tal circunstância não obsta, porém, a que, no âmbito da impugnação judicial, possa ser ponderada a aplicação da sanção acessória enquanto pressuposto da suspensão da execução da coima, ainda que o agente não tenha sido condenado em tal sanção pela autoridade administrativa. IV – O que o agente não pode é alegar que a sanção adequada a aplicar — a saber, a reposição da situação anterior à infração — já se encontra cumprida, quando a infração está consumada e inexiste qualquer possibilidade de reposição. V – Assim, não pugnando a recorrente pela aplicação de qualquer sanção acessória, fica inviabilizada a suspensão da execução da coima.
Texto Integral
Acordam em conferência os Juízes da 9º secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
A-Relatório:
No âmbito do processo de contraordenação nº 500.30.001.00089.2024, por decisão administrativa proferida pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Teio, foi a recorrente:
-De acordo com o art.º 58º do Regime Geral das Contraordenações, ex. vi art. 2º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redação dada pela Lei nº 89/2009, de 31 de agosto, com as alterações introduzidas pela Declaração de Retificação nº 70/2009, de 01 de outubro e pela Lei n.º114/2015, de 28 de agosto, condenada ao pagamento de uma coima no valor de 24 000 (vinte e quatro mil) euros, como autora material, na forma consumada, a título de negligência, pela prática da infração prevista e punida nos termos conjugados do artº 117º, nº1 al.a), do Anexo I do Decreto-Lei n.º 102-D12020, de 10 de dezembro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº11/2023, de 10 de fevereiro e pelo Decreto-Lei nº24/2024, de 26 de março e do artº 22º, nº4, alínea b), da Lei nº 50/2006, de 29 de agosto, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de agosto e pela Lei nº 114/2015, de 28 de agosto.
Veio a arguida impugnar judicialmente a decisão administrativa para o Juízo Local Criminal do Montijo – Juiz 1, tendo sido proferida decisão no sentido de:
- “Condenar a Recorrente AA, Lda. pela prática, a título de negligência, de uma contraordenação ambiental muito grave, prevista e punida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 117.º, do Anexo I do Decreto-Lei n.º 102.º-D/2020, de 10 de dezembro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 11/2023, de 10 de fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 24/2024, de 26 de março, e punida pela alínea b) do n.º 4 do artigo 22.º, da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de agosto e Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto numa coima de €24.000,00 (vinte e quatro mil euros)”.
*
Inconformada com esta decisão veio a arguido interpor o presente recurso
Conclui nos seguintes termos: “A. O âmbito do recurso interposto pela Recorrente compreende erros notórios na apreciação da prova, contradição insanável entre a fundamentação e a matéria de direito constante da sentença e o seu juízo decisório em tudo o que se revela desfavorável à Recorrente. B. Vem imputada à Recorrente, pela decisão recorrida, a prática de uma contraordenação ambiental muito grave, a título de negligência, prevista pelo artigo 117.º, n.º 1, alínea a) do Anexo I do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, punida pelo artigo 22.º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, tendo decidido o Tribunal a quo julgar improcedente a impugnação judicial por aquela apresentada à decisão de aplicação da coima proferida pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, condenando-a numa coima de € 24.000,00 (vinte e quatro mil euros) e no pagamento das custas processuais que fixou em duas unidades de conta. C. Sendo embora certo que, nos termos do artigo 75.º, n.º 1 do RGCO, a 2.ª instância apenas pode conhecer de matéria de direito, certo é também que, face ao disposto no artigo 410.º, n.º 2 do CPP, “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova”. D. Para a motivação do juízo decisório do Tribunal a quo, considerou este que os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, AA e BB, ambos agentes autuantes e signatários do auto de notícia subjacente à decisão de aplicação da coima impugnada, eram “merecedores de credibilidade atento o modo objetivo e imparcial, rico em detalhes e circunstanciado, com que foram prestados”, ao passo que o depoimento da testemunha arrolada pela Recorrente, CC e as declarações do legal representante daquela, DD, “se afiguraram vagos e imprecisos, e de resto, contraditórios, razão pela qual, só em parte se revestiram de credibilidade”. E. Não indica, contudo, em lado algum o Tribunal a quo qual a razão pela qual qualificou assim a prova produzida pela Recorrente. F. Não obstante, para além dos restantes vícios de que padece a decisão recorrida, a mesma enferma de nulidade por violação do princípio da presunção da inocência, conforme se explanará. G. Resulta em 7) dos factos dados como provados pela decisão recorrida que se encontravam a arder “plásticos, madeiras, mobiliário de madeira contendo verniz e tintas, papelão, baldes com restos de tintas, esferovite, latas de espuma expansiva de poliuterano (provocando pequenos rebentamentos), têxteis, tela de borracha, jerricans, sacos (big bags) contendo verdes resultantes de cortes de jardins”. H. Para tanto, considerou o Tribunal a quo os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Ministério Público que, refere, observaram os objetos a arder documentados nas fotografias a fls. 5 a 11, que inequivocamente corroboraram tal factualidade. I. As fotografias constantes dos autos que a sentença recorrida associa aos materiais referidos como estando a arder, não permitem tal leitura, nem sequer documentam os objetos em causa, como referido, pelo que se verifica, nesta parte, erro notório na apreciação da prova. J. Ou seja, não é possível retirar dos elementos juntos aos autos, mas tão-só dos depoimentos das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, que reproduziram as palavras do auto de notícia escrito pelas próprias, quais os materiais que se encontravam efetivamente a arder, a não ser aqueles que se retiram claramente das fotografias em apreço e, conforme resulta da impugnação judicial apresentada, do depoimento prestado pela testemunha arrolada pela Recorrente, CC, e das declarações do seu legal representante, DD, consistiram em madeiras e restantes florestais e cortes de jardim que resultaram de uma obra que a Recorrente concluíra, sita na .... K. Viola ainda o Tribunal a quo o princípio da presunção da inocência consagrado nos artigos 32.º, n.º 2 da Constituição e 6.º, § 2.