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CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ROUBO
TIPICIDADE
CONCURSO
Sumário
1. A conduta do arguido que, de forma reiterada, atinge os ofendidos, seu pais, na sua integridade psíquica e, mais amplamente, na sua dignidade enquanto pessoas humanas, no interior do domicílio comum, numa clara postura no sentido de subjugar e humilhar as vítimas, submetendo-as, inclusive através de ameaças de morte, às suas vontades, designadamente de fornecimento de dinheiro, constitui um aviltamento intolerável da dignidade de qualquer pessoa, quanto mais dos seus progenitores, consubstanciando o quadro geral de violência, vexação e humilhação em que se traduz a violência doméstica. 2. Esses atos repetidos ao longo de um determinado período de tempo são inequivocamente demonstrativos de uma conduta maltratante, humilhante e de apoucamento, e bem assim, suscetíveis de conduzir ao preenchimento do tipo criminal de violência doméstica, principalmente na vertente dos “maus tratos psíquicos”, muito embora também se tenham verificado episódios que retratam ameaças veladas e coações manifestas, atitudes manifestamente merecedoras de censura penal, que encontram tutela à luz do art. 152º do CP. 3. Relativamente ao crime de roubo, a violência típica traduz-se no emprego da força física necessária e adequada a efetivar a subtração/apropriação, não exigindo a lei um mínimo de intensidade da violência para o preenchimento do tipo legal. 4. O arguido que retira, arranca, das mãos do seu progenitor um envelope que continha no seu interior a quantia de 30,00 €, contra a vontade deste, repentinamente e de forma a vencer qualquer resistência que aquele supostamente poderia exercer, num cenário de violência psíquica que contextualizava a relação entre o arguido e os seus progenitores, para além da condição física debilitada em que se encontravam, constitui um comportamento intrusivo que atingiu o corpo da vítima, executado com o objetivo de lhe quebrar ou de lhe impedir a resistência e como meio para alcançar a apropriação, poderá ser considerado como preenchedor do elemento objetivo da utilização de violência exigida no crime de roubo. 5. A circunstância de a vítima não ter reagido, tudo indica, perante surpresa da ação, revela-se aqui absolutamente despicienda, uma vez que aquele arguido manteve o domínio e o consequente poder de disposição sobre o dinheiro, de que se apropriou.
Texto Integral
Acordam em conferência na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório
No processo comum singular com o NUIPC 2996/24.8T9BRG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Central Criminal – Juiz ..., em que é arguido AA foi decidido:
« IV - DECISÃO
Pelo exposto, tendo em atenção todas as considerações produzidas e as normas legais citadas, decide-se:
A) Condenar o arguido AA, como reincidente, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos arts. 75º, 76º e 152.º, n.º 1, alínea d), 2, 4 e 5 do Código Penal, na pessoa do seu progenitor BB, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
B) Condenar o arguido AA, como reincidente, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos arts. 75º, 76º e 152.º, n.º 1, alínea d), 2, 4 e 5 do Código Penal, na pessoa da sua progenitora CC, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
C) Condenar o arguido AA, como reincidente, pela prática de um crime de roubo simples, p. e p. pelos arts. 75º, 76º e 210.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa do seu progenitor BB, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão.
D) Condenar o arguido AA em cúmulo jurídico de penas referidas em A) a C), nos termos do art. 77º, nºs. 1 e 2, do C.P., na pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão;
E) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio, com os ofendidos, incluindo de se aproximar, a menos de 300 metros, da residência destes, pelo período de 4 (quatro) anos, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 152º, nº 4 do Código Penal, o que deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, quando o arguido se encontre em meio livre, nos termos do nº 5 do mesmo preceito legal e do artigo 35º da Lei 112/2009;
F) Não condenar o arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de armas, p. e p. pelo artigo 152º, nº4, do indicado diploma legal.
G) Determinar que se proceda à recolha da amostra de ADN ao arguido AA, nos termos e para os efeitos do artigo 8.º, n.º 2 da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro.
H) Condenar o arguido AA nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (quatro unidades de conta), nos termos do artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao mesmo, reduzidas a metade face à sua confissão integral e sem reservas, sem prejuízo do eventual apoio judiciário que beneficie.»
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2. Inconformado com essa decisão, o arguido interpôs recurso cujo objeto delimitou com as seguintes conclusões: (Transcrição) (…) «II - CONCLUSÕES I. Por acórdão proferido em 18.06.2025, foi o arguido, ora recorrente, AA condenado pela prática de dois crimes de violência doméstica previsto e punido pelo art.º 152.º, n.os 1 alínea d) e 2 alínea a), n.os 4 e 5 do CP na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva, por cada um dos crimes; II. E, foi condenado pela prática de um crime de roubo p. e p. pelo artigo 210.º do CP, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão efetiva. III. Foi também o recorrente condenado na pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio, com os ofendidos, incluindo de se aproximar, a menos de 300 metros, da residência destes, pelo período de 4 (quatro) anos, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal, o que deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, quando o recorrente se encontre em meio livre, nos termos do nº 5 do mesmo preceito legal e do artigo 35.º da Lei 112/2009. IV. Foi ainda condenado ao pagamento de custas o recorrente AA, fixando-se em 4 UCs a taxa de justiça devida pelo recorrente, reduzindo-se a metade pela integral confissão. V. Com tal não poderá o recorrente concordar. VI. O processo penal português procura incessantemente a verdade material, a qual se deve firmar em prova processualmente válida e robusta, que constitui o seu inquestionável substrato. VII. Para tanto, o julgador penal deve apreciar a prova produzida em audiência de julgamento segundo as regras da experiência e a livre convicção, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal, salvo nos casos de prova vinculada. VIII. No entendimento do Professor Figueiredo Dias, “a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e de controlo.” Dias, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal, I Volume, Coimbra, Coimbra Editora, 1974, pp. 202-203. IX. A livre apreciação da prova não significa, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um sistema rígido de prova legal, se realiza, em geral, de acordo com critérios lógicos e objetivos e, dessa forma, determina uma convicção racional e, como tal, objetivável e motivável. X. Como ensina Alberto dos Reis, «o que está na base do conceito (de livre convicção) é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, entretanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas (…). O sistema de prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica». Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal – Coimbra 1968, pág. 48. XI. A liberdade na apreciação da prova «não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação. Trata-se antes de uma liberdade para a objectividade – não aquela que permita uma “intime conviction”, meramente intuitiva, mas aquela que se determina por uma intenção de objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, i. é., uma verdade que transcenda a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros – que tal só pode ser a verdade do direito e para o direito.» Código de Processo Civil Anotado – Vol. III, pág. 245. XII. A convicção do Tribunal a quo resultou, exclusivamente, da prova produzida declarações para memória futura dos ofendidos. XIII. Com efeito, analisada e correlacionada toda a prova produzida em julgamento e tendo como referência as regras da experiência comum e os critérios de normalidade, a condenação do recorrente funda-se em manifesto erro de julgamento. XIV. A atividade judicatória na valoração dos depoimentos deve atender a uma multiplicidade de fatores (imparcialidade, razões de ciência, espontaneidade, verosimilhança, contradições, linguagem corporal, etc.). XV. O depoimento da assistente, pela sua posição de antagonismo, não poderá ser considerado isento e imparcial, e a sua natureza emocional e acusatória não encontra suporte em prova objetiva que o corrobore. XVI. Não obstante o respeito devido à palavra da vítima, sobretudo em matéria de violência doméstica, é entendimento pacífico da jurisprudência que tal depoimento deve ser analisado com rigor, sendo imprescindível que se apresente coerente, consistente e corroborado por outros elementos de prova. XVII. O processo penal não se compadece com condenações baseadas em meras perceções individuais ou discursos emocionalmente mobilizadores, exigindo prova bastante e convincente. XVIII. A prova produzida nos autos revela-se claramente insuficiente para sustentar um juízo de culpabilidade para além da dúvida razoável. XIX. O discurso dos ofendidos é tendencioso, o que impõe a aplicação do princípio in dubio pro reo, consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que impede a condenação sem provas suficientes e legalmente admissíveis. XX. Em suma, inexistindo elementos probatórios objetivos que sustentem, para além de qualquer dúvida razoável, a versão apresentada pelos ofendidos, deve o Tribunal Superior fazer prevalecer o princípio in dubio pro reo, revogando a sentença e absolvendo o recorrente, por respeito às garantias fundamentais que estruturam o Estado de Direito. XXI. Por outro lado, a douta sentença a quo alicerçou a sua convicção preponderantemente nas declarações dos ofendidos, as quais, todavia, carecem de consistência objetiva, precisão temporal e corroboração probatória, apresentando traços de subjetividade e inconsistência manifesta. XXII. O bem jurídico tutelado no crime de violência doméstica é a dignidade humana, exigindo que a violência redunde num abuso de poder do agente e numa situação de degradação e humilhação da vítima, que revele uma especial ofensa à dignidade humana. XXIII. In casu, os factos dados como provados, no que respeita ao crime de violência doméstica, não preenchem os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal. XXIV. Os atos alegadamente praticados, a tê-lo sido, não assumem a intensidade de crueldade, insensibilidade, desprezo e aviltamento necessárias para configurar o crime pelo qual foi condenado. XXV. As expressões alegadamente rebaixadoras e humilhantes proferidas pelo recorrente poderiam, eventualmente, configurar a prática de um crime de injúria (art. 181.º do Código Penal), mas não o crime de violência doméstica. Impõe-se, assim, a absolvição do Recorrente. XXVI. No que concerne ao crime de roubo, o tipo legal exige a utilização de violência contra a pessoa ou de ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física, idónea a anular a capacidade de resistência da vítima. XXVII. A conduta de «retirar da mão do seu progenitor um envelope que continha no seu interior a quantia de 30,00€, contra vontade deste», não configura a violência necessária para preencher o tipo objetivo de roubo. XXVIII. Não houve socos, empurrões violentos ou qualquer ato que causasse lesões ou pusesse em perigo a integridade física do progenitor. XXIX. A ação traduz-se mais numa ação de força, sem a dimensão coativa ou lesiva exigida para o roubo. XXX. Para além do elemento objetivo, o crime de roubo exige um dolo específico. XXXI. No caso do recorrente, a sua conduta, motivada pela descompensação da medicação e pela adição a estupefacientes, bem como a situação de sem-abrigo e fome, não revela um dolo de roubo, assemelhando-se a um ato impulsivo e desorganizado. XXXII. Em face da ausência dos elementos típicos do roubo, a conduta deveria ter sido qualificada como furto (artigo 203.º do Código Penal). XXXIII. Adicionalmente, o caso enquadra-se no princípio da bagatela penal ou da insignificância, que impõe a desnecessidade de intervenção do direito penal em situações de ínfima lesão do bem jurídico. XXXIV. A quantia de €30,00 é manifestamente insignificante, e a sua subtração, no contexto familiar e sem lesão grave ao progenitor, não justifica a qualificação como roubo, nem a aplicação de pena de prisão efetiva, por flagrante desproporção e violação do princípio da proporcionalidade. XXXV. As penas aplicadas, em particular os 18 meses de prisão efetiva pelo alegado crime de roubo, são manifestamente excessivas, desadequadas e desproporcionadas face à gravidade material do ato, ao contexto familiar e à ínfima lesão do bem jurídico. XXXVI. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, as finalidades das penas são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa. XXXVII. O modelo do nosso Código Penal é de prevenção, não de retribuição. XXXVIII. A medida da pena deve ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva, limitada pela medida da culpa, e concretamente estabelecida em função das exigências de prevenção especial. XXXIX. No entanto, o Tribunal a quo não ponderou devidamente as circunstâncias pessoais do recorrente, violando os critérios de determinação da pena do artigo 71.º do Código Penal. XL. O Tribunal não valorou positivamente a confissão e o arrependimento do recorrente, nem a sua condição de esquizofrenia e a adesão ao tratamento injetável mensal. XLI. Estes são fatores que depõem a favor do recorrente e deveriam ter aproximado as penas dos limites mínimos legais. XLII. A aplicação de penas privativas de liberdade, em detrimento de alternativas como a pena de prisão suspensa na sua execução (artigo 50.º do Código Penal), condicionada a deveres ou regras de conduta, ou a pena de multa (artigo 47.º do Código Penal), desconsidera os princípios da proporcionalidade e da subsidiariedade do direito penal. XLIII. Uma pena não privativa de liberdade seria mais adequada e eficaz para a reintegração do recorrente, evitando os nefastos efeitos da privação da liberdade e a sua estigmatização. XLIV. Face a todo o antedito, sempre terá de se concluir, pela total absolvição do recorrente, devendo a sentença proferida ser substituído por outro que absolva na íntegra o recorrente, pelo menos, no que ao crime de roubo diz respeito. XLV. O crime pelo qual o recorrente foi condenado é um crime grave e cuja moldura penal reflete essa mesma gravidade. XLVI. Nos termos do disposto no artigo 40.° do Código Penal, sob a epígrafe “Finalidades das penas e das medidas de segurança”, no seu no 1 dispõe que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e que, no seu n.º 2, “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. XLVII. O modelo do nosso Código Penal é, pois, de prevenção devendo a pena ser determinada pela necessidade de proteção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. XLVIII. O conceito de prevenção significa proteção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada (cfr. Figueiredo Dias, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", pág. 227 e segs.). XLIX. A medida da prevenção, que não pode em nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. L. Dentro desta medida (proteção ótima e proteção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação das circunstâncias do caso concreto fixará a medida da pena adequada, conjugando-a com as exigências de prevenção especial mas sempre sem poder ultrapassar a medida da culpa. LI. O que, salvo o devido respeito por opinião contrária, não foi feito. LII. A reintegração do agente na sociedade deve ser pensada pela imposição de uma pena determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, que se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades. LIII. O artigo 71.º do Código Penal estabelece os critérios segundo os quais o juiz deve orientar-se na persecução das finalidades da pena e na determinação da pena no caso concreto. LIV. Considerando que a medida da pena assenta na «moldura de prevenção”, “cujo limite máximo é constituído pelo ponto ideal de proteção dos bens jurídicos e o limite mínimo aquele que ainda é compatível com essa proteção, que a pena não pode, contudo, exceder a medida da culpa, e que dentro da moldura de prevenção geral são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum da pena a aplicar», as penas aplicadas mostram-se injustas, desadequadas e manifestamente desproporcionais. LV. No caso concreto, não foram convenientemente valoradas pelo Tribunal a quo as circunstâncias que determinaram as penas aplicadas, como já referido supra. Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Ex.ª certamente suprirá, sempre deverá ser dado provimento ao presente Recurso, e, em consequência: a) Deverá o Tribunal a quo aceitar as alegações de recurso apresentadas; b) E, como consequência, revogar a sentença recorrida. c) Caso assim não entenda, sempre deverá ser revogada a pena anteriormente aplicada e substituída por uma que atenda os princípios do artigo 71.º do Código Penal; d) Revogar a sentença recorrida, por mero erro na análise da prova e por ausência de preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de roubo, absolvendo o recorrente. e) Subsidiariamente, caso assim não se entenda, alterar a qualificação jurídica dos factos para um crime de menor gravidade (designadamente furto simples) e aplicar uma pena não privativa da liberdade, em conformidade com os princípios da necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade das penas, ponderando, nomeadamente, o princípio da bagatela jurídica. Assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!»
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3. Em 1ª instância o Ministério Público apresentou resposta, concluindo nos seguintes termos: (Transcrição) (…) «CONCLUINDO: 1. De harmonia com os elementos constantes dos autos, tendo-se na devida atenção tudo quanto resulta da decisão recorrida, designadamente da matéria de facto dada como provada, de manifesta clareza e inquestionável suficiência, importará desde já consignar-se, e sublinhar-se, que a douta decisão, no processo lógico do seu desenvolvimento, da sua coerência intrínseca e com as regras da experiência comum, não suscita qualquer especial reparo ou observação. 2. O arguido confessou os factos de forma livre, voluntária e consciente, mostrando-se arrependido. 3. Desculpou-se da prática dos factos com o facto se ser esquizofrénico e consumidor de estupefacientes, e que no período dos factos dos autos, muitas das vezes não fazia a medicação para a doença de que padece. 4. Assim, não pode agora, em sede de recurso pretender que os factos que confessou sejam dados como não provados. Assim, não se vê que o tribunal esteja a fazer algum salto lógico que viole o princípio da livre apreciação da prova, por si liberta de metodologias estritamente lógico-indutivas. 5. O tribunal a quo não violou o princípio do in dubio pro reo. Pelo contrário, de todo o processo resulta a observância formal e material deste princípio. 6. Não houve qualquer violação do princípio da presunção da inocência, consagrado no art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa. 7. Alega o recorrente, de forma genérica, que os factos dados como provados não integram o crime de violência doméstica, porquanto «não assumem a intensidade de crueldade, insensibilidade, desprezo e aviltamento da dignidade humana que são necessárias para a configuração do crime pelo qual foi condenado. Inexiste, assim, aquele plus de especial ofensa da dignidade humana no quadro de degradação da dignidade de um dos elementos da relação capaz de erigir a conduta sub judice à tutela que se pretende efetivar através do tipo legal de crime que vinha imputado ao recorrente». 8. No entanto, não esclarece como chega a essa conclusão, nem apresenta qualquer argumento suscetível de alterar o decidido pelo tribunal a quo. 9. Resulta da materialidade fáctica dada como provada que na madrugada do dia 13 de outubro de 2024, por volta das 04.00h, o arguido deslocou-se novamente a casa dos seus progenitores, onde conseguiu se introduzir através de uma janela que forçou e abriu. 10. Em seguida, o arguido dirigiu-se a BB “quero que me emprestes 30,00€”. 11. BB disse ao arguido que apenas tinha 10,00€, tendo lhe cedido voluntariamente tal quantia. De imediato, através de acção repentina, o arguido retirou da mão do seu progenitor um envelope que continha no seu interior com a quantia de 30,00€, contra a vontade deste. 12. Face à conduta supra descrita, facilmente se vislumbra que está aqui em causa o uso da força física por parte do arguido AA à integridade física do ofendido BB, criando intencionalmente um clima de intimidação, medo e insegurança, de forma a afectar a liberdade de decisão deste ofendido. 13. Assim, concordando com a qualificação atribuída pelo douto acórdão recorrido, entendo não assistir razão ao recorrente nesta parte. 14. No que respeita ao ilícito criminal de violência doméstica, as necessidades de prevenção geral positiva revelam-se fortemente acentuadas, atenta a frequência com que são praticados, designadamente na área geográfica desta Comarca de ..., traduzindo um problema social de grandes dimensões. 15. Relativamente ao crime de roubo as necessidades de prevenção geral positiva revelam-se fortemente acentuadas, atenta a proliferação deste tipo de ilícitos, nomeadamente por pessoas dependentes do consumo de estupefacientes – como sucedia, à data, com o arguido –, sobretudo em tempos de dificuldades financeiras, que gera muito alarme social por desencadear insegurança e intranquilidade na comunidade. 16. Na verdade, estes tipos de crime é daqueles que a comunidade mais repudia, precisamente por causa do sentimento de insegurança que para ela se transpõe. 17. Mostra-se, assim, indispensável reprimir manifestações de indisciplina agressivas, como a protagonizada pelo mencionado AA. 18. Quanto às exigências de prevenção especial positiva ou de ressocialização, assume primordial importância que o arguido AA compreenda o desvalor do seu comportamento nos acontecimentos que se apreciam nestes autos, de forma a prevenir a prática de futuros actos delinquentes. 19. O arguido, com a sua conduta, revelou indiferença para com valores cuja importância é unanimemente reconhecida a nível comunitário, assim revelando um défice ao nível da ressonância ético-jurídica. 20. O arguido AA já não apresenta retaguarda familiar, pelo que as necessidades de prevenção especial resultam, ainda mais elevadas na medida em que o arguido não se mostra devidamente integrado profissional e socialmente, além de que lhe são conhecidos antecedentes criminais (conta já com seis condenações: por ameaça simples, detenção de arma proibida, furto qualificado, injúria agravada e ofensa à integridade física agravada, ameaça agravada e violência doméstica). 21. O arguido foi ainda condenado como reincidente 22. Assim, bem andou o Tribunal a quo na fixação das penas ao arguido. Dado o exposto e o douto suprimento de Vossas Excelências - que sempre se espera -, deve ser negado provimento ao recurso e por via dele mantida a decisão judicial proferida pelo M.mº Tribunal a quo. ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA.»
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3. Neste Tribunal a Digníss.ª Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer, concluindo pela improcedência do recurso.
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4. O recorrente respondeu ao parecer, concluindo como no recurso.
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5. Efetuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
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II – Fundamentação
Delimitação do Objeto do Recurso
Como é pacífico (Cfr. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos do art. 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código – é pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites de cognição do tribunal superior.
