CONCLUSÕES
ÓNUS DO RECORRENTE
REJEIÇÃO
IRREGULARIDADE
INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO LEGAL
CONTABILIDADE ORGANIZADA
INDEMNIZAÇÃO
Sumário


I - A rejeição do recurso, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 641º do CPC, só pode ocorrer quando se verificar a uma falta absoluta de conclusões e não quando as mesmas sejam “complexas”, nomeadamente por serem extractos da motivação.
II – A tal situação aplica-se o disposto no n.º 3 do art.º 639º - prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento.
III – A contradição entre os fundamentos e a decisão é causa de nulidade da sentença – alínea c) do n.º 1 do art.º 615º do CPC – e não de error iudicando, o qual comporta erro de julgamento da matéria de facto ou da matéria de direito, substantivo ou processual.
IV – Aquela nulidade não é de conhecimento oficioso, não podendo o tribunal decretar um efeito não pretendido pela parte, atento o princípio do dispositivo carecendo de ser invocada e pedida a respectiva declaração.
V - Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, manter contabilidade organizada significa observar as seguintes regras:
i) todas as operações realizadas pelo sujeito passivo são objecto de registo/lançamento informático;
ii) o registo é efectuado de forma cronológica;
iii) os erros de registo são objeto de regularização contabilística logo que descobertos;
iv) o registo das operações não excede 90 dias, contados do último dia do mês a que as operações respeitam;
v) todos os registos estão apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário.
VI – A obrigação de manter contabilidade organizada é independente do facto de a sociedade ter, ou não, actividade e é substancialmente diferente da obrigação de manter a documentação fiscal pelo prazo de 10 anos.
VII – Uma leitura integrada da alínea e) do n.º 2 e do n.º 4 do art.º 189º do CIRE impõe que se considere que o valor da indemnização devida pelo afectado pela qualificação da insolvência como culposa, deve corresponder ao valor dos danos que o credor provavelmente não teria sofrido se não fosse a conduta daquele ou, dito de outra forma, deve corresponder ao valor dos danos que seja possível imputar causalmente à conduta que esteve na origem da qualificação da insolvência como culposa, não tendo, necessariamente, como referência o valor dos créditos não satisfeitos, que é, única e exclusivamente, o limite máximo da indemnização.
VIII – Se a fixação da indemnização pode estar facilitada na situação a que se refere a alínea a) do n.º 2 do art.º 186º, em que o prejuízo dos credores corresponde, ao valor dos bens destruídos, danificados, inutilizados, ocultados, ou feitos desaparecer, o mesmo não sucede em situações como a da alínea h) do n.º 2 do art.º 186º, em que podem não existir elementos seguros e consistentes que permitam fixar em montante certo o valor dos créditos cuja não satisfação possa ser imputada ao incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada.
IX – É ainda necessário que o tribunal tenha em consideração o período em que ocorreu a conduta omissiva que deu causa à qualificação da insolvência como culposa, sob pena de estar a quantificar para efeitos indemnizatórios créditos constituídos fora do período em que a mesma ocorreu - nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

Por sentença de 22/10/2021, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de EMP01..., Ldª.

A EMP02..., SA veio requerer a abertura do incidente pleno de qualificação da insolvência com afectação dos gerentes AA e BB.

Alegou para tanto, e em síntese, que: face à evolução da insolvente desde a sua constituição, há muito que a mesma se encontrava em situação de insolvência, tendo protelado o dever de apresentação à insolvência e acarretado um agravamento da sua situação económica que, por sua vez, despoletou maiores prejuízos para os credores; desde a data da sua constituição a empresa apenas cumpriu com a obrigação de prestar contas em 2003; a responsabilidade pela criação ou agravamento da situação de insolvência não resulta única e exclusivamente da actuação do sócio-gerente EMP01..., mas também da actuação de BB, que exerceu funções de gerente desde a data da constituição da insolvente até à sua renúncia em 2011 e continuou a ser gerente de facto após essa data.

Foi proferido despacho que determinou a abertura do incidente de qualificação da insolvência e ordenou a notificação do Sr. AI para apresentar parecer de qualificação.

O Sr. AI apresentou parecer dizendo, em síntese, que, no que concerne à contabilidade da insolvente, o signatário notificou o seu gerente por forma a obter os elementos necessários à análise dos mesmos para elaboração do Relatório a que alude o art.º 155º do CIRE, mas não obteve resposta; desde 2003 que não são apresentadas as prestações de contas pela sociedade insolvente; a presente declaração de insolvência deve ser enquadrada na alínea b) do n.º 3 do art.º 186º do CIRE; não dispõe de elementos contabilísticos e financeiros suficientes para o enquadramento do parecer nas restantes alíneas do n.º 2 (certamente por lapso refere-se n.º 1) do art.º 186º; considera-se que o gerente da sociedade adoptou uma conduta negligente que agravou ou afectou a situação económica ou financeira da sociedade.

Terminou afirmando que a insolvência deverá ser qualificada como culposa e a pessoa a ser afectada deverá ser AA, na qualidade de sócio gerente da insolvente.

O Ministério Público afirmou ser de parecer que a insolvente incumpriu com o dever de elaboração de contas anuais, no prazo legal, sua fiscalização e depósito na CRComercial, terminando declarando que a insolvência deve ser qualificada como culposa nos termos das alíneas h) e i) do n.º 2 e al. b) do n.º 3 e 4 do art.º 186º do CIRE.

Foi ordenada a notificação da insolvente e a citação de AA e BB para, querendo, deduzirem oposição.

Notificada a insolvente, a mesma nada disse.

O indicado AA pronunciou-se dizendo que: a indicada BB renunciou à gerência a 25/06/2009; a partir  daquela data a referida sociedade comercial não exerceu qualquer actividade e não entregou qualquer declaração fiscal de rendimentos; a 08/05/2017 remeteu um requerimento à CRComercial ... em que afirmou que a sociedade não exercia qualquer actividade desde 2009 e requereu que fosse determinado o procedimento de dissolução e liquidação da mesma; também remeteu requerimento ao Serviço de Finanças ... em que afirmou que a sociedade não exercia qualquer actividade desde 2009 e não entregou qualquer declaração fiscal de rendimentos desde essa data, terminando requerendo fosse ordenada a competente comunicação ao serviço de registo competente; nunca foi notificado por qualquer uma das referidas entidades para qualquer procedimento ou de qualquer decisão, desconhecendo o estado actual  do requerido procedimento de dissolução e liquidação administrativa da sociedade; desta forma considera que inexiste fundamento para a qualificação da insolvência como culposa e, em consequência, para a sua afectação pessoal.

Respondeu a requerente ao incidente, dizendo, em síntese, que: não tendo havido qualquer decisão de dissolução ou liquidação a sociedade manteve plena existência jurídica, continuando a impender sobre o gerente o dever de apresentar contabilidade organizada e de apresentar a sociedade à insolvência; o requerido não alega qualquer circunstância de facto ou de direito que possa desqualificar a insolvência como culposa; não é negado o papel de BB como gerente de facto.

A requerida BB, citada, nada disse.

Foi designada data para tentativa de conciliação, que se realizou, sem sucesso, tendo sido proferido despacho que fixou o valor da causa em € 5.000,001, julgou verificados tabularmente os pressupostos processuais, consignou o objecto do litígio  e os temas da prova, e pronunciou-se quanto às provas.

Realizou-se o julgamento e foi proferida sentença cujo decisório tem o seguinte teor:
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julga-se o presente incidente de qualificação de insolvência procedente e, por conseguinte, decide-se:
˗ declarar o presente incidente de qualificação de insolvência como limitado;
˗ qualificar a insolvência da sociedade EMP01..., Lda. como culposa;
˗ determinar a afectação, pela referida qualificação, do Requerido AA:
˗ por via disso, fixar em 3 (três) anos e 6 (seis) meses o período de inibição de AA para o exercício do comércio, bem como para a administração de patrimónios de terceiros, a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
˗ condenar o afectado Requerido AA a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património; e
˗ não afectar a Requerida BB pela qualificação da insolvência da sociedade EMP01..., Lda. como culposa.

Custas a cargo do Requerido AA - artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.”