º da CEDH, aplicável aos processos de contraordenação em conformidade com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, quando emite um juízo de “convicção positiva” da factualidade constante da acusação com fundamento em que “nenhuma outra prova foi produzida que [a] contrariasse”, o que deverá culminar na nulidade da sentença, à qual se estende o vício em causa, cuja decisão não pode subsistir sem a parte cuja nulidade se verifica. L. Pode ler-se ainda na sentença recorrida que as declarações do representante legal da Recorrente e o depoimento da testemunha CC, porque apresentaram contradições manifestas, revelaram-se insuficientes para abalar a convicção que se formou nos termos sobreditos21, “desde logo porque afirmaram não terem presenciado pessoalmente os factos objeto dos autos”. M. Continua a leitura da sentença por afirmar: “Ora, CC [EE] referiu não ter estado no local no dia dos factos ou posteriormente, mas afirmou estar crente de que não foi dada ordem para que se queimassem os materiais descritos na acusação, reforçando, ademais que é do conhecimento dos funcionários da empresa que não devem queimar os resíduos (cujos procedimentos de tratamento tomados em geral pela Recorrente, detalhou pormenorizadamente). Já, por outro lado, DD, referiu estar em causa uma queimada de produtos sobrantes e cofragem em pinho sem tratamento, resultantes de uma obra que haviam realizado na .... Tal circunstância revelou falta de concordância interna com as próprias declarações, na medida em que também referiu não ter estado no local no dia dos factos”. N. O Tribunal a quo vem qualificando ao longo da decisão recorrida as declarações do representante legal da Recorrente e da testemunha CC como manifestamente contraditórias, sem, no entanto, indicar quais as contradições a que se refere, qual a razão de tal entendimento e porque as qualifica como manifestas. O. Não se alcançando, por muito esforço que se faça, onde vislumbra o Tribunal a quo contradições, resultando, pelo contrário, cristalino que o facto de a testemunha CC ter referido que “não foi dada ordem para que se queimassem os materiais descritos na acusação” em nada conflitua com o facto de o legal representante da Recorrente atestar que a queimada em causa era de “produtos sobrantes e cofragem em pinho sem tratamento”, corroborando, aliás, com os factos descritos na impugnação judicial. P. Tão-pouco se verifica qualquer contradição entre tal facto, relatado pelo legal representante da Recorrente com o facto de este não se encontrar no local do estaleiro na data dos factos, porquanto tal circunstância não o impede de saber o que acontece no seio da sociedade sobre a qual exerce a sua gerência, de conhecer qual a razão da queimada e quais os materiais destinados à mesma e nem de conhecer as ordens proferidas por si e por aqueles que as podem proferir dentro da estrutura hierárquica da sociedade. Q. A simples leitura de decisão recorrida nesta parte, permite concluir que a mesma padece de erro notório na apreciação da prova, prova esta que foi simplesmente depreciada e desconsiderada pelo tribunal com fundamento em contradição manifesta que, manifestamente, não se verifica. R. Continua a sentença recorrida motivando a decisão nos seguintes termos: “Ademais, referiu que a situação se deveu a um descuido do funcionário da empresa, ao mesmo tempo que também afirmou que este mesmo funcionário é o mais antigo da empresa, com bastante experiência e conhecer dos procedimentos a adotar (razão pela qual justificou não ter sido instaurado qualquer procedimento disciplinar sobre o mesmo)”. S. Nesta parte, o legal representante foi perentório em afirmar, efetivamente, que caso tivessem sido queimados outros objetos para além daqueles que tinham sido objeto da ordem dada ao funcionário em causa, tal se deveria a um descuido imputável ao funcionário. T. Ora, tão-pouco aqui se verifica qualquer contradição ou outra circunstância que pudesse levar o Tribunal a quo a abalar a credibilidade do legal representante da Recorrente, padecendo por isso a decisão, neste conspecto, de erro notório na apreciação da prova, porquanto, conforme é evidente e ditam as regras da experiência comum, não é pelo facto de um funcionário ser o mais antigo da empresa, com a inerente experiência no exercício das suas funções ou sequer merecedor de confiança por parte da sua entidade patronal que se exime de cometer infrações, de provocar o dito “descuido” ou de, nessa circunstância, desobedecer a uma ordem que lhe foi emitida. U. Conforme resulta da própria decisão, o facto de o funcionário em causa ser o mais antigo da empresa, com bastante experiência, foi referido pelo legal representante da Recorrente para justificar a razão pela qual não foi instaurado um qualquer procedimento disciplinar contra o mesmo. V. Assim, o douto Tribunal a quo cometeu os referidos erros notórios na apreciação da prova, designadamente ao valorar as declarações do legal representante da Recorrente e da testemunha arrolada por esta, pois destes meios de prova, conjugados com as regras da lógica e da experiência comum, outra deveria ter sido a conclusão do Tribunal a quo, considerando como provados os factos que permitiriam excluir a responsabilidade da Recorrente: a queima de materiais permitidos por lei ao abrigo da comunicação prévia realizada ao ICNF e, no limite, o desrespeito pela ordem dada nesse sentido pela Recorrente ao funcionário desta. W. Por fim, verifica-se ainda erro notório da apreciação da prova na sentença decorrida na parte em que se dá por provados os factos enunciados em 3), 4), 5), 6), 7), 8), 10), 11), 12) e 16) com fundamento em que nenhuma prova foi produzida que abalasse a convicção do Tribunal, ao mesmo tempo em que são dados como não provados todos os factos constantes dos factos não provados com o mesmo fundamento – não produção de nenhuma prova a respeito, o que revela manifesta arbitrariedade na decisão proferida e na fundamentação que a subjaz. X. Afigura-se contraditória, de forma insanável, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea b) do CPP, a fundamentação da sentença na parte em que sustenta que a Recorrente sabia “que não podia proceder à (…) queima a céu aberto, não tendo agido com a diligência necessária”, com a conclusão de que a mesma terá agido com negligência. Y. Nesta hipótese que por mero exercício académico se coloca, apenas duas soluções são passíveis de equacionar: a) Ou efetivamente, a queima realizada incluiu objetos diversos dos que eram objeto da ordem dada ao funcionário responsável, tratando-se por isso esta de uma atuação da sua exclusiva responsabilidade; b) Ou, pelo contrário, a Recorrente agiu dolosamente22, porquanto bem sabendo que não podia proceder à queima a céu aberto dos objetos descritos na acusação, decidiu ainda assim fazê-lo – conduta esta que apenas se poderia materializar através de uma ordem expressa nesse sentido dada ao funcionário que procedeu à queima. Z. Não se conjuga no plano da lógica e da experiência comum, um sentido para a qualificação da conduta da Recorrente como negligente, tendo em conta a fundamentação que a subjaz na sentença recorrida. AA. Uma vez que não pode a conduta que vem sendo imputada à Recorrente preencher qualquer uma das modalidades da negligência, afirmando-se, ao mesmo tempo que esta sabia que não podia proceder à queima dos objetos descritos na acusação o céu aberto e era conhecedora dos procedimentos de gestão de resíduos a adotar: tal revela-se como manifestamente contraditório. BB. Restando, por esta razão, a hipótese colocada em primeiro lugar, o que permite, por si só, afastar a responsabilidade da Recorrente. CC. Em termos subsidiários, a Recorrente invocou, em sede de impugnação judicial da decisão de aplicação da coima, o erro sobre a ilicitude do facto não censurável, nos termos do artigo 9.