Posto isto, atenta a conformação das conclusões formuladas pelo recorrente, as questões suscitadas no recurso prendem-se com:
Factos
- Impugnação ampla da matéria de facto (erro de julgamento);
- In dubio pro reo
Direito
- Qualificação jurídica;
- Medida da Pena;
- Suspensão da pena aplicada
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Decidindo
São os seguintes os factos considerados provados e não provados, bem como a motivação, de facto e de direito, da decisão impugnada. (Transcrição) (…) «III. - Fundamentação A) De facto 1. Factos provados Discutida a causa provaram-se os seguintes factos com relevo para a decisão: Da acusação pública 1. AA, nascido a ../../1979, é filho de BB e de CC, residindo desde sempre com os mesmos na Rua ..., ..., ... Este, em .... 2. BB, nascido em ../../1944, e CC, nascida em ../../1945, encontram-se reformados, apresentando, em razão da idade e das limitações da mesma resultante, falta de destreza e de robustez física. 3. AA foi colocado em liberdade após cumprimento da pena sofrida no processo n.º 227/18.9GEBRG no dia ../../2022, passando a residir novamente com os seus progenitores. 4. AA padece de esquizofrenia e é consumidor habitual de produtos estupefacientes. 5. Após ../../2022, frequentemente, em datas não concretamente apuradas, por várias ocasiões, no interior da habitação comum o arguido dirigiu-se ao seu progenitor e disse-lhe: “qualquer dia vais para o cemitério para junto da tua mãe”, “filho da puta”, “bêbado”. 6. Após ../../2022, frequentemente, em datas não concretamente apuradas, por várias ocasiões, no interior da habitação comum o arguido dirigiu-se à sua progenitora e disse-lhe: “vai para o caralho sua filha da puta”, “filha da puta”, “puta”. 7. Em virtude da adição ao consumo de produtos estupefacientes, AA, solicita diariamente aos seus progenitores quantias monetárias para adquirir produtos estupefacientes. 8. Quando estes recusam lhe entregar dinheiro, o arguido diz-lhes que “os mata”, “que vai incendiar a casa”, “que os vai mandar para o cemitério” e começa a destruir bens no interior da habitação comum, nomeadamente louça e mobiliário, apenas parando quando os progenitores lhe entregam quantias monetárias. 9. Em virtude de tais acções do arguido, as vítimas têm passado dificuldades financeiras, não tendo capacidade económica para adquirir bens alimentares e farmacêuticos para sua própria subsistência. 10. No dia 2 de Agosto de 2024, na hora de almoço, no interior da habitação comum, AA disse ao seu progenitor que a comida não estava bem confeccionada e arremessou o prato da comida ao solo. 11. Em seguida, BB disse a AA que iria chamar a Guarda Nacional Republicana e que “queria paz”, tendo este lhe dito: “liga que eu envio-te para o cemitério”. 12. No dia 5 de Agosto de 2024, por volta das 02.00h, o arguido chegou à habitação comum em transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados («TVDE»), tendo exigido ao seu progenitor que entregasse a quantia de 10,00€ ao motorista, tendo para o efeito arrastado móveis da habitação e gritado na direcção dos seus progenitores. 13. No dia 14 de Agosto de 2024, AA foi internado compulsivamente no Serviço de Psiquiatria do Hospital de .... 14. No dia 8 de Outubro de 2024, pelas 15.00h, o arguido deslocou-se à habitação de BB e CC, tendo dito a BB “cala-te”, “abre a porta”, “venho buscar a minha roupa”. 15. Na madrugada do dia 13 de Outubro de 2024, por volta das 04.00h, o arguido deslocou-se novamente a casa dos seus progenitores, onde conseguiu se introduzir através de uma janela que forçou e abriu. 16. Em seguida, o arguido dirigiu-se a BB e disse-lhe “quero que me emprestes 30,00€”. 17. BB disse ao arguido que apenas tinha 10,00€, tendo lhe cedido voluntariamente tal quantia. 18. De imediato, através de acção repentina, o arguido retirou da mão do seu progenitor um envelope que continha no seu interior com a quantia de 30,00€, contra a vontade deste. 19. O arguido voltou a deslocar-se e a entrar na residência dos progenitores, em duas ocasiões diferentes da tarde do dia 17 de Outubro de 2024 (entre as 15:39h e as 15:50h e as 18:40h e as 18:49h), exigindo-lhes, uma vez mais, quantias monetárias. 20. Entre as 04.22h e as 04.34h, do dia ../../2024, o arguido voltou a deslocar-se e a entrar na residência dos progenitores e retirou e levou consigo bens alimentares e bebidas alcoólicas. 21. Ao agir do modo acabado de descrever, AA previu e quis, no interior da habitação das vítimas, importunar e ofender da saúde de BB e de CC, tratando-os de modo desumano, maldoso e humilhante, o que fez, não obstante saber que tinha para com estes especiais deveres de respeito pelo facto de as vítimas serem seus pais e se encontrarem menos capazes de se defender em virtude da sua idade e das limitações da mesma resultante, falta de destreza e de robustez física. 22. O arguido agiu com intenção de se apoderar da quantia de 30,00€, propriedade do seu progenitor, o que conseguiu, bem sabendo que tal quantia monetária não lhe pertencia e que agia contra a vontade daquele, utilizando para o efeito a sua força física e destreza sobre a vítima. 23. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas. 24. No âmbito do processo n.º 227/18.9GEBRG, AA foi condenado, por acórdão transitado em julgado no dia 26-09-2019, na pena de quatro anos de prisão pela prática crime de dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigos 152.º, n.º 1 alínea d), e n.º 2 do Código Penal, por factos perpetrados contra os seus progenitores. 25. Neste processo, estavam em causa factos ocorridos entre Novembro de 2017 e Outubro de 2018. 26. O arguido iniciou o cumprimento da referida pena de prisão no dia 08 de Outubro de 2018 tendo sido colocado em liberdade no dia 03 de Outubro de 2022. 27. Os factos pelos quais se encontra acusado nos presentes autos foram cometidos em idênticas circunstâncias e são da mesma natureza daqueles em que já havia já sido condenado no âmbito do processo supramencionado. 28. O arguido é consumidor de produtos estupefacientes, não tem ocupação laboral, nem rendimentos fixos suficientes para prover ao seu sustento dependendo do património dos seus progenitores para a aquisição de produtos estupefacientes. 29. O arguido confessou os factos de forma livre, voluntária e consciente, mostrando-se arrependido. Dos antecedentes criminais 30. O arguido AA tem averbados antecedentes criminais no seu registo criminal, designadamente: - Por decisão proferida no âmbito do processo comum singular nº 91/09.9GEBRG, datada de 14.10.2010, transitada em julgado em 15.11.2010, foi o arguido condenado pela prática de um crime de ameaça, por factos ocorridos em 24.05.2009, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €5,00, num total de €300,00, pena que foi já declarada extinta. - Por decisão proferida no âmbito do processo abreviado nº 2623/11.3PBBRG, datada de 09.02.2012, transitada em julgado em 10.03.2012, foi o arguido condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, por factos ocorridos em 04.12.2011, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €5,00, num total de €750,00, pena que foi substituída por trabalho a favor da comunidade e declarada extinta; - Por decisão proferida no âmbito do processo comum singular nº 10/12.5GEBRG, datada de 24.01.2013, transitada em julgado em 21.02.2012, foi o arguido condenado pela prática de um crime de furto qualificado, por factos ocorridos em 19.01.2012, na pena de 2 anos e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, tendo a mesma sido posteriormente revogada e já declarada extinta; - Por decisão proferida no âmbito do processo comum singular nº 149/12.7GEBRG, datada de 12.04.2016, transitada em julgado em 23.05.2016, foi o arguido condenado pela prática dois crimes de injuria agravada e um crime de ofensa à integridade física qualificada, por factos ocorridos em 11.07.2012, na pena única de 6 meses de prisão, suspensa pelo prazo de 1 ano, já declarada extinta, e 90 dias de multa, à taxa diária de €5,00, num total de €450,00, tendo a pena de multa sido convertida em prisão subsidiária e, também, já declarada extinta; - Por decisão proferida no âmbito do processo comum singular nº 305/13.0GEBRG, datada de 22.10.2014, transitada em julgado em 28.11.2014, foi o arguido condenado pela prática de dois crimes de ameaça agravada, por factos ocorridos em ...13, na pena de 1 ano e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, pena que foi já declarada extinta. - Por acórdão proferido no âmbito do processo comum colectivo nº 227/18.9GEBRG, datado de 11.04.2019, transitado em julgado em 26-09-2019, foi o arguido condenado pela prática de dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigos 152.º, n.º 1 alínea d), e n.º 2 do Código Penal, por factos perpetrados contra os seus progenitores, na pena única de 4 anos de prisão. Tal pena já declarada extinta. Dos factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido 31. Consta no relatório social elaborado pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), quanto à inserção familiar e socioprofissional do arguido AA, com o objetivo de auxiliar no conhecimento da personalidade do arguido e na correta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, além do mais, o seguinte: “1 - Condições sociais e pessoais À data dos factos, AA encontrava-se em fase ativa de consumos de estupefacientes, não exercia atividade laboral, não frequentava o CRI, não comparecia às consultas de psiquiatria agendadas, nem admitia tomar a medicação prescrita, e residia em casa dos pais, octogenários, reformados, que lhe asseguravam as refeições diárias. Para além do apoio habitacional e alimentar, AA solicitava apoio financeiro diário pelo facto de habitualmente gastar a sua pensão por invalidez (324,00€) num curto espaço de tempo. AA saiu do Estabelecimento prisional ... no dia 03.10.2022, e regressou a casa dos seus pais. Manteve-se abstinente durante algum tempo, apoiava a mãe nas limpezas da casa e dos terrenos circundantes à habitação, e permanecia a maior parte do tempo na habitação, sem motivação para procura ativa de trabalho/ocupação que estruturasse os seus dias. À data dos factos, o quotidiano do arguido era organizado exclusivamente junto de pares (incluindo a namorada) em locais conotados com os consumos de estupefacientes e atividades a esta problemática associada. Voltou a solicitar frequentemente quantias em dinheiro ao seu progenitor. Os pais, idosos e ambos com uma saúde precária (a mãe apresenta sinais de demência), realçam a manutenção/intensificação de comportamentos violentos do arguido no seio familiar, consubstanciados em insultos, ameaças e desrespeito aos pais quando não lhe davam dinheiro, como motivo da atual indisponibilidade da família em continuar a constituir-se como retaguarda de apoio ao arguido. AA sofreu uma overdose e foi internado no Serviço de Psiquiatria do Hospital de .... Após estabilização foi-lhe aplicada a medida de coação de afastamento dos progenitores com recurso a vigilância eletrónica. Foi acolhido na Lar de Idosos ... temporariamente, de onde foi expulso pelo facto da namorada ter-se juntado a ele sem autorização. Foi encaminhado para um apartamento partilhado situado na Rua ..., onde arrendou um quarto a expensas próprias, e de onde voltou a ser expulso pelo mesmo motivo. Com a aplicação da medida de coação de prisão preventiva à ordem dos presentes autos, AA iniciou um período de abstinência aos consumos, situação que que mantém. É acompanhado pelos serviços clínicos no estabelecimento prisional, serviço responsável pela administração da medicação prescrita (injetável mensal prescrito pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital de ...). A presença de AA no local de residência suscita preocupação por parte de vizinhos relativamente à sua agressividade para com os pais. O arguido está conotado com a inatividade laboral e a sua condição jurídico-penal, bem como a sua problemática aditiva e de saúde são conhecidas. Não nos foram reportados comportamentos violentos junto de elementos da comunidade vicinal, a quem também pedia dinheiro. Do seu processo de socialização decorreu em contexto sociofamiliar economicamente humilde, filho de um casal cujo pai exercia atividade por conta própria como carpinteiro e mãe doméstica, sendo o mais novo de um total de três descendentes. A dinâmica familiar foi-nos referenciada como sendo funcional, coesa e afetivamente estável. O agregado familiar residia em habitação própria, com condições de habitabilidade, inserida em meio rural, com relações de vizinhança de proximidade e sem problemáticas sociais relevantes. O seu percurso de escolarização iniciou-se em idade normal, tendo decorrido de forma adequada e sem retenções. Após a conclusão do 12º ano de escolaridade, abandonou definitivamente o seu percurso escolar por priorizar a sua integração profissional, o que aconteceu por volta dos 18 anos de idade, para trabalhar na carpintaria e restauros de móveis do progenitor, local onde desempenhou funções de apoio ao pai até aos 20 anos de idade, num registo pouco empenhado e desmotivado. Durante este período intensificou e diversificou os consumos de estupefacientes iniciados na adolescência, o que o foi incapacitando gradualmente de exercer de forma funcional as tarefas atribuídas, bem como de cumprir os horários de trabalho. Em 2007, enquanto consumidor de estupefacientes foi utente do CRI – Braga, acompanhamento clínico que abandonou. A adoção de comportamentos agressivos e imprevisíveis por parte do arguido no seio familiar determinou que passasse a residir num anexo à habitação. A exigência diária de dinheiro (pois então a sua pensão por invalidez era esgotada rapidamente) esteva na base de confrontos frequentes com o progenitor. Inativo durante longos períodos de tempo, o seu quotidiano era centrado nas rotinas e estratégias que lhe garantissem a satisfação da sua adição, sem qualquer tipo de atividade pró-ativa ou estruturada, frequentando locais conotados com a toxicodependência e convivendo junto de pares com problemática idêntica à sua, que o conduziram aos primeiros contactos com o sistema de administração de justiça penal. Um estilo de vida em que a manutenção da inatividade laboral, a exigência de dinheiro associada à intensificação dos consumos e comportamentos de instabilidade pessoal inerentes à dependência, refletiram-se no relacionamento familiar no sentido em que a dinâmica familiar se tornou tensa e violenta. A frequente instabilidade/agressividade revelada pelo arguido determinou vários pedidos de ajuda por parte dos pais aos órgãos de polícia criminal por recearem pela sua integridade física. 2 - Impacto da situação jurídico-penal A partir de 2009 AA sofreu várias condenações. O arguido foi condenado em duas penas de multa pela prática de um crime de ameaça agravada e ainda pelo crime de detenção de arma proibida, esta última substituída por trabalho a favor da comunidade. No âmbito do proc. nº 10/12.5GEBRG do ... Juízo Criminal de ... foi ainda condenado pela prática de um crime de furto qualificado numa pena de prisão de dois anos e quatro meses, suspensa na sua execução com regime de prova, pena que lhe foi revogada e determinou o cumprimento de pena de prisão efetiva. O incumprimento do Plano Reinserção Social gizado, nomeadamente a falta de comparência e de assiduidade às entrevistas nos serviços de reinserção social, a não adesão ao apoio e orientação proporcionado pelo GIS – Gabinete Integrado de Serviços de Saúde Mental de Braga e o incumprimento reiterado da medicação e de comparência às consultas de psiquiatria determinaram a revogação da pena suspensa. Foi ainda condenado no proc. nº 149/12.7GEBRG por sentença de 12.06.2014 transitada em julgado a 14.07.2014, pela prática dos crimes de ofensa à integridade física qualificada e injúria agravada na pena única de seis meses de prisão, suspensa pelo prazo de 1 ano e 90 dias de multa; o arguido foi condenado no proc. 305/13.0GEBRG com trânsito em julgado a 28.11.2014 pela prática de um crime de ameaça agravada, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo. No âmbito do processo nº 227/18.9GEBRG, AA foi condenado, por acórdão transitado em julgado no dia 26.09.2019, na pena de quatro anos de prisão pela prática de dois crimes de violência doméstica, por factos perpetrados contra os seus progenitores. Com antecedentes criminais, AA assume um discurso de desresponsabilização face à situação que espoletou os comportamentos. Perante o consumo de estupefacientes, o acompanhamento de pares e frequência de locais conotados com a toxicodependência, bem como o incumprimento reiterado da comparência no departamento de psiquiatria são por si vistos com aparente conformismo. O arguido admite a existência de problemática psiquiátrica e aditiva, e no atual contexto, considera-se equilibrado e com capacidade de autocontrolo, reconhecendo necessidade de manter a intervenção especializada nestas áreas. A presente situação jurídico-penal originou repercussões ao nível da indisponibilidade familiar para se continuar a constituir como base de apoio quando em meio livre, o que o próprio aceita tendo em conta o historial de condutas violentas para com os pais ao longo dos anos, decorrentes do crescendo de instabilidade pessoal motivada pela sua problemática aditiva. O arguido reconhece o ambiente tenso no seio familiar, mas exprime um discurso de vitimização com a autojustificação da sua problemática aditiva, que não controla, e patologia de foro psiquiátrico. 3 - Conclusão Estamos perante um arguido com antecedentes criminais na mesma tipologia de crimes subjacentes ao presente processo, com cumprimento de penas de prisão efetiva, detentor de uma trajetória profissional incipiente e sem hábitos de trabalho, envolvimento no consumo de estupefacientes e com doença do foro psiquiátrico, com períodos de forte desorganização pessoal e ainda desvinculação familiar, elementos que se constituem como fatores fragilizantes do seu contexto de vida. O arguido dispõe de frágeis recursos próprios (circunscrita à sua pensão por invalidez), tem vivido na dependência do apoio dos progenitores, e socialmente dispõe de uma imagem negativa porque associada à agressividade no seio familiar, ao acompanhamento de pares conotados com atividades desviantes, sem um quotidiano estruturado e hábitos de trabalho. Trata-se de um indivíduo que denota um frágil poder reflexivo face ao seu percurso delituoso, que minimiza, e desculpabiliza. Assim, na eventualidade de condenação, considerando os fatores enunciados e o percurso criminal manifestado em várias condenações, sem que tenha motivado qualquer alteração no seu padrão de vida, consideramos que o arguido revela especiais necessidades ao nível da interiorização do desvalor dos comportamentos, e de se comprometer com um processo de tratamento à toxicodependência e no âmbito da saúde mental.”
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2. Factos não provados Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão (note-se que o Tribunal não se pronuncia quanto a juízos conclusivos e/ou de direito e/ou repetidos);
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3. Motivação da convicção do Tribunal Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador. A convicção do Tribunal fundou-se em todos os meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do CPP). Note-se que a prova produzida deve ser analisada atenta a segurança oferecida por cada elemento probatório (considerado individualmente, nomeadamente, quanto à sua credibilidade, isenção e fundamentação da razão de ciência), e bem assim ponderada de acordo com o seu confronto com os demais elementos de prova constantes nos autos (v.g., prova documental, pericial e testemunhal), por forma a que o resultado final não produza uma decisão injusta, insuficientemente segura em termos de corroboração factual, ou incoerente com a realidade e o normal acontecer dos factos. Nesta apreciação não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador. Assim sendo, compreende-se que uma testemunha contribua ativamente para alicerçar o Tribunal na formação da convicção da realidade de um facto pela mesma relatado, atenta a sua isenção e fundamentação da razão de ciência quanto a esse mesmo facto, mas também pode acontecer que essa mesma testemunha transmita ao Tribunal outros factos que, quando confrontados com os demais elementos de prova produzida (e legalmente admissíveis), não sejam bastantes para fundamentar a resposta em determinado sentido dada pelo Tribunal à matéria factual em análise nos autos. Veja-se que a apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, não se funda num mero exercício arbitrário por parte do julgador, pelo contrário, funda-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros. Se por um lado, o julgador é livre, ao apreciar as provas, por outro, tal apreciação tem que ser “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” . Para Cavaleiro Ferreira “a livre convicção é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade. É uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores”. Trata-se da liberdade de decidir segundo o bom-senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou, nas palavras de Castanheira Neves da liberdade para a objectividade A este propósito refere Figueiredo Dias que “(…) [u]ma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” – de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo”. Ao nível jurisprudencial, veja-se o Acórdão do STJ , de 09 de Fevereiro de 2012, onde se pode ler no seu sumário: “IX – A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade às formalidades legais e às garantias constitucionais. X – As regras da experiência, ou regras de vida, como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtêm mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária. XI – O princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstracta, concede um conhecimento que não é pleno mas sim provável. Só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno. Só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária – quando é este tipo de prova que está em causa – pode alicerçar a convicção do julgador. XII – Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova (sublinhado nosso). Aqui chegados, cumpre analisar os elementos probatórios disponíveis nos autos e produzidos em sede de audiência de julgamento.
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No que toca à prova documental, não foi feita prova bastante que afaste a genuinidade dos documentos juntos aos autos, pelo que relativamente aos documentos não autênticos (cfr. artigo 169.º do Código de Processo Penal, o qual refere que “consideram-se provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa”), o seu teor pode ser valorado livremente pelo Tribunal, conjugando os mesmos com a demais prova produzida e as regras de experiência. Assim sendo, o Tribunal teve em consideração os documentos juntos aos autos, designadamente: - Certidões de nascimento de fls. 9 a 10. - Relatório de avaliação clínica de fls. 43 a 44. - Cópia do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 227/18.9GEBRG de fls. 87 a 107 e 114v a 139. - Aditamento ao auto de notícia de fls. 226 a 227 e de fls. 298 a 299. - Relatório Social elaborado pela DGRSP de refª ...94; - Certificado de registo criminal actualizado do arguido de refª ...56; Teve-se em consideração o teor da jurisprudência plasmada no Ac. do STJ de 31/05/2006, proc. n.º 06P1412, in www.dgsi.pt, de acordo com a qual “Os documentos juntos aos autos não são de leitura obrigatória na audiência, considerando-se nesta produzidos e examinados, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida.” e no Ac. do TRC de 06/01/2010, proc. n.º 20/05.9TÀGD.C1, in www.dgsi.pt, segundo a qual “É permitida, mas não obrigatória, a leitura em audiência de julgamento dos documentos existentes no processo, independentemente dessa leitura, podendo o meio de prova em causa ser objecto de livre apreciação pelo tribunal, sem que resulte ofendida a proibição legal prevista no art. 355.º do Código de Processo Penal”.
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No que toca à prova testemunhal, cumpre salientar que tendo a mesma sido gravada, de modo algum se deve aqui reproduzir o teor da mesma, por tal não corresponder à letra e ao espírito da lei e ser inexequível na prática, mas sim frisar os pontos essenciais (nomeadamente no que respeita à fundamentação da razão de ciência, isenção, coerência, segurança e emotividade que pautaram em concreto cada depoimento) que determinaram que a convicção do julgador (relativamente ao qual a prova se produziu presencialmente) se formasse no sentido em que consta do elenco dos factos provados. Concretizando, quanto ao arguido AA, o mesmo quis prestar declarações quanto aos factos que lhe foram imputados pela acusação pública, direito que lhe assiste, tendo confessado tais factos de forma livre, voluntária e consciente, mostrando-se arrependido. Desculpou-se da prática dos factos com o facto se ser esquizofrénico e consumidor de estupefacientes, e que no período dos factos dos autos, muitas das vezes não fazia a medicação para a doença de que padece. Teve-se ainda atenção as declarações para memória futura prestadas pelas vítimas BB e de CC (cfr. Auto de refª ...80), pais do arguido e ofendidos nos presentes autos, prestaram um depoimento emotivo, denotando algum nervosismo, mas não deixaram que tal facto lhes retirasse credibilidade. Com efeito, relataram os factos de forma espontânea e vivencial, denotando nas suas palavras e silêncios, laivos de desgosto e mágoa, mas não de retorsão. O esquisso por si traçado mostrou-se credível quanto à forma e ao modo como descreveram os factos por ambos ou individualmente vividos (nas situações que presenciaram), precisando as circunstâncias de tempo e lugar - tanto quanto possível a quem (con)vive com tal moléstia. De forma clara e objectiva confirmou os epítetos constantes dos factos provados a eles dirigidos, bem como o facto de, frequentemente, o arguido os ameaçar de morte, que ia partir tudo em casa, pegar fogo à mesma e dar, muitas vezes, pontapés nas portas, caso eles não lhe entregassem dinheiro. De forma clara e sincera, os ofendidos descreveram os diversos comportamentos do arguido descritos nos factos dados como provados e confessados pelo arguido.