O requerido AA interpôs recurso da sentença, pedindo a sua revogação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1ª. O Requerido não se conforma com a douta sentença recorrida que, conforme decisão final, julgou o incidente de qualificação de insolvência procedente; qualificou a insolvência da sociedade EMP01..., Lda. como culposa; e determinou a afetação, pela referida qualificação, do Requerido AA, ora Recorrente. São fundamentos:
2ª. A fls 2 da douta sentença, em “4. QUESTÕES A DECIDIR”, considerou-se que “Face aos contornos dados pelas partes ao litígio, as questões a solucionar são as seguintes: se a actuação da gerente AA e BB, nos 3 (três) anos anteriores ao início do processo de insolvência, criou ou agravou, deliberadamente ou com negligência grave, a situação de insolvência da sociedade EMP01..., Lda.”
3ª. Dão-se como integralmente reproduzidos e integrados os factos provados sob os nºs 1, 2, 3, 4, 5, 10, 11, 12, 13 e 15.
4ª. Dá se por integralmente reproduzida e integrada a fundamentação expressa na douta sentença a fls 13 a 15, até “Tal releva, sobretudo, quando se consideram os factos praticados nos últimos 3 (três) anos, a contar da data do início do processo de insolvência. “
5ª. De tal fundamentação afigura-se que a douta sentença considerou não se encontrarem preenchidos os requisitos necessários à qualificação da insolvência como culposa, previstos no artº 186º, nºs 1, 2 e 3 do CIRE.
6ª. TODAVIA, a final de fls. 15 e fls. 16, parte inicial, conclui considerando que:
 “Contudo, tal circunstância não obsta à conclusão final de se estar perante uma insolvência culposa, uma vez que se verificam factos-índice subsumíveis às presunções inilidíveis que conduzem a tal conclusão, designadamente, a inexistência de contabilidade organizada - artigo 186.º, n.º 2, alínea h), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
7ª. Com o que o Requerido não se conforma. DESDE LOGO, afigura-se que tal conclusão se afigura totalmente contraditória com o reproduzido a fls 13, 14 e 15 da douta sentença, quando refere, designadamente:
“Em face do exposto e considerando a factualidade dada como provada, verifica-se que o período relevante a ter em consideração se estende até 25.06.2018, pelo que é a partir deste marco temporal (embora, naturalmente, actos anteriores, quando integrados numa lógica de continuidade, possam ser relevantes) que importa analisar a factualidade subsumível aos comportamentos elencados.
(…)
“Assim, a ausência de resposta às solicitações do Administrador da Insolvência constitui um elemento desfavorável a ponderar, embora não se possa concluir pela existência de uma falta de colaboração reiterada.
Tal não significa que este circunstancialismo deva ser desconsiderado, mas, tão-somente, que o mesmo não preenche, por si só, os pressupostos para a presunção de insolvência culposa - artigo 186.º, n.º 2, alínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
(…)
Ademais, importa considerar que a inexistência de qualquer contabilidade conduziu, também, ao incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais …
(…)
Todavia, não ficou claro que tais aspectos hajam concorrido para a criação ou a agravamento da situação de insolvência, ou seja (e como supra se disse), não foi provado qualquer nexo de causalidade que permita concluir que a falta de apresentação à insolvência e o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, e de as submeter à devida fiscalização e/ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial, hajam contribuído para tal.
Com efeito, a verificação dos factos-índice relativos à culpa grave apenas permite presumir este requisito específico da insolvência culposa, sendo sempre necessária a prova dos demais requisitos, designadamente o nexo de causalidade, o que não se verificou.
Não se provaram factos suficientes que, por si sós, permitam concluir que aqueles aspectos hajam contribuído para a criação ou agravamento do estado de insolvência (não sendo suficiente, para tal efeito, o mero aumento das dívidas, por via dos juros de mora).
Tal releva, sobretudo, quando se consideram os factos praticados nos últimos 3 (três) anos, a contar da data do início do processo de insolvência. “
8ª. POR OUTRO LADO, do que é percetível daquela conclusão expressa fls. 15 e fls. 16, parte inicial da douta sentença, a insolvência culposa foi determinada, apenas, por via da “inexistência de contabilidade organizada”, prevista no artº 186.º, n.º 2, alínea h), do CIRE.
9ª. Quanto a este aspeto realça-se que dos factos dados como provados resulta o seguinte:
“4.. Consta da Insc. 2, da matrícula referida no ponto 1 dos factos provados, somente a Prestação de Contas, sob os n.ºs ...27 e ...30, dos anos de exercício de 2002 e de 2003, por transcrição de 2 registos/mero depósitos, com publicações no D.R. 2003/09/11 e 2004/11/08.
5. Desde, pelo menos, 25.06.2009 que a sociedade comercial referida no ponto 1 dos factos provados, não exerce qualquer actividade e não entrega qualquer declaração fiscal de rendimentos desde essa data.
(…)
10.. Em 25.06.2021, a EMP02..., S.A., intentou acção declarativa, sob a forma especial de processo de insolvência, contra a Insolvente EMP01..., Lda., que originou o Proc. n.º 694/21.3T8BGC, que correm termos Juízo Local Cível de Bragança - Juiz ..., Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, e a que os presentes autos estão apensos “
10ª. Por sua vez, o artº 130º, nº 1, do Código do IRC, que estabelece que “1 — Os sujeitos passivos de IRC, com exceção dos isentos nos termos do artigo 9.º, são obrigados a manter em boa ordem, durante o prazo de 10 anos, um processo de documentação fiscal relativo a cada período de tributação, que deve estar constituído até ao termo do prazo para entrega da declaração a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 117.º, com os elementos contabilísticos e fiscais a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.”
11ª. Desta forma, considerando que resultou provado que a sociedade insolvente não exerce qualquer atividade desde 25-06-2009, afigura-se evidente que o Requerido não incumpriu, em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada da insolvente, já que tal obrigação terminou dez anos após o términus do último ano em que exerceu atividade (31-12-2009) ou seja, em 31-12-2019, antes do início do processo de insolvência, que ocorreu em 25-06-2021.
12ª. Neste contexto, tendo ainda em conta que o processo de insolvência se iniciou em 25-06-2021, verifica-se que:
 A situação de insolvência não foi criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (ocorrido em 25-06-2021), ou seja até 25.06.2018.
 Não se verifica qualquer das situações a que aludem os nºs 1, 2 e 3 do artº 186º do CIRE.
13ª. O que, smo, deverá determinar a revogação da douta sentença que determinou a qualificação da insolvente como culposa.
Sem prescindir, acresce que:
14ª. Resultou também provado que:
“6. Em data não concretamente apurada, o Requerido AA remeteu uma comunicação á Conservatória do Registo Comercial ..., datada de 04.05.2017, na qual consta o seguinte:
 “Assunto: Requerimento para dissolução e liquidação administrativa de sociedade comercial (…)”
7. Em virtude do requerimento mencionado no ponto 6 dos factos provados, a
Conservatória do Registo Comercial ... decidiu não iniciar qualquer processo de dissolução e liquidação da sociedade, por considerar não se encontrarem reunidos os pressupostos legais para o efeito.
8.. Em 08.05.2017, o Requerido AA remeteu, por correio registado, uma comunicação ao Serviço de Finanças ..., datada de 08.05.2017, na qual consta o seguinte:
“Assunto: Requerimento para início oficioso do procedimento de dissolução e liquidação administrativa de sociedade comercial artº 5º, als. a) e b), do anexo III do Dec. Lei no 76-A/2006, de 29 de março (…)
9.. Em virtude do requerimento mencionado no ponto 8 dos factos provados, a Autoridade Tributária e Aduaneira decidiu não iniciar qualquer processo de dissolução e liquidação da sociedade, por considerar não ser competente para o efeito, tendo remetido o expediente à Conservatória do Registo Comercial ..., por considerar ser a entidade com competência para tanto. “
15ª. Tal circunstancialismo, considera-se, não pode deixar de ser considerado como traduzindo para o Requerido a prossecução de um dever de cuidado e diligência nos destinos da sociedade insolvente e é totalmente incompatível com qualquer das condutas a que alude o artº 186º, nºs 1, 2 e 3 do CIRE.
Ainda sem prescindir, acresce:
16ª. Como se disse, a douta sentença condenou o recorrente a “- condenar o afectado Requerido AA a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património;”
17ª. O que, smo, viola o disposto no artº 189º, nº 4, quando estabelece que “4 - Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.”
18ª Conclui-se por isso no sentido de que deverá ser considerado que a atuação do Requerido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência não criou ou agravou, deliberadamente ou com negligência grave, a situação de insolvência da sociedade EMP01..., Lda.
Salvo o devido respeito considera-se que foram violados os preceitos legais vindos de elencar.

A requerente contra-alegou, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. A Sentença recorrida deve ser mantida na integra, pois revelou-se justa e irrepreensível, quanto à análise da prova, as normas jurídicas a aplicar; a sua fundamentação é estruturada e os seus argumentos seguem a lógica necessária.
B. Deve manter-se, pois, todo o juízo de prova proferido pela Primeira Instância, que não nos merece qualquer crítica e subscrevemos na integra.
C. Não assiste, assim, qualquer razão ao Recorrente!
D. Sem prejuízo, o Recurso deve, desde logo, ser liminarmente indeferido, dada a ausência de conclusões de que padece.
E. É que das 18 intituladas Conclusões, apenas a primeira, a terceira, a quarta e a quinta não consubstanciam um literal copy/paste das Alegações.
F. Todas as demais intituladas conclusões são literais reproduções do corpo das Alegações.
G. Ora, a formulação das conclusões visa definir e delimitar o objeto do recurso, assim se circunscrevendo o campo de intervenção do Tribunal Superior.
H. In casu, o Recorrente limita-se a proceder a um exercício de copy/paste, sendo notória a ausência de esforço do Recorrente para sintetizar as suas alegações e para, concomitantemente, cumprir o ónus de formulação de conclusões.
I. O que deverá culminar na rejeição do recurso interposto, ao abrigo do artigo 641.º, n.º 2, alínea b), 2.ª parte, do CPC.
J. Sem prejuízo, e contrariamente ao defendido pelo Recorrente, entendemos verificados pressupostos para a qualificação da insolvência como culposa, conforme decidido na Sentença recorrida.
K. O Tribunal a quo fundamenta a sua decisão, essencialmente, no incumprimento do dever de manter a contabilidade organizada, o qual consubstancia uma das situações consideradas como presunção inilidível para a qualificação da insolvência como culposa, ao abrigo do artigo 186.º, n.º 2, alínea h), do CIRE.
L. De facto, considerando que apenas foram apresentadas contas inerentes aos exercícios dos anos de 2002 e 2003, é evidente a ausência de contabilidade organizada.
M. Pelo que dúvidas inexistem quanto à verificação de indícios para a qualificação da insolvência como culposa, nos termos do artigo 186.º, n.º 2, alínea h), do CIRE.
N. E note-se que apenas não fundamenta a qualificação da insolvência como culposa no incumprimento dos deveres de apresentação à insolvência e de apresentação de contas anuais, referidos nas alíneas a) e b), do n.º 3, do artigo 186.º do CIRE, por entender que não se verifica o requisito do nexo de causalidade entre o incumprimento desses deveres e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
O. Sem prejuízo, atendendo a que o incumprimento do dever de manter a contabilidade organizada consubstancia uma presunção inilidível para qualificação da insolvência como culposa, outra não podia ser a decisão do Tribunal a quo, a qual deve, assim, manter-se integralmente inalterada.
P. Ademais, ainda quanto ao dever de manter contabilidade organizada, este consta consagrado no artigo 123.º, n.º 1 do CIRC, não prevendo a lei qualquer prazo limite para o cumprimento desta obrigação.
Q. Dever diferente é o consagrado no artigo 130.º, n.º 1, do CIRC, que se traduz no dever de apresentar um dossier fiscal respeitante a cada ano fiscal, e que deve manter-se por um período de 10 anos.
R. Não existe, assim, qualquer limite temporal aplicável ao dever de manter a contabilidade organizada, do qual o Recorrente se poderia fazer valer, para justificar a inexistência de contabilidade organizada da sociedade insolvente.
S. O que leva a concluir, novamente, pelo incumprimento deste dever, suficiente em si mesmo para a qualificação da insolvência como culposa.
T. Por outro lado, o facto de a sociedade ora insolvente não exercer atividade desde 2009 – como o admite o próprio Recorrente – e a dissolução administrativa da mesma apenas ter sido requerida em 2017, é demonstrativo do incumprimento de deveres de diligência e zelo.
U. Foi necessário o decurso de oito anos de inatividade da sociedade ora insolvente para que o Recorrente agisse requerendo a dissolução da mesma.
V. Ademais, considerando a ausência de notificação do Recorrente entre 2017 e 2021, data do início do processo de insolvência, não tendo ocorrido sobre a sociedade insolvente qualquer decisão de dissolução ou liquidação, a sociedade manteve a sua existência jurídica.
W. Não podia, assim, o Recorrente ter desmazelado os seus deveres de gerência no período posterior à data em que requereu a dissolução administrativa.
X. O que acentua, mais ainda, o incumprimento de deveres de zelo, diligência e cuidado, por parte do Recorrente.
Y. Por fim, relativamente à fixação do valor indemnizatório, a sentença proferida é manifestamente clara: o valor indemnizatório corresponde ao valor dos créditos não satisfeitos pela massa insolvente.
Z. Considerando que a massa insolvente foi declarada insuficiente para satisfação dos créditos reclamados, o valor indemnizatório corresponde ao valor dos créditos reclamados, no montante de 103.123,41€ (cento e três mil, cento e vinte e três euros e quarenta e um cêntimos).
Nesse sentido, tudo compulsado,
AA. deverá o Tribunal julgar o Recurso interposto totalmente improcedente, mantendo-se inalterada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, o que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

2. Questão prévia – da invocada inadmissibilidade do recurso
2.1. Enquadramento jurídico
A recorrida requereu que o recurso fosse rejeitado ao abrigo do disposto no artigo 641.º, n.º 2, alínea b), 2.ª parte, do CPC, invocando para tanto, e em síntese, que as conclusões são reproduções literais do corpo das alegações.

Dispõe o n.º 1 do art.º 639º do CPC que “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.”

Este normativo impõe dois ónus: o de alegação e o de conclusão.