º do RGCO, com fundamento no facto de a queima ter sido realizada ao abrigo da comunicação prévia efetuada ao ICNF, tendo em conta as informações que esta entidade prestou à Recorrente. “As previsões atuais estimam que possa efetuar a queima (…)”, tendo sido calculado um risco de incêndio mínimo, equivalente a 1, e um grau de perigo segundo diversos fatores equivalente a -1, na escala de 0 a 100. DD. Todavia, entendeu o douto Tribunal a quo, mal neste ponto, ser de exigir à Recorrente uma espécie de confissão para que possa alegar a existência de erro sobre a ilicitude do facto. EE. Entendimento este que fere gravemente o direito à não incriminação da Recorrida, que vigora no direito de mera ordenação social, conforme é entendimento generalizado na jurisprudência. FF. Entendendo a decisão recorrida que “não obstante a Recorrente alegue que foi autorizada a realizar a queima, em ponto algum afirmou (ou provou) ter ficado convencida de que a autorização dada lhe permitia proceder à queima dos resíduos nos termos em que o fez. Pelo contrário, a Recorrente negou a prática dos factos por que vem acusada, alegando sim, e apenas, que procedeu a uma queima de amontoados verdes nos moldes em que foi autorizada, e já não que estava convencida que a autorização lhe permitia proceder à queima de resíduos (caso em que poderia estar em causa o erro invocado)”. GG. Ora, para além do instituto em crise ter sido invocado em termos subsidiários, ou seja, caso, por cautela e dever de patrício, não fosse procedente a alegação até então sustentada, com todas as consequências legais que isso implica, a Recorrente alegou sim, no ponto 43. da sua impugnação judicial, estar convencida que a autorização lhe permitia proceder à queima em causa, contrariamente ao que vem decidido pelo Tribunal a quo. HH. Ademais, não lhe pode ser censurável tal erro, uma vez que o mesmo teve por base a análise efetuada pela entidade administrativa competente para conceder a referida autorização, cujos conhecimentos e competências de análise na matéria em questão sobrepassam aos da Recorrente e seus funcionários. II. Mas, caso ainda assim se entenda que o erro lhe é, antes, censurável, sempre se defenderá pela aplicação da atenuação especial da coima, nos termos previstos no artigo 9.º, n.º 2 do RGCO. JJ. Neste particular não se concordando com o decidido pela sentença recorrida que, com base no artigo 23.º-A da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, decidiu não merecer aplicação ao caso concreto este instituto, porquanto “No caso em apreço, a Recorrente negou os factos por que lhe eram imputados e não revelou qualquer arrependimento, conforme manifestamente ressumou das declarações do seu representante legal”. KK. O que, conforme vimos, não corresponde à verdade, sendo objeto das declarações do legal representante da Recorrida que todo o procedimento de gestão de resíduos foi alterado por esta após a notificação recebida sobre a instauração do processo de contraordenação em crise, tendo a recolha e gestão de resíduos sido confiada a uma empresa especializada e competente para o efeito. LL. Ora, o artigo 23.º-A, n.º 1, alínea a) da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais exige que tenham existido “atos demonstrativos de arrependimento do agente”, o que no caso se verifica, mas já não uma confissão dos factos descritos na acusação, em prejuízo do direito à não incriminação da Recorrente. MM. Por fim, e contrariamente ao decidido na sentença recorrida, caso se entendesse que a Recorrida devesse ser acoimada, deveria ter havido lugar à aplicação do instituto da suspensão da aplicação da coima, nos termos do artigo 20.º-A, n.º 1 da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais. NN. Em cuja interpretação vem a jurisprudência unanimemente entendido que não constitui requisito para a sua operabilidade a aplicação de qualquer sanção acessória, desde que a ação tenha sido imediatamente solucionada, o que, in casu, sucedeu, através da extinção da queima desencadeada, ainda que com a intervenção dos bombeiros no local, considerando que a Recorrida fez tudo o que se encontrava ao seu alcance para a reposição da situação à existente antes da ocorrência da queima em crise”.
*
O recurso foi admitido a subir de imediato nos próprios autos e com efeitos suspensivos.
*
O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência
*
Nesta Relação a Exma. Procuradora Geral Adjunta colocou visto nos autos.
*
Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos submetidos à conferência, cumprindo agora decidir.
* Da decisão recorrida:
Pelo Tribunal recorrido foi proferida a seguinte sentença: “III – Fundamentação de facto: Produzida a prova e discutida a causa, com relevância para a decisão final, resultaram os seguintes: III.I Factos provados: 1) A Recorrente AA, Lda., procedeu à comunicação ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), requerendo autorização para a realização de uma queima de amontoados em ..., freguesia de ..., concelho de Montijo. 2) Mediante comunicação eletrónica de ........2024 o ICNF informou a Recorrente que a comunicação referida em 1) foi registada sob o n.º 5788537, que o «Risco de incêndio (RCM): 1», «Perigo tendo em conta os diversos factores: -1 (0-100)», e que «As previsões atuais estimam que possa efetuar a queima. Contudo, deve consultar o perigo de incêndio no próprio dia para garantir que não é muito elevado ou máximo.» 3) Em ........2024, pelas 15:14, no sítio de ..., coordenadas WGS84 Latitude 38,65749 e Longitude -8,96745, freguesia de ..., concelho do Montijo, foi verificado por elementos da fiscalização da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, I.P., a existência de uma grande coluna de fumo, de coloração escura, que não se identificava com as colunas de fumo provocadas pelas queimadas de sobrantes agrícolas. 4) A coluna de fumo provinha de um incêndio descontrolado. 5) No local encontrava-se FF, funcionário da AA, Lda., 6) O referido funcionário tinha ateado fogo a resíduos de construção e demolição resultantes da atividade desenvolvida pela empresa por ordem do proprietário da mesma. 7) Encontravam-se a arder plásticos, madeiras, mobiliário de madeira contendo verniz e tintas, papelão, baldes com restos de tintas, esferovite, latas de espuma expansiva de poliuretano (provocando pequenos rebentamentos), têxteis, tela de borracha, jerricans, sacos (big bag) contendo verdes resultantes de cortes de jardins. 8) Em local não concretamente apurado do estaleiro, na área não ardida encontravam-se bilhas de gás, latas contendo restos de tinta, jerricans com óleo acrílico usado, tubos de PVC, cabines de duche em fibra, onze pilhas de paletes em madeiras, resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos (telefones, rebarbadoras, autorrádios, arcas frigoríficas, frigoríficos, lâmpadas fluorescentes). 9) Os objetos referidos em 9) não se destinavam a ser queimados. 10) A equipa de fiscalização acionou os Bombeiros e Guarda Nacional Republicana, tendo sido enviados os Bombeiros da Moita. 11) Foi recebido o reforço dos .... 12) A equipa de fiscalização solicitou a comparência de um representante da empresa no local, tendo comparecido GG, na qualidade de Gestor de Obra. 13) A empresa responsável pelo terreno era a AA, Lda., que ali tem instalado um estaleiro. 14) A arguida era a responsável pelos resíduos. 15) A arguida não agiu com a diligência necessária para cumprir as obrigações legais. 