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No que concerne ao elemento subjetivo, a comprovação do mesmo em qualquer ilícito faz-se, ou pela confissão do agente, ou pela existência de elementos fácticos objetivos dos quais aquele elemento se extrai por aplicação das regras da experiência e do normal acontecer dos factos. Tal como nos ensina Germano Marques da Silva , na valoração da prova intervêm deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo certo que se as inferências não dependem substancialmente da imediação, terão de basear-se na correcção do raciocínio, o qual se alicerçará nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência. A este propósito refere ainda o Acórdão da Relação de Coimbra , de 23 de Maio de 2012: “(…) tratando-se de factos de ordem subjectiva (do mundo dos pensamentos e das representações mentais do agente: os seus conhecimentos e intenções) são insusceptíveis de prova directa, havendo que retirar a convicção da sua verificação da análise dos factos objectivos praticados à luz das regras da experiência comum”. No caso concreto em análise a comprovação do elemento subjetivo resultou, sobretudo, da conjugação da confissão do arguido e das declarações para memória futura prestadas pelas vítimas BB e de CC e dos demais elementos documentais constantes nos autos, e das regras de experiência e do normal acontecer dos factos, uma vez que se afigura sobejamente conhecido que o arguido ao proceder do modo com está exarado nos factos provados implica o preenchimento dos crimes em questão.
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A respeito da existência de antecedentes criminais, foi determinante o teor do certificado do registo criminal juntos aos autos. A comprovação da situação pessoal, familiar e profissional do arguido, bem como a situação económico-financeira e dos seus encargos pessoais, decorreu do relatório social junto aos autos (o qual mostrou-se cabalmente fundamentado, com indicação expressa das respetivas fontes, coerentes e imparciais, e cujos conteúdos não foram postos em causa pelo arguido).
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B) De Direito
1. Enquadramento jurídico-criminal O arguido AA encontra-se acusado, em autoria material (artigo 26.º, do Código Penal), em concurso efectivo (artigo 77.º, do Código Penal) e na forma consumada, como reincidente (artigo 78.º, do Código Penal), na prática de: - Dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 al. a), n.º 4 e n.º 5, do Código Penal. - Um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, do Código Penal. O arguido encontra-se acusado, da prática como autor material, com dolo direto, na forma consumada e em concurso efetivo, nos termos do disposto nos artigos 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1, e 77.º, todos do Código Penal: 1.1. Do crime de violência doméstica Estabelece o artigo 152.º, do Código Penal (crime de violência doméstica), que “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.” Acompanhando a progressiva consciencialização ético-social da gravidade individual e social dos comportamentos violentos perpetrados no seio da família, e abandonando a conceção tradicionalmente prevalecente do lar conjugal como um espaço tendencialmente auto-regulador da atuação dos seus membros e subtraído, por natureza, à intervenção do direito penal, o legislador assumiu o inequívoco propósito de prevenir e reprimir as mais relevantes formas da chamada violência doméstica através da especial tutela que o direito penal tem por função dispensar. Com a criminalização da violência doméstica, expressamente se procurou acabar com comportamentos inadmissíveis no âmbito familiar, onde outrora o direito penal tinha algum pejo em intervir. Na génese da incriminação da conduta supra descrita, está, assim, não tanto uma preocupação de preservação da comunidade, familiar ou conjugal, mas sim, e decisivamente, de tutela da pessoa humana, na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade. Daí que, diretamente abrangida pelo âmbito de proteção dispensada se encontre, mais do que a integridade física propriamente dita, a saúde de cada pessoa em si mesma e enquanto tal, abrangendo o bem-estar físico, psíquico e mental do indivíduo, enquanto elemento essencial e indispensável à “mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade” (Figueiredo Dias, “Direito Penal, questões fundamentais e doutrina geral do crime”, 1996, pág. 63). Esta mais-valia axiológica inerente ao bem jurídico tutelado explica, de resto, que a respetiva relevância penal encontre, desde logo, referência expressa na ordem constitucional dos direitos e deveres fundamentais. Com efeito, no artigo 25.º da Constituição da República Portuguesa, a todos os cidadãos é reconhecido o direito à respetiva integridade pessoal, tanto num plano físico como numa dimensão moral. Trata-se da tutela constitucional de um direito organicamente ligado à defesa da pessoa individualmente considerada, cuja proclamação faz resultar para cada um de nós a legítima expectativa de, ao conformar-se e dispor de si mesmo nas múltiplas formas de interação social, não vir a ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa anotada”, pág. 177). Este direito não é limitado, nem limitável, pelos vínculos resultantes das relações familiares, maxime das que advêm para os cônjuges do casamento (nesse sentido cfr. Ac. do TRP de 3/11/1999, CJ, tomo V, pág. 223). E é a evidência do que ficou dito, por demais sublinhada no contexto das sociedades modernas, que converte em objeto de consensual reprovação quaisquer atos, omissões ou condutas que sirvam para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, direta ou indiretamente, por meio de enganos, ameaças, coação ou qualquer outro meio, a qualquer mulher, tendo por objetivo e como efeito intimidá-la, puni-la, humilhá-la ou simplesmente mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental ou moral ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais (conceito de violência contra as mulheres, segundo a definição proporcionada por um grupo de peitos do Conselho da Europa, transcrita no preâmbulo do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 557, e publicado no DR, I-Série-B, de 15 de Junho de 1999). Compreendido no âmbito da tutela penal dispensada pela norma incriminadora está, pois, imediatamente a integridade física, conceito este que, pela forma como amplamente foi consagrado nas diversas disposições da lei penal, de resto já de si comporta, não apenas o bem-estar físico propriamente dito, como também o equilíbrio psicológico e social (cfr. Fernando Oliveira Sá, «As ofensas corporais no Código Penal: uma perspectiva médico-legal», in RPCC, n.º 3, 1991, pág. 412). Deste modo, e seguindo de perto o Prof. Pinto da Costa, o sentido da tutela proporcionada pelo ordenamento jurídico-penal deverá ser encarado numa perspectiva médico-legal, admitindo-se, consequentemente, como lesão corporal tipicamente relevante “toda a alteração anatómica ou patológica”, toda a “perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo ou das suas funções psíquicas” («Ofensas Corporais - Introdução ao seu Estudo Médico-Legal», in Colóquio de 01/03/83, Aula Magna da Faculdade de Medicina do Porto). De referir que as constantes humilhações, vexames, insultos, infligidos por um cônjuge ao outro, constituem por vezes formas de violência psíquica mais graves do que muitas ofensas corporais simples. Nesta esteira o Acórdão da Relação do Porto de 26.05.2010, relatado pelo Sr. Desembargador Joaquim Gomes, acessível em www.dgsi.pt,: “podemos assentar que no actual crime de violência doméstica da previsão do artigo 152º do CP, a acção típica aí enquadrada tanto pode revestir maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações de liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima.” Finalmente, e no que toca ao elemento subjetivo do tipo legal de crime, importa salientar que se trata de um delito doloso, uma vez que se exige que o agente tenha atuado com dolo enquanto elemento subjetivo geral da ilicitude (conhecimento da factualidade típica e da vontade de realização do tipo legal de crime) , como é regra geral em Direito Penal (cfr. artigo 13.º do Código Penal), que pode aqui assumir qualquer das suas modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal (dolo direto, necessário ou eventual). Transpondo par ao caso dos autos temos como provado que o arguido residia, à data dos factos com os seus progenitores, BB e de CC, ambos reformados, apresentando, em razão da idade e das limitações da mesma resultante, falta de destreza e robustez física. Mais resulta dos factos provados que: - AA foi colocado em liberdade após cumprimento da pena sofrida no processo n.º 227/18.9GEBRG no dia ../../2022, passando a residir novamente com os seus progenitores. - AA padece de esquizofrenia e é consumidor habitual de produtos estupefacientes. - Após ../../2022, frequentemente, em datas não concretamente apuradas, por várias ocasiões, no interior da habitação comum o arguido dirigiu-se ao seu progenitor e disse-lhe: “qualquer dia vais para o cemitério para junto da tua mãe”, “filho da puta”, “bêbado”. - Após ../../2022, frequentemente, em datas não concretamente apuradas, por várias ocasiões, no interior da habitação comum o arguido dirigiu-se à sua progenitora e disse-lhe: “vai para o caralho sua filha da puta”, “filha da puta”, “puta”. - Em virtude da adição ao consumo de produtos estupefacientes, AA, solicita diariamente aos seus progenitores quantias monetárias para adquirir produtos estupefacientes. - Quando estes recusam lhe entregar dinheiro, o arguido diz-lhes que “os mata”, “que vai incendiar a casa”, “que os vai mandar para o cemitério” e começa a destruir bens no interior da habitação comum, nomeadamente louça e mobiliário, apenas parando quando os progenitores lhe entregam quantias monetárias. - Em virtude de tais acções do arguido, as vítimas têm passado dificuldades financeiras, não tendo capacidade económica para adquirir bens alimentares e farmacêuticos para sua própria subsistência. - No dia 2 de Agosto de 2024, na hora de almoço, no interior da habitação comum, AA disse ao seu progenitor que a comida não estava bem confeccionada e arremessou o prato da comida ao solo. - Em seguida, BB disse a AA que iria chamar a Guarda Nacional Republicana e que “queria paz”, tendo este lhe dito: “liga que eu envio-te para o cemitério”. - No dia 5 de Agosto de 2024, por volta das 02.00h, o arguido chegou à habitação comum em transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados («TVDE»), tendo exigido ao seu progenitor que entregasse a quantia de 10,00€ ao motorista, tendo para o efeito arrastado móveis da habitação e gritado na direcção dos seus progenitores. - No dia 14 de Agosto de 2024, AA foi internado compulsivamente no Serviço de Psiquiatria do Hospital de .... - No dia 8 de Outubro de 2024, pelas 15.00h, o arguido deslocou-se à habitação de BB e CC, tendo dito a BB “cala-te”, “abre a porta”, “venho buscar a minha roupa”. - O arguido voltou a deslocar-se e a entrar na residência dos progenitores, em duas ocasiões diferentes da tarde do dia 17 de Outubro de 2024 (entre as 15:39h e as 15:50h e as 18:40h e as 18:49h), exigindo-lhes, uma vez mais, quantias monetárias. - Entre as 04.22h e as 04.34h, do dia ../../2024, o arguido voltou a deslocar-se e a entrar na residência dos progenitores e retirou e levou consigo bens alimentares e bebidas alcoólicas. - Ao agir do modo acabado de descrever, AA previu e quis, no interior da habitação das vítimas, importunar e ofender da saúde de BB e de CC, tratando-os de modo desumano, maldoso e humilhante, o que fez, não obstante saber que tinha para com estes especiais deveres de respeito pelo facto de as vítimas serem seus pais e se encontrarem menos capazes de se defender em virtude da sua idade e das limitações da mesma resultante, falta de destreza e de robustez física. - Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas. Ora face à gravidade das condutas levadas a cabo pelo arguido, a reiteração das mesmas (que, não sendo necessária, existe no caso concreto), a existência de coabitação entre arguido e ofendidos dos autos e o facto de os ofendidos serem pessoas débeis e particularmente indefesas em função da idade e saúde da ofendida, dúvidas não restam que se encontram plenamente preenchidos os elementos objectivos do tipo legal de crime pelo qual o arguido vinha acusado. Mais, sabemos que todos estes factos foram praticados pelo arguido com o propósito concretizado de deixar BB e CC num clima de constrangimento e terror permanentes, impedindo-os de reger livremente as suas vidas, tendo como consequência directa e necessária das suas condutas, dado o arguido causa a que os seus progenitores se sentissem num permanente estado de terror, receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar, nomeadamente em relação aos mesmos. Na verdade, resulta provado que BB e CC viviam humilhados pelos nomes com que o arguido os apodava e com as condutas que tinha em relação aos mesmos, agindo o arguido com o propósito concretizado de amedrontar, controlar e manter num permanente estado de terror e constrangimento aqueles, seus progenitores e com os quais coabitava, bem como de os ofender na honra, indiferente à relação que com estes mantém e aos deveres que dessa relação para si nasceram quanto aos mesmos, nomeadamente de respeito, relação e deveres de que estava bem ciente. Temos, igualmente, como certo que, ao praticar os factos descritos o arguido agiu com o intuito de obter para si vantagem patrimonial que sabia ser indevida e causar prejuízo a BB e CC, o que conseguiu por diversas vezes e não logrou concretizar por outras, por razões alheias à sua vontade, criando para o efeito a ideia que atentaria contra a integridade física, vida e bens daqueles, caso os mesmos não acedesse à sua vontade. Não desconhecia o arguido a relação de parentesco que o une a BB e CC, seus pais, bem como que estes em razão da idade e das limitações da mesma resultante, não possuem destreza e robustez física que lhes permita obstar à sua actuação e, não obstante, não se absteve de agir do modo. Mais, o arguido introduziu-se no logradouro e na residência de BB e CC, após a aplicação da medida de coacção de afastamentos dos ofendidos, sem a permissão destes e contra a vontade dos mesmos, agindo com o intuito concretizado de se colocar no referido interior, sabendo agir contra a vontade dos seus progenitores, agindo, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, sabendo proibidas as suas condutas. Deste modo entendemos que o arguido agiu com dolo directo. Ora, mais resulta provado que o arguido se encontrava capaz de avaliar a ilicitude dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação. Pelo exposto, dúvidas não restam que se encontram plenamente preenchidos os elementos subjectivos e objectivos do tipo legal de crime em apreço, pelo que, na ausência de causas de exclusão da ilicitude ou culpa, forçoso será concluir pela condenação do arguido. Mais, tendo os factos sido praticados na residência comum de arguido e ofendidos tem plena aplicabilidade o disposto no artigo 152º, nº 2 do Código Penal.
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1.2 Do crime de Roubo Nos termos do disposto no art. 210.º, n.º 1, do Código Penal, “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo eminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos. Acresce o nº2 do citado artigo que “a pena é a de prisão de 3 a 15 anos se: a) Qualquer dos agentes produzir perigo para a vida da vítima ou lhe infligir, pelo menos por negligência, ofensa à integridade física grave; ou b) Se verificarem, singular ou cumulativamente, quaisquer requisitos referidos nos n.os 1 e 2 do artigo 204.º, sendo correspondentemente aplicável o disposto no n.º 4 do mesmo artigo.” O crime de roubo é um crime complexo, onde está em causa uma pluralidade de bens jurídicos, cuja tutela do direito de propriedade é o elemento congregador, mas que está eminentemente em causa a protecção da liberdade, da integridade física, como até a própria vida. Como se salienta no Acórdão da Relação de Évora , de 10 de Abril de 2008, “[o] bem jurídico tutelado pelo crime de roubo assume uma dupla vertente: por um lado, os bens jurídicos patrimoniais (direito de propriedade e de detenção de coisas móveis); por outro, os bens jurídicos pessoais (a liberdade individual de decisão e acção e a integridade física ou, ainda, a vida), sendo certo que a ofensa aos bens pessoais surge como meio de lesão dos bens patrimoniais” . Neste crime está predominantemente em causa o uso da violência, a qual deve incidir sobre uma pessoa, que tanto pode ser o sujeito passivo do crime como qualquer outra pessoa, e ser exteriorizada com uma certa intensidade, por forma a ser eficaz em relação a esse sujeito passivo, e consistindo no meio executivo para se obter a subtracção do objecto que se pretende apropriar . Deste modo, os elementos típicos objectivos do crime de roubo consistem, por um lado, na subtracção, ou no constrangimento de outrem a que lhe seja entregue, de coisa móvel alheia, e por outro, que tal suceda por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo eminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir. A “subtracção” não é definida pela lei, ficando para a doutrina e jurisprudência o seu preenchimento. A doutrina dominante caracteriza a subtracção como a violação da posse exercida pelo lesado e a integração da coisa na esfera patrimonial do agente ou de terceira pessoa. Neste sentido, para Beleza dos Santos, a subtracção consiste na “violação do poder de facto que tem o detentor de guardar o objecto do crime ou de dispor dele, e a substituição desse poder pelo do agente”. Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque , [a] subtracção implica a aquisição de um poder de facto de disposição sobre a coisa alheia, com a concomitante cessação ou ablação (ablatio) desse poder de facto pelo seu legítimo possuidor ou detentor”. A subtracção pode assim ser definida como a “passagem da coisa móvel da esfera de domínio do detentor para nova esfera de domínio, contra a vontade daquele e constranger significa coagir – obrigar, pressionar, afectando, assim, a liberdade do coagido” . Por coisa móvel alheia deve entender-se toda a substância corpórea, material, susceptível de apreensão, pertencente a alguém e que possua um valor qualquer, mas juridicamente relevante. Além da subtracção, pode ocorrer, em alternativa, o constrangimento a que outrem faça a entrega da coisa móvel alheia. Neste caso, a “transferência de posse” é efectuada pela própria vítima, através do constrangimento feito pelo agressor. Ora, é precisamente com a integração da conduta do agente em algum dos seguintes elementos objectivos: violência contra uma pessoa, ou a ameaça com um perigo para a vida, ou para a integridade física, bem como ainda, colocando essa pessoa na impossibilidade de resistir, que nos diz que estamos perante o crime de roubo e não perante o crime de furto. No crime de roubo, a violência precede ou acompanha a subtracção da coisa. A violência é o emprego da força física e/ou psíquica dirigida contra pessoas (e não contra coisas), adequada a vencer um dado obstáculo – violência directa. Poderá, no entanto, ser dirigida contra coisas se, por esse modo, atingir as pessoas, como constitui exemplo o roubo por esticão – violência indirecta. A violência típica do crime de roubo é a violência específica do próprio acto apropriativo, sob a forma de emprego da força física, maior ou menor. Não se impõe que ela ultrapasse o “mero acto necessário e tendente ao apoderar do bem”. Assim, a violência não tem que revestir especial intensidade, bastando que seja adequada a pôr o ofendido num estado de coacção, sem possibilidade de resistir e, por essa via, concretizar o acto apropriativo . Como ensina Conceição Ferreira da Cunha , mesmo as agressões à integridade física de pequena monta devem considerar-se abrangidas por este conceito (por exemplo, tolher os movimentos da vítima, amordaçá-la, certos casos de esticão em que não se provocam lesões). No que toca à ameaça, pode dizer-se que esta constrange através da criação no sujeito passivo de medo, inquietação, insegurança, de forma a afectar a sua liberdade de decisão e acção, apenas relevando no crime de roubo a ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física. Por sua vez, impossibilitar a vítima de resistir é colocá-la, por meios físicos ou psíquicos, à mercê dos intentos do agente pela incapacidade de se lhe opor, em virtude de um estado de sujeição. Esta última forma de violência inclui a hipnose, a ingestão de álcool, de medicamentos, de drogas, o uso de gás lacrimogéneo ou a privação da visão; não inclui, porém, o ardil, nem a surpresa . O crime de roubo é, no entanto, um crime de dano e de resultado. Assim, e para o tipo legal se preencher é necessário que tenha havido a efectiva subtracção de coisa móvel alheia, ou que esta tenha sido entregue ao agente. Mas, é ainda necessário que, com vista a tal objectivo, tenha sido empregue violência, ameaça, ou se tenha colocado alguém na impossibilidade de resistir; e mais é necessário que se possa afirmar um nexo de imputação e causalidade entre o conseguir a coisa móvel alheia e os meios utilizados e, assim, que esses meios tenham provocado um efectivo constrangimento à entrega do bem ou um efectivo constrangimento à tolerância da sua subtracção . O elemento subjectivo deste tipo de crime fica preenchido, além do dolo genérico, pelo dolo específico. Para actuar com dolo genérico (art. 13.º e 14.º, do Código Penal), o agente precisa de prever a realização de todas as circunstâncias da acção que correspondem a um tipo de crime, e de actuar com intenção de realizar essas circunstâncias. Por seu turno, dolo específico consiste na intenção do agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada, a haver para si ou para outrem, integrando-a na sua esfera patrimonial, isto é, traduz-se precisamente na ilegítima intenção de apropriação. Faria Costa define esta específica intenção de apropriação como «a vontade intencional do agente se comportar, relativamente, a coisa móvel, que sabe não ser sua, como seu proprietário, querendo, assim, integrá-la na sua esfera patrimonial ou na de outrem (animus sibi rem habendi). Esta intenção constitui um elemento subjectivo especial deste tipo de crime que acresce ao dolo entendido como elemento subjectivo geral e, como tal, não tem correspondência com o tipo objectivo de ilícito. Por fim, o crime de roubo caracteriza-se ainda por ser um crime de resultado cortado dado que se exige que essa específica intenção se verifique, embora não tenha que concretizar-se numa efectiva apropriação. Resulta da materialidade fáctica dada como provada que na madrugada do dia 13 de Outubro de 2024, por volta das 04.00h, o arguido deslocou-se novamente a casa dos seus progenitores, onde conseguiu se introduzir através de uma janela que forçou e abriu. Em seguida, o arguido dirigiu-se a BB “quero que me emprestes 30,00€”. BB disse ao arguido que apenas tinha 10,00€, tendo lhe cedido voluntariamente tal quantia. De imediato, através de acção repentina, o arguido retirou da mão do seu progenitor um envelope que continha no seu interior com a quantia de 30,00€, contra a vontade deste. O arguido agiu com intenção de se apoderar da quantia de 30,00€, propriedade do seu progenitor, o que conseguiu, bem sabendo que tal quantia monetária não lhe pertencia e que agia contra a vontade daquele, utilizando para o efeito a sua força física e destreza sobre a vítima. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas. Face à conduta supra descrita, facilmente se vislumbra que está aqui em causa o uso da força física por parte do arguido AA à integridade física do ofendido BB, criando intencionalmente um clima de intimidação, medo e insegurança, de forma a afectar a liberdade de decisão deste ofendido. Nesta sequência, os bens jurídicos protegidos pelo tipo legal de crime de roubo – propriedade e liberdade de decisão e acção da vítima – foram postos em perigo pelos comportamentos empreendidos pelo arguido AA. Com efeito, este arguido pretendeu apossar-se do dinheiro do ofendido BB, o que logrou fazer. Do exposto conclui-se, portanto, que o arguido AA, com o comportamento que se supra descreveu, preencheu o tipo objectivo e subjectivo do crime de roubo previsto no artigo 210º, nº1, do CP, na forma consumada.