Quanto ao último, dispõe o art.º 641º, n.º 2, alínea b) do CPC que o requerimento é indeferido quando a alegação não tenha conclusões.

A norma tem em vista, como resulta do seu teor literal, a falta absoluta de conclusões (neste sentido Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, pág.s 182 e 184).

Por isso, não quadra a tal situação a complexidade das conclusões, como sucede quando “constituam mera repetição de argumentos anteriormente apresentados”, quando “transfer[..]em para o segmento que deve integrar as conclusões, argumentos, referências doutrinais ou jurisprudenciais propícias ao segmento da motivação”, quando “acabam por ser mera reprodução dos argumentos anteriormente apresentados, sem qualquer preocupação de síntese” (Abrantes Geraldes, ob. cit. pág. 185-186).

Como resulta do n.º 3 do art.º 639º, em caso de complexidade das alegações, o relator deve convidar o recorrente a sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso na parte afetada.

E no referido sentido refere Abrantes Geraldes in ob. cit., pág. 187, nota 321:
“Embora seja claramente errada a reprodução no segmento das conclusões do teor da motivação, tal não corresponde a uma situação de “falta de conclusões”. Mais se ajusta considerar que se trata de conclusões excessivas ou prolixas, dirigindo ao recorrente um despacho de convite ao aperfeiçoamento, sem embargo da aplicação de alguma sanção sustentada na violação clara de um ónus processual.”

Na jurisprudência, a título meramente ilustrativo e com abundante recensão de jurisprudência do STJ, o Ac. do STJ de 16/09/2025, processo 259/23.5T8VNG.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj sumariado nos seguintes termos:

I.- Num recurso, a repetição, em segmento que o recorrente designa “conclusões”, de tudo o que, antes, no corpo das alegações, foi referido pelo recorrente, não corresponde à audiência de conclusões e não permite, por isso, que, com base na al.ª b), do n.º 2, do art.º 641.º, do C.P.C., se rejeite o recurso.
II.- Em tal hipótese, estar-se-á perante uma situação de conclusões complexas ou excessivas, a que é aplicável o n.º 3, do art.º 639.º, do C.P.C., devendo ser proferido despacho de aperfeiçoamento que permita à parte superar a irregularidade processual cometida (passando apresentar conclusões sintéticas n.º 1, do art.º 639.º, do C.P.C.).

Quanto à prolação do despacho de aperfeiçoamento “fica dependente do juízo que for feito acerca da maior ou menor gravidade das irregularidades ou incorreções, em conjugação com a efectiva necessidade de uma nova peça processual que respeite os requisitos legais” (Abrantes Geraldes, ob. cit. pág. 188).

2.2.  Em concreto
O recurso tem conclusões, pelo que, face ao exposto em sede de enquadramento jurídico, é manifestamente improcedente a sua rejeição à luz do disposto na alínea b) do n.º 2 do art.º 641º do CPC, o qual só se aplica à falta absoluta de conclusões.

E muito embora as conclusões recursivas consistam, efectivamente, em extractos da motivação, não se mostra necessário proferir despacho de aperfeiçoamento porque tal facto não constituiu obstáculo ao exercício do contraditório pela recorrida, que identificou e analisou as questões suscitadas no recurso e que cabe apreciar.

Em face do exposto, improcede a pretendida rejeição do recurso.

3. Questões a apreciar
O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida.

As questões que cumpre apreciar são:
- Existe contradição entre a decisão e os fundamentos da sentença recorrida?
- Não tendo a sociedade insolvente qualquer actividade desde 25/06/2009, a obrigação de manter contabilidade organizada terminou a 31/12/2019?
- A apresentação junto da CRComercial do requerimento de dissolução da sociedade e a comunicação ao Serviço de Finanças ... que a sociedade não tinha qualquer actividade desde 2009 são incompatíveis com qualquer uma das causas de qualificação previstas nos n.ºs 1, 2 e 3 do art.º 186º do CIRE?
- A sentença recorrida violou o disposto no n.º 4 do art.º 189º do CIRE ao não fixar o valor das indemnizações devidas?

4. Fundamentação de facto

A decisão recorrida considerou:

4.1. FACTOS DADOS COMO PROVADOS
1. Consta da matrícula, da Conservatória do Registo Comercial, sob o NIPC ...67, que a sociedade comercial registada tem a firma de EMP01..., Lda., que é uma Sociedade por Quotas, com sede no Condomínio ...., ... ..., que tem um capital social de 25 000,00 € (vinte e cinco mil euros), objecto social “Exploração de cafetaria, confeitaria , e snack-bar/livraria, tabacaria, jornais e afins”, com CAE Principal ...-R3 e ...3, o gerente o Requerido AA, portador do NIF ...81.
2. Consta da Ap....01, da matrícula referida no ponto 1 dos factos provados, que a sociedade comercial EMP01... Lda. tinha como sócios os Requeridos AA e BB, casados entre si, no regime de bens de comunhão de adquiridos, sendo o valor da quota, de cada um, de 12 500,00 € (doze mil e quinhentos euros), sendo a gerência exercida por ambos e a forma de obrigar a assinatura de qualquer um dos gerentes.
3. Consta da AP. ...25, da matrícula referida no ponto 1 dos factos provados, a cessação de funções de BB como gerente, por renúncia, a 25.06.2009.
4. Consta da Insc. 2, da matrícula referida no ponto 1 dos factos provados, somente a Prestação de Contas, sob os n.ºs ...27 e ...30, dos anos de exercício de 2002 e de 2003, por transcrição de 2 registos/mero depósitos, com publicações no D.R. 2003/09/11 e 2004/11/08.
5. Desde, pelo menos, 25.06.2009 que a sociedade comercial referida no ponto 1 dos factos provados, não exerce qualquer actividade e não entrega qualquer declaração fiscal de rendimentos desde essa data.
6. Em data não concretamente apurada, o Requerido AA remeteu uma comunicação à Conservatória do Registo Comercial ... , datada de 04.05.2017, na qual consta o seguinte:
“Assunto: Requerimento para dissolução e liquidação administrativa de sociedade comercial
AA, divorciado, NIF ...81, residente em Av. ..., loteamento..., lote ..., ... - tras, ..., vem, na qualidade de sócio e gerente ainda designado da sociedade comercial denominada "EMP01..., Lda", titular do número único de pessoa coletiva e registo comercial ...67, com sede em ..., expor e requerer a V. Exa. o seguinte:
A sociedade comercial identificada não exerce qualquer atividade desde pelo menos a ano de 2009 preenchendo desta forma o requisito previsto no artº 4º, al. c), do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais.
Termos em que requer a V. Exa. se digne determinar o respectivo procedimento de dissolução e liquidação da identificada sociedade comercial.”
7. Em virtude do requerimento mencionado no ponto 6 dos factos provados, a Conservatória do Registo Comercial ... decidiu não iniciar qualquer processo de dissolução e liquidação da sociedade, por considerar não se encontrarem reunidos os pressupostos legais para o efeito.
8. Em 08.05.2017, o Requerido AA remeteu, por correio registado, uma comunicação ao Serviço de Finanças ..., datada de 08.05.2017, na qual consta o seguinte:
“Assunto: Requerimento para início oficioso do procedimento de dissolução e liquidação administrativa de sociedade comercial artº 5º, als. a) e b), do anexo III do Dec. Lei no 76-A/2006, de 29 de março
AA, divorciado, NIF ...81, residente em Av. ..., loteamento..., lote ..., ... - tras, ..., vem, na qualidade de sócio e gerente ainda designado da sociedade comercial denominada “EMP01..., Lda”, NIPC ...67, com sede em ..., expor e requerer a V. Exa. o seguinte:
A sociedade comercial identificada não exerce qualquer actividade desde, pelo menos, o ano de 2009 e não entregou qualquer declaração fiscal de rendimentos desde essa data.
Nestes pressupostos, requer a V. Exa. se digne ordenar a cometente comunicação ao serviço de registo competente, o que faz nos termos do artº 5º, als. a) e b) e para os efeitos do artº 4º, al. c), do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais.”.
9. Em virtude do requerimento mencionado no ponto 8 dos factos provados, a Autoridade Tributária e Aduaneira decidiu não iniciar qualquer processo de dissolução e liquidação da sociedade, por considerar não ser competente para o efeito, tendo remetido o expediente à Conservatória do Registo Comercial ..., por considerar ser a entidade com competência para tanto.
10. Em 25.06.2021, a EMP02..., S.A., intentou acção declarativa, sob a forma especial de processo de insolvência, contra a Insolvente EMP01..., Lda., que originou o Proc. n.º 694/21.3T8BGC, que correm termos Juízo Local Cível de Bragança - Juiz ..., Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, e a que os presentes autos estão apensos.
11. Em virtude do referido no ponto 9 dos factos provados, foi proferida Sentença, a 22.10.2021, que transitou em julgado, que declarou a insolvência da sociedade EMP01..., Lda., tendo sido nomeado como Administrador da Insolvência o Dr. CC.
12. O Administrador da Insolvência o Dr. CC notificou o Requerido AA para o fornecimento dos elementos que considerou necessários para a elaboração do seu Relatório, relativo ao disposto no artigo 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, sendo que aquele nada disse.
13. Em virtude do referido nos pontos 5 e 12 dos factos provados, o Administrador da Insolvência não conseguiu analisar quaisquer dados de contabilidade.
14. A morada da sede da Insolvente EMP01..., Lda. corresponde a uma garagem da casa da mãe do Requerido AA.
15. A Insolvente EMP01..., Lda. não é titular de quaisquer bens.
16. Consta da Lista de Créditos Reconhecidos, elaborada pelo Administrador da Insolvência, que a Insolvente EMP01..., Lda. tem um passivo de 103 123,41 € (cento e três mil, cento e vinte três euros e quarenta e um cêntimos), nos termos seguintes:
16.1. Fazenda Nacional: 10 083,52 € (dez mil, oitenta e três euros e cinquenta e dois cêntimos);
16.2. Instituto da Segurança Social, I.P.: 1 121,65 € (mil, cento e vinte e um euros e sessenta e cinco cêntimos);
16.3. EMP03..., S.A.: 1 267,22 € (mil, duzentos e sessenta e sete euros e vinte e dois cêntimos);
16.4. Banco 1..., S.A.: 6 099,71 € (seis mil, noventa e nove euros e setenta e um cêntimos);
16.5. EMP04..., S.A.: 22 444,23 € (vinte e dois mil, quatrocentos e quarenta e quatro euros e vinte e três cêntimos);
16.6. EMP02..., Lda.: 62 107,08 € (sessenta e dois mil, cento e sete euros e oito cêntimos).
17. Em virtude do referido nos pontos 12 a 15 dos factos provados, foi determinado, a 14.12.2021 [ref. ...15] o encerramento do processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente.
18. Contra a Insolvente EMP01..., Lda. foram instaurados as acções executivas seguintes:
18.1. Processo n.º 230/06.1TBBGC, que correu termos no ... Juízo (extinto), do Tribunal Judicial Bragança, cujo valor exequendo era de 429,40 € (quatrocentos e vinte e nove euros e quarenta cêntimos), tendo terminado por via de interrupção, nos termos do 285.º do Código de Processo Civil (antigo);
18.2. Processo n.º 55619/06.6YYLSB, que correu termos no ... Secção do ... Juízo de Execução (extinto) do Tribunal Judicial de Lisboa, cujo valor exequendo era de 1 020,00 € (mil e vinte euros), tendo sido extinto por inutilidade superveniente, nos termos do artigo 833.º-B, n.º 6, do Código de Processo Civil (antigo) e sem pagamento;
18.3. Processo n.º 402/07.1TBBGC, que correu termos no ... Juízo (extinto) do Tribunal Judicial de Bragança, cujo valor exequendo era de 1 902,00 € (mil, novecentos e dois euros), tendo sido extinto por pagamento integral;
18.4. Processo n.º 775/07.6TBBGC, que correu termos no ... Juízo (extinto) do Tribunal Judicial de Bragança cujo valor exequendo era de 5 780,76 € (cinco mil, setecentos e oitenta, tendo sido extinto por inutilidade superveniente, nos termos do artigo 833.º-B, n.º 6, do Código de Processo Civil (antigo) e sem pagamento;
18.5. Processo n.º 4608/07.5TBBRG, que correu termos no ... Juízo Cível (extinto) do Tribunal Judicial de Bragança, cujo valor exequendo era de 6 759,55 € (seis mil, setecentos e cinquenta e nove euros e cinquenta e cinco cêntimos), tendo sido extinto por inutilidade superveniente;
18.6. Processo n.º 1527/09.4TBBGC, que correu termos no Juízo Local Cível de Bragança – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança cujo valor exequendo era de 1 787,34 € (mil, setecentos e oitenta e sete euros e trinta e quatro cêntimos), tendo sido extinto por falta/insuficiência de bens;
18.7. Processo n.º 9183/12.6TBOER, que correu termos no Juízo Execução de Oeiras - Juiz ..., do Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, cujo valor exequendo era de 13 985,63 € (treze mil, novecentos e oitenta e cinco euros e sessenta e três cêntimos);
18.8. Processo n.º 52471/06.5YYLSB, que correu termos no Juízo Execução de Lisboa - Juiz ..., do Judicial da Comarca de Lisboa, cujo valor exequendo era de 13 997,83 € (treze mil, novecentos e noventa e sete euros e oitenta e três cêntimos); e
18.9. Processo n.º 25671/07.3YYLSB, que correu termos no Juízo Execução de Lisboa - Juiz ..., do Judicial da Comarca de Lisboa, cujo valor exequendo era de 2 531,78 € (dois mil, quinhentos e trinta e um euros e setenta e oito cêntimos).