16) A Recorrente não tem antecedentes criminais. 17) A Recorrente tem vinte e um trabalhadores ao seu serviço. III.II Factos não provados: Com relevância e interesse para a decisão a proferir, resultaram não provados os seguintes factos: a) Os jerricans que se encontravam a arder continham restos de produtos químicos. b) Atear fogo aos resíduos é facto recorrente, sendo a forma usada pela Arguida para eliminação dos resíduos que não consegue valorizar. c) A queima a que se refere a decisão condenatória, consistiu na eliminação de amontoados compostos por madeira e resíduos agrícolas / florestais. d) Os resíduos que se encontravam a arder eram somente compostos de madeira, papel e resíduos verdes resultantes de corte de jardim. e) Os objetos referidos em 9) encontravam-se muito longe da queima efetuada. f) A Recorrente agiu sem consciência da ilicitude. IV. Motivação da decisão de facto: A prova, legalmente produzida em conformidade com os princípios da imediação e do contraditório, deve ser valorada de acordo com o princípio da livre apreciação, em conformidade com o preceituado nos artigos 127.º e 355.º do Código Penal. Quer a prova diretamente obtida quer a prova indireta devem, ademais, ser apreciadas à luz das regras da experiência comum, tal como decorre do preceituado no artigo 127.º do Código de Processo Penal. A convicção do tribunal é formada assim, para além dos elementos objetivos que resultam dos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, atendendo às razões de ciência, à neutralidade, segurança, serenidade, coerência de raciocínio e objetividade, e ainda às lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, à atitude e sentido de responsabilidade manifestados, que se afirmem da sua produção. Foi à luz das sobreditas linhas mestras que o Tribunal formou a sua convicção na determinação da matéria de facto, esteando-se na análise crítica e conjugada da totalidade da prova produzida e em juízos lógico-dedutivos, atentando-se aos depoimentos prestados em audiência julgamento pela testemunha AA, Vigilante da Natureza e BB, Gestor de Ambiente, ambos a exercer funções à data dos factos na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, que se afiguraram merecedores de credibilidade atento o modo objetivo e imparcial, rico em detalhes e circunstanciado, com que foram prestados. Mais se atendeu ao depoimento de CC, engenheira civil, sócia e funcionária da Recorrente AA, Lda. e declarações de DD, sócio-gerente, representante legal desta sociedade, os quais se afiguraram vagos e imprecisos, e de resto, contraditórios, razão pela qual, só em parte se revestiram de credibilidade. Atendeu-se ainda concatenadamente teor da prova pré-constituída constante dos autos designadamente «Auto de notícia», a fls. 1 e 3 verso; fotografias de fls. 5 a 11 verso; correspondência eletrónica de fls. 56 e 57; certidão permanente, sob a Ref.ª Citius .... Em concreto, a factualidade constante em 1) e 2) dos factos provados logrou demonstração positiva em face do teor da correspondência eletrónica de fls. 56 e 57, que lhe dá respaldo. Para apuramento da matéria referida em 3), 4), 5), 6), 7), 8), 10), 11), 12) e 16) dos factos provados atentou-se ao depoimento das testemunhas AA, e BB, que explicaram ter-se apercebido da coluna de fumo de cor negra, que os motivou a dirigir-se ao local onde deram conta da existência de um fogo descontrolado que determinou que tivessem que acionar os bombeiros (explicando ainda que teve que ser acionada uma segunda corporação de bombeiros, atentas as dimensões e características do incêndio e as dificuldades de o extinguir, já que a forma como estavam dispostos os resíduos sob madeiras de muito fácil combustão tornava muito difícil o acesso da água). E explicaram, desde logo que o fumo de cor escura não corresponde a uma queima de verdes, já que neste caso o fumo apresenta cor branca ou clara (ao passo que será tanto mais escuro quanto maior for a quantidade de químicos em combustão) – o que, de resto, é do conhecimento empírico, decorrente da observação e da experiência prática. Relataram, além da localização do estaleiro, o estado do foco de fogo, tendo observado os diversos objetos a arder, documentados nas fotografias de fls. 5 a 11 (com que foram confrontados) que inequivocamente corroboram tal factualidade, (razão pela qual resultou infirmada a factualidade constante em c) dos factos não provados – sendo certo que nenhuma prova foi produzida que contrariasse aqueloutra convicção positiva). Por outro lado, referiram que em locais próximos no estaleiro se encontravam outros objetos (descritos em 8) dos factos provados), aos quais o fogo podia facilmente ter alastrado não fosse a intervenção dos bombeiros, já que o calor extremo proveniente do foco de incêndio, seria suficiente para que começassem a arder as áreas de mato e árvores adjacentes mesmo sem que o fogo se alastrasse a estas diretamente. No mais, relataram ao tribunal que no local se encontrava FF - que se identificou como funcionário da Recorrente, que à sua chegada se encontrava a tentar apagar o fogo que tinha iniciado por ordens dos seus superiores hierárquicos, tendo sido posteriormente chamado HH (o que também foi confirmado pela testemunha CC e por DD). As declarações do representante legal da Recorrente e testemunha CC, para além de contradições manifestas, sempre se revelariam insuficientes para abalar a convicção que se formou nos termos sobreditos desde logo porque afirmaram não terem presenciado pessoalmente os factos objeto dos autos. Ora, II referiu não ter estado no local no dia dos factos ou posteriormente, mas afirmou estar crente de que não foi dada ordem para que se queimassem os materiais descritos na acusação, reforçando, ademais que é do conhecimento dos funcionários da empresa que não devem queimar os resíduos (cujos procedimentos de tratamento tomados em geral pela Recorrente, detalhou pormenorizadamente). Já, por outro lado, DD, referiu estar em causa uma queimada de produtos sobrantes e cofragem em pinho sem tratamento, resultantes de uma obra que haviam realizado na .... Tal circunstância revelou falta de concordância interna com as próprias declarações, na medida em que também referiu não ter estado no local no dia dos factos. Ademais, referiu que a situação se deveu a um descuido do funcionário da empresa, ao mesmo tempo que também afirmou que este mesmo funcionário é o mais antigo da empresa, com bastante experiência e conhecedor dos procedimentos a adotar (razão pela qual justificou não ter sido instaurado qualquer procedimento disciplinar sobre o mesmo). Nenhuma outra prova foi produzida que desse respaldo à posição aventada pela Recorrente em sede de impugnação judicial, de que se procedia apenas à queima de verdes - o que é, reitere-se, frontalmente contrariado pelas fotografias constantes nos autos, sobre as quais todas as dúvidas foram esclarecidas em audiência de julgamento. Por tudo o exposto, o tribunal não teve dúvidas em dar como provada aqueloutra factualidade nos termos em que o fez. A factualidade constante em 10) resultou apurada em face do teor das fotografias de fls. 5 a 11, depoimentos de todas as testemunhas e declarações do representante legal da Recorrente, em concatenação com as máximas