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2. Da determinação da pena Importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar ao arguido pela prática dos referidos crimes, atenta a subsunção dos factos pelo mesmo praticados ao enquadramento jurídico, acabada de efetuar. O crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2º, al. a), do Código Penal (CP), é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos. O crime de roubo simples, p. e p. pelo 210.º, n.º 1, do Código Penal é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos de prisão; De acordo com o n.º 1, do artigo 40.º, do mesmo diploma legal, “a aplicação de penas e medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. A pena justifica-se sempre pela finalidade prosseguida, estando assim superadas, na atualidade, as conceções que faziam dela um fim em si mesmo. Quanto às finalidades da punição, devemos ter em consideração quer razões de prevenção geral (considerada sob um ponto de vista de prevenção geral positiva para a tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção - ou mesmo reforço da vigência da norma violada, conceito que decorre do princípio político-criminal básico da necessidade da pena, cfr. artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa -, que, in casu, são elevadas atenta a sensibilidade da comunidade manifestada relativamente ao cumprimento dos preceito legais violados pelo arguido), quer razões de prevenção especial (que obedece à necessidade de reintegração do agente do crime na sociedade, note-se que, in casu, o arguido tem antecedentes criminais registados). No dizer de Fernanda Palma “a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial”. Em jeito de síntese, e como refere Figueiredo Dias , “culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena”. O ordenamento jurídico-penal português assenta na concepção de que a pena privativa da liberdade deve constituir a ultima ratio da política criminal, numa homenagem e, utilizando as palavras de Figueiredo Dias , “em medida não facilmente ultrapassável no momento presente, aos princípios político criminais da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade da pena de prisão”. O art.70.º dispõe que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal da preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. In casu, o legislador estipula para todos os ilícitos apenas a aplicação da pena principal de prisão. Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva – entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável – podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. A determinação da medida concreta da pena será efectuada nos termos equacionados no artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, em função da culpa do agente que constitui limite inultrapassável, nos termos do artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal e tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes, devendo o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor dele ou contra ele (nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – cfr. artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal). Neste domínio e no que respeita ao ilícito criminal de violência doméstica, as necessidades de prevenção geral positiva revelam-se fortemente acentuadas, atenta a frequência com que são praticados, designadamente na área geográfica desta Comarca de ..., traduzindo um problema social de grandes dimensões. Como no dia 07.06.2022 noticiava o jornal “...” online,: “Em 2022, já morreram pelo menos 13 mulheres vítimas de violência doméstica em Portugal” (acessível em ...). Para explicar a ocorrência frequente de violência conjugal e a sua persistência no tempo, têm sido aventadas várias razões (a este propósito, vide MARLENE MATOS, “Violência conjugal: o processo de construção de identidade de mulher”, Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, acessível em https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/3302/1/doutoramento-versão%20final.pdf), tais como a proximidade entre o agente e a vítima, a qual, teoricamente susceptível de favorecer a denúncia das agressões, tem-se revelado inibidora dessa iniciativa, em especial pelo receio de que o autor dos maus-tratos invista, em retaliação, com mais violência, numa escalada sem fim à vista, aliada ao constrangimento sentido em revelar as agressões de que é vítima. Relativamente ao crime de roubo, como se explana no Acórdão da Relação de Évora, de 18.06.2019: (…) as necessidades de reafirmação dos bens jurídicos pela incriminação são cada vez mais evidentes. Acresce que, num país com a dimensão do nosso, o claro crescimento destes ilícitos que colocam em causa a protecção dos bens jurídicos protegidos pela incriminação e causam, em especial, nas vítimas (ainda silenciosas) um sentido de insegurança quanto ao funcionamento da justiça e a protecção que lhes é conferida, e a frequência com que têm ocorrido, mostra ser necessária urna consciencialização da comunidade quanto à importância e ao respeito que é devido às ordens emanadas por autoridade com competência para tal (acessível em www.dgsi.pt/jtre, Processo nº24/18.1GBNIS.E1, relatora MARIA ISABEL DUARTE). Com efeito, neste domínio, as necessidades de prevenção geral positiva revelam-se fortemente acentuadas, atenta a proliferação deste tipo de ilícitos, nomeadamente por pessoas dependentes do consumo de estupefacientes – como sucedia, à data, com o arguido –, sobretudo em tempos de dificuldades financeiras, que gera muito alarme social por desencadear insegurança e intranquilidade na comunidade. Na verdade, estes tipos de crime é daqueles que a comunidade mais repudia, precisamente por causa do sentimento de insegurança que para ela se transpõe. Por isso, tais necessidades reclamam sanções de maior gravidade, pois que vivemos tempos em que se afigura cada vez mais difícil a convivência comunitária de acordo com os ditames do respeito que a cada um é devido, nomeadamente, do respeito pelo património alheio. Mostra-se, assim, indispensável reprimir manifestações de indisciplina agressivas, como a protagonizada pelo mencionado AA. Deste modo, os propósitos preventivos de estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada reclamam uma intervenção forte do direito penal sancionatório, por forma a que a aplicação da pena, no seu quantum, responda às necessidades de tutela dos bens jurídicos supra identificado, assegurando a manutenção, apesar da violação daquelas norma, da confiança (comunitária) na prevalência do direito. Quanto às exigências de prevenção especial positiva ou de ressocialização, assume primordial importância que o arguido AA compreenda o desvalor do seu comportamento nos acontecimentos que se apreciam nestes autos, de forma a prevenir a prática de futuros actos delinquentes. O arguido, com a sua conduta, revelou indiferença para com valores cuja importância é unanimemente reconhecida a nível comunitário, assim revelando um défice ao nível da ressonância ético-jurídica. O arguido AA já não apresenta retaguarda familiar, pelo que as necessidades de prevenção especial resultam, ainda mais elevadas na medida em que o arguido não se mostra devidamente integrado profissional e socialmente, além de que lhe são conhecidos antecedentes criminais (conta já com seis condenações: por ameaça simples, detenção de arma proibida, furto qualificado, injúria agravada e ofensa à integridade física agravada, ameaça agravada e violência doméstica).
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Cumpre, agora, determinar a medida concreta da pena de prisão dentro da moldura penal abstracta que cabe ao ilícitos criminais em apreço nestes autos. Conforme ficou sobredito, as finalidades de aplicação de uma pena assentam, em primeira linha, na tutela de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade. Contudo, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. artigos 40º, nºs1 e 2 e 71º, nº1, ambos do CP). Na determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, o tribunal atenderá à culpa do agente e às exigências de prevenção bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele. Com efeito, estabelece o artigo 71º, nº2, do mesmo diploma legal, que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. Importa, todavia, sublinhar que, como se elucida no Acórdão do STJ, de 19.09.2012: (…) [r]elativamente ao princípio da proibição da dupla valoração segundo o qual não devem ser valorados pelo juiz na determinação da medida da pena, circunstâncias já consideradas pelo legislador ao estabelecer a moldura penal do facto, “não obsta em nada, porém, que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso”, pois que não será por ex, indiferente à pena se o roubo foi cometido com pistola ou com metralhadora, ou seja o que está em causa segundo BRUNS, Strafzumessungsrecht, 369, é a consideração das “modalidades da realização do tipo” e não uma ilegítima violação daquele princípio. A circunstância concreta objecto de dupla valoração apenas deve ficar arredada em nova valoração para a quantificação da culpa e da prevenção determinantes para a pena se já tiver servido para a determinar a moldura penal aplicável ou para escolher a pena. - v. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequência jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Notícias, p.235 32 37) – sublinhado e destacado nossos (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº211/08.0JELSB.L1.S1, relator PIRES DA GRAÇA). Transpondo para o caso concreto, há que atender: - às necessidades de prevenção geral que se entendem ser elevadíssimas, face ao ambiente vivenciado no nosso país, existindo um enorme alarme social ligado à prática de crimes de violência doméstica; - ao facto de o arguido ter confessado os factos de que vinha acusado, embora mantendo uma atitude desculpabilizante, denotou-se um arrependimento genuíno pelas condutas que resultaram provadas; - ao facto de a violência exercida ter sido essencialmente psicológica e emocional, mas revestindo uma grande agressividade psicológica; - ao dolo directo do arguido, estando plenamente consciente da ilicitude das suas condutas e da sua proibição face às normas legais vigentes; - às consequências da conduta do arguido, não tendo provocado lesões físicas aos ofendidos, mas tendo-lhes provocado um enorme medo e apreensão; - ao contexto em que os crimes foram praticados, após a libertação do arguido decorrente de cumprimento de pena de prisão e, parte dos factos, após a aplicação de medida de coacção que o impedia de contactar com os ofendidos, o que denota o desrespeito pelas normas sociais e jurídicas; - ao período temporal em que os factos ocorreram, que se fixa entre ../../2022 e ../../2024 (data da sua detenção); - aos problemas de foro psiquiátrico que o arguido apresenta, à falta de hábitos de trabalho do mesmo, à personalidade daquele (patente em audiência de discussão e julgamento, com a postura vitimizante e desculpabilizante), ao frágil apoio familiar e apreensão da comunidade em que o mesmo se insere; - aos antecedentes criminais do arguido que denotam que as anteriores condenações não foram suficientes para o afastar da prática de ilícitos criminais, tornando, ainda mais acentuadas as necessidades de prevenção especial. Face ao exposto, não obstante a conduta do arguido AA merecer um juízo ético-jurídico de censura, considera-se que retomará uma atitude fiel ao Direito, pelo que se julga justo, adequado e equitativo concluir que merece uma censura penal concreta que, não ultrapassando a medida da culpa e observando as finalidades e limites da prevenção geral e as necessidades de prevenção especial, se deve situar: - a pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, pela prática de cada um dos crimes de violência doméstica pelos quais vai condenado (na pessoa do seu progenitor e da sua progenitora). - a pena de 15 (quinze) meses de prisão, pela prática do crime de roubo;
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3. Da reincidência Nos termos do artigo 75º, nº1, do CP, é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. No nº2, subsequente, estipula-se que o crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade. E no nº4, do preceito legal em apreço, estabelece-se que a prescrição da pena, a amnistia, o perdão genérico e o indulto, não obstam à verificação da reincidência. Do citado normativo resulta que a reincidência constitui uma causa de agravação da pena que implica que se aplique ao agente a moldura penal que cabe ao facto criminoso mas agravada no seu mínimo. Tem, portanto, subjacente as necessidades de prevenção especial negativa (vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p.261-262). Como esclarece PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE , a reincidência diz-se homótropa quando se verifica entre crimes da mesma espécie ou natureza e diz-se polítropa quando se dá entre crimes de diferente espécie ou natureza. Este autor indica serem pressupostos formais da reincidência os que se passam a enunciar: [i] a prática de crimes reiterados dolosos; [ii] a condenação por ambos os crimes em pena de prisão efectiva superior a 6 (seis) meses; [iii] o trânsito em julgado da condenação prévia; e [iv] não se verificar a prescrição da reincidência, isto é, não ter decorrido mais de 5 (cinco) anos entre a prática do crime anterior e a prática do novo crime. A estes requisitos formais ainda acresce um pressuposto material que “consiste na culpa agravada do agente, por a anterior condenação não ter servido de suficiente advertência contra o crime (nas palavras de EDUARDO CORREIA: “Ora esta maior culpa só pode advir de a anterior condenação lhe não ter servido de prevenção contra o crime, para que assim, como ensinava o Prof. Beleza dos Santos, se distinga correctamente o verdadeiro reincidente do pluriocasional. Quando, pois, a reiteração fique a dever-se a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas não deve ter lugar a agravação – aliás grave – que o preceito prevê.” . Na verdade, é no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e, portanto, para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente. Isso significa que a censura do agente, por não ter respeitado a condenação anterior, exige o estabelecimento de uma íntima conexão entre o crime (ou crimes) anterior (anteriores) e o reiterado, que deva considerar-se relevante do ponto de vista da culpa (culpa agravada). Uma tal conexão poderá afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução, pois relativamente aos factos de diferente natureza será muito difícil afirmar a conexão exigível . O elemento material deve ser provado de acordo com as regras gerais do processo, não havendo qualquer presunção, mesmo ilidível, de que a anterior condenação não serviu ao delinquente de prevenção contra o crime. Com efeito, como se sustenta no Acórdão da Relação de Guimarães, de 07 de Novembro de 2016 : “(…) IV – A agravante reincidência não actua automaticamente diante da presença dos requisitos formais expressamente enunciados no art. 75º CP, antes pressupõe, materialmente, que, de acordo com as circunstâncias do caso, seja de censurar o agente por a condenação ou condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime, sendo no seu desrespeito ou desatenção a esta advertência que o legislador vê fundamento para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente. V – Assim, apesar de no Código Penal vigente o conceito de reincidência abranger, agora, tanto a reincidência homótropa como a polítropa, sujeitando a lei ambas a igual tratamento, o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, embora não implicando um regresso à ideia de que só a homótropa é verdadeira reincidência, exige, de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados, que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela maior censura. VI - Desta maneira, é a distinção entre o verdadeiro reincidente e o simples multiocasional que importa fazer, com base em matéria de facto concreta: operando a reincidência ope judicis há que distinguir o verdadeiro reincidente do pluriocasional, pois uma nova condenação, por ser devida a causas fortuitas ou exógenas que excluam a conexão entre os crimes reiterados, pode não ter força indiciadora de desrespeito, o que impede a actuação da advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. A reiteração criminosa pode ter diversa etiologia e, para efeitos da reincidência, apenas releva a que esteja ligada a um defeito da personalidade que leve o agente a ser indiferente à solene advertência contida na sua condenação em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por crime doloso (p. ex., não voltar a procurar trabalho, ou continuar a conviver com delinquentes, ou fazer do crime o seu modo de vida)” – sublinhado e destacado nossos. Do que fica exposto resulta que não há reincidência entre crimes negligentes, nem entre crimes dolosos e negligentes . Só em relação a crimes que tenham sido previstos e queridos pelo agente e se fundamentem numa atitude pessoal contrária ou indiferente às normas jurídico-penais ganha sentido o pressuposto material da reincidência da não motivação do agente pela advertência contida na condenação ou condenações anteriores. Além disso, a reincidência exige a condenação em pena de prisão (não funciona com a pena de multa) e que a mesma seja efectiva, pelo que (…) não é relevante para efeitos de reincidência a condenação na pena de prisão em regime de permanência na habitação, prisão por dias livres e prisão em regime de semidetenção, por em nenhum destes casos se tratar de prisão efectiva . Também não releva a pena de prisão cuja execução tenha sido suspensa, uma vez que se trata de uma pena de substituição (em sentido próprio). Exige-se, igualmente, que a condenação pelo crime anterior tenha já transitado em julgado quando o novo crime é cometido (distinguindo-se, assim, dos casos de concurso de crimes), o que se relaciona com o já apontado pressuposto material da reincidência. Por último, o crime anterior não conta para efeito de reincidência se entre a sua prática e a prática do novo crime tiverem decorrido mais de 5 (cinco) anos (prescrição da reincidência), o que se compreende na medida em que, uma vez decorrido um certo lapso temporal, já não é mais possível estabelecer entre os crimes uma conexão material que permita reconduzir o último a uma desatenção do agente à advertência contida na condenação anterior. Nesse prazo prescricional não é contado, porém, o tempo pelo qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade (cfr. a 2ª parte, do nº2, do artigo 75º, do CP). Com efeito o requisito ora em apreço supõe a liberdade do agente, pois só assim é que se pode aferir se a anterior condenação surtiu o pretendido efeito dissuasor, (…) pelo que o prazo se suspende quando o agente se encontre privado da liberdade, tenha essa privação da liberdade tido lugar em Portugal ou no estrangeiro .
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Estatui o artigo 76º, do CP, no seu nº1, que em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado. A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores. Como se esclarece no Acórdão da Relação de Guimarães, de 08 de Abril de 2013, [e]sta limitação tem o fim de evitar que uma condenação anterior numa pena pequena possa, por efeito da reincidência, agravar desproporcionalmente a pena . A operação da reincidência implica: 1º) determinar a medida concreta da pena independentemente da reincidência; 2º) fixar a moldura penal da reincidência (com a elevação do limite mínimo da moldura legal em 1/3); 3º) determinar a medida concreta da pena dentro da moldura penal da reincidência; e 4º) comparar as duas penas concretas e a limitação da agravação decorrente da reincidência pela pena concreta mais grave aplicada na condenação anterior .
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Tecidas estas prévias considerações, no caso decidendo verifica-se que: - O arguido AA foi julgado e condenado no âmbito do processo n.º 227/18.9GEBRG, por acórdão transitado em julgado no dia 26-09-2019, na pena única de quatro anos de prisão pela prática crime de dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigos 152.º, n.º 1 alínea d), e n.º 2 do Código Penal, por factos perpetrados contra os seus progenitores. Neste processo, estavam em causa factos ocorridos entre Novembro de 2017 e Outubro de 2018. A condenação anterior sofrida por tal arguido não constituiu advertência suficiente nem determinaram que este, a partir de então, um comportamento conforme com a norma. O arguido AA não tem vínculo laboral. Os factos pelos quais se encontra acusado nos presentes autos foram cometidos em idênticas circunstâncias e são da mesma natureza daqueles em que já havia já sido condenado no âmbito do processo supramencionado. De igual modo, a motivação subjacente ao cometimento do mencionado crime nos presentes autos foi a mesma que levou à sua condenação naquele processo. O arguido é consumidor de produtos estupefacientes, não tem ocupação laboral, nem rendimentos fixos suficientes para prover o seu sustento, dependendo do património dos seus progenitores para a aquisição de produtos estupefacientes. Assim sendo, conclui-se que a anterior condenação sofrida pelo arguido e o cumprimento da pena de prisão não constituiu suficiente advertência contra o crime, não se mostrando concretamente capaz de o fazer levar a abandonar a actividade criminosa no âmbito do seu agregado familiar e a adoptar uma conduta conforme o Direito. [ii] Nos presentes autos, o arguido AA praticou, - entre o dia ../../2022 e ../../2024, dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 al. a), n.º 4 e n.º 5, do Código Penal, e um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, do Código Penal. Não é equacionável a substituição destas penas uma vez que o arguido tem antecedentes criminais por crimes da mesma natureza, em penas de prisão efectiva, sendo que tais condenações não foram suficientes para o afastar de voltar a praticar novos ilícitos criminais.
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Tendo presente os pressupostos formais da reincidência, verifica-se que do Certificado do Registo Criminal do aludido AA avultam diversos processos criminais anteriores, de onde se destacam os supra identificados processos: - processo n.º 227/18.9GEBRG, por acórdão transitado em julgado no dia 26-09-2019, na pena única de quatro anos de prisão pela prática crime de dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigos 152.º, n.º 1 alínea d), e n.º 2 do Código Penal, por factos perpetrados contra os seus progenitores. Tal condenação mostra-se transitada em julgado. Foi praticado depois do trânsito em julgado da referida condenação, entre o dia ../../2022 e ../../2024, dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 al. a), n.º 4 e n.º 5, do Código Penal, e um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, do Código Penal. Deste modo, verifica-se, só relativamente a estes processos, um dos supra enunciados pressupostos formais previstos no citado artigo 75º, nº1, do CP, a saber: que a condenação pelo crime anterior tenha já transitado em julgado quando o novo crime é cometido. Mantendo-se até aqui, do ponto de vista formal, a conexão entre os presentes autos e o mencionado Processo nº 227/18.9GEBRG, constata-se que entre os factos criminais sob censura naqueles – datados de Novembro de 2017 a Outubro de 2018– e neste – datado de 3/10/2022 e 18/10/2024– não mediou mais de 5 (cinco) anos, descontando o tempo em que o arguido esteve preso. Mostram-se, portanto, preenchidos, nos termos expostos, os requisitos formais da reincidência. Da mobilização probatória resultou, também, demonstrado que: O arguido AA mostrara-se indiferente aos efeitos que se pretendia alcançar com as condenações que resultam do respectivo Certificado do Registo Criminal, designadamente daquela que lhes foi aplicada no Processo nº 227/18.9GEBRG, mostrando-se assim indiferente aos efeitos que se pretendia alcançar com as anteriores condenações. O arguido não tem vínculo laboral. Deste modo, sendo possível ao aludido AA manter uma conduta lícita e conforme ao Direito, o certo é que não atendeu às advertências contidas nas condenações em pena de prisão (efectiva) aplicada no âmbito do identificado Processo nº 227/18.9GEBRG. Na realidade, o arguido não desenvolveu qualquer esforço no sentido de se inserir na sociedade, não se inibindo de praticar os crimes de violência doméstica e roubo em causa nos presentes autos, o que demonstra que as mesmas não constituíram censura suficiente em ordem a afastá-lo da prática de novos crimes, sendo especialmente censurável tal desrespeito por essas condenações, em particular e no que releva para a reincidência, aquela a que se reporta ao Processo nº 227/18.9GEBRG. Ressalta em tal condenação - Processo nº 227/18.9GEBRG e os presentes autos – a mesma natureza do ilícito praticado, sendo os mesmos bens jurídicos protegidos. O arguido denota desrespeito e insensibilidade às advertências que lhes foram anteriormente feitas, designadamente no Processo nº 227/18.9GEBRG, não tendo interiorizado devidamente o juízo de censura subjacente, com o que não se inibiu de renovar o seu propósito criminoso, como bem o demonstram os factos dos presentes autos. Existe, assim, uma íntima conexão entre os crimes de violência doméstica do Processo 227/18.9GEBRG e os crimes de violência doméstica e roubo supra identificados nos presentes autos que ora se censuram. Tal conexão demonstra não estarmos perante uma (simples) pluriocasionalidade, mas antes perante um caso de culpa agravada, que constitui fundamento para a agravação da pena.