*
4.2. FACTOS DADOS COMO NÃO PROVADOS
a) A Requerida BB, desde 25.06.2009 e apesar do referido no ponto 3 dos factos provados, decide e orienta a actividade da Insolvente EMP01..., Lda.
b) O Requerido AA desconhece o estado do por si requerido nos pontos 6 e 7 dos factos provados [por lapso constava alínea 6 dos factos não provados, quando os factos não provados não têm ponto 6 e muito menos alíneas]

4.3. Deficiência da decisão de facto
Constata-se que o Sr. AI invocou no seu parecer a aparente inexistência de contabilidade da devedora.

No entanto a fundamentação de facto não contempla tal factualidade.

E a mesma é essencial para a decisão da causa, pelo que estamos perante uma deficiência da decisão de facto, a qual é de conhecimento oficioso, nos termos do corpo do n.º 2 do art.º 662º e que deve ser suprida nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 662º uma vez que os autos contêm os elementos necessários para tal.

Assim, o ora recorrente, na oposição que deduziu ao incidente de qualificação, não só não colocou em causa a referida afirmação, como invoca que a insolvente não tem actividade desde Junho de 2009 (facto que ficou provado – cfr. ponto 5), intentando, assim, justificar (validamente ou não, veremos em sede de fundamentação de direito) a inexistência de contabilidade.

Em face de tudo o exposto, adita-se à fundamentação de facto um ponto 13 A) com o seguinte teor:
13 A) Desde Junho de 2009 que a insolvente deixou de proceder a qualquer  registo/lançamento (contabilístico) das respectivas operações activas e passivas.

5. Fundamentação de direito
5.1. Da qualificação de insolvência – enquadramento jurídico
O art.º 185º do CIRE dispõe que a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita.

A insolvência é culposa, diz o n.º 1 do art.º 186º do CIRE, quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Quanto ao último segmento da norma citada, importa ter em consideração o disposto no n.º 2 do art.º 4º do CIRE: todos os prazos que no CIRE têm como termo final o início do processo de insolvência, abrangem, igualmente, o período compreendido entre esta data e a da declaração de insolvência.

Destarte, o n.º 1 do art.º 186º só atribui relevância a uma “…actuação…”  que tenha ocorrido “….nos três anos anteriores…” à data da declaração da insolvência.

A lei não define o que seja a insolvência fortuita, pelo que esta se define por exclusão: será fortuita a insolvência que não seja qualificada como culposa.

O incidente de qualificação da insolvência foi introduzido no ordenamento jurídico português pelo CIRE, aprovado pelo DL 53/2004 de 18/03, tendo sido objecto de alterações relevantes pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril e novamente objecto de alterações pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro.

E no ponto 40 do Preâmbulo do DL 53/2004 afirma-se:
“Um objectivo da reforma introduzida pelo presente diploma reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas. É essa a finalidade do novo “incidente de qualificação da insolvência”.
As finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações.”

Assim, o incidente de qualificação de insolvência destina-se a averiguar se, e em que medida, as razões que conduziram à insolvência correspondem a uma actuação censurável.

O n.º 1 do art.º 186º só atribui relevância a uma “…actuação, dolosa ou com culpa grave,…”.
 
O CIRE não contém qualquer definição de culpa grave ou dolo, pelo que a este respeito há que ter em consideração as noções gerais de direito civil (Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680).

E ainda no que respeita ao n.º 1 do art.º 186º e à sua referência aos administradores de direito (tenha-se em consideração que a norma também abrange os administradores de facto), o n.º 1 do art.º 6º do CIRE considera administradores para efeitos do CIRE:
a) Não sendo o devedor uma pessoa singular, aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente;
b) Sendo o devedor uma pessoa singular, os seus representantes legais e mandatários com poderes gerais de administração.
           
A locução do n.º 1 do art.º 186º do CIRE “… em consequência da…” remete-nos, em termos gerais, para a necessidade de verificação de um nexo de causalidade entre a “ …actuação, dolosa ou com culpa grave,…”  e a criação ou agravamento da insolvência.
           
No entanto, o regime de qualificação da insolvência compõe-se, ainda, de um conjunto de presunções (inilidíveis e ilidíveis), que facilitam a qualificação da insolvência (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2ª edição, pág. 300).

As primeiras constam do n.º 2 do art.º 186º; as segundas do n.º 3 do mesmo normativo.

O n.º 2 do art.º 186º do CIRE dispõe (sublinhados nossos):
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º

As diversas alíneas do n.º 2 podem ser agrupadas em três categorias:
i) Actos que afectam, no todo ou em parte considerável, o património do devedor – alíneas a) e c);
 ii) Actos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros – alíneas b), d), e), f) e g);
iii) Incumprimento de certas obrigações legais – as alíneas h) e i) (Carvalho Fernandes, in A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor, in Themis, Edição Especial, 2005, pag. 95, nota 23, seguido por Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, pág. 152).

Dada a utilização no corpo do n.º 2 do vocábulo “…sempre…” estamos perante presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário (cfr. art.ºs 349º e parte final do n.º 2 do art.º 350.º, ambos do CC) - neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680; Carneiro da Frada, in A Responsabilidade dos Administradores na insolvência, in ROA, Ano 66, II, Lisboa, Setembro de 2006, pág. 653-702; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, pág. 151 e a título meramente exemplificativo, já que a jurisprudência sobre a questão é vasta, o Ac. do STJ de 6/10/2011, 46/07.8TBSVC-O.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj, sumariado da seguinte forma:
“2. O nº 2 do art. 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no nº 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa.”

Daqui decorre que, no âmbito do n.º 2, verificado o facto-índice, não só não é necessária, como é contra legem, qualquer concreta indagação quanto à existência de dolo ou culpa grave do devedor.

O elenco do n.º 2 é taxativo (Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680).

Por outro lado, o n.º 2, ao dispor que “Considera-se sempre culposa a insolvência…”, dá por preenchida a previsão normativa do nº 1, o que abarca o nexo de causalidade, ou seja, verificado algum dos factos-índice do n.º 2, não há lugar a discussão quanto à verificação do nexo de causalidade (cfr. nomeadamente José Manuel Branco, Responsabilidade patrimonial e insolvência culposa (Da falência punitiva à insolvência reconstitutiva), Almedina, 2015, pág. 13 e 32 e Menezes Leitão, Direito da insolvência, Almedina, 10ª edição, pág. 288).
           
Finalmente e como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, pág. 681 “as várias alíneas do preceito exigem uma ponderação casuística.”

Por contraponto, no que respeita ao nº 3 do mesmo art.º 186.º, havia divergência na doutrina e na jurisprudência quanto à questão de saber se o mesmo estabelecia, apenas, uma presunção ilidível de culpa grave ou, também, uma presunção de causalidade.

Hoje a questão está resolvida, na medida em que a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro alterou o citado n.º 3, que passou a dispor: “Presume-se unicamente a existência de culpa grave…”
           
Com a introdução do inciso “unicamente” não pode, hoje, haver dúvidas, que o citado normativo estabelece, apenas, uma presunção ilidível de culpa grave e não, também, uma presunção de causalidade.

Em virtude do n.º 4, o n.º 2 também se aplica à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.

5.2. Da alínea h) do n.º 1 do art.º 186º
No que releva para o recurso, recorde-se que o art.º 186º, n.º 2, alínea h) dispõe (sublinhados nossos):
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
(…)
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

Impõe-se uma primeira delimitação, através do confronto desta alínea com a alínea b) do n.º 3 do mesmo normativo, a qual dispõe (sublinhado nosso):
“3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
“(…)
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.”

Uma das projecções jurídicas da contabilidade é a “prestação de contas” por parte das empresas, hodiernamente designadas “demonstrações financeiras”, e que têm em vista permitir uma verificação periódica do respectivo estado financeiro-patrimonial (Engrácia Antunes, in Direito da Contabilidade, Almedina, pág. 47) e que se traduz no “conjunto de documentos de relato financeiro, elaborado de acordo com um modelo ou plano contabilístico normalizado, que têm por objecto apresentar, de um modo verdadeiro e apropriado, a situação e o desempenho financeiros de uma empresa em determinado momento e/ou durante determinado período, com vista à sua divulgação junto dos interessados” (aut. e ob. cit. pág. 75-76, sendo o sublinhado nosso).

E mais adiante, pág. 107-108, refere o mesmo aut. (bold nosso) que “designa-se por contas anuais (…) - também por vezes designadas redutoramente “contas de exercício” e “demonstrações financeiras anuais” – o conjunto de documentos de prestação de contas, de natureza contabilística, comercial ou outra, relativos ao exercício anual de uma empresa, individual ou colectiva, com vista a apurar e divulgar a situação económico-financeira e patrimonial da mesma.
O legislador comercial não se bastou com a exigência geral de manutenção de uma escrituração mercantil (art.º 29 do CCom), impondo ainda aos empresários uma obrigação de estes realizarem periodicamente o ponto da respetiva situação económico-financeira e patrimonial – traduzida no dever de prestação de contas anuais: nos termos do art.º 62º do CCom, “todo o comerciante é obrigado a dar balanço anual ao seu ativo e passivo nos três primeiros meses do ano imediato.”