da experiência comum e normalidade do acontecer. Com efeito, pese embora se tenha apurado que os objetos se encontravam próximos do foco de incêndio, certo é também que os objetos descritos em 9) dos factos provados estavam colocados em locais diversos no estaleiro, levando a crer que efetivamente inexistia um propósito de proceder à sua queima tal como foi afirmado pelo representante legal da Recorrente em sede de declarações (que neste conspecto revelaram verosimilhança com as regras da lógica e experiência comum). A factualidade constante em 13) e 14) resultou demonstrada em face dos esclarecimentos prestados por CC e DD, que foram corroborantes em afirmá-la. Para apuramento da factualidade constante em 15) dos factos provados atendeu-se a prova indireta. Com efeito, ressuma dos autos que a Recorrente sabia que não podia proceder a queimada a céu aberto dos resíduos que se encontravam a ser queimados, tanto assim que foi requerida a autorização para proceder a queima de amontoados. Por outro lado, atenta a atividade comercial da Recorrente e a própria formação académica da sócia e sócio gerente (ambos engenheiros civis), decorre, em face das regras da experiência comum, que os mesmos têm conhecimento das normais legais que impediam sobre a Recorrente, no que tange à gestão dos resíduos (sendo de salientar que a testemunha CC apresentou com detalhe os procedimentos adotados pela Recorrente quanto a esta gestão de resíduos). Bem assim, afigura-se não ter a Recorrente agido com a diligencia de que era capaz e lhe era exigível. A factualidade constante em 17) obteve demonstração positiva em face das declarações de DD, que neste particular se tiveram por credíveis. No que tange aos factos não provados constantes em a), nenhuma prova foi produzida. Com efeito, não obstante as testemunhas AA e BB tenham visualizado os jerricans a arder, manifesto é que os não puderam abrir ou analisar de modo a aferir se continham ou não restos de produtos químicos. A factualidade constante em b) e e) resultou infirmada porquanto nenhuma prova foi produzida que a sustentasse. Os factos contidos em c), d) e f) resultaram infirmados em consequência do apuramento da factualidade vertida em 7) e 15) que os negam. (…) V - A negligência grosseira, correspondendo a uma culpa grave, pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.» E no caso concreto nos autos ressuma da factualidade apurada que no estaleiro se encontravam diversos resíduos, tendo a Recorrente dado ordens para que se procedesse à sua queima. Nestes termos, não agindo com o cuidado a que, segundo as circunstâncias era capaz, não pode senão ter representado como possível a realização do facto típico contraordenacional, ainda que não se tenha conformado com tal realização. Sendo que, dos factos ressuma uma conduta «altamente reprovável à luz do mais elementar senso comum». Acresce, não se verifica o erro sobre a ilicitude do facto nos termos propugnados pela Recorrente. Estabelece o artigo 9.º do Regime Geral das Contraordenações que «age sem culpa quem atua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável». O agente está, assim, em erro sobre a ilicitude, também designado de erro de permissão quando, muito embora tenha conhecimento do tipo e do seu inerente desvalor, erra sobre a intervenção de uma norma permissiva, isto é, supõe existir uma norma de justificação, quando ela na realidade não existe, ou, existindo, está aquém da sua suposição, no sentido de que a conduta do agente não é por ela abrangida. Trata-se de um erro indireto, na medida em que o agente não crê, sem mais, que o facto é lícito (conforme sucede no erro sobre a proibição a que se refere o n.º 2 do artigo 8.º do Regime Geral das Contraordenações). Ao invés, o que se verifica é um erro sobre a existência ou sobre os limites de um “obstáculo” à ilicitude do facto. Outrossim, conforme salienta o insigne Prof. Cavaleiro Ferreira3 «só a consciência errónea, mas certa e segura, do agente (porque devida a erro desculpável) exclui a culpabilidade e a responsabilidade penal, pelo que em caso de dúvida sobre a ilicitude, tem o agente o dever de se informar, sendo que se não o fizer o erro é censurável.» Ora, não obstante a Recorrente alegue que foi autorizada a realizar a queima, em ponto algum afirmou (ou provou) ter ficado convencida de que autorização dada lhe permitia proceder à queima de resíduos nos termos em que o fez. Pelo contrário, a Recorrente negou a prática dos factos por que vem acusada, alegando sim, e apenas, que procedeu a uma queima de amontoados verdes nos moldes em que foi autorizada, e já não que estava convencida que a autorização lhe permitia proceder à queima de resíduos (caso em que poderia estar em causa o erro invocado). Em face de tudo do exposto, mostram-se preenchidos os elementos do tipo contraordenacional em apreço, razão pela qual deve ser responsabilizada, pela prática, a título de negligência, de uma contraordenação ambiental muito grave, prevista e punida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 117.º, do Anexo I do Decreto-Lei n.º 102.º-D/2020, de 10 de dezembro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 11/2023, de 10 de fevereiro e pelo Decreto-Lei n.º 24/2024, de 26 de março, e punida pela alínea b) do n.º 4 do artigo 22.º, da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de agosto e Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto. (…) Da suspensão da execução da sanção Propugnou a Recorrente pela suspensão da sanção nos termos do preceituado no artigo 20.º-A da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais. Prevê a sobredita norma que «1 - Na decisão do processo de contraordenação, a autoridade administrativa pode suspender, total ou parcialmente, a aplicação da coima, quando se verifiquem as seguintes condições cumulativas: a) Seja aplicada uma sanção acessória que imponha medidas adequadas à prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infração e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma; b) O cumprimento da sanção acessória seja indispensável à eliminação de riscos para a saúde, segurança das pessoas e bens ou ambiente. 2 - Nas situações em que a autoridade administrativa não suspenda a coima, nos termos do número anterior, pode suspender, total ou parcialmente, a execução da sanção acessória. 3 - A suspensão pode ficar condicionada ao cumprimento de certas obrigações, designadamente as consideradas necessárias para a regularização de situações ilegais, à reparação de danos ou à prevenção de perigos para a saúde, segurança das pessoas e bens e ambiente.» As sanções acessórias mostram-se previstas no artigo 30.º e seguintes da mencionada Lei-Quadro. A suspensão da sanção não assume, porém, um carácter automático nem é de aplicação obrigatória, conforme manifestamente ressuma da expressão «pode» vertida no artigo 20.º-A, do diploma a que nos vimos a referir. E no caso dos autos, a gravidade da conduta revelada nos factos apurados não permite concluir por um juízo prognóstico de que a prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infração e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma é suficiente para as necessidades de prevenção se fazem sentir. Nestes termos, entende-se não ser de suspender a sanção aplicada à Recorrente”.