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Verificados os pressupostos (formais e material) da reincidência, cumpre, quanto aos crimes de furto qualificado dos presentes autos, proceder à determinação da medida concreta da pena na reincidência. A primeira operação consiste na determinação da medida concreta da pena independentemente da reincidência. Esta operação foi já levada a cabo supra, tendo-se alcançado: - Entre o dia 3/10/2022 e o dia 18/10/2024 dois crimes de violência doméstica (na pessoa do seu progenitor e da sua progenitora), previstos e punidos pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 al. a), n.º 4 e n.º 5, do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada a pena de 3 anos e 3 meses de prisão, por cada um dos crimes - no dia 13 de Outubro de 2024, um crime de roubo simples, previsto e punido pelo art. 210º do Código Penal; A segunda operação radica em determinar a moldura penal da reincidência. A este respeito, estabelece-se no citado artigo 76º, nº1 do CP, que o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado. Assim, crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2º, al. a), do Código Penal; que se discute é punível com pena de prisão de 2 anos e 8 meses (limite mínimo) até 5 anos (limite máximo). O crime de roubo simples, p. e p. pelo 210.º, n.º 1, do Código Penal é punido com pena de prisão de 1 ano e 4 meses (limite mínimo) a 8 anos (limite máximo) de prisão; A terceira operação tem por finalidade a determinação da medida concreta da pena dentro da moldura penal da reincidência. Assim, tendo em consideração todas as circunstâncias já anteriormente enunciadas que depõem a favor e contra o arguido AA e atentando na alteração da moldura abstracta da pena de prisão por força da reincidência, entendemos que se justifica proceder a uma alteração daquela pena de prisão, nos seguintes moldes: - 3 anos e 6 meses de prisão pela prática pelo arguido AA, como reincidente, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos art.ºs 26.º, 75º e 76º, 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2º, al. a), do Código Penal, na pessoa do seu progenitor; - 3 anos e 6 meses de prisão pela prática pelo arguido AA, como reincidente, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos art.ºs 26.º, 75º e 76º, 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2º, al. a), do Código Penal, na pessoa da sua progenitora; - a pena de 18 meses pela prática pelo arguido AA, como reincidente, de um crime roubo, previsto e punido pelos art.ºs 26.º, 75º e 76º, 210.º, n.ºs 1, do Código Penal Resta uma quarta operação, que consiste em comparar a medida concreta da pena alcançada sem entrar em conta com a reincidência, com aquela encontrada dentro da moldura da reincidência, porquanto a agravação determinada pela reincidência não poderá exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores. No caso vertente mostra-se respeitado o limite imposto na 2ª parte, do nº1, do artigo 76º, do CP, pois que a agravação dos crimes de violência doméstica e roubo dos presentes autos, decorrentes da reincidência, não excedeu a medida concreta da pena de prisão (efectiva) aplicada no Processo nº 227/18.9GEBRG e que foi de 4 anos prisão efectiva. Termos em que o arguido AA, será condenado como reincidente pela prática dos referidos crimes de violência doméstica e roubo nos presentes autos.
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4. Do cúmulo jurídico Cabe proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares (de prisão) aplicadas ao arguido AA, nos termos do artigo 77º, nºs1 e 2, do CP. De acordo com o nº2, deste preceito legal, a moldura abstracta do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretas aplicadas – não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa –, e como limite mínimo a pena parcelar mais elevada. Deste modo, no caso vertente, deverá ser construída a seguinte moldura penal abstracta: -Para o AA: entre 3 (três) anos e 6 (seis) meses e 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão. A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do artigo 77º, nº1, do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido. À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente . Cumpre agora verificar os factos na sua globalidade e em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao Acórdão do STJ, de 12 de Julho de 2005 . Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS , tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação desta personalidade unitária do agente releva, sobretudo, “a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização” . Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita. E tem de ter uma fundamentação específica na qual se espelhem as razões por que, em atenção aos referidos factores (em particular a propensão ou não do agente para a prática de crimes ou de determinado tipo de crimes), se aplicou uma determinada pena conjunta. Na determinação da medida concreta da pena conjunta dentro da moldura penal abstracta, os critérios gerais de fixação da pena, segundo os parâmetros indicados – culpa e prevenção – contidos no artigo 71º, do CP, servem apenas de guia para essa operação de fixação da pena conjunta, pois os mesmos não podem ser valorados novamente sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais factores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes . Como se vê de todo o exposto, o nosso sistema caracteriza-se por ser um sistema de pena única ou conjunta, e não de pena unitária. A representação das penas singulares na pena conjunta é, em regra, parcial . Acerca da determinação desta pena única esclarece-se no Acórdão do STJ , de 20 de Março de 2014 , “que há 2 (duas) orientações: [i] a tradicional, que efectua a valoração conjunta dos factos e da personalidade do agente, nos termos do citado artigo 77º, nº1, do CP, sem recorrer a regras aritméticas; e [ii] a que convoca critérios complementares de natureza logarítmica ou matemática e, nomeadamente, uma denominada «compressão» que deve fazer-se entre o mínimo e máximo da moldura penal especifica prevista no artigo 770, 2, que passará pela «adição de uma proporção do remanescente das penas parcelares que oscila, conforme as circunstâncias de facto e a personalidade do agente e por via de regra, entre 1/3 e 1/5 (…) se bem que a corrente, que se poderia designar do «factor percentual de compressão», possa relutar a um Julgador cioso do poder discricionário (aqui, aliás, mais vinculado que discricionário), desde que o seu uso não se faça como ponto de partida mas como aferidor ou mecanismo de controlo, não nos parece que deva, sem mais, ser rejeitada. Ela representa um esforço de racionalização num caminho eriçado de espinhos, desde que afastada uma qualquer «arbitrariedade matemática» ou uma menor exigência de reflexão sobre os dados. O direito, como ciência prática e não especulativa nunca atingirá a certeza das matemáticas ou das ciências da natureza, mas a jurisprudência deve abrir-se ao permanente aperfeiçoamento. Na ponderação dessas 2 (duas) orientações, sustenta-se no aresto em questão que (…) não repugna que a convocação dos critérios de determinação da pena conjunta tenha como coadjuvante, e não mais do que isso, a definição dum espaço dentro do qual as mesmas funcionam. Na verdade, a certeza e segurança jurídica podem estar em causa quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, conduzindo a uma indeterminação. Recorrendo ao princípio da proporcionalidade não se pode aplicar uma pena maior do que aquela que merece a gravidade da conduta nem a que é exigida para tutela do bem jurídico. Assim, Para evitar aquela vacuidade admite-se o apelo a que, na formulação da pena conjunta e na ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade, se considere que, conforme uma personalidade mais, ou menos, gravemente desconforme com o Direito, o tribunal determine a pena única somando à pena concreta mais grave entre metade e um quinto de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso (Confrontar Juiz Conselheiro Carmona da Mota em intervenção no STJ no dia 3 de Junho de 2009 no colóquio subordinado ao tema "Direito Penal e Processo Penal", igualmente Paulo Pinto de Albuquerque Comentários ao Código Penal anotação ao artigo 77) (…) A utilização de tal critério de determinação está relacionada com uma destrinça fundamental que é o tipo de criminalidade evidenciada. Na operação de cálculo importa considerar a necessidade de um tratamento diferente para a criminalidade bagatelar, média e grave, de tal modo que, como refere Carmona da Mota, a “representação” das parcelares que acrescem à pena mais grave se possa saldar por uma fracção cada vez mais alta, conforme a gravidade do tipo de criminalidade em julgamento” – sublinhado nosso. Tendo em consideração o que ficou sobredito, haverá que atentar que os crimes de que, aqui, se cuida ocorreram num período de tempo situado ../../2022 a ../../2024. Ora, tendo em conta todas as circunstâncias concretas já amplamente expostas, tem-se por proporcional e adequada a aplicação ao arguido de uma pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão.
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5. Das penas acessórias 5.1. Da proibição de contacto e do uso e porte de armas Nos termos do artigo 152º, nº4, do CP, nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. O nº5, subsequente, estipula que a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância (esta redacção foi introduzida pela Lei nº19/2013, de 21 de Fevereiro). Por sua vez, o nº1, do artigo 35º, da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro, estatui que o tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a protecção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. O subsequente artigo 36º, do diploma em referência, no seu nº1, faz depender a utilização dos meios técnicos de controlo à distância do consentimento do arguido e igualmente do consentimento da vítima quando a sua utilização abranja a sua participação (cfr. nº1). Mais faz depender o recurso a esses meios técnicos do consentimento das pessoas que o devam prestar, nomeadamente das pessoas que vivam com o arguido ou o agente e das que possam ser afectadas pela permanência obrigatória do arguido ou do agente em determinado local (cfr. nº2). No entanto, tal regime não será aplicável sempre que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a protecção dos direitos da vítima (cfr. nº7). No que concerne a este controlo à distância, decidiu a Relação de Guimarães, em Acórdão datado de 22.01.2018, que [a]inda que seja incontroverso que a protecção da vítima, no crime de violência doméstica, é de fundamental importância, não tendo o tribunal a quo, na decisão sob recurso, formulado um juízo de imprescindibilidade da utilização dos meios técnicos à distância para fiscalização da pena acessória aplicada ao arguido/recorrente, nem aduzido fundamentação que permita a formulação de um tal juízo e não resultando da matéria de facto provada, na sentença condenatória, factos concretos que o possam sustentar, impõe-se concluir que, não se mostram reunidos os pressupostos para que, dispensando o consentimento do arguido/recorrente, haja lugar à utilização dos meios técnicos de controlo à distância, ao abrigo do disposto no artº 7º do artº 36, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, introduzido pela Lei nº 19/2013, de 21 de Fevereiro (acessível em www.dgsi.pt/jtrg, Processo nº140/16.4GAVVD-A.G1, relatora FÁTIMA BERNARDES; ainda, o Acórdão da Relação de Guimarães, de 07.02.2022, acessível em www.dgsi.pt/jtrg, Processo nº540/20.5GAEPS.G1, relatora FÁTIMA SANCHES). Assim, verifica-se que, em regra, a utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende de 2 pressupostos: que se mostre imprescindível para a protecção da vítima e que haja o consentimento do arguido, eventualmente da vítima, e das pessoas indicadas no nº2, do artigo 36º, da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro. Caso não exista consentimento, designadamente, por parte do arguido, para que a medida possa ser imposta, o juiz terá, obrigatoriamente, que fundamentar a imprescindibilidade da utilização dos meios técnicos de controlo à distância, para a protecção dos direitos da vítima (vide o Acórdão da Relação do Porto, de 15 de Fevereiro de 2019, acessível em www.dgsi.pt/jtrp, Processo nº125/18.6GBSTS.P1, relatora PAULA GUERREIRO). Sendo estas as disposições legais relevantes, cumpre realçar que toda a pena acessória assenta no pressuposto formal da condenação do agente numa pena principal e traduz-se na perda (temporária) de direitos civis, profissionais ou políticos. Estabelece o nº4, do artigo 30º, da CRP, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos. Como esclarecem GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, este preceito visa proibir que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecanicamente, independentemente de decisão judicial, por efeito directo da lei (ope legis), uma outra “pena” daquela natureza (…) a teleologia intrínseca da norma consiste em retirar às penas efeitos estigmatizantes, impossibilitadores da readaptação social do delinquente, e impedir que, de forma mecânica, sem se atender aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, se decrete a morte civil, profissional ou política do cidadão (vide Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p.504). Assim, consagra-se o carácter não automático das penas acessórias, pelo que a sua aplicação constitui um poder-dever do juiz, a exercer desde que se verifiquem os respectivos pressupostos formais e materiais. Daí que o citado nº4, do artigo 152º, do CP, preceitue que as penas acessórias que prevê podem ser aplicadas ao arguido. Como é consabido, no âmbito do sistema sancionatório português, a pena acessória – desde logo as previstas no citado artigo 152º, nº4, do CP –, a par das penas principais e das penas de substituição, assume uma função complementar e coadjuvante daquelas, forçosamente relacionada com a grave censura do facto cometido pelo agente. Com efeito, a finalidade da pena acessória, com uma função preventiva coadjuvante da pena principal, não se esgota na intimidação da generalidade, mas dirige-se também à perigosidade da conduta do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação (vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p.88 e p.232).
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No caso decidendo foi o arguido AA condenado na pena (única) de 5 anos e 2 meses de prisão efectiva, pela prática de 2 crimes de violência doméstica, 1 crime de roubo simples, nas pessoas das vítimas BB e de CC. Relativamente ao crime de violência doméstica, p.p. nos termos do artigo 152º, nº1, al. d), e 2 do CP foi-lhe aplicada a pena parcelar de 3 anos e 6 meses por cada crime. Quanto aos comportamentos criminosos que o arguido adoptou para com as vítimas, o tempo por que perduraram e atentas as consequências que deles derivaram para estas, entendemos que se afigura essencial proibir que o identificado AA contacte com os mencionados BB e de CC por qualquer meio, e que se afaste da residência destes. Assim, entende-se adequado e necessário à reintegração do arguido, ao reforço da sua consciência ético-jurídica e à salvaguarda das finalidades das penas, aplicar ao mesmo a pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio, com os ofendidos, incluindo a proibição de se aproximar, a menos de 300 metros, da residência destes, pelo período de 4 anos - já que, apesar da reclusão, sempre poderia o arguido contactar com os ofendidos por meios que não pessoais (nomeadamente por carta, telefone ou outros meios que tivesse à sua disposição), consistindo a proibição de aproximação da residência dos ofendidos o único meio de salvaguardar as necessidades de prevenção e de ressocialização do arguido que no caso se fazem sentir, caso, por qualquer motivo, o mesmo seja restituído à liberdade (nomeadamente a título de saídas precárias ou eventual concessão de liberdade condicional). Mais, entende-se ainda adequado e necessário à reintegração do arguido, ao reforço da sua consciência ético-jurídica e à salvaguarda das finalidades das penas que o cumprimento da pena acessória ora aplicada seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, dispensando-se a autorização do arguido uma vez que tal fiscalização se mostra absolutamente indispensável para a protecção dos direitos da vítima, como resulta claro, desde logo, pelos comportamentos que conduziram à presente condenação. Com efeito, importa aqui salientar a total falta de preparação que o arguido demonstra para manter uma conduta de acordo com as normas sociais e jurídicas impostas, sendo os seus progenitores o alvo preferencial dos seus comportamentos ilícitos e não se tendo coibido de praticar factos integradores de ilícitos criminais mesmos após a aplicação de medida de coacção de afastamento e proibição de contactos com aqueles. Pelo exposto, por se entender adequado e necessário à reintegração do arguido, ao reforço da sua consciência ético-jurídica e à salvaguarda das finalidades das penas, condena-se o arguido na pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio, com os ofendidos, incluindo a proibição de se aproximar, a menos de 300 metros, da residência destes, por igual período de 4 (quatro) anos, devendo o cumprimento desta pena acessória ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, dispensando-se, pelo supra descrito, a autorização do arguido para o efeito, tudo nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal e 35ºe 36º da Lei 112/2009.
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No que concerne à pena acessória de proibição de uso e porte de armas, nenhum elemento aponta no sentido de mostrar-se justificada, de forma proporcional e adequada, a sua aplicação ao arguido, tanto mais que na prática dos factos em apreço nestes autos não foram utilizadas pelo aludido AA. Como tal, a referida proibição não se mostra conveniente no presente momento para o reforço da consciencialização do arguido. Nestes termos, entendemos não ser de aplicar a pena acessória de proibição de uso e porte de armas.
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Adverte-se o arguido que caso viole a pena acessória aplicada (proibição de contactos com os ofendidos e de aproximação incorrerá na prática de um novo crime, em concreto, num crime de violação de proibições, p. e p. pelo artigo 353º, do CP (vide o Acórdão da Relação do Porto, de 30 de Outubro de 2019, acessível em www.dgsi.pt/jtrp, Processo nº220/18.1GAARC.P1, relatora MARIA ERMELINDA CARNEIRO).
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(…)” IV - DECISÃO Pelo exposto, tendo em atenção todas as considerações produzidas e as normas legais citadas, decide-se: A) Condenar o arguido AA, como reincidente, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos arts. 75º, 76º e 152.º, n.º 1, alínea d), 2, 4 e 5 do Código Penal, na pessoa do seu progenitor BB, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão. B) Condenar o arguido AA, como reincidente, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos arts. 75º, 76º e 152.º, n.º 1, alínea d), 2, 4 e 5 do Código Penal, na pessoa da sua progenitora CC, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão. C) Condenar o arguido AA, como reincidente, pela prática de um crime de roubo simples, p. e p. pelos arts. 75º, 76º e 210.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa do seu progenitor BB, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão. D) Condenar o arguido AA em cúmulo jurídico de penas referidas em A) a C), nos termos do art. 77º, nºs. 1 e 2, do C.P., na pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão; E) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contactos, por qualquer meio, com os ofendidos, incluindo de se aproximar, a menos de 300 metros, da residência destes, pelo período de 4 (quatro) anos, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 152º, nº 4 do Código Penal, o que deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, quando o arguido se encontre em meio livre, nos termos do nº 5 do mesmo preceito legal e do artigo 35º da Lei 112/2009; F) Não condenar o arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de armas, p. e p. pelo artigo 152º, nº4, do indicado diploma legal. G) Determinar que se proceda à recolha da amostra de ADN ao arguido AA, nos termos e para os efeitos do artigo 8.º, n.º 2 da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro. H) Condenar o arguido AA nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (quatro unidades de conta), nos termos do artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa ao mesmo, reduzidas a metade face à sua confissão integral e sem reservas, sem prejuízo do eventual apoio judiciário que beneficie.»
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III – Apreciando o Recurso.
Façamos então a apreciação do recurso na parte relativa à matéria de facto.
Entende o recorrente que deve ser absolvido porquanto, em suma, a prova produzida é insuficiente para lhe atribuir a autoria dos crimes de violência doméstica e de roubo pelos quais foi condenado.
No seu entendimento: “A decisão judicial padece de vício por erro na análise da prova, por falta de preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes imputados, e pela desproporcionalidade da pena aplicada, que ignora o princípio da insignificância/bagatela penal e as especificidades do caso concreto. A convicção do Tribunal a quo resultou, exclusivamente, da prova produzida declarações para memória futura dos ofendidos. XIII. Com efeito, analisada e correlacionada toda a prova produzida em julgamento e tendo como referência as regras da experiência comum e os critérios de normalidade, a condenação do recorrente funda-se em manifesto erro de julgamento. XIV. A atividade judicatória na valoração dos depoimentos deve atender a uma multiplicidade de fatores (imparcialidade, razões de ciência, espontaneidade, verosimilhança, contradições, linguagem corporal, etc.). XV. O depoimento da assistente, pela sua posição de antagonismo, não poderá ser considerado isento e imparcial, e a sua natureza emocional e acusatória não encontra suporte em prova objetiva que o corrobore. XVI. Não obstante o respeito devido à palavra da vítima, sobretudo em matéria de violência doméstica, é entendimento pacífico da jurisprudência que tal depoimento deve ser analisado com rigor, sendo imprescindível que se apresente coerente, consistente e corroborado por outros elementos de prova. XVII. O processo penal não se compadece com condenações baseadas em meras perceções individuais ou discursos emocionalmente mobilizadores, exigindo prova bastante e convincente. XVIII. A prova produzida nos autos revela-se claramente insuficiente para sustentar um juízo de culpabilidade para além da dúvida razoável».
Vejamos.
Como sabemos o nosso sistema processual penal prevê que a matéria de facto pode ser sindicada de dois modos:
Um mais restrito, a chamada «revista alargada», que abrange os vícios previstos no artigo 410º, nº2, do CPP;
Outro mais lato, a chamada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP.
O primeiro dos apontados modos de sindicância da matéria de facto, previsto no artigo 410º, n.º 2 do CPP, consagra que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão.
Refira-se desde já, no que concerne a estes vícios da decisão previstos no art. 410, nº 2, do CPP, numa apreciação feita por via oficiosa, como recomenda a citada norma, que não vislumbramos qualquer falta no texto da decisão recorrida suscetível de constituir violação do enunciado naquele preceito legal, não se logrando alcançar a existência no acórdão recorrido de qualquer um dos vícios previstos nas als. a), b) e c) daquele nº 2, ou seja, que no texto desse acórdão se verifique insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, al. a), contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, al. b), nem o erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do mesmo nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal.
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- Do erro de julgamento.
Viremo-nos, então, para a pretensão do recorrente, a impugnação ampla da matéria de facto - erro de julgamento.
Como vimos, o recorrente impugna a apreciação feita pelo tribunal recorrido, a forma como analisou, ponderou e valorou a prova produzida, ou seja, o uso que fez do princípio da livre apreciação da mesma, estribando-se unicamente na sua própria ponderação e valoração dessa prova.
Como resulta das conclusões do recurso, a imputação ao tribunal de 1ª instância da indevida valoração dos ditos meios de prova acontece porque foi sobrevalorizado, essencialmente, o depoimento dos ofendidos, prestados em declarações para memória futura, designadamente da ofendida sua mãe, cujo “depoimento da assistente, pela sua posição de antagonismo, não poderá ser considerado isento e imparcial, e a sua natureza emocional e acusatória não encontra suporte em prova objetiva que o corrobore.
Ora, a impugnação de uma decisão com fundamento em erro de julgamento, exige que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
Nos termos do disposto no artigo 428.º do CPP os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, poderia este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b) do CPP, ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Essa apreciação estende-se à análise do que contém e pode extrair-se da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.
De qualquer forma, nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa. (Cfr. Acórdãos do STJ de 14/3/2007, de 23/5/2007 e de 3/7/2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj)
Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, é que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:
«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do CPP).
Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º do CPP que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º do CPP). (- Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência no sentido de bastar, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2012, de 8/3, publicado no DR, I Série, de 18/4/2012).
Como se escreveu no douto Ac. do STJ de 19-5-2010 696/05.7TAVCD.S1, rel. Cons.ª Isabel Pais Martins, que: “As indicações exigidas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto”.