E refere ainda - pág. 111-112 (bold nosso): “A obrigação de prestação de contas anuais da generalidade das empresas tem por objecto um conjunto de documentos de prestação de contas, de natureza contabilística, comercial ou outra, relativamente ao respetivo exercício anual. Tais documentos são os seguintes: as demonstrações financeiras anuais (ou ”contas de exercício”), o relatório de gestão, o relatório de governo societário, a certificação legal das contas, e a demonstração não financeira, para além de outros documentos de prestação de contas previstos na lei (v.g. , parecer do órgão de fiscalização, declaração sobre politica de remuneração).”

Destarte, a alínea b) do n.º 3 do art.º 186º reporta-se à elaboração, fiscalização e depósito das contas anuais, o que se traduz na apresentação das demonstrações financeiras anuais (ou ”contas de exercício”), o relatório de gestão, o relatório de governo societário, a certificação legal das contas, e a demonstração não financeira, para além de outros documentos de prestação de contas previstos na lei (v.g. , parecer do órgão de fiscalização, declaração sobre politica de remuneração) que sejam aplicáveis ao caso.
 
O modelo oficial da “prestação de contas” por parte das empresas, consta do Sistema de Normalização Contabilística aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13-07-2009, alterado pelo DL n.º 98/2015, de 02 de Junho.

Assim, e uma vez que a alínea a) do n.º 3 do art.º 186º coexiste com a alínea h) do n.º 2 do mesmo normativo, e que na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9º do CC), deve entender-se que a alínea h) se refere a uma outra e diversa realidade da obrigação de elaboração, fiscalização e depósito das contas anuais/demonstrações financeiras.

Uma segunda delimitação surge em virtude de a alínea f) do n.º 1 do art.º 24º também utilizar a expressão “contabilidade organizada”.

Dispõe a citada alínea que, quando o devedor seja o requerente da insolvência e tiver contabilidade organizada, junta as contas anuais relativas aos três últimos exercícios, bem como os respectivos relatórios de gestão, de fiscalização e de auditoria, pareceres do órgão de fiscalização e documentos de certificação legal, se forem obrigatórios ou existirem, e informação sobre as alterações mais significativas do património ocorridas posteriormente à data a que se reportam as últimas contas e sobre as operações que, pela sua natureza, objecto ou dimensão extravasem da actividade corrente do devedor.

Em termos literais verifica-se que o art.º 186º, n.º 2, alínea h) reporta-se à obrigação de manter contabilidade organizada; o art.º 24º, n.º 1, alínea f) reporta-se a uma situação jurídica“tiver contabilidade organizada”.

Não cabe aqui dilucidar o conceito de contabilidade organizada utilizado na alínea f) do n.º 1 do art.º 24º.

Pode, no entanto, considerar-se, face ao disposto no art.º 123º do CIRC, que o mesmo tem em vista um regime de tributação de direito fiscal que é o da contabilidade organizada, por oposição ao regime simplificado.

Avançando.

A alínea h) do nº 2 do art.186º do CIRE reporta-se ao incumprimento de uma obrigação de fonte legal.

Cumpre apurar qual seja essa fonte

Do ponto de vista do direito comercial, o art.º 29º do CCom, na redacção do DL 76-A/2006, de 29/3, dispõe que todo o comerciante é obrigado a ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei.

Acrescente-se que o art.º 40º n.º 1 do C Com dispõe que todo o comerciante é obrigado a arquivar a correspondência emitida e recebida, a sua escrituração mercantil e os documentos a ela relativos, devendo conservar tudo pelo período de 10 anos, sendo que, nos termos do n.º 2 os documentos podem ser arquivados com recurso a meios electrónicos (esta norma está replicada no art.º 130º do CIRC como veremos adiante).

Pires Cardoso, in Noções de Direito Comercial, 10ª edição, pág. 98-99 afirmava que “a contabilidade, através da escrituração, revela ao comerciante a sua situação económica e financeira em determinado momento, os resultados - lucros e perdas - de cada exercício. E assim como lhe releva os erros da sua actuação em certos aspectos do seu comércio, permitindo-lhe modificá-la, também lhe mostra os benefícios trazidos pela sua orientação em outros aspectos, animando-o a continuá-la (...).
(…)
Mas mais ainda. A escrituração é também obrigatória no interesse geral do público porque demonstra a maneira de negociar do comerciante, o seu procedimento honesto ou a sua má-fé nas transacções, sobretudo nos casos de falência em que se tem que reconstituir a sua vida mercantil, para averiguar se houve negligência, fraude ou culpa”.

Menezes Cordeiro in Manual de Direito Comercial, Almedina, pág. 405-406 refere:
“A escrituração terá começado por servir os interesses do próprio comerciante (…) Mas além disso, desde cedo se verificou que ela servia, também, os interesses dos credores e isso a um duplo título:
- incentivando o comércio cuidadoso e ordenado, a escrituração conduz a práticas que põem os credores (mais) ao abrigo de falências e bancarrotas;
- permitindo conhecer a precisa situação patrimonial e de negócios, a escrituração faculta informações e determina responsabilidades.
A partir daí, reconheceu-se que a escrituração servia toda a comunidade, facultando ainda ao Estado actuar, com fins de polícia, de fiscalização ou de supervisão”.

Coutinho de Abreu in Curso de Direito Comercial, I Volume, 13ª edição, pág. 180 define a escrituração comercial como sendo “o registo ordenado e sistemático em livros e documentos de factos (normalmente, mas não necessariamente, jurídicos) relativos à atividade mercantil do comerciante, tendo em vista a informação dele e de outros sujeitos.”

Precise-se que a contabilidade era, apenas, uma das componentes da escrituração comercial.

No entanto, como alerta Menezes Cordeiro, in ob. cit. pág. 414, na sequência do DL 76-A/2006, de 29 de Março, a escrituração comercial foi praticamente suprimida do código comercial.

E, acrescentamos nós, com ela, a contabilidade, que passou a ter outras fontes normativas, como o Sistema de Normalização Contabilística aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13-07-2009, alterado pelo DL n.º 98/2015, de 02 de Junho.

Mas vejamos qual o sentido da expressão contabilidade.

De acordo com Luís Brito Correia, in Direito Comercial, Vol. I, pág. 253 e 257, a contabilidade corresponde à compilação, registo, análise e apresentação de informações, em termos monetários, sobre as operações patrimoniais do comerciante/empresa, devendo a sua elaboração ser orientada pelos princípios de clareza e de verdade, implicando o arquivo em pastas próprias, por ordem cronológica, de todos os documentos relativos a actos com expressão patrimonial (compras e vendas, entradas e saídas de caixa, operações bancárias, etc), tudo de forma a permitir que as autoridades públicas verifiquem da regularidade tributária e que os sócios tenham conhecimento da situação patrimonial da empresa, e servindo também para verificar a regularidade da actuação do comerciante, nomeadamente em caso da insolvência, tendo em vista o interesse público.

De referir que o art.º 31 do CCComercial prescrevia a obrigatoriedade de qualquer comerciante possuir quatros livros de escrituração: livro do inventário e balanços, diário, razão e copiador.

Actualmente e nos termos do art.º 30º do CCom, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 8.º do Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de Março, o comerciante pode escolher o modo de organização da escrituração mercantil, bem como o seu suporte físico. O único livro obrigatório e apenas para as sociedades comerciais é o livro de actas, como dispõe o art.º 31º do CCom, também na redacção que lhe foi dada 8.º do Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de março.

Engrácia Antunes, in Direito da Contabilidade, Almedina, 2018, pág. 9 afirma (sublinhado nosso): “designa-se genericamente como contabilidade a ciência económica que tem por objecto a produção, registo e apresentação de informação normalizada, em termos monetários, relativa à actividade, às operações e ao património das empresas singulares ou coletivas, com vista à sua divulgação e utilização por diversos destinatários ou utentes, sócios, administradores, investidores, credores, clientes, financiadores, entidades de supervisão, Estado, etc.).”

No Ac. da RL de 16/01/2024, processo 18172/20.6/8LSB-B.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl refere-se: “pretende-se que a contabilidade seja fonte de informação de todo o ativo e de toda a atividade comercial da empresa a que respeita, para assim proporcionar informação acerca da real posição financeira e dos resultados das operações da empresa, informações que são úteis não só aos investidores, fornecedores e trabalhadores, mas imprescindíveis também aos próprios administradores e aos credores, máxime no âmbito do processo de insolvência, para permitir o enquadramento e melhor compreensão da situação da insolvência e das possibilidades de maximização da satisfação do passivo através do ativo que integra e/ou deveria integrar a massa insolvente.”

E mais adiante refere ainda:
“A ausência de manutenção de contabilidade é determinante da impossibilidade de os interessados tomarem conhecimento da real e atual situação patrimonial da empresa a partir do momento em que deixa de ser elaborada, com prejuízo para o conhecimento, perceção e compreensão da situação real e atual da empresa que, por omitida, não pode ser alcançada através da contabilidade.”

E no Ac. da RL de 23/03/2021, proc. 1396/11.4TYLSB-B.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl refere-se:
“Manter a contabilidade organizada é uma obrigação permanente (…), que pressupõe a organização diária e regularidade de todas as tarefas – os documentos têm que ser analisados e lançados, sendo as operações transcritas e ordenadas em relação a cada uma das contas a que respeitam, por forma a permitir o conhecimento do estado e situação de qualquer delas a cada momento.
(…)
A cessação dos trabalhos de contabilidade descritos – análise, lançamento, classificação, etc. – determina, logo que ocorre, a desatualização dos elementos da contabilidade e a impossibilidade de os diversos interessados, incluindo os próprios gerentes, mas também os demais, de obter informações úteis à tomada de decisões.”

A resposta para a questão de saber qual é a fonte legal da obrigação de manter contabilidade organizada encontra-se hoje no direito fiscal.

Assim, dispõe o art.º 28º, n.º 1 do CIRS que a determinação dos rendimentos empresariais e profissionais, salvo no caso da imputação prevista no artigo 20.º, faz-se:
a) Com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado;
b) Com base na contabilidade.

E nos termos do art.º 32º do CIRS, na determinação dos rendimentos empresariais e profissionais não abrangidos pelo regime simplificado, aplicam-se as regras estabelecidas no Código do IRC, com exceção do previsto nos artigos 51.º, 51.º-A, 51.º-B, 51.º-C e 54.º-A, com as adaptações resultantes do presente Código.

A norma para a qual remete o art.º 32º do CIRS é o art.º 123º do CIRC que, na parte em vigor, dispõe (sublinhado nosso):
1 - As sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direção efetiva em território português, bem como as entidades que, embora não tendo sede nem direção efetiva naquele território, aí possuam estabelecimento estável, são obrigadas a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei que, além dos requisitos indicados no n.º 3 do artigo 17.º, permita o controlo do lucro tributável.
2 - Na execução da contabilidade deve observar-se em especial o seguinte:
a) Todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário;
b) As operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras, devendo quaisquer erros ser objeto de regularização contabilística logo que descobertos.
3 - Não são permitidos atrasos na execução da contabilidade superiores a 90 dias, contados do último dia do mês a que as operações respeitam.