*
B)-Fundamentação:
De acordo com o artigo 428.º do CPP: “As relações conhecem de facto e de direito”.
Contudo, estipula o artigo 75 do RGCOC:
“1- Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões”.
Assim, em matéria de contraordenações está vedado à segunda instância o conhecimento da matéria de facto, sempre que esteja em causa a impugnação ampla da matéria de facto.
Como consta do sumário do ac. da RE de 7.11.2023 (em que é relator a Exmª Senhora Desembargadora Laura Maurício, in base de dados do igfej):”I As garantias de processo criminal previstas no art. 32.º da CRP, são aplicáveis ao processo de contraordenação por força do seu n.º 10, quanto aos direitos de audiência e defesa, mas não comportam um direito ao duplo grau de jurisdição.II. O recurso nas contraordenações em segunda instância é, assim, restrito à matéria de direito (art. 51º, nº 1, da Lei 107/2009, de 14.09, salvo se se verificar a existência dos vícios no julgamento da matéria de facto previstos no art. 410º, n.º 2, do CPP, caso este em que, mesmo no recurso penal restrito à matéria de direito, a Relação deles deverá, ainda que oficiosamente, conhecer, podendo e devendo alterar a matéria de facto, se dispuser de todos os elementos probatórios necessários para o efeito; ou, não dispondo desses elementos, reenviando os autos à 1.ª instância, para sanação do vício de acordo com o artigo 426º do CPP.III. Não havendo norma no âmbito do Regime Geral das Contraordenações que admita o recurso relativo a matéria de facto, com exceção dos casos de processamento das contraordenações juntamente com crimes, em que lhes é aplicável o regime de recursos vigente para os ilícitos penais (cf. artigo 78.º), prevalece o n.º 1 do artigo 75.º do citado diploma, que restringe o recurso no domínio das contraordenações a matéria de direito. IV. Daí que, no caso, esteja legalmente vedado a este Tribunal da Relação a sindicância da matéria de facto que o tribunal a quo deu como provada. Consequentemente, a matéria de facto fixada tem que considerar-se inalterável, sendo de rejeitar o recurso intentado”.
No processo de contraordenação há, essencialmente, duas fases: a fase administrativa e a fase judicial. Na administrativa, a entidade administrativa, decide da ocorrência, ou não da contraordenação, com a aplicação da competente sanção. Por seu turno, a fase judicial inicia-se com a apresentação da decisão administrativa – que equivale a acusação – por parte do MP ao Tribunal de primeira instância (artigo 62º, nº 1 RGCOC e assento 1/2001 in DR 93/2001, I Série A de 20/04/2001) que dispõe de poderes de apreciação de facto e de direito, ao contrário do Tribunal da Relação que só decide de direito.
*
Impõe-se desde logo determinar quais as questões a decidir em sede de recurso.
“É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95- O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente -cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010:).
Assim, o conhecimento do recurso está limitado às suas conclusões, sem prejuízo das questões/vício de conhecimento oficioso.
Acresce que, como decidido no acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2019, de 02 de julho: “Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa”.
*
Pelo que, na situação concreta, as questões a decidir são:
- Do erro notório na apreciação da prova;
- Da contradição insanável entre a fundamentação;
- Do erro não censurável sobre a ilicitude do factos e da atenuação especial da coima caso se entenda que o erro é censurável;
- Da suspensão da coima aplicada.
* Do erro notório na apreciação da prova:
A impugnação da decisão da matéria de facto pode ocorrer por uma de duas vias:
- Através da arguição de vício de texto previsto no art. 410.º nº 2 do CPP;
Ou;
- Através do recurso amplo ou efetivo em matéria de facto, previsto no art. 412.º, nºs 3, 4 e 6 do CPP.
Alega a recorrente que a sentença padece do vício do erro notório na apreciação da prova.
O erro notório na apreciação da prova constitui um vício da sentença previsto no artigo 410, nº2, al.c) do CPP.
No que respeita ao erro notório, como se extrai da letra da lei, o mesmo tem de ser notório. Contudo “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha de ser devidamente escrutinada-ainda que para além das perceções do homem comum- e sopesado à luz das regras da experiência. Ponto é que, no final, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique deviamente demonstrada pelo Tribunal ad quem” (Código Processo Penal anotado, Pereira Madeira, pág. 1359).
“I -As anomalias, os vícios da decisão elencados no n.° 2 do art. 410.° do CPP têm de emergir, resultar do próprio texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma; esses vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo.
II - Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei -vícios da decisão, não do julgamento.
III - Os vícios previstos no artigo 410.°, n.° 2, do CPP, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no art. 127.° do CPP.
IV - Não podendo, neste tipo de análise, prevalecer-se de prova documentada nem se encontrando perante prova legal ou tarifada, não pode o tribunal superior sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida; é, afinal, querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.
V - Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.°, n.° 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
VI - O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.
VII - No caso de impugnação da matéria de facto nos termos dos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP a apreciação pelo tribunal superior já não se restringe ao texto da decisão, mas abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.°, al. b), do CPP” ( sumário do ac. do STJ de 15-07-2009 proc. n.º 103/09 -3.ª Secção, relator o Sr. Conselheiro Fernando Fróis).
Como referido há erro notório na apreciação da prova quando da sentença constam como provados factos que nunca se poderiam ter verificado ou que são contraditados por documentos autênticos, o que terá de resultar da leitura do texto da decisão.
Ora, procedendo a uma leitura cuidada da sentença facilmente se extrai inexistir na mesma qualquer facto provado que em face da experiência comum, não pudesse ter acontecido.
Do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, não resulta qualquer erro de onde se possa concluir que os factos foram erradamente dados como provados pelo Tribunal.
Nada do que é escrito na sentença recorrida a respeito da motivação de facto aponta em sentido oposto ao que consta da factualidade assente.
Muito pelo contrário, a matéria de facto dada como provada encontra-se de acordo com as regras da experiência e fundamentada pelo Tribunal recorrido de modo, que lendo a fundamentação não se extrai qualquer erro.
Igualmente não é a mesma contraditada por quaisquer documentos autênticos, nem por outro tipo de documentos, como as fotografias juntas aos autos, sendo manifesto que inexiste qualquer erro notório na apreciação da prova.
Na verdade, teria de resultar do texto da sentença recorrida, e isto por referência aos depoimentos das testemunhas ou a determinado tipo de documentos, que o Tribunal a quo deu como provados determinados factos com fundamento, por exemplo, em determinado depoimento e do texto da sentença, constata-se que tal depoimento é violador das regras da experiência, o que manifestamente não aconteceu.