No mesmo sentido se refere no Ac. do STJ de 11-6-2014, proc.º n. 14/07.0TRLSB.S1, rel. Cons.º Raul Borges:
“As indicações exigidas pela lei são essenciais, não se tratando de mero capricho, pois à Relação não cumpre proceder a um novo julgamento em matéria de facto, apreciando a globalidade das «provas» produzidas em audiência, antes lhe competindo, atenta a forma como se encontra estruturado o recurso, emitir juízos de censura crítica. (…)
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão/imporiam uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto”.
Como o Ac. da Rel. de Coimbra de 22-10-2008, proferido no proc. n.º 1121/03.3TACBR.C1, bem explicita “A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida … que considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença, sendo que a exigência legal de especificação das “concretas provas” só se queda satisfeita com a indicação do conteúdo específico do meio de prova”. (Arestos citados no Ac. desta RG, de 26 de junho de 2023, relatado pelo saudoso Sr. Desembargador Cruz Bucho, no qual tivemos intervenção na qualidade adjunto)
Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as exceções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá, e o julgamento da Relação não permite.
Como se tem entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessários, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.
São inúmeros os fatores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto direto com os depoentes na audiência.
Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à exceção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspetos de relevância indiscutível (reações do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são percetíveis pela 1ª instância.
À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.
Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõem uma outra convicção.
A demonstração desta imposição recai sobre o recorrente que deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado. (Cfr. - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 1122, nota 9).
Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorreção decisória, mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.
Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado. (- Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj).
O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. (Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj ).
A utilização do termo “impor” no artigo 412.º do Código de Processo Penal “…revela que para o legislador essa alteração terá de ter um grau de exigência elevado, ou seja, que ela só ocorrerá se a prova invocada for suficientemente forte não só para colocar algumas dúvidas, mas para determinar sem lugar a dúvidas razoáveis uma decisão diferente. Se o tribunal de recurso concluir somente que as provas admitem outra solução não haverá lugar à alteração dos factos.” (- Acórdão do STJ de 18/01/2018, proferido, em 2ª instância, no Proc.º. 563/14.3TABRG.S1 - 3ª Secção, disponível em www.dgsi.pt/jstj).
Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do n.º 3 do citado art. 412º, como se referiu já.
A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. E a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Note-se que o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afeta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.
Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3).
Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos ao recorrente, passemos à análise do caso concreto. Verificando, então, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e nas conclusões de recurso sobre os pontos da impugnação deduzida, e se aqueles pressupostos se mostram verificados.
À luz do que acima expendemos, de um ponto de vista formal, o recorrente cumpriu satisfatoriamente a primeira parte do apontado ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o denominado ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados, embora o faça apenas no âmbito da motivação recursiva. Concretamente considera terem sido incorretamente julgados os pontos da matéria de facto provada sob os números 5 a 9, 16 a 18 e 21 a 23.
Com a impugnação desses factos, visa a sua absolvição pela prática dos crimes de violência doméstica e de roubo, defendendo que o Tribunal a quo teria dado indevido crédito às declarações dos ofendidos, e julgar como não provados todos esses factos.
É esta a proposta de decisão alternativa sobre os mesmos pela qual pugna, mas limita a sua motivação e conclusões de recurso ao cumprimento da primeira parte dos requisitos exigidos pelo nº 3 do art. 412º, do CPP, ao denominado ónus primário previsto na alínea daquele número do preceito legal aludido.
Na verdade, para além de não indicar especificamente os concretos meios de prova que impunham tal alternativa, limita-se a defender, de uma forma genérica e conclusiva, que “A convicção do Tribunal a quo resultou, preponderantemente, da prova produzida em declarações para memória futura, alicerçando toda a sua fundamentação às declarações dos ofendidos. Contudo, permissa vénia, uma análise criteriosa e correlacionada de toda a prova produzida em julgamento, tendo como referência as regras da experiência comum e os critérios de normalidade, conduz à inarrável conclusão de que a condenação do recorrente funda-se em manifesto erro de julgamento.”
Ou seja, do arrazoado vertido na motivação e conclusões apenas é possível retirar que, na ótica do recorrente, não deveria o tribunal a quo ter atendido aos depoimentos das testemunhas citadas, concretamente aos depoimentos prestados pelos ofendidos/vítimas em declarações para memória futura, os quais não mereceriam a credibilidade que lhes foi conferida na decisão sob escrutínio, afirmando que “o depoimento os ofendidos padece de substância concreta no apuramento dos factos…”.
Analisando a motivação e as conclusões constata-se que o recorrente não alega que a descrição que a sentença recorrida faz do conteúdo dos depoimentos das vítimas/ofendidos BB e CC, assim como a análise que faz da prova documental, não corresponde ao que, na realidade, disseram nem ao que consta daquela prova documental. Sendo aqui de realçar que o arguido confessou os factos de forma livre, voluntária e consciente, mostrando-se arrependido, como ficou a constar do acórdão recorrido, e não foi questionado pelo recorrente. Não obstante a desculpabilização apresentada para a prática dos ilícitos em questão, ser esquizofrénico e consumidor de estupefacientes, e que no período dos factos dos autos, muitas das vezes não fazia a medicação para a doença de que padece.
Todos os considerandos que tece limitam-se à valoração da prova produzida, com a qual discorda, mas não passam de uma apreciação própria, meramente subjetiva, desprovida de qualquer objetividade, insuscetível de assumir qualquer relevância para a distinta decisão proposta, e não apresenta quaisquer outros meios de prova que pudessem infirmar a versão apresentada pelos ofendidos/vítimas.
Limita-se a conferir à prova produzida uma outra leitura, substituindo a sua própria convicção à do tribunal a quo, concluindo pela sua absolvição, sem apontar em concreto um erro de julgamento, fazendo o ataque à decisão da matéria de facto pela via da credibilidade que o tribunal deu aos aludidos meios de prova, o que se afigura irrelevante em termos de impugnação da matéria de facto
Para além de tudo isso, também não faz qualquer indicação das passagens da gravação que pretenderia ver reapreciadas, não indicando as respetivas passagens concretas da gravação para sustentar a sua posição sobre prova produzida e os factos que impugnou. Incumprindo também o disposto no nº 4 do citado art. 412º, do CPP.
A falta de todos estes elementos impede este Tribunal da Relação de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de fazer uso do critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, que não foram apresentadas, ou que, ao menos, melhor se conjugassem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos.
Foi este exercício que nos vimos impedidos de fazer.
Os limites traçados pelo objeto do recurso, a falta de meios, ou dados, que permitissem uma reapreciação da matéria de facto impugnada, coartou a possibilidade deste Tribunal ir mais além na sua tarefa.
Ficamos confinados à valoração da prova feita pelo tribunal recorrido, sendo de relembrar que, em sede de avaliação da credibilidade dos depoimentos, o tribunal de 1ª instância tem a seu favor a relação de imediação que se traduz no contacto pessoal e direto entre o julgador e os diversos meios de prova.
Reforçando.
Aquilo que o recorrente explana ao longo da motivação, com apoio a elementos da prova pessoal produzida durante o julgamento, mais não é do que a sua discordância com a forma como a prova foi apreciada mas não “impõe” decisão fáctica diversa da assumida pelo tribunal a quo (cf. o artº 412º, nº3, al. b), do CPP).
A real pretensão do recorrente neste momento é que se altere a matéria de facto de acordo com a sua própria convicção (em manifesta contradição com a sua conduta em sede de julgamento, em que confessou os factos, de acordo com as declarações que prestou) – argumentando, ao fim e ao cabo, que o depoimento dos ofendidos é tendencioso, não poderá ser considerado isento e imparcial, e a sua natureza emocional e acusatória não encontra suporte em prova objetiva que o corrobore.
O princípio contido no já citado artº 127º do CPP, que o recorrente entende ter sido violado, estabelece também um critério para a apreciação da prova de carácter eminentemente subjetivo e que resulta da livre convicção do julgador, em harmonia com as regras da lógica, da razão, das regras da experiência e dos conhecimentos científicos.
“Tudo a partir de um processo lógico-racional que envolve, naturalmente, também, elementos subjectivos, inevitáveis no agir e pensar humano, que importa reconhecer, com consistência e maturidade, no sentido de prevenir a arbitrariedade e, ao contrário, permitir que actuem como instrumento de perspicácia e prudência na busca da verdade processualmente possível – elementos que tornam difícil senão mesmo impossível a motivação objectivada de todos os passos do processo interior que, na base indispensável dos dados objectivos carreados para o processo, conduziram à convicção do julgador. (…)
E, nesta matéria, (…) assume-se, como fundamental, o princípio da imediação, isto é, a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
Só os princípios da imediação e da oralidade, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. E só eles permitem, por último, uma plena audiência destes mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso (…).
Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.” (ac. da RE de 20/12/2005, processo nº 2489/05, www.dgsi.pt).
Não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de quaisquer factos e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal, documental e pericial que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª Instância na apreciação dessas provas.
E, conforme é habitual suceder quando estão em causa condutas lesivas de bens jurídicos pessoais, levadas a efeito entre pessoas ligadas uma à outra por laços familiares, como a relação entre pais e filhos, em que se incluem as realidades integradoras do tipo criminal da violência doméstica, a convicção probatória do tribunal de julgamento, relativamente aos factos objetivos geradores da responsabilidade criminal do arguido, assentou, em primeira linha, mas não exclusivamente, nas declarações prestadas pelos ofendidos, pois as condutas em apreciação ocorreram, quase invariavelmente, no interior do lar familiar e fora da presença de estranhos. Não sendo despiciendo voltar a falar no assumir da prática daqueles pelo arguido, que os confessou livre e espontaneamente, como o próprio acaba por admitir, embora sob a influência de uma doença do foro psiquiátrico e do consumo de estupefacientes, o que acaba por constituir um fator confirmador, complementar, do ambiente existente no seio familiar e do comportamento assumido pelo recorrente no âmbito desse cenário, a que não será estranha a adição a substâncias estupefaciente e a não toma da medicação para tratamento da doença de que padece.
Realce-se que, embora os assistentes e ofendidos, ao invés do arguido, estejam vinculados ao dever de verdade e possam incorrer em responsabilidade criminal, se a ele faltarem, as declarações e depoimentos por eles prestados, devido ao seu posicionamento em relação ao objeto do processo, nunca poderão beneficiar da aura da isenção, do desinteresse ou da imparcialidade.
Daí não se segue, porém, que tais meios devam ser necessariamente preteridos no processo de formação da convicção do tribunal, já que umas declarações prestadas por um sujeito processual, com interesse no desfecho do processo, não têm inevitavelmente que deixar de ser sinceras e verídicas.
“A criminalização das condutas inseridas na chamada "violência doméstica", e consequente responsabilização penal dos seus agentes, resulta da progressiva consciencialização da sua gravidade individual e social, sendo imperioso prevenir as condutas de quem, a coberto de uma pretensa impunidade resultante da ausência de testemunhas presenciais, inflige aos seus pais maus tratos físicos ou psíquicos.
Assim, neste tipo de criminalidade, as declarações das vitimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicilio familiar, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservado da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada duma família.
Perante semelhante parametrização constata-se que as considerações expendidas pelo recorrente mais não representam, como já se afirmou à saciedade, do que uma tentativa de impor a sua visão sobre a forma como devem ser avaliados os elementos probatórios recolhidos mas insuscetíveis de obrigar a uma diferente decisão sobre a matéria de facto.
Na verdade, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”(Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24/3/2004, DR, II Série, n.º 129, de 2/6/2004.).
A ausência de testemunhas presenciais (como é habitual nestes casos) não é crucial; nada impede que o tribunal atribua especial relevância às declarações dos ofendidos/vítimas e assistentes, posto que estas sejam consistentes e fiáveis.
E no que concerne à credibilidade das declarações daqueles, devemos recordar e seguir o que se escreveu no Acórdão deste TRG, de 17/05/2010, proc. 1379/07.9PBGMR.G1, sendo seu relator o desembargador Cruz Bucho, e que dá inteira resposta à preocupação argumentativa do recorrente.
Diz-se nele, com absoluta clareza: “Lendo a motivação da decisão de facto, facilmente se constata que foram essenciais à formação da convicção do tribunal as declarações da assistente, que o recorrente pretende a todo o custo desvalorizar. Contrariamente ao que o recorrente proclama quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, ao do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso. O velho aforismo “testis unus testis nullus”, carece, pois, de eficácia jurídica num sistema como o nosso em a prova já não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo tribunal [sobre aquela regra unus testis, testis nullius, cujas origens remontam a Moisés, as criticas que lhe foram sendo dirigidas ao longo da história (De Arnaud, Blackstone, Bentham, Meyer, Bonnier), a sua abolição e a possibilidade de um único depoimento, nomeadamente as declarações da vítima, poderem ilidir a presunção de inocência e fundamentarem uma condenação, cfr., desenvolvidamente, Aurélia Maria Romero Coloma, Problemática de la prueba testifical en el proceso penal, Madrid, 2000, Cuadernos Civitas, págs. 69 a 91; muito antes, no domínio do processo civil português, Alberto dos Reis afirmara que “No seu critério de livre apreciação o tribunal pode dar como provado um facto certificado pelo testemunho duma única pessoa, embora perante ela tenham deposto várias testemunhas” (Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, reimp., Coimbra, 1981, pág. 357)]”.»
Uma nota final para salientar que nada permite desconfiar do juízo formulado pelo tribunal de 1ª Instância sobre a credibilidade dos ofendidos e assistente, e, por conseguinte, não merece censura a especial preponderância atribuída às respetivas declarações prestadas para memória futura para a formação da convicção sobre a matéria factual provada.
Volta reafirmar-se a incompreensível mudança de posição do arguido entre a audiência de julgamento e as alegações de recurso no que concerne à matéria de facto, que depois de ter confessado esses factos, tem agora como principal preocupação negar a prova produzida quanto à prática dos mesmos, alegando um interesse dos ofendidos na sua condenação.
Improcede, em suma, a pretendida alteração da decisão de facto, não se vendo motivo para concluir que o tribunal a quo andou mal na delimitação da matéria de facto ou que errou na apreciação da prova.
Não se mostrando, contrariamente ao invocado, que na sua tarefa de apreciação da prova e julgamento o tribunal recorrido tenha violado o princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º, do CPP.
*
Do in dubio pro reo
O recorrente sugere ainda ter havido violação do princípio do in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
No processo penal não tem aplicação o ónus da prova formal, segundo o qual cada uma das partes terá de produzir as provas necessárias a sustentar os factos que alega, porquanto, vigorando o princípio da investigação, recai sobre o juiz o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento. Em consequência, se uma vez produzida toda a prova, persistir uma dúvida razoável sobre determinados factos no espírito do julgador, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a favor do arguido. Sendo o direito penal um direito de culpa, a qual representa um limite intransponível para a decisão, “os princípios da presunção de inocência e de in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta, como suporte axiológico-normativo da pena”. (Vd. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 519.)
Conforme ensina Figueiredo Dias (- In Direito Processual Penal, I, pág. 215.), “relativamente ao facto sujeito a julgamento, o princípio [in dubio pro reo] aplica-se sem qualquer limitação, e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se lhe for desfavorável, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa. Contudo, para tanto não basta dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou que derivem da sua interpretação da factualidade revelada nos autos. Da mesma forma que também não é suficiente a circunstância de terem sido apresentadas em audiência versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes.
Acresce que não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio, mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio. (Cfr. o acórdão do STJ de 04-11-1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.)
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Terá de ser uma dúvida séria, positiva, racional e que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a íntima convicção do tribunal, que seja argumentada e coerente. Em suma, o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
No âmbito dos seus poderes de cognição sobre a matéria de facto, compete ao tribunal da relação sindicar a concreta utilização do princípio in dubio pro reo por parte da primeira instância. Com efeito, a violação desse princípio pode resultar da análise do texto da própria decisão recorrida e do processo decisório nela evidenciado, ocorrendo quando se concluir que o tribunal recorrido ficou em dúvida quanto a elementos que permitem estabelecer o grau de culpabilidade do arguido e, nesse estado de dúvida, decidiu contra ele.
Para além dessa situação, de verificação pouco frequente, a imputação da violação do princípio in dubio pro reo torna necessário demonstrar a existência de erro na apreciação dos meios probatórios produzidos, através do reexame dos mesmos, com vista a evidenciar que, em face da carência ou insuficiência da prova, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida quanto a factos relevantes para a responsabilidade criminal do arguido.
No caso dos autos, como ressalta da motivação da decisão de facto, o tribunal a quo considerou provados os factos impugnados para além de qualquer dúvida razoável sobre eles, ou seja, sem ter dúvidas em fixar a sua ocorrência tal como se encontram descritos, não decorrendo da sentença a existência ou confronto do julgador com qualquer dúvida insanável, motivo pelo qual não houve que a valorar a favor do arguido.
Com efeito, o tribunal recorrido, como se disse supra, dando a conhecer o processo de formação da sua convicção, procedeu a uma explicitação das declarações dos ofendidos/vitimas e assistente, e do arguido, que acolheu, bem como das razões porque lhes foi atribuída credibilidade, não havendo outros elementos probatórios a ponderar quanto aos factos ora impugnados, por não terem sido produzidos, já que o próprio arguido acabou por confessar a prática dos episódios factuais apurados. Baseou-se, pois, o tribunal de 1ª instância num juízo de certeza e não em qualquer juízo dubitativo.
Pelas razões expostas supra, a propósito dos depoimentos em que o recorrente estriba a sua impugnação, e da convicção que dos mesmos retira, da análise desses depoimentos e das declarações apontadas, concluímos pela inexistência de razões que devessem ter levado o tribunal a ficar com qualquer réstia de dúvida sobre os factos impugnados. Em suma, a prova produzida em audiência permite claramente concluir pela verificação desses factos, sem qualquer afrontamento das regras da experiência comum ou apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, pelo que nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em primeira instância, subtraído a qualquer dúvida, nada havendo a alterar.
Pelo que, não se verifica a violação desse princípio basilar do direito probatório, emanação do princípio da presunção da inocência estabelecido no art. 32º, nº 2, da CRP, como alvitrado pelo recorrente.
Pelo que, também por aqui improcede a impugnação do recorrente.
*
Da Qualificação Jurídica
Crime de violência doméstica
A inocuidade dos factos descritos na sentença para o preenchimento dos elementos típicos do crime de violência doméstica.
A este respeito, alega o recorrente que não existem, assim, factos que permitam manter a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica (art. 152º CP), não se mostram preenchidos os elementos típicos objetivo e subjetivo enformadores desse ilícito penal, pelo que, deve ser absolvido.
É evidente que esta posição do recorrente tem como pressuposto necessário a procedência do recurso na parte respeitante à matéria de facto, que a vingar faria cair por terra o preenchimento dos elementos típicos que enformam o ilícito de violência doméstica. Porém, não foi esse o resultado alcançado na sua impugnação pelo invocado erro de julgamento.
Deste modo, o que importa desde já saber, no presente caso, é se os fatos dados como provados, tal como foram fixados em 1ª instância, e sem cuidar de analisar a impugnação invocada, preenchem os elementos do tipo de ilícito de violência doméstica, previsto no art. 152º do C. Penal:
“Artigo 152.º
Violência doméstica
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.”
No que concerne a este crime de violência doméstica, a reforma penal de 95 introduziu significativas alterações neste domínio, enfrentando a importância crescente de agressões, humilhações, vexames, insultos e outros atos que acontecem, designadamente, no âmbito familiar e conjugal.
A necessidade de criminalização de tais condutas, apesar de encapotadas, adveio da progressiva consciencialização acerca da gravidade, por se tratar de um fenómeno social de proporções alarmantes e altamente lesivo pelas suas repercussões ao nível da formação individual e da integridade do próprio tecido social.
Condutas de que são vítimas pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as ligam às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e as vítimas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional.
O tipo de ilícito em apreço, integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, dentro deste, no capítulo relativo aos crimes contra a integridade física, visa tutelar, não a comunidade familiar e conjugal, mas sim a pessoa individual na sua dignidade humana, abarcando, por isso, os comportamentos que lesam esta dignidade. (Como refere Taipa de Carvalho in Comentário Conimbricense, I, pp. 329 a 339).
Assim, o bem jurídico protegido por este tipo de crime – a saúde física, psíquica e mental – é complexo e pode ser atingido por todos os comportamentos que afetem a dignidade pessoal da vítima. (V. Ac. da RP de 31/1/2001, p. 0041056-in dgsi.pt.).
O preenchimento do tipo legal não se basta com qualquer ofensa à saúde física, psíquica e emocional ou moral da vítima: «O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus tratos» (Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, nº 8, p. 305).
Por outro lado, tal crime pode unificar, através do elemento da reiteração – embora este seja hoje um requisito não imprescindível – uma multiplicidade de condutas que, consideradas isoladamente, poderiam integrar vários tipos legais de crime, mas que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma.
A unidade de ação típica não é excluída pela realização repetida de atos parciais, quer estes atos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime. O tipo legal inclui na descrição da ação uma pluralidade indeterminada de atos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo (21 Cfr., designadamente, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., pp. 998-999, e Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, pp. 546-547).
Muito embora, em princípio, o preenchimento do tipo não se baste com uma ação isolada do agente (tão-pouco com vários atos temporalmente muito distanciados entre si), já vinha sendo entendido pela jurisprudência que, em certos casos, uma só conduta, pela sua excecional violência e gravidade, basta para considerar preenchida a previsão legal. (V., entre outros, os Acs. do STJ 14/11/97, CJ 3º/235, de 5/4/06 (p. 06P468) e de 6/4/06 (p. 06P1167) e da RE de 29/11/05 (p. nº 1653/05-1).
A entrada em vigor da Lei n.º 59/2007 de 4/9 introduziu algumas alterações a tal ilícito, mas, no essencial e para o que aqui interessa, continua a ser punível, e em termos idênticos, a conduta do agente que inflija maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa do seu companheiro, esclarecendo-se, então expressamente, que tal atuação pode ser “de modo reiterado ou não” e que aqueles maus tratos incluem “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”.
Todavia, no que respeita ao segundo dos elementos mencionados e tendo presente apenas o conceito de “maus tratos físicos”, há que atentar em que não basta para o seu preenchimento que o agente pratique factos que se subsumam na previsão do art. 143º, n.º 1 (ofensas à integridade física simples). É, também, necessário, que a atuação atinja o bem jurídico tutelado com a incriminação em apreço, ou seja que lese a dignidade, enquanto pessoa, da vítima (Cfr. Taipa de Carvalho, ob. Cit., p. 332). E para tal, não basta a simples e/ou isolada agressão ao cônjuge.