E o n.º 3 do art.º 17º do CIRC dispõe (sublinhado nosso):
3 — De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve: 
a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;
b) Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.
c) Estar organizada com recurso a meios informáticos.

Resulta dos referidos normativos que o regime de tributação dos rendimentos pode ser feito com base no regime simplificado ou com base no regime da contabilidade organizada (é este o sentido da expressão “contabilidade organizada” utilizado na alínea f) do n.º 1 do artº 24º do CIRE, como já havíamos assinalado atrás), sendo que cada um deles tem requisitos específicos.

Genericamente o regime da contabilidade organizada é o aplicável a atividades de maior complexidade e maior volume de negócios e tem como sujeitos passivos obrigatórios os indicados no n.º 1 do art.º 123º do CIRC, nomeadamente as sociedades comerciais.

O art.º 9º n.º 1 do CC manda ter em consideração, na interpretação das normas, a unidade do sistema jurídico.

A “unidade do sistema jurídico” implica a “consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins”, ou, dito de outra forma, se “um problema de regulamentação jurídica fundamentalmente idêntico é tratado pelo legislador em diferentes lugares do sistema”, “porque o legislador deve ser uma pessoa coerente e porque o sistema jurídico deve por igual formar um todos coerente, é legítimo recorrer à norma mais clara e explicita para fixar a interpretação de outra norma (paralela) mais obscura ou ambígua.” (cfr. João Baptista Machado, in Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 183).

Em face de tudo o exposto e tendo por base o disposto nos artigos 17º, n.º 3 e 123º, n.º 2 do CIRC, é possível afirmar que, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE, “contabilidade organizada” é aquela que observar as seguintes regras:
i) Todas as operações realizadas pelo sujeito passivo são objecto de registo/lançamento informático;
ii) O registo é efectuado de forma cronológica;
iii) Os erros de registo são objeto de regularização contabilística logo que descobertos;
iv) O registo das operações não excede 90 dias, contados do último dia do mês a que as operações respeitam;
v) Todos os registos estão apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário (cfr., a este respeito, o Ac. desta RG de 10/09/2020, proc. 1373/17.T8CHV.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).

Finalmente importa considerar que a alínea h) exige que o administrador, de direito ou de facto, tenha “incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada…”

Estamos perante uma unidade, em que a expressão “em termos substanciais” se relaciona quer com o incumprimento, quer com a obrigação.

Relaciona-se com o incumprimento qualificando-o no que respeita à sua grandeza, pelo que a expressão “em termos substanciais” tem o sentido de incumprimento significativo, importante, relevante, considerável.

Mas tal é insuficiente enquanto critério material de decisão.

Por isso e para isso é que aquela expressão se relaciona com a “…obrigação de manter contabilidade organizada…”.

Assim, como se refere no Ac. desta RG de 12/01/2017, proc. 2253/15.0T8GMR-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg “(…) o incumprimento de manter a contabilidade organizada deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental.”

Tendo em consideração que a finalidade da contabilidade organizada é permitir que a mesma seja fonte de informação de todo o ativo e de toda a atividade comercial da empresa a que respeita, das regras a que a mesma deve obedecer, duas são essenciais: todas as operações da sociedade devem ser lançadas e esse processo deve ser contínuo.
 
Precise-se, como se afirma no Ac. do STJ de 06/09/2022, proc. 291/18.0T8PRG-C.G2.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, “não há necessidade de fazer intervir aqui qualquer juízo acerca do prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor (…), requisito este que apenas releva na hipótese de estar em causa uma irregularidade contabilística, não uma ausência absoluta de contabilidade organizada reportada ao lapso de tempo de um ano.”

Dir-se-á, aliás, que o legislador, ao estabelecer o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada, como causa da qualificação da insolvência como culposa, considera já que, à luz das regras da experiência comum e normalidade, tal incumprimento impede, naturalmente, a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor e nomeadamente, utilizando as palavras do Ac. da RL de 16/01/2024, proc. 18172/20.6T8LSB-B.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl, “a ausência de manutenção de contabilidade organizada é abstratamente apta a ocultar e, assim, a dificultar a avaliação da situação patrimonial da devedora, designadamente, no apuramento do passivo e dos bens e direitos que integram ou deviam integrar a massa insolvente (…).”

Finalmente e ressalvado o muito respeito por diferente opinião, não se acompanha o entendimento de que o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada será substancial se e na medida em que seja devida a algum intuito de ocultar a situação financeira da empresa, por duas razões: i) a alínea h) do n.º 2 do art.º 186º não exige qualquer dolo específico; ii) a culpa presume-se juris et de jure, não havendo que indagar se a actuação se ficou a dever a dolo ou culpa grave.

Assim, o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada será substancial se e na medida em que se verifique uma ausência significativa, importante, relevante, considerável, de recolha contínua de documentação de todas as operações da devedora, a não entrega contínua dos documentos relativos a todas as operações ao contabilista, a ausência de registo contínuo de todas as operações e o tempo porque perdurar a situação, estando contido na verificação objectiva dessa situação um prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.

5.3. Das consequências da qualificação
Ainda antes de analisar as questões suscitadas do recurso, impõe-se aferir das consequências da qualificação.

Estabelece o art.º 189º do CIRE, na redacção que lhe foi dada pela Lei 9/2002 (na parte que aqui releva):
“(…)
2 - Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa;
b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados….
(…)
4 - Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença”.

Decorre do nº 2 deste preceito legal que, uma vez qualificada a insolvência como culposa, a lei impõe ao juiz que identifique as pessoas afetadas e decrete as medidas nele elencadas, que são pré-determinadas pela lei e que o juiz não poderá deixar de aplicar, ainda que algumas impliquem modelações, como veremos a seguir.

Assim, uma das consequências impostas pela qualificação da insolvência como culposa (e que releva para o objecto do recurso) é a indemnização consignada na alínea e) do nº 2 do referido art.º 189º.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 697, “a condenação segundo o n.º 2, al. e), constitui um imperativo do tribunal. Se for declarada a culpa, o juiz não tem a faculdade de excluir a responsabilidade do culpado.”

O CIRE, na sua redacção original, não previa no art.º 189º qualquer obrigação de indemnização.

A alínea e) do n.º 2 do art.º 189º do CIRE foi introduzida pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril e dispunha (sublinhado nosso):
2 - Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
(…)
e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.

E o n.º 4 do mesmo normativo, também introduzido pela Lei 16/2012, dispunha:
4 - Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.

Um dos pressupostos da obrigação de indemnizar em geral é o dano.

E nos termos do art.º 563º do CC a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Ou seja: em direito civil a indemnização nunca pode ser superior ao dano efectivamente produzido pela actuação do responsável sob pena de enriquecimento do lesado.

No entanto e à luz da alínea e) do n.º 2 do art.º 189º na redacção original, podia entender-se que o “dano” causado pela actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência criadora ou agravadora da situação de insolvência, correspondia aos  “…créditos não satisfeitos…

E em função de tal entendimento, um afectado pela qualificação da insolvência podia responder pela totalidade dos créditos não satisfeitos, independentemente da medida do concreto prejuízo causado aos credores com a sua conduta.

Basta pensar, por exemplo, numa qualificação de insolvência baseada na alínea a) do n.º 2 do art.º 186º do CIRC - Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor.

Suponhamos que o património do devedor destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer tinha o valor de € 50.000,00 e os créditos não satisfeitos era no valor de € 250.000,00.

É manifesto condenação do afectado a indemnizar os créditos não satisfeitos coloca em causa o princípio da proporcionalidade na vertente de proibição de excesso pois é desproporcional, é excessivo, face ao concreto prejuízo causado aos credores, que é apenas de € 50.000,00, valor correspondente ao património destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer.

Embora o princípio da proporcionalidade apareça positivado na CRPortuguesa de forma assistemática (veja-se o n.º 2 do art.º 18º da CRP, o qual dispõe que “as restrições [aos direitos, liberdades e garantias], deve[m] limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”), tem, enquanto instrumento de combate aos atos e omissões que se possam revelar agressivos para os direitos dos indivíduos, uma vocação global (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in CRP Anotada, I, 2ª edição, 2017, pág. 274), ou seja, constitui um principio geral, independentemente da sua concreta positivação.

Tal princípio, na vertente de proibição de excesso, analisa-se em três sub-principios relativamente autónomos: adequação; necessidade; e proporcionalidade em sentido estrito.

No caso, releva o último que prescreve “uma exigência de racionalidade e justa medida, no sentido de que o órgão competente proceda a uma correcta avaliação da providência adoptada em termos qualitativos e quantitativos e, bem assim, para que esta não fique aquém ou além do que importa para se obter o resultado devido“ (Rui Medeiros, in CRP Anotada, I, 2ª edição, 2017, pág. 274).

Em função do até aqui referido, era entendimento maioritário e constante da jurisprudência o seguinte:
- A indemnização prevista na alínea e) do nº 2 do art.º 189º tinha como limite máximo o montante dos créditos não satisfeitos, ou seja, a diferença entre os créditos reconhecidos e os créditos que foram liquidados com o produto da liquidação do activo.
- Referindo o n.º 4 que “o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença, e tendo em consideração os princípios constitucionais da proporcionalidade e da proibição de excesso, na fixação do montante indemnizatório o juiz devia ponderar o grau de ilicitude e culpa da pessoa afectada, pelo que a indemnização podia ser fixada em montante inferior àquela diferença e, concretamente, devia aproximar-se do montante dos danos efectivamente causados com a conduta que esteve na origem da qualificação da insolvência como culposa, ponderando todas as circunstâncias do caso.

Assim e a título demonstrativo (para uma recensão extensa, Catarina Serra, in O incidente de qualificação da insolvência depois da lei n.º 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustração de jurisprudência, in Julgar, 48, 2022, pág. 24, nota 35):

- O Ac. do Tribunal Constitucional n.º 280/2015, de 20/05/2015, consultável in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150280.html, onde se afirmou:
“… a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas coletivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal.

- O Ac. da RG de 28/03/2019, proc. 1266/17.2T8GMR-B.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, em cujo sumário consta:
“III - Da conjugação do disposto na alínea e) do nº2 do artigo 189º do CIRE com o teor do n.º 4 do mesmo preceito deve concluir-se que a indemnização aí prevista, e em que deve ser condenado o afetado pela qualificação, terá como limite máximo a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago aos credores pela massa insolvente, mas deverá aproximar-se, de forma a salvaguardar a necessária relação de adequação e proporcionalidade, do montante dos danos causados com o comportamento daquele que conduziu à qualificação da insolvência como culposa, sem esquecer também que tem também natureza sancionatória”;

- O Ac. da RE de 04/06/2020, proc. 384/14.7T8OLH-D.E1, consultável in www.dgsi.pt/jtre, em cujo sumário consta:
5. A fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal e, em termos objectivos, o que está em causa é a diferença entre o valor global do passivo da insolvência e o activo que o pode cobrir.
6. Em função dos princípios gerais da obrigação de indemnização, do nexo de causalidade e dos critérios do cálculo de indemnização, entendemos que, em norma, os responsáveis pela condenação referida na alínea e) do n.º 1 do artigo 189.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas apenas respondem pelo dano efectivamente causado com o comportamento delituoso.