Assim, não pode a recorrente invocar o erro notório na apreciação da prova, sem aludir, em concreto a tal erro.
Analisado o recurso constata-se que a recorrente pretende, apenas, questionar a credibilidade dada pelo Tribunal a quo aos depoimentos das testemunhas.
Tal é patente na motivação do recurso quando alega que “verifica-se um erro notório na apreciação da prova por manifesta arbitrariedade na decisão quando, a Mm.ª Juiz a quo, decide dar por provados os factos referidos em 3), 4), 5), 6), 7), 8), 10), 11), 12) e 16)”.
Aliás, lidas as conclusões de recurso e a sua motivação facilmente se conclui que, o que pretende a recorrente é impugnar a matéria de facto, nos termos do artigo 412 do CPP, o que lhe está vedado, lançando para tal, mão dos vícios do artigo 410º do CPP.
Acontece que, como referido, o artigo 75 do RJCOC o n.º 1 do artigo 75.º restringe o recurso em matéria de contraordenações à matéria de direito, estando a este Tribunal da Relação vedada a sindicância da matéria de facto que o tribunal recorrido deu como provada.
E não se argumente, como o faz a recorrente, que foi violado o princípio da presunção da inocência.
O princípio da presunção da inocência encontra-se consagrado no artigo 32, nº2 da CRP que estipula: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.
Tal princípio encontra-se igualmente consagrado na CEDH, mais concretamente no seu artigo 6, nº2 que preceitua: “2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.
Também a Carta dos Direitos Fundamentais para a UE alude, no seu artigo 48, nº2, a este principio em termo idênticos: “ `2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.
Assim, toda a pessoa beneficia da presunção de inocência até transito em julgado da decisão condenatória, princípio este mais abrangente que o princípio in dubio pro reo.
Estamos perante uma garantia processual, pretendendo-se um processo equitativo que coloque ao dispor de qualquer cidadão um conjunto de direitos que permitam a sua defesa, perante o poder punitivo e a autoridade do Estado.
Contudo, tal, não obsta, obviamente à condenação do agente, desde que ilidida a presunção.
Ora, na situação concreta lendo a fundamentação dos factos provados não se vislumbra qualquer violação deste princípio, esclarecendo a sentença recorrida os motivos pelos quais considerou provada a factualidade que consta da sentença.
Logo, não assiste qualquer razão à recorrente.
* Da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão:
Alega a recorrente que não pode a conduta imputada preencher qualquer uma das modalidades da negligência quando se afirma, na sentença, que esta sabia que não podia proceder à queima dos objetos descritos na acusação a céu aberto e era conhecedora dos procedimentos de gestão de resíduos a adotar.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão também constitui uma vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP.
Tal vício, como acontece com o erro notório na apreciação da prova, é de conhecimento oficioso.
“I – A al. b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP abrange dois vícios distintos, que são:
- A contradição insanável da fundamentação; e
- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
II – No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado.
III – Quanto à segunda situação, abrange as circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas” (sumário do ac. da RC de 13.5.2020, em que é relator o Senhor Desembargador Jorge Jacob, in base de dados do igfej).
Só existe contradição quando a mesma não é sanável.
A contradição entre os factos e a fundamentação desses factos ocorre quando existe uma incompatibilidade entre o facto provado e a justificação dada para esse facto.
Como sumariado no acórdão desta Relação de 22.6.2023:
“I-A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão” que consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada;
II. Não integra o vício decisório da contradição entre os factos e a fundamentação da decisão de facto, geradora de nulidade, a aparente incongruência entre os factos não provados e a fundamentação da decisão de facto, quando esta resultar apenas de deficiência expositiva da motivação e possa ser ultrapassada por via da interpretação conjugada da motivação, permitindo, por essa via, apreender o sentido da convicção formada pelo Tribunal, ainda que incorrectamente exposta” (Processo 10469/18.1T9LSB.L1-9, da Relatora Simone Pereira)”.
Na situação concreta consta do facto nº15 da sentença que:
“15) A arguida não agiu com a diligência necessária para cumprir as obrigações legais”.
E da motivação da matéria de facto consta:“ Para apuramento da factualidade constante em 15) dos factos provados atendeu-se a prova indireta. Com efeito, ressuma dos autos que aRecorrente sabia que não podia proceder a queimada a céu aberto dos resíduos que se encontravam a ser queimados, tanto assim que foi requerida a autorização para proceder a queima de amontoados. Por outro lado, atenta a atividade comercial da Recorrente e a própria formação académica da sócia e sócio gerente (ambos engenheiros civis), decorre, em face das regras da experiência comum, que os mesmos têm conhecimento das normais legais que impediam sobre a Recorrente, no que tange à gestão dos resíduos (sendo de salientar que a testemunha CC apresentou com detalhe os procedimentos adotados pela Recorrente quanto a esta gestão de resíduos). Bem assim, afigura-se não ter a Recorrente agido com a diligencia de que era capaz e lhe era exigível”.
Alega a recorrente a contradição entre o facto 15 e a fundamentação desse mesmo facto, alegando que da fundamentação não resulta a negligência e isto, porque, a própria negligência implica que: (i) ou o agente confiou que o resultado lesivo não se verificaria; (ii) ou o agente nem sequer equacionou a possibilidade da verificação do resultado.
Com todo o respeito, não assiste razão à recorrente. Na verdade, o dizer-se na fundamentação de facto que a recorrente sabia que não podia proceder à queimada a céu aberto dos resíduos, prende-se com a consciência da ilicitude, ou seja, o facto de alguém saber que não pode proceder daquela forma não é incompatível com a negligência. No elemento subjetivo do tipo temos o dolo e a negligência, consistindo esta última na violação de um dever de cuidado, o que é distinto da consciência da ilicitude, cuja ausência pode levar à figura do erro sobre a ilicitude. Nas contraordenações negligentes a consciência da ilicitude traduz-se, precisamente, no conhecimento por parte do agente que a violação de um determinado dever de cuidado que produz determinado resultado é proibido por lei.
Assim, não estamos perante uma contradição entre factos e a sua fundamentação, não obstante alguma deficiência expositiva, no que tange ao elemento subjetivo, a qual, como defendido no acórdão supra citado se ultrapassa através da análise de toda a fundamentação da matéria de facto.
Na verdade, o elemento subjetivo deve ser extraído de todos os elementos objetivos, sendo que no caso em análise, atentos os factos dados como assentes e a motivação dos mesmos, teríamos sempre de concluir que, pelo menos, a arguida não agiu com a diligência que lhe era necessária e de que era capaz, e, em face de tal, que se verifica a negligência.
Como tal deve improceder o recurso nesta parte.
* Do erro não censurável sobre a ilicitude do factos e da atenuação especial da coima caso se entenda que o erro é censurável:
Alega a recorrente a figura do erro não censurável sobre a ilicitude.