Necessário é que a conduta do agente, nesse conspecto, seja ofensiva do bem-estar da vítima, considerado, quer numa perspetiva física, quer numa vertente psíquica e mental.
Por outro lado, por regra, relevam as condutas que se traduzam na prática reiterada de agressões a tal bem jurídico. Em caso de agressão isolada, por regra, estar-se-á apenas diante da possibilidade de verificação de um crime de ofensa à integridade física, de ameaça, de injúria, de coação, etc.
E, a partir da Lei 19/2013, de 21/2, o preceito passou a abranger as aludidas condutas quando sejam relativas, não apenas ao ex-cônjuge, mas também a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
Voltando ao caso concreto, importa analisar, e caracterizar, o quadro global da imputada agressão essencialmente psíquica, consubstanciada em comportamentos insultuosos, coativos e ameaçadores, inclusive de morte, de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, o que por si mesmo, constitui, nas palavras de Nuno Brandão (“Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010), «um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima», e impõe a condenação pelo crime de violência doméstica.
O que releva é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma é susceptível de se classificar como “maus tratos”. Conforme se escreveu no Ac. da RE de 30-06-2015, P. 1340/14.7TAPTM.E1, relatora Ana Brito).
Sendo certo que, essa conduta deverá revelar ainda um “plus” de danosidade, quando, face ao restante entorno factual se pode concluir pela sua adequação a afetar a dignidade pessoal do outro, no caso familiares diretos, pais, do arguido.
Esta decisão foi sintetizada pelo seguinte modo: «A imagem global do facto e a apreensão/percepção de todo o episódio de vida em apreciação relevam na delimitação da fronteira entre condutas que têm dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica e aquelas que não devem relevar para o direito penal, aqui. Condição necessária para a intervenção penal é sempre a ofensa efectiva de um bem jurídico (digno de protecção penal). A ratio do tipo “violência doméstica” não reside, na protecção da família, mas na protecção da pessoa individual na família, na tutela da sua dignidade, protegendo-a de um abuso de poder na relação afectiva.»
Ocorrendo os factos provados num quadro de relacionamento familiar deteriorado, em que, apesar dessa degradação, os progenitores do recorrente foram mantendo livremente o acesso deste à casa de família, onde continua a residir, a verdade é que o arguido vem assumindo posições de dominância sobre os seus pais, pessoas idosas, reformados, com falta de destreza e robustez física, que se materializam em agressões várias, perpetradas designadamente a partir do final do ano de 2022, com frequência e manifesta intensidade ofensiva, que atingiram a sua integridade moral, a sua honra, com violação do seu direito ao bom nome, bem como do seu bem estar, coagindo-os através de ameaças físicas, até de morte, trazendo-os humilhados, aviltados e com receio de que aquele concretize essas ameaças, atitudes manifestamente merecedoras de censura penal, que encontram tutela à luz do art. 152º do CP, e não do art. 181º, nº1 do CP, como pretende o recorrente.
Como se salientou, duma forma impressiva, no sumário do Ac. deste Tribunal de 15-10-2012, relator Fernando Monterroso:
«A delimitação dos casos de violência doméstica daqueles em que a ação apenas preenche a previsão de outros tipos de crime, como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça ou o sequestro, deve fazer-se com recurso ao conceito de “maus tratos”, sejam eles físicos ou psíquicos. Há “maus tratos” quando, em face do comportamento demonstrado, for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima». (Cfr. Ac. RG, de 14/09/2020, relatado por Ausenda Gonçalves, in www.dgsi.pt)
Como se disse, o recorrente, para sustentar a não verificação dos requisitos do crime de violência doméstica começa por direcionar o seu entendimento para o domínio dos factos ou para o juízo que faz sobre o que deveria ser tido por provado.
Naturalmente que, não podendo confundir-se matéria de facto com matéria de direito, uma vez que se nos afigura poder ser ultrapassada essa questão da procedência, ou improcedência total da impugnação da decisão sobre aquela, a subsunção jurídica terá de ser feita mediante a matéria de facto já tida por fixada.
Quanto à imputação deste crime de violência doméstica ao arguido e ao preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos deste ilícito vamos aqui transcrever o que foi exarado na sentença proferida em 1ª instância, que sufragamos: “ (…) «- Ao agir do modo acabado de descrever, AA previu e quis, no interior da habitação das vítimas, importunar e ofender da saúde de BB e de CC, tratando-os de modo desumano, maldoso e humilhante, o que fez, não obstante saber que tinha para com estes especiais deveres de respeito pelo facto de as vítimas serem seus pais e se encontrarem menos capazes de se defender em virtude da sua idade e das limitações da mesma resultante, falta de destreza e de robustez física. - Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas. Ora face à gravidade das condutas levadas a cabo pelo arguido, a reiteração das mesmas (que, não sendo necessária, existe no caso concreto), a existência de coabitação entre arguido e ofendidos dos autos e o facto de os ofendidos serem pessoas débeis e particularmente indefesas em função da idade e saúde da ofendida, dúvidas não restam que se encontram plenamente preenchidos os elementos objectivos do tipo legal de crime pelo qual o arguido vinha acusado. Mais, sabemos que todos estes factos foram praticados pelo arguido com o propósito concretizado de deixar BB e CC num clima de constrangimento e terror permanentes, impedindo-os de reger livremente as suas vidas, tendo como consequência directa e necessária das suas condutas, dado o arguido causa a que os seus progenitores se sentissem num permanente estado de terror, receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar, nomeadamente em relação aos mesmos. Na verdade, resulta provado que BB e CC viviam humilhados pelos nomes com que o arguido os apodava e com as condutas que tinha em relação aos mesmos, agindo o arguido com o propósito concretizado de amedrontar, controlar e manter num permanente estado de terror e constrangimento aqueles, seus progenitores e com os quais coabitava, bem como de os ofender na honra, indiferente à relação que com estes mantém e aos deveres que dessa relação para si nasceram quanto aos mesmos, nomeadamente de respeito, relação e deveres de que estava bem ciente. Temos, igualmente, como certo que, ao praticar os factos descritos o arguido agiu com o intuito de obter para si vantagem patrimonial que sabia ser indevida e causar prejuízo a BB e CC, o que conseguiu por diversas vezes e não logrou concretizar por outras, por razões alheias à sua vontade, criando para o efeito a ideia que atentaria contra a integridade física, vida e bens daqueles, caso os mesmos não acedesse à sua vontade. Não desconhecia o arguido a relação de parentesco que o une a BB e CC, seus pais, bem como que estes em razão da idade e das limitações da mesma resultante, não possuem destreza e robustez física que lhes permita obstar à sua actuação e, não obstante, não se absteve de agir do modo. Mais, o arguido introduziu-se no logradouro e na residência de BB e CC, após a aplicação da medida de coacção de afastamentos dos ofendidos, sem a permissão destes e contra a vontade dos mesmos, agindo com o intuito concretizado de se colocar no referido interior, sabendo agir contra a vontade dos seus progenitores, agindo, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, sabendo proibidas as suas condutas. Deste modo entendemos que o arguido agiu com dolo directo. Ora, mais resulta provado que o arguido se encontrava capaz de avaliar a ilicitude dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação. Pelo exposto, dúvidas não restam que se encontram plenamente preenchidos os elementos subjectivos e objectivos do tipo legal de crime em apreço, pelo que, na ausência de causas de exclusão da ilicitude ou culpa, forçoso será concluir pela condenação do arguido. Mais, tendo os factos sido praticados na residência comum de arguido e ofendidos tem plena aplicabilidade o disposto no artigo 152º, nº 2 do Código Penal.»
Relativamente à factualidade típica da violência doméstica, trata-se de um crime “de execução não vinculada, podendo os maus-tratos físicos ou psíquicos consistir nas mais variadas acções ou omissões” Plácido Conde Fernandes, “Violência Doméstica – novo quadro penal e processual penal”, Revista do CEJ, 1º semestre 2008, nº 8 (especial), p. 306..
Contrariamente ao defendido pelo recorrente, os factos em apreço não são criminalmente inócuos, carregando em si evidente intenção criminosa.
A conduta do agente concretiza-se através do emprego de maus tratos físicos (ofensas corporais simples) ou psíquicos (humilhações, provocações, molestações, etc.) – vide Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo I, p. 333.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, UCE, pág. 405, “Os “maus tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas (…), incluindo toda e qualquer perturbação psíquica, tenha ou não reflexos físicos).
Como resulta do texto da norma, o crime de violência doméstica não exige reiteração. Ainda assim, pelas suas características é usualmente um crime que se comete de forma reiterada e, neste sentido, podemos distinguir dois vectores: o da habitualidade e o da intensidade dos actos. Seja um acto isolado ou reiterado, se se verificar que apreciado à luz da intimidade do lar, coloca em sério risco a vida em comum, por reconduzirem a pessoa ofendida a vítima, de forma permanente, ou não, a um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, encontramos preenchido o tipo de violência doméstica.» (Inês Fonseca Mendes, A natureza jurídica do crime de violência doméstica conjugal: uma perspectiva crítica)[16].” (negrito e sublinhado nossos)
Como se defendeu no Ac. deste TRG. nº 28/22.0GCLRA.C1, de 21-06-2023, in www.dgsi.pt “A qualificação de uma conduta como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um determinado tipo de ilícito, designadamente uma ofensa à integridade física, da mesma forma que a aptidão de determinada acção para preencher este tipo legal não significa, per se, a verificação do crime de violência doméstica, tudo dependendo da «respectiva situação ambiente e da imagem global do facto». V – O preenchimento do conceito de mau trato não exige que a concreta conduta violenta se traduza numa lesão grave ou num tratamento cruel ou brutal. VI – A violência doméstica não deve ser entendida como o mero somatório das acções violentas, típicas ou atípicas, praticadas pelo agente contra a vítima, mas antes o que desse conjunto de acções, globalmente considerado, resulta e a sua aptidão para afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por essa via, a sua dignidade. VII – A reiteração não é elemento imprescindível ao preenchimento do tipo objectivo da violência doméstica, embora seja pressuposta como conduta ‘norma’, e daí que o crime seja qualificado como crime habitual. VIII – A execução é reiterada quando cada acto concreto, cada conduta parcelar, realiza parcialmente o evento, constituindo o somatório dos eventos parciais, o resultado, o evento unitário, o crime único. IX – A reiteração traduz um estado de agressão permanente, não no sentido de que as condutas violentas sejam constantes, mas no sentido de que traduzem o comportamento padrão do agressor, através do qual se revela a relação de sobreposição do agente sobre a vítima, proporcionada pelo ambiente familiar ou de proximidade social, da qual resulta um tratamento incompatível com a sua dignidade.” (negrito nosso)
“Já os maus tratos psíquicos são mais difíceis de caracterizar, porque se podem traduzir numa multiplicidade de comportamentos ativos e omissivos, verbais e não verbais, dirigidos direta ou indiretamente à vítima, que atingem e prejudicam o seu mau estar psicológico, nomeadamente, ameaçar, insultar, humilhar, vexar, desvalorizar, culpabilizar, atemorizar, intimidar, criticar, desprezar, rejeitar, ignorar, descriminar, manipular e exercer chantagem emocional sobre a vitima.
Há que considerar como abrangidos pelo tipo penal os casos de “micro violência continuada”, caracterizando-se pela opressão exercida e assegurada normalmente através de repetidos atos de violência psíquica, que apesar da sua baixa intensidade quando considerados avulsamente são adequados a gerar grandes transtornos na personalidade da vítima quando se transformam numa padrão de comportamento no âmbito da relação”
Destarte cumpre concluir, voltando ao caso vertente, tendo em conta a factualidade dada como provada, que foi feita prova de que com a sua conduta o arguido preencheu os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de que vem acusado, pelo qual deverá ser condenado.
Ainda que um ou outro comportamento, de per si, pudesse assumir menor ressonância, e não obstante o distanciamento temporal que separa a perpetração de alguns deles, afigura-se-nos não existirem dúvidas que globalmente considerados, mesmo circunscritos a um longo período de tempo, são reveladores de um comportamento de constante importunar, maltratar verbalmente, achincalhar, amesquinhar, ameaçar e importunar as vítimas, de uma vontade plenamente conseguida de os manter coagidos, assustados, receosos e humilhados, vivendo permanente sobressaltados, aproveitando-se de uma evidente vulnerabilidade e indefesa daquelas vítimas, explicável em razão dos vínculos de natureza familiar que os liga, e em resultado dos quais se estabelecem relações de subordinação ou de domínio de facto, como os factos denotam, que com certeza os colocava em situação de dependência emocional perante o seu filho.
Dentro dessa panorâmica, suficientemente caracterizada na factualidade considerada assente, os comportamentos do arguido são patentemente adequados a ofender, assustar, humilhar e aviltar os seus pais, como resulta da factualidade provada.
Atentando-se nessa matéria de facto provada, resulta, cremos, claramente demonstrado que as condutas do arguido são subsumíveis no tipo legal de crime em referência, porquanto o mesmo empreendeu, de forma reiterada, um comportamento para atingir os ofendidos, seu pais, na sua integridade psíquica e, mais amplamente, na sua dignidade enquanto pessoas humanas, inclusive no interior do domicílio comum, sendo de notar uma clara postura do arguido no sentido de subjugar e humilhar as vítimas, submetendo-as, inclusive através de ameaças de morte, às suas vontades, designadamente de fornecimento de dinheiro, o que constitui um aviltamento intolerável da dignidade de qualquer pessoa, quanto mais dos seus progenitores, consubstanciado o quadro geral de violência, vexação e humilhação em que se traduz a violência doméstica.
São atos repetidos ao longo de um determinado período de tempo, embora com mais incidência após a libertação do arguido após cumprimento de pena, inequivocamente demonstrativos de uma conduta maltratante, humilhante e de apoucamento, e bem assim, suscetíveis de conduzir ao preenchimento do tipo criminal de violência doméstica, principalmente na vertente dos “maus tratos psíquicos”, muito embora também se tenham verificado episódios que retratam ameaças veladas e coações manifestas.
A circunstância agravante do nº2 al. a), do artº 152º do CP - domicilio da vítima, próprio ou comum ao agressor – consolidou a necessidade de uma tutela acrescida, “num contexto em que é no domicílio que se multiplicam as agressões a coberto de uma certa sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e pela ausência de testemunhas” Plácido Conde Fernandes, ob. cit., p. 314.
A subsunção dos factos considerados assentes ao crime de violência doméstica, p. e p. nos termos do art. 152º, nº 1 al. d) e nº 2 al. a), do CP é correta, encontrando-se bem explanada na sentença recorrida, de forma precisa e detalhada.
Assim como nenhuma dúvida suscita a conexão dos ditos factos com o elemento subjetivo do tipo criminal introduzido nos factos provados sob os nºs 21 e 23.
Trata-se de ilícito necessariamente doloso e o elemento subjetivo está claramente espelhado naqueles factos provados; ao consignar, especificamente, que “21. Ao agir do modo acabado de descrever, AA previu e quis, no interior da habitação das vítimas, importunar e ofender da saúde de BB e de CC, tratando-os de modo desumano, maldoso e humilhante, o que fez, não obstante saber que tinha para com estes especiais deveres de respeito pelo facto de as vítimas serem seus pais e se encontrarem menos capazes de se defender em virtude da sua idade e das limitações da mesma resultante, falta de destreza e de robustez física. 23.(Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas.»
Face ao exposto, e não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou culpa, teria o arguido de ser condenado, como foi, pela prática de dois crimes de violência doméstica, previsto e punido nos termos do artigo 152º, nº 1, al. d) e nº 2, alínea a), do Código Penal.”
Improcedendo também esta sua posição.
*
Do crime de Roubo
Também relativamente a este ilícito penal, pela prática do qual também foi condenado, o recorrente manifesta o entendimento de que os factos provados, a manterem-se, não configurariam a ocorrência de um crime de roubo, tal como previsto no art. 210º, do CP, por falta da violência necessária para preencher o tipo objetivo respetivo.
Alega para tanto: “(…) «No que concerne ao crime de roubo, o tipo legal exige a utilização de violência contra a pessoa ou de ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física, idónea a anular a capacidade de resistência da vítima. XXVII. A conduta de «retirar da mão do seu progenitor um envelope que continha no seu interior a quantia de 30,00€, contra vontade deste», não configura a violência necessária para preencher o tipo objetivo de roubo. XXVIII. Não houve socos, empurrões violentos ou qualquer ato que causasse lesões ou pusesse em perigo a integridade física do progenitor. XXIX. A ação traduz-se mais numa ação de força, sem a dimensão coativa ou lesiva exigida para o roubo. XXX. Para além do elemento objetivo, o crime de roubo exige um dolo específico. XXXI. No caso do recorrente, a sua conduta, motivada pela descompensação da medicação e pela adição a estupefacientes, bem como a situação de sem-abrigo e fome, não revela um dolo de roubo, assemelhando-se a um ato impulsivo e desorganizado. XXXII. Em face da ausência dos elementos típicos do roubo, a conduta deveria ter sido qualificada como furto (artigo 203.º do Código Penal).»
Mais uma vez nos encontramos perante uma posição que estava dependente da procedência da impugnação da matéria de facto, que não se verificou.
Improcedendo o recurso quanto à matéria de facto colocada em causa no recurso do arguido, importa adiantar que a decisão da primeira instância na parte relativa à qualificação jurídica dos factos não merece qualquer censura.
Era com base na procedência da impugnação da decisão de facto que o recorrente pretendia fosse decidido não ter cometido o crime que lhe era imputado e, consequentemente, ser absolvido.
Só que, mantendo-se inalterada a matéria de facto provada, designadamente por não ter sido encontrado o invocado erro de julgamento, mostram-se preenchidos, tal como se concluiu na decisão recorrida, todos os elementos do tipo de ilícito de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º, n.º 1 do Código Penal, pelo qual o recorrente foi condenado.
Como resultou provado: “(…) «Na madrugada do dia 13 de Outubro de 2024, por volta das 04.00h, o arguido deslocou-se novamente a casa dos seus progenitores, onde conseguiu se introduzir através de uma janela que forçou e abriu. 16. Em seguida, o arguido dirigiu-se a BB e disse-lhe “quero que me emprestes 30,00€”. 17. BB disse ao arguido que apenas tinha 10,00€, tendo lhe cedido voluntariamente tal quantia. 18. De imediato, através de acção repentina, o arguido retirou da mão do seu progenitor um envelope que continha no seu interior com a quantia de 30,00€, contra a vontade deste. (…)” «22. O arguido agiu com intenção de se apoderar da quantia de 30,00€, propriedade do seu progenitor, o que conseguiu, bem sabendo que tal quantia monetária não lhe pertencia e que agia contra a vontade daquele, utilizando para o efeito a sua força física e destreza sobre a vítima. 23. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e penalmente punidas.»
Estabelece o art. 210º do C.P que:
“1 - Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair, ou constranger a que lhe seja entregue, coisa móvel alheia, por meio de violência contra uma pessoa, de ameaça com perigo iminente para a vida ou para a integridade física, ou pondo-a na impossibilidade de resistir, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.”
O roubo é um crime complexo que ofende bens jurídicos patrimoniais, o direito de propriedade e de detenção de coisas móveis (subtração de coisa móvel alheia) e bens jurídicos pessoais, a liberdade individual de decisão e ação (violência, ameaça, colocação na impossibilidade de resistir), em certos casos a própria liberdade de movimentos – a integridade física, sendo que, em algumas hipóteses, de roubo agravado, se põe, ainda, em causa o bem jurídico vida.
O roubo apresenta-se como crime meio e crime fim, atendendo ao facto de a ofensa a bens pessoais surgir como meio de lesão (crime meio) dos bens patrimoniais (crime fim).
São pois elementos constitutivos do tipo.
- O sujeito ativo da infração a que nos reconduz o termo “quem”, que pode ser qualquer pessoa;
- O sujeito passivo no crime de roubo pode ser o proprietário de bem móvel, mas pode ainda ser o detentor, a pessoa que guarda o bem (não coincidindo a noção de detentor com a de possuidor do bem no sentido jurídico civil), a pessoa que tem um poder de facto ou domínio sobre a coisa, no sentido social da palavra.
- O objeto da ação que é a coisa móvel alheia.
-Por subtração entende-se a ação que permite a passagem da coisa móvel (ou movente) da esfera jurídica do detentor (em sentido lato) para a nova esfera de domínio, contra a vontade daquele.
-Constranger, significa coagir, pressionar a vitima à entrega, isto é, a própria vítima tem uma ação positiva (facere) à entrega, em virtude do constrangimento, afetando-se a liberdade de ação ou de decisão, ou até a própria liberdade de querer e/ou a de fazer; o constrangimento abrange a vis compulsiva, a vis absoluta e ainda a afetação da capacidade de decisão.
- Os meios para a subtração são a violência contra uma pessoa, a colocação da vítima na impossibilidade de resistir.
- A violência implica o uso da força física, entendendo-se que a violência psíquica ou psicológica não pode integrar o tipo se se tratar do aproveitamento de uma incapacidade preexistente da vítima.
-O nexo de causalidade encontrar-se-á num nexo de imputação entre o conseguir a subtração ou a entrega e os meios utilizados.
- Por fim, diga-se, como supra referido que o crime é doloso exigindo-se uma ilegítima intenção de apropriação.
O crime de roubo assume, pois, natureza pluriofensiva, protegendo interesses patrimoniais e pessoais, como a vida, a integridade física e a liberdade de circulação, que sobrelevam sobre os primeiros.
O ”modus faciendi“ do crime de roubo reconduz-se ao denominado delito de execução vinculada obedecendo a sua consumação a comportamentos predeterminados, sob a forma de violência contra a pessoa, ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física ou colocação na impossibilidade de resistir, levando, contra a vontade do ofendido, à deslocação patrimonial de coisa móvel para o agente ou terceiro.
Regressemos ao caso concreto.
A questão suscitada pelo arguido no que a este ilícito criminal respeita prende-se em saber se se encontram provados factos suscetíveis de integrarem o elemento típico objetivo do crime de roubo correspondente ao uso de violência contra uma pessoa.