- O Ac. da RL de 27/04/2021, proc. 540/19.8T8VFX-C.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl em cujo sumário consta:
“5. O regime legal plasmado no art. 189.º do CIRE, quanto à indemnização devida aos credores da insolvência, deve ser interpretado, com base numa leitura integrada do texto vertido no seu número 2, alínea e) e número 4 e a exigência de uma leitura conforme ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que a indemnização devida pela entidade afetada pela qualificação deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, salvaguardando-se, no entanto, que esse valor possa ser fixado em montante inferior sempre que o comportamento da pessoa afetada pela qualificação justifique essa diferenciação, mormente por ser diminuta a medida da sua contribuição para a verificação dos danos patrimoniais em causa, assim mitigando o recurso àquele critério exclusivamente aritmético e que, por isso, em determinadas circunstâncias, pode ser redutor”;

- O Ac. do STJ de 22/06/2021, proc. 439/15.7T8OLH-J.E1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, em cujo sumário consta (sublinhado nosso):
II - O que não significa que tais medidas/sanções – maxime, a indemnização consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE – devam ser impostas automaticamente, sem quaisquer limites e fora de quaisquer exigências ou controlo de proporcionalidade (ou de não desproporcionalidade).
III - Assim, no caso de indemnização consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE, será atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (tudo o que está provado no processo: o que levou à qualificação e o que o afetado alegou e provou em sua “defesa”) que o juiz pode/deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas.
IV - E entre as circunstâncias com relevo para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização.

E na fundamentação afirma-se concretamente:
Pelo que, caso o requerido (e sob afetação) nada alegue ou prove, terá que ser atendendo às circunstâncias provadas no processo e que conduziram à qualificação e afetação, que o juiz (usando o seu poder-dever) fixará, com prudência e não perdendo de vista a dimensão também sancionatória de tal condenação, as indemnizações, que têm como limite o montante dos créditos não satisfeitos na liquidação do processo de insolvência e que devem estar relacionadas com a sua contribuição (com o seu comportamento ou os comportamentos em que que participou) para a insolvência e para o montante dos créditos não satisfeitos.
(…)
É certo que tal condenação não foi imposta, como sustentámos dever acontecer, no seguimento duma apreciação, tendo em vista tal condenação, das circunstâncias e elementos factuais reveladoras da contribuição do comportamento do recorrente para a criação ou agravamento da insolvência – as Instâncias limitaram-se a aplicar, como efeito/consequência da sua declaração como pessoa afetada, automaticamente, o texto do art. 189.º/2/e) – porém, procedendo-se a tal apreciação, há que concluir que a mesma aprova a condenação na indemnização que foi imposta.”

- O Ac. da RP de 12/07/2021, proc. 1388/19.5T8AMT-C.P2, consultável in www.dgsi.pt/jtrp, em cujo sumário consta:
“VI - À luz do preceituado no artigo 189º, nºs 2 al. e) e 4, do CIRE, a indemnização aos credores tem por limite a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago pelas forças da massa insolvente, mas tem, ainda, de ser proporcional à gravidade da situação prejudicial criada pelo afectado pela insolvência, devendo, por isso, aproximar-se do valor dos danos efectivamente causados pela conduta que está na base da qualificação da insolvência como culposa”.

Entretanto a redacção da alínea e) do n.º 2 do art.º 189º foi alterada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, tendo passado a dispor (sublinhado nosso):
e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.

O n.º 4 manteve a redacção.

Relativamente a esta alteração pronunciou-se Catarina Serra in O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência, Julgar, 48, Setembro/Dezembro de 2022, pág. 26-31 (sublinhado nosso):
“(…) Resulta agora, inequivocamente, do articulado que o montante dos créditos não satisfeitos é só o montante máximo da indemnização (…).
O montante dos créditos não satisfeitos deixa de poder ser utilizado como ponto de partida ou como padrão para o cálculo da indemnização e o (…) critério, disponibilizado no art. 189º, nº 4, passa a ser o montante dos prejuízos sofridos.
Ao montante dos créditos não satisfeitos resta imputar uma única função: a de limitar o montante da indemnização (…).
Com isto o regime da responsabilidade por insolvência culposa perde grande parte da sua dimensão punitiva ou sancionatória (…) e (re)aproxima-se do regime geral da “responsabilidade civil”, com um desvio, atendendo à fixação de um (do tal) máximo. Traduz-se isto, em suma, na máxima de que devem ser indemnizados (só) os danos (cfr. art. 483º do CC) mas não necessariamente todos os danos.
(…)
O factor que pode e deve ser considerado e tem efeitos sensíveis na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade, é um único: a contribuição causal de cada sujeito para a ocorrência dos danos/a medida da participação efectiva de cada um.
(…)
Tudo ponderado, há que dizer que a tarefa de responsabilização não ficou facilitada. A qualificação da insolvência como culposa pressupõe sempre a causalidade (provada ou presumida) entre a conduta e a criação ou o agravamento da insolvência (a “causalidade fundamentadora” da responsabilidade civil), mas esta não basta para responsabilizar os sujeitos afectados; deve ainda verificar-se a causalidade entre a conduta e os danos (a “causalidade preenchedora” da responsabilidade civil).
(…) é preciso apurar a diferença entre a situação que existe e a situação que existiria se a conduta ilícita não tivesse tido lugar – apurar, mais precisamente, o dano diferencial.
(…)
Cumpre ao juiz [diferenciar] as condutas criadoras e as condutas agravadoras da situação de insolvência. Na prática, o dano causado pelas primeiras é susceptível de se aproximar do montante dos créditos não satisfeitos. Relativamente ao dano causado pelas segundas, esta proximidade nunca se verifica.”

E a jurisprudência pronunciou-se, prosseguindo, nuns casos e aprofundando, em outros casos, o entendimento anterior, nos seguintes termos:

-  No Ac. da RP de 29/09/2022, proc. 2367/16.0T8VNG-H.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp, manteve-se o entendimento anterior, como consta sumariado:
VII - Pese embora a aparente rigidez da norma da al. e) do art.º 189º do CIRE - relativa à fixação de uma indemnização a cargo dos afetados pela qualificação - tem sido entendido, designadamente na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2015 (DR 115/2015, Série-II) que dever fazer-se uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da culpa e da proporcionalidade.

- No Ac. da RC 15/02/2022, proc. 135/20.3T8SEI-C.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc, consta do respectivo sumário:
IV – A quantificação da indemnização a que se reportam a alínea e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189.º do CIRE é feita atendendo ao concreto dano a indemnizar, correspondente ao valor total ou parcial dos créditos que não sejam satisfeitos por causa da conduta que determinou a qualificação da insolvência, e de acordo com os critérios a fixar pelo juiz que, tendo em conta as circunstâncias do caso, se revelem adequados para apurar a medida e o valor desse dano.

- No Ac. da RC 14/06/2022, proc. 139/21.9T8SEI-C.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc consta da fundamentação:
Sabendo-se que um dos princípios em matéria de indemnização é o de que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (artigo 563.º do Código Civil), em princípio os afectados pela qualificação da insolvência só estarão obrigados a indemnizar os credores pelo montante dos créditos que não foram satisfeitos devido às suas acções.  Há, pois, que estabelecer um nexo de causalidade entre as acções dos afectados pela qualificação da insolvência e a não satisfação dos créditos.

- No Ac. da RC de 14/03/2023, proc. 1937/21.9T8CBR-A.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc consta sumariado:
III – A culpa ou o grau de culpa não constitui factor relevante para efeitos de fixação da indemnização a que se reporta a alínea e) do n.º 2 e o n.º 4 do artigo 189.º do CIRE;
IV – A referida indemnização é fixada tendo apenas como referência o valor do dano, ou seja, o valor dos créditos cuja não satisfação possa ser imputada à conduta que determinou a qualificação da insolvência em termos de nexo de causalidade – seja ele um nexo de causalidade que resulte provado ou um nexo de causalidade que se deva ter como presumido quando está em causa uma conduta integrada no n.º 2 do art.º 186.º – e de acordo com os critérios que se revelem adequados para, em termos efectivos ou aproximados, apurar o valor desse dano, conforme resulta do disposto no n.º 4 do art.º 189.º. 

E na fundamentação afirma-se:
Assim, como acontece com qualquer outra indemnização que visa reparar um dano, a indemnização aqui em causa terá que ser fixada tendo em conta o concreto prejuízo que se pretende indemnizar e que, de acordo com as regras fixadas nos artigos 562.º e 563.º do CC e no citado art.º 189.º do CIRE, corresponderá ao valor dos créditos que não foram satisfeitos por causa e em consequência da concreta conduta do afectado que determinou a qualificação da insolvência. Tal prejuízo poderá corresponder à globalidade dos créditos que não sejam satisfeitos ou poderá corresponder apenas a uma parte deles.
(…)
Aquilo que, na verdade, releva para efeitos de quantificação e fixação da indemnização é o valor do dano que apresente nexo de causalidade com a conduta do afectado pela qualificação da insolvência, sem deixar de ter em conta que os danos a considerar são apenas aqueles que se traduzem na não satisfação dos créditos da insolvência. (…) O valor da indemnização corresponderá, portanto, ao valor dos créditos que não foram satisfeitos por causa e em consequência da conduta que determinou a qualificação da insolvência, ou seja, o valor dos créditos que seriam satisfeitos caso não tivesse ocorrido a conduta do afectado que conduziu à qualificação da insolvência e que, por causa dessa conduta, não foram satisfeitos (cfr. art.º 563.º do CC).”

- No Ac. do STJ de 12/12/2023, proc. 3146/20.5T8VFX-B.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, depois de citar o Ac. recorrido, da RL, em que se seguiu a posição de Catarina Serra já acima exposta, considerou-se na fundamentação (sublinhado nosso):
Efetivamente, as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência não assumem automaticamente e sucedaneamente a responsabilidade contratual que cabia à sociedade declarada insolvente. Daí que não se possa afirmar que essas pessoas passam a ser diretamente responsáveis pela totalidade dos créditos reclamados e não satisfeitos pela massa. Não se pode deixar de ter presente que quem incorreu em incumprimento contratual para com os credores foi a sociedade declarada insolvente.
Os seus gerentes são responsabilizados extracontratualmente, nos termos do artigo 483º do Código Civil (ex vi do art.17º do CIRE), pois não eram contraparte nos contratos incumpridos que originaram os créditos reclamados. Nestes termos, respondem pelos danos que os credores sofreram (ao não verem os respetivos créditos ressarcidos pela massa insolvente) e que não teriam sofrido se os gerentes não tivessem tido comportamentos que culposamente determinaram a insuficiência do património da sociedade insolvente.”