De acordo com o artigo 9º do RGCOC:
“1 - Age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
2 - Se o erro lhe for censurável, a coima pode ser especialmente atenuada”.
Ora, relativamente a esta questão cumpre referir que a matéria de facto dada como provada se considera assente.
Assim, tem a questão de ser analisada à luz da mesma, o que pressupunha, desde logo, que da matéria de facto provada resultasse a falta de consciência da ilicitude.
Ora, não basta ao agente alegar a falta de consciência da ilicitude, pois, e pelo menos, teria o Tribunal de ficar na dúvida sobre este elemento, devendo tal dúvida, na fixação da matéria de facto, ser resolvida a favor da recorrente.
Esta não é, seguramente, a situação dos autos.
Na verdade, só poderia este Tribunal concluir pelo erro, censurável, ou não, caso tivesse alterado a matéria de facto.
Alias, o que resulta da sentença recorrida é que não resultou provado que a recorrente tenha agido sem a consciência da ilicitude. Muito pelo contrário, dos factos provados e da sua motivação, resulta que a recorrente atuou com consciência da ilicitude.
Logo, também nesta parte deve o recurso improceder.
* Da suspensão da coima aplicada:
Pugna a recorrente, ainda, pela suspensão da coima aplicada.
De acordo com o artigo 20.º-A da Lei 50/2006 (lei quadro da contraordenações ambientais).
“1 - Na decisão do processo de contraordenação, a autoridade administrativa pode suspender, total ou parcialmente, a aplicação da coima, quando se verifiquem as seguintes condições cumulativas:
a) Seja aplicada uma sanção acessória que imponha medidas adequadas à prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infração e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma;
b) O cumprimento da sanção acessória seja indispensável à eliminação de riscos para a saúde, segurança das pessoas e bens ou ambiente.
2 - Nas situações em que a autoridade administrativa não suspenda a coima, nos termos do número anterior, pode suspender, total ou parcialmente, a execução da sanção acessória.
3 - A suspensão pode ficar condicionada ao cumprimento de certas obrigações, designadamente as consideradas necessárias para a regularização de situações ilegais, à reparação de danos ou à prevenção de perigos para a saúde, segurança das pessoas e bens e ambiente.
4 - O tempo de suspensão da sanção é fixado entre um e três anos, contando-se o seu início a partir da data em que se esgotar o prazo da impugnação judicial da decisão condenatória.
5 - A suspensão da execução da sanção é sempre revogada se, durante o respetivo período, ocorrer uma das seguintes situações:
a) O arguido cometer uma nova contraordenação ambiental ou do ordenamento do território, quando tenha sido condenado pela prática, respetivamente, de uma contraordenação ambiental ou do ordenamento do território;
b) O arguido violar as obrigações que lhe tenham sido impostas.
6 - A revogação determina o cumprimento da sanção cuja execução estava suspensa”.
Com a alteração introduzida pela Lei n.º 114/2015 passou a ser possível a suspensão da execução da coima, sendo que a anterior redação apenas permitia a suspensão da sanção acessória.
Contudo, nos termos do citado artigo a suspensão da execução da coima só é admissível nos casos em que também tenha sido aplicada ao agente uma sanção acessória.
Como se escreve no ac. da Relação de Guimarães, de 26/6/2023, (proc.325/22.4T8CBC.G1, Rel. Cruz Bucho) “Conforme a jurisprudência vem assinalando deste regime extrai-se ser intenção do legislador cuidar e prevenir a preservação do ambiente, que é património de toda a comunidade, não apenas pela via sancionatória, mas também através de medidas pedagógicas; isto é, o legislador preocupou-se ao introduzir o regime de suspensão da execução da coima ou da sanção acessória nas contraordenações ambientais, fazendo-a depender de condições que visem atingir aquele fim, impondo obrigações aos infractores, para prevenir melhor (cfr., v.g. Acs. da Relação de Coimbra de 15-11-2017, proc.º n.º 143/17.1T8GRD.C1, rel. Inácio Monteiro, da Relação de Évora, de 22-1-2019, proc.º n.º 135/18.3T8TNV.E1, rel. Martinho Cardoso e da Relação do Porto de 2-3-2022, proc.º n.º 2154/20.0T8GDM.P1, rel. Paulo Costa).
Pensamos que na consagração do instituto esteve também o propósito do legislador de, por via indirecta, atenuar a extrema severidade do montante das coimas aplicáveis”.
Como referido, um dos requisitos para a suspensão da execução da coima é que ao agente tenha também sido aplicada uma sanção acessória, sendo que na situação concreta tal não sucedeu.
Contudo, tem defendido a jurisprudência (cfr. Ac. da Relação de Guimarães de 5/11/2018, proc. 291/17.8PVL.G1, Rel.Jorge Bispo e Ac. da R.G de 26/6/2023, proc.325/22.4T8CBC.G1, Rel. Cruz Bucho) que nada obsta a que no âmbito da impugnação judicial apresentada, o Mmo Juiz, ao ponderar a requerida suspensão da coima equacione a aplicação da sanção acessória, enquanto pressuposto da suspensão da execução da coima, apesar de não ter sido condenado em tal sanção pela autoridade administrativa.
Acresce ainda que também não ignoramos que alguma jurisprudência tem entendido que nada obsta à suspensão da coima quando a sanção adequada a ser aplicada já se mostra cumprida, como sucede com a eventual sanção acessória de repor a situação anterior à infração.
E, nesta senda, alega a recorrente que para que a suspensão da coima aconteça basta que se demonstre que, “de motu propriu, o infractor já tudo fez para repor a situação existente antes da prática da infracção”.
Ora, e sem discutir da bondade de tal entendimento (defendida por alguma Jurisprudência), o certo é que tal teria sempre de pressupor a participação do agente na reposição da situação anterior, não sendo esta, seguramente, a situação dos autos, em que existe uma impossibilidade de reposição, na medida em que os resíduos foram queimados pela recorrente, o que não foi evitado com a extinção do incêndio, que só ocorreu com a intervenção dos bombeiros.
Logo, a suspensão da execução da coima na situação concreta teria sempre de passar pela aplicação de uma sanção acessória.
Ora, não pretendendo a recorrente a aplicação de qualquer sanção acessória nem equacionando sequer essa possibilidade, está inviabilizada a suspensão da execução da coima.
Pelo exposto, terá o recurso de improceder.
C) Dispositivo
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 9º secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- Negar total provimento ao recurso interposto, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts.92º, e 93º,nº3, do D.L. 433/82 e 513 e 514º, nº1, ambos do CPP).
Notifique.
Lisboa, 6 de novembro de 2025
Ana Paula Guedes
Diogo Coelho de Sousa Leitão
Maria de Fátima R. Marques Bessa