A doutrina e jurisprudência têm afirmado persistentemente que a violência no crime de roubo compreende o uso da força física necessária e adequada para efetivar a subtração/apropriação, não se exigindo um mínimo de intensidade da violência para o preenchimento do tipo legal
Segundo Conceição Ferreira da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, tomo II, pág. 167, “Em relação ao uso de força física, não se levantam grandes problemas: a intromissão, ainda que indirecta (v.g., o caso de esticão) no corpo de uma pessoa deve considerar-se violência, importando, no crime de roubo, a violência que visa quebrar ou impedir a resistência da vítima (…). Parece, no entanto, que agressões irrelevantes à integridade física – as chamadas «insignificâncias» - ainda devem ser abrangidas por este conceito: tolher os movimentos da vítima, amordaçá-la, em certos casos de esticão em que não se provocam lesões, pelo menos significativas”.
Neste sentido, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que a violência, no plano do crime de roubo, pode consistir no emprego de força física, nesta se esgotando, sem mais, o «esticão simples», através do qual o agente, agredindo a liberdade de determinação do ofendido, para se apossar da coisa em poder deste, realiza o fim da apropriação (Acórdão de 15-02-1995 in Colectânea,1, pp. 205), uma vez que “a lei não exige violência de certa intensidade. A violência típica do crime de roubo é a violência do próprio acto apropriativo sob a forma de emprego da forma física, maior ou menor. Não se impõe que ela vá alem do mero acto necessário e tendente ao apoderar do bem. Todo o emprego da força física contra a pessoa ofendida, à luz do escopo de alcançar a apropriação, cai, de pleno, sob a alçada do tipo legal do crime de roubo” (Acórdão de 27-02-1992 Colectânea , 1, pp. 48).
O STJ decidiu ainda neste sentido nos acórdãos de 12-6-1997 no BMJ, n.º 468 pp 140 e de 11-3-1998 (P. 20/98) no BMJ n.º 475, pp 217).
Como se afirma também no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) de 27-4-2011,processo 133/09.8GAOHP.C1, a jurisprudência a nível dos tribunais de segunda instância tem seguido este mesmo entendimento.
Assim, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP) de 13-4-1988, processo 0021905 considerou-se que “I – A violência exigida no tipo legal do crime de roubo terá de consistir no emprego de força física. II – Constitui violência, para o efeito, a subtracção por meio de «esticão»; mas, para este se verificar, é necessário que a coisa subtraída se encontre cingida ou presa à pessoa sobre quem o esticão incide”; No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) de 10-5-1995, processo 0039603, foi tido em conta que “a violência, imprescindível à configuração do crime de roubo, não tem, necessariamente, que consistir na lesão corporal da vítima, bastando o uso de força física em vista da subtracção, independentemente de qualquer contacto físico”; posteriormente, no Acórdão de 12-7-1995 processo 0004583, o TRL entendeu que “a violência, que é elemento integrante do tipo, significa o emprego de força física, não pressupondo, necessariamente, que tenham sido causadas lesões corporais, ex: «o processo de esticão».
Mais recentemente se consignou no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 3-5-2005, processo 185/05-1 que “a violência não pressupõe necessariamente que no ofendido sejam provocadas lesões, pois que pode até nem existir contacto físico, importando verdadeiramente a força empregue pelo agente em vista da subtracção”.
Perante um circunstancialismo com algumas similitudes ao em causa nos presentes autos, o acórdão do TRP de 12-5-2010, processo 361/08.3PAVNG.P1, decidiu que: “III – No crime de roubo a violência traduz-se no emprego da força física necessária e adequada a efectivar a subtracção/apropriação, não exigindo a lei um mínimo de intensidade da violência para o preenchimento do tipo legal. IV – A força empregue contra o ofendido para lhe retirar o telemóvel – perante a recusa, o agente, de forma brusca e imprevista, agarrou-lho da mão – basta para a consumação do crime de roubo” (todos acessíveis in www.dgsi.pt).
O arguido não indica, e também não vislumbramos, qualquer argumento válido que justifique discordar deste entendimento sedimentado na nossa jurisprudência.
Ora, a matéria de facto provada evidencia que o arguido, após se ter introduzido furtivamente na casa da vítima, dirigiu-se ao seu pai BB e disse-lhe “quero que me emprestes 30,00€”. Tendo este dito ao arguido que apenas tinha 10,00€, tendo-lhe cedido voluntariamente tal quantia. De imediato, através de ação repentina, necessariamente de surpresa, o arguido retirou da mão do seu progenitor um envelope que continha no seu interior com a quantia de 30,00€, contra a vontade deste. Não podendo aqui olvidar-se a situação de vulnerabilidade física que aquele BB apresentava, para além do clima de violência psíquica, ameaçador e coativo, a que vinha sendo sujeito por parte do arguido.
Ou seja, para além do circunstancialismo de facto provado constituir um comportamento intrusivo que atingiu o corpo da vítima, executado com o objetivo de lhe quebrar ou de lhe impedir a resistência e como meio para alcançar a apropriação, arrancando das mãos do seu progenitor o envelope com dinheiro que, na ocasião, tinha em seu poder, fazendo-o repentinamente, de forma a vencer qualquer resistência que aquele supostamente poderia exercer, também o cenário de violência psíquica que contextualizava a relação entre o arguido e os seus progenitores, para além da condição física debilitada em que se encontravam, poderá ser considerado como preenchedor do elemento objetivo da utilização de violência exigida no crime de roubo.
Assim sendo, a forma concreta como o arguido atuou perante a vítima constituiu o uso de violência relevante para efeito de preenchimento do tipo objetivo de roubo. A circunstância de a vítima não ter reagido, tudo indica, perante surpresa da ação, revela-se aqui absolutamente despicienda, uma vez que aquele arguido manteve o domínio e o consequente poder de disposição sobre o dinheiro, de que se apropriou.
As considerações expostas conduzem-nos assim a uma conclusão: o enquadramento jurídico dos factos pelo tribunal recorrido encontra-se corretamente delineado, nada havendo que alterar.
Face a tudo o exposto, tendo em conta a matéria provada nos pontos acima aludidos, temos por certo que a conduta do arguido preencheu todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo p. e p. pelo art. 210º, n.º 1, do CP.
Pelo que improcede também a sua insurgência quanto à qualificação jurídica alcançada em primeira instância quanto ao crime de roubo.
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Medida da pena
Como resulta de tudo o que se acabou de expor, a factualidade provada é apenas a que como tal foi fixada no acórdão da qual resulta, para além do mais, que a apurada conduta do arguido preenche os tipos, objetivo e subjetivo, dos crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, nºs 1, d) e 2, a) do Código Penal, e de roubo, p. e p. pelo art. 210º, nº 1 do mesmo diploma legal, por cuja prática foi condenado.
Sem que do arrazoado das alegações de recurso seja descortinável se o recorrente se insurge quanto às penas concretamente aplicadas a cada um dos crimes pela prática dos quais foi condenado, designadamente se às penas parcelares ou também, e somente, à pena única resultante da operação de cúmulo jurídico, de qualquer forma vamos tomar posição sobre todas as que foram fixadas no acórdão recorrido.
Alega o arguido que na fixação do quantum das penas aplicadas pela prática do crime de violência doméstica, depreende-se, não pondera adequadamente a sua situação pessoal, o facto de ter confessado os factos e demonstrar arrependimento, e a necessidade de as penas se adequarem à culpa e às exigências de prevenção, tanto geral como especial, em observância do princípio da proporcionalidade.
Se tais fatores fossem devidamente ponderados a favor do arguido, essas penas deveriam ter-se aproximado dos limites mínimos das molduras penais aplicáveis.
No que concerne ao crime de roubo, ultrapassada que está sua tentativa no sentido de que o seu comportamento fosse integrado, quando muito, na prática de um crime de furto, e que se enveredasse pela escolha de medida não detentiva, condenação em pena de multa, manifesta igual entendimento, tendo até em conta o valor não elevado que subtraiu e de que se apropriou.
Vejamos
A moldura penal abstratamente aplicável a cada dos dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, nºs 1, d) e 2, a) do Código Penal, por cuja prática foi o arguido condenado é a de 2 a 5 anos de prisão.
Por sua vez, ao crime de roubo a moldura penal abstratamente aplicável, de acordo com o previsto no artigo 210.º, nº 1, do Código Penal, por cuja prática foi o arguido condenado, é a de 1 a 8 anos de prisão.
O arguido, face aos seus antecedentes criminais, veio a ser condenado como reincidente, condição que não foi questionada e que, por isso, não será alvo de apreciação nesta sede.
Foram-lhe assim aplicadas as seguintes penas parcelares:
- 3 anos e 6 meses de prisão pela prática pelo arguido AA, como reincidente, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos art.ºs 26.º, 75º e 76º, 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2º, al. a), do Código Penal, na pessoa do seu progenitor;
- 3 anos e 6 meses de prisão pela prática pelo arguido AA, como reincidente, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelos art.ºs 26.º, 75º e 76º, 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2º, al. a), do Código Penal, na pessoa da sua progenitora;
- a pena de 18 meses pela prática pelo arguido AA, como reincidente, de um crime roubo, previsto e punido pelos art.ºs 26.º, 75º e 76º, 210.º, n.ºs 1, do Código Penal.
Em cúmulo jurídico dessas penas, foi o arguido condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão.
A determinação da medida concreta da pena, dentro da referida moldura penal abstrata, faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no artigo 71.º do Código Penal, tendo em vista as finalidades das respostas punitivas em sede de Direito Criminal, quais sejam, a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal – sem esquecer que a culpa constitui um limite inultrapassável da medida da pena – n.º 2 deste artigo.
A partir da revisão operada em 1995 ao Código Penal, a pena passou a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena no sentido de que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que dentro desse limite máximo a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
É este o critério da lei fundamental – artigo 18.º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995 (Cfr. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento, Sentido e Finalidade da Pena Criminal, 2001, págs. 104 a 111.).
No mesmo sentido se orienta o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 19/1/2000, Processo n.º 1193/99,. ao referir que «se, por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta nunca pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que – dentro, claro está, da moldura legal –, a moldura da pena aplicável ao caso concreto (“moldura de prevenção”) há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente: entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social».
Dito de outro modo, face ao disposto nos artigos 71.º, n.º 1 e 40.º, nºs 1 e 2 do Código Penal, «logo se vê que o modelo de determinação da medida a pena é aquele que comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente.
Por conseguinte, constituem a culpa e a prevenção os dois termos do binómio com que importa contar para delineamento da medida da pena» (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/3/2001, CJ, ACSTJ, Ano IX, Tomo I, pág. 245 ).
Daqui decorre que o juiz pode impor qualquer pena que se situe dentro do limite máximo da culpa, isto é, que não ultrapasse a medida da culpa, elegendo em cada caso aquela pena que se lhe afigure mais conveniente, tendo em vista os fins das penas com apelo primordial à tutela necessária dos bens jurídico-penais do caso concreto, tutela dos bens jurídicos não, obviamente, num sentido retrospetivo, face a um facto já verificado, mas com significado prospetivo, corretamente traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada; neste sentido sendo uma razoável forma de expressão afirmar-se como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, finalidade que, deste modo, por inteiro se cobre com a ideia de prevenção geral positiva ou de prevenção geral de integração, dando-se assim conteúdo ao exato princípio da necessidade da pena que o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República consagra. (Cfr. Figueiredo Dias, ibidem, págs. 105 a 106).
Revertendo ao caso dos autos, atentemos, agora, na medida concreta de cada uma das penas aplicadas ao arguido. Pela prática dos dois crimes de violência doméstica vem fixada em 3 anos e 6 meses de prisão, por cada um, pelo cometimento do crime de roubo foi condenado na pena de 18 meses de prisão.
Como ficou dito, a determinação da medida concreta da pena é feita em função das necessidades de prevenção e da culpa do agente (artigo 40.º, nºs 1 e 2 do Código Penal), refletindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite às exigências de prevenção e portanto, o limite máximo da pena.
A medida da pena resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto ou seja, da tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada – prevenção geral positiva ou de integração –, temperada pela necessidade de prevenção especial de socialização, constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena.
Para tanto, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime, nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal).
Nos termos do acórdão recorrido, na operação de determinação da medida concreta da pena, o tribunal a quo atendeu: «- às necessidades de prevenção geral que se entendem ser elevadíssimas, face ao ambiente vivenciado no nosso país, existindo um enorme alarme social ligado à prática de crimes de violência doméstica; - ao facto de o arguido ter confessado os factos de que vinha acusado, embora mantendo uma atitude desculpabilizante, denotou-se um arrependimento genuíno pelas condutas que resultaram provadas; - ao facto de a violência exercida ter sido essencialmente psicológica e emocional, mas revestindo uma grande agressividade psicológica; - ao dolo directo do arguido, estando plenamente consciente da ilicitude das suas condutas e da sua proibição face às normas legais vigentes; - às consequências da conduta do arguido, não tendo provocado lesões físicas aos ofendidos, mas tendo-lhes provocado um enorme medo e apreensão; - ao contexto em que os crimes foram praticados, após a libertação do arguido decorrente de cumprimento de pena de prisão e, parte dos factos, após a aplicação de medida de coacção que o impedia de contactar com os ofendidos, o que denota o desrespeito pelas normas sociais e jurídicas; - ao período temporal em que os factos ocorreram, que se fixa entre ../../2022 e ../../2024 (data da sua detenção); - aos problemas de foro psiquiátrico que o arguido apresenta, à falta de hábitos de trabalho do mesmo, à personalidade daquele (patente em audiência de discussão e julgamento, com a postura vitimizante e desculpabilizante), ao frágil apoio familiar e apreensão da comunidade em que o mesmo se insere; - aos antecedentes criminais do arguido que denotam que as anteriores condenações não foram suficientes para o afastar da prática de ilícitos criminais, tornando, ainda mais acentuadas as necessidades de prevenção especial.»
É manifestamente elevado o grau de ilicitude dos factos, designadamente quanto aos crimes de violência doméstica, dados os concretos atos (de violência psicológica e emocional), que se prolongaram por cerca de 2 anos, em que se consubstanciou a conduta do arguido contra os seus progenitores, a intensidade do dolo na sua modalidade mais grave, o dolo direto, a desintegração social, familiar e profissional do arguido, a ausência de juízo crítico sobre as suas condutas, uma vez que não obstante ter confessado os factos procurou sempre justificar o seu comportamento nos problemas do foro psiquiátrico de que padece (esquizofrenia) e ao entorno familiar e social em que está inserido, e a existência de antecedentes criminais por crimes idênticos e diverso. Não sendo despiciendo salientar o cenário e envolvência em que os factos se desenrolaram, logo após o arguido ter acabado de ser libertado da prisão, onde cumpriu pena de quatro anos pela prática de dois crimes de violência doméstica, por factos perpetrados também contra os seus progenitores, tendo sido o motivo pelo qual foi considerado reincidente, e punido como tal.
Dito isto.
O grau de ilicitude dos factos situa-se efetivamente num patamar bastante elevado, se tivermos em conta não só o período de tempo durante o qual se prolongou a conduta criminosa, o número de episódios de maus tratos ocorridos e a verdadeira extorsão de dinheiro aos seus pais, pessoas de provecta idade, reformados e de humilde condição.
O arguido agiu, ao longo de todo o período de tempo em que desenvolveu a sua conduta, com dolo intenso e persistente, revelador de acentuada energia criminosa, manifestando um total desrespeito e menosprezo para com os seus progenitores.
A violência doméstica é um fenómeno grave e preocupante como o evidenciam a cada passo os meios de comunicação social justificando uma particular intervenção político-criminal.
Os crimes praticados geram sentimentos de insegurança, justificando reforçadas necessidades de prevenção geral, quer de integração, quer de intimidação.
São, portanto, muito elevadas as exigências de prevenção geral.
No que respeita às exigências de prevenção especial fazem-se sentir tanto em face dos antecedentes criminais, mas sobretudo pela sua personalidade demonstrada nos factos, pois o arguido não revelou qualquer atitude demonstrativa de ter interiorizado o desvalor da sua conduta e a necessidade da sua censura penal, antes pelo contrário, tudo apontando para uma personalidade insensível à conformação com os valores tutelados pelas normas penais violadas e um manifesto desprezo e indiferença pelas condenações já sofridas e pelo período de reclusão por que passou.
- O arguido encontra-se social, familiar e profissionalmente desintegrado.
Assim, sobrepondo-se claramente as circunstâncias agravantes às circunstâncias atenuantes, que se atêm à confissão e arrependimento, sendo muito elevadas as necessidades de prevenção geral e elevadas as exigências de prevenção especial, as penas parcelares de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um dos crimes de violência doméstica, e de 18 (dezoito) meses pela prática do crime de roubo, fixadas pela 1ª instância, não merecem censura, posto que plenamente suportadas pela medida da culpa do arguido.
Cúmulo Jurídico
No que à pena única resultante da operação de cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas concerne, cumpre apenas dizer que sufragamos em absoluto o que vertido ficou no acórdão sob escrutínio, motivo pelo qual vamos transcrever parcialmente o que aí bem se deixou escrito a este respeito:
“(…) «Cabe proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares (de prisão) aplicadas ao arguido AA, nos termos do artigo 77º, nºs1 e 2, do CP. De acordo com o nº2, deste preceito legal, a moldura abstracta do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretas aplicadas – não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa –, e como limite mínimo a pena parcelar mais elevada. Deste modo, no caso vertente, deverá ser construída a seguinte moldura penal abstracta: -Para o AA: entre 3 (três) anos e 6 (seis) meses e 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão. A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do artigo 77º, nº1, do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido. À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente. Vide, a este propósito, Tiago Caiado Milheiro, Cúmulo Jurídico Superveniente – Noções Fundamentais, Almedina, Maio, 2016, p.106 Cumpre agora verificar os factos na sua globalidade e em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO (Vide “A Pena “Unitária” do Concurso de Crimes”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, nº1, p.162ss.) em anotação ao Acórdão do STJ, de 12 de Julho de 2005 . Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS (Vide Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p.291.) tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação desta personalidade unitária do agente releva, sobretudo, “a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização”( Vide Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p.291). Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita. E tem de ter uma fundamentação específica na qual se espelhem as razões por que, em atenção aos referidos factores (em particular a propensão ou não do agente para a prática de crimes ou de determinado tipo de crimes), se aplicou uma determinada pena conjunta. Na determinação da medida concreta da pena conjunta dentro da moldura penal abstracta, os critérios gerais de fixação da pena, segundo os parâmetros indicados – culpa e prevenção – contidos no artigo 71º, do CP, servem apenas de guia para essa operação de fixação da pena conjunta, pois os mesmos não podem ser valorados novamente sob pena de se infringir o princípio da proibição da dupla valoração, a menos que tais factores tenham um alcance diferente enquanto referidos à totalidade de crimes. ( Vide Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p.292, §422). Como se vê de todo o exposto, o nosso sistema caracteriza-se por ser um sistema de pena única ou conjunta, e não de pena unitária. A representação das penas singulares na pena conjunta é, em regra, parcial. (Vide, a este propósito, a exposição oral que o Exmo. Sr. Conselheiro Rodrigues da Costa efectuou no dia 04 de Março de 2011, no âmbito de uma acção de formação do Centro de Estudos Judiciários, que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto, acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/rodrigues_costa_cumulo_juridico.pdf). (…)” Tendo em consideração o que ficou sobredito, haverá que atentar que os crimes de que, aqui, se cuida ocorreram num período de tempo situado ../../2022 a ../../2024. Ora, tendo em conta todas as circunstâncias concretas já amplamente expostas, tem-se por proporcional e adequada a aplicação ao arguido de uma pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão.»
Desta forma, considerando tudo o que acima ficou exposto, e as regras impostas pelo art. 77º, nº 2, do CPP, tendo em conta as penas de 3 anos e 6 meses de prisão aplicadas pela prática de cada um dos dois crimes de violência doméstica, bem como a pena de 18 meses de prisão imposta pelo crime de roubo, a fixação da pena única em 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão – dentro de uma moldura que varia entre o mínimo de 3 anos e seis meses, e um máximo de 8 anos e 6 meses -, quantum em que à pena parcelar mais grave acresceu, em representação das outras penas parcelares, ligeiramente menos de metade da segunda pena de igual gravidade, e nem sequer foi contabilizada a terceira – , não merece censura, devendo por isso, ser mantida, a pena única encontrada.
Improcede, portanto, esta questão.
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Suspensão da Execução da Pena
O recurso interposto pelo recorrente tem ainda como escopo o reexame da matéria de direito, mais concretamente a suspensão na sua execução da pena aplicada.
Questionando a medida da pena única aplicada pela prática dos ilícitos penais que lhe foram imputados, como resulta das conclusões de recurso a que estamos circunscritos, ocupando parte da sua impugnação recursiva com a impugnação da pena de prisão efetiva que lhe foi imposta, manifesta o entendimento de que o tribunal recorrido deveria ter enveredado pela aplicação de pena próxima dos limites mínimos e de pena substitutiva de suspensão na sua execução da pena de prisão que fosse fixada na situação concreta.
No entanto, face ao acima decidido, a aplicação da pena de substituição de suspensão na sua execução da pena não é permitida no caso em apreço.
É que a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, pena de substituição em sentido próprio pois o seu cumprimento é feito extramuros e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão, depende da verificação de dois pressupostos.
Um pressuposto formal, a medida da pena aplicada ao agente não pode exceder cinco anos de prisão (artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal) e um pressuposto material, a possibilidade de o tribunal concluir pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão, realizarão de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição (artigo 50.º, nºs 1 e 2 do Código Penal).
Ora, o arguido foi condenado na pena de cinco (5) anos e dois (2) meses de prisão, pelo que a sua pretensão está à partida votada ao fracasso, por falta de verificação daquele pressuposto de ordem formal de aplicação da suspensão da execução da pena de prisão, previsto no aludido art. 50º, nº 1 do CP,.
Pelo que, também esta sua pretensão terá de improceder.
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III – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se na íntegra do acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs.
Notifique.
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)
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Guimarães 14 de outubro de 2025
Os Juízes Desembargadores
Relator - José Júlio Pinto
1ª Adjunta – Ausenda Gonçalves
2º Adjunto – Armando Azevedo