- No Ac. da RL de 16/01/2024, proc. 18172/20.6T8LSB-B.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl consta sumariado:
IX–A qualificação da insolvência como culposa pressupõe sempre a causalidade (provada ou presumida) entre a conduta e a criação ou o agravamento da insolvência, sendo esta a “causalidade fundamentadora” da responsabilidade civil; a responsabilização civil dos sujeitos afetados pressupõe a verificação da causalidade entre a conduta e os danos, sendo esta a “causalidade preenchedora” da responsabilidade civil.
(…)
XI–Concedendo que a afetação pela qualificação da insolvência contém em si mesma a demonstração e verificação da ilicitude do facto fundamento da qualificação, bem como do juízo de censurabilidade que pelo mesmo é passível de ser dirigido ao afetado, a amplitude do perigo abstratamente gerado – que tem sempre como limite máximo o passivo não satisfeito pelas forças da massa - deve ser objeto de um ajustamento proporcional à gravidade da ilicitude e da culpa manifestadas nas concretas circunstâncias de cada caso.

E estando em causa a qualificação da insolvência à luz da alínea h) do n.º 2 do art,.º 186º escreveu-se na fundamentação:
No caso não existe uma linear ou justaposta coincidência entre a causa fundamentadora da responsabilidade e a causa ‘preenchedora’ dessa responsabilidade ou, dito de outra forma, entre o perigo de dano presumido pelas normas fundamento da qualificação e o dano concretamente causado pelas condutas omissivas da recorrente, entre o presumido agravamento da situação de insolvência e o concreto valor ou mensuração desse agravamento. Coincidência ou justaposição que por princípio existe quando, por exemplo, a conduta qualificadora corresponde a um ato de dissipação ou de disposição de um bem do devedor, cujo valor de mercado corresponderá ao valor do prejuízo por ele causado aos credores.
Conforme se expôs, sem dúvida que as condutas que no caso fundamentam a responsabilidade da recorrente são abstratamente aptas a causar prejuízo aos credores da devedora. No campo das hipóteses, o perigo da falta de informação empresarial e de ocultação subjacente à proibição de cada uma das condutas em questão é abstratamente compatível com a possibilidade de agravamento do passivo através da constituição de novas dívidas em cumulação com o passivo já consolidado e consequente agravamento da situação de todos os credores, assim como com a frustração da satisfação dos direitos de crédito destes por recurso aos bens e direitos da insolvente no âmbito do processo de insolvência determinada pelo desconhecimento dos bens e direitos que integram o respetivo património, incluindo aqueles que o deveriam integrar por terem sido indevidamente retirados da esfera jurídica da insolvente, pelo menos sempre que a natureza dos bens não permite o seu rastreamento através dos registos prediais e comerciais, como sucederá com os direitos de crédito sobre terceiros ou com bens móveis ou direitos não sujeitos a registo.”

Em face de tudo o exposto e numa leitura integrada da alínea e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º do CIRE, o valor da indemnização devida pelo afectado pela qualificação da insolvência como culposa deve corresponder ao valor dos danos que o credor provavelmente não teria sofrido se não fosse a conduta daquele ou, dito de outra forma, deve corresponder ao valor dos danos que seja possível imputar causalmente à conduta que esteve na origem da qualificação da insolvência como culposa, não tendo, necessariamente, como referência o valor dos créditos não satisfeitos, que é, única e exclusivamente, o limite máximo da indemnização.

É verdade que tal tarefa pode estar facilitada na situação a que se refere a alínea a) do n.º 2 do art.º 186º, em que o prejuízo dos credores corresponderá ao valor dos bens destruídos, danificados, inutilizados, ocultados, ou feitos desaparecer.

Mas o mesmo não sucede em situações como as da alínea h) do n.º 2 do art.º 186º, em que será muito difícil encontrar o valor da indemnização devida.

Para uma situação destas rege, então, a segunda parte do n.º 4 do art.º 189º e, nessa medida, o tribunal deve fixar os critérios a utilizar para a quantificação dos prejuízos sofridos, a efetuar em sede liquidação da sentença, o que, diga-se, também não será fácil.

Uma aproximação a esta problemática foi feita no Ac. da RL de 16/01/2024, processo 18172/20.6T8LSB-B.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl, em que a qualificação da insolvência como culposa assentou na alínea h) do n.º 2 do art.º 186º e em que se ponderou a necessidade do tribunal ter em consideração o período em que ocorreu a conduta omissiva, pois foi ela que determinou a qualificação da insolvência como culposa, sob pena de abranger factos ou condutas que não poderiam ser consideradas para efeitos de qualificação, tendo ainda considerado que é um “critério objetivo que permite subordinar a responsabilização civil da recorrente a um controlo de adequação e proporcionalidade ou, com mais rigor, de proibição de excesso, e que, no caso, grosso modo, coincidirá com a efetiva medida do agravamento da insolvência legalmente relevante para efeito de qualificação da insolvência.”

E em consequência fixou como critério indemnizatório o “valor[…] das dívidas constituídas pela e a cargo da insolvente” nos três anteriores à data em que foi requerida a insolvência.

Além disso, e feita esta aproximação, nada impede, desde que os autos forneçam elementos para tal, que a indemnização seja fixada numa percentagem daquele valor.

5.4. Em concreto
Vejamos agora as questões suscitadas.

5.4.1. Existe contradição entre a decisão e os fundamentos da sentença recorrida?
A sentença pode ser perspectivada como trâmite ou como acto.

Enquanto trâmite, fica sujeito às nulidades processuais (art.º 195º), que pode ser objecto de impugnação mediante recurso se o acto afetado de nulidade for coberto por uma decisão judicial, sendo fundamento dessa impugnação na invocação de um error in iudicando por “violação ou errada aplicação da lei de processo”.

Enquanto acto, a mesma pode padecer vícios intrínsecos, dando lugar a um error in procedendo, que só podem ser os tipificados no n.º 1 do art.º 615º do CPC - a) Não conter a assinatura do juiz; b) Não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estarem em oposição com a decisão ou ocorrer alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido – e cuja verificação dita a nulidade da sentença – corpo do n.º 1 do art.º 615º.

Estão, assim, em causa, vícios quanto à sua autenticidade – alínea a) –, quanto à sua elaboração, à sua construção - alíneas b) e c) – e quanto aos seus limites – alíneas d) e e).

Como é entendimento comum, a nulidade da sentença não é de conhecimento oficioso – neste sentido o Ac. desta RG de 17/05/2018, processo 2056/14.0TBGMR-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg e o Ac. do STJ de 30/11/2021, processo 1854/13.6TVLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj -, carecendo de ser arguida por quem nisso revelar interesse e, nessa medida, está próxima da anulabilidade.

O error iudicando integra um erro de julgamento da matéria de facto – o decidido não corresponde à realidade ontológica devido a um erro na análise crítica das provas produzidas ou, para utilizar a expressão do n.º 3 do art.º 674º, “erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa”ou da matéria de direito – i) a decisão é desconforme com a lei substantiva ou, para utilizar a expressão da alínea a) do n.º 1 do art.º 674º, ocorre “violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, como erro de determinação da norma aplicável”; ii) é desconforme com a lei processual ou, para utilizar a expressão da alínea b) do n.º 1 do art.º 674º, ocorre “violação ou errada aplicação da lei de processo”, para utilizar a expressão da alínea b) do n.º 1 do art.º 674º.

O recorrente invocou que os fundamentos estão em oposição com a decisão.

Fê-lo como erro de julgamento, que não é – é, em abstracto, causa de nulidade da sentença -, não tendo arguido a sentença de nula, nem peticionado a declaração de nulidade daquela. E não sendo a nulidade de conhecimento oficioso, nem podendo o tribunal decretar um efeito não pretendido pela parte, atento o princípio do dispositivo, não é de conhecer a alegada contradição.

Mas ainda que assim não fosse, sempre se impunha considerar que a pretensa contradição não se verifica pois:
- consta dos fundamentos:
Em face do exposto e considerando a factualidade dada como provada, verifica-se que o período relevante a ter em consideração se estende até 25.06.2018, pelo que é a partir deste marco temporal (embora, naturalmente, actos anteriores, quando integrados numa lógica de continuidade, possam ser relevantes) que importa analisar a factualidade subsumível aos comportamentos elencados.
Por outro lado, constata-se que, dos diversos factos-índice previstos, o primeiro a relevar é o atinente ao incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada[6], inviabilizando, assim, a apreensão compreensiva, completa e fidedigna da situação financeira da empresa, seja por impossibilidade ou dificuldade relevante, seja por induzir a percepção de uma situação financeira substancial e relevantemente diversa da real - artigo 186.º, n.º 2, alínea h), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Assim, dir-se-á que tal se verifica quando tal obrigação é, pura e simplesmente, incumprida, pois, neste caso, a apreciação da situação económico-financeira fica, irremediavelmente, impossibilitada; quando a organização da contabilidade não observa as regras, formais ou materiais, legalmente estabelecidas; quando se constata a omissão ou a inclusão de incorrecções de factos ou elementos que não permitam compreender (condicionando ou impedindo) a real situação económico-financeira da pessoa visada e insolvente; ou quando se percebe a existência de uma contabilidade paralela, sem correspondência com a realidade.[7]
No caso concreto, cumpre assinalar a inexistência absoluta de qualquer tipo de contabilidade, sendo que, mesmo quando o Administrador da Insolvência procurou obter, directamente do Requerido AA, informações sobre a Insolvente EMP01..., Lda., não obteve qualquer resposta (formal).
(…)
Contudo, tal circunstância não obsta à conclusão final de se estar perante uma insolvência culposa, uma vez que se verificam factos-índice subsumíveis às presunções inilidíveis.”
- e consta do decisório:
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julga-se o presente incidente de qualificação de insolvência procedente e, por conseguinte, decide-se:
(…)
˗ qualificar a insolvência da sociedade EMP01..., Lda. como culposa;
(…)”

De referir que o recorrente, na motivação do recurso e até nas respectivas conclusões, de forma artificiosa, cita o primeiro parágrafo supra transcrito e omite o segundo e terceiro parágrafos transcritos, onde está evidenciada a fundamentação da sentença para julgar verificada a causa de qualificação prevista na alínea h) do n.º 2 do art.º 186º do CIRE.

Tudo o que a seguir é dito na sentença, e que o recorrente transcreve, diz respeito à verificação de outras causas de qualificação:
a) A prevista na alínea i) do n.º 2 do art.º 186º, concluindo pela sua não verificação;
b) As previstas nas alíneas a) – incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência – e b) – incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial - do n.º 3 do art.º 186º, concluindo:
“Todavia, não ficou claro que tais aspectos hajam concorrido para a criação ou a agravamento da situação de insolvência, ou seja (e como supra se disse), não foi provado qualquer nexo de causalidade que permita concluir que a falta de apresentação à insolvência e o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, e de as submeter à devida fiscalização e/ou de as depositar na Conservatória do Registo Comercial, hajam contribuído para tal.
Com efeito, a verificação dos factos-índice relativos à culpa grave apenas permite presumir este requisito específico da insolvência culposa, sendo sempre necessária a prova dos demais requisitos, designadamente o nexo de causalidade, o que não se verificou.
Não se provaram factos suficientes que, por si sós, permitam concluir que aqueles aspectos hajam contribuído para a criação ou agravamento do estado de insolvência (não sendo suficiente, para tal efeito, o mero aumento das dívidas, por via dos juros de mora).”

Destarte, sempre seria de julgar invocada a impetrada contradição entre os fundamentos e a decisão.

5.4.2. Não tendo a sociedade insolvente qualquer actividade desde 25/06/2009, a obrigação de manter contabilidade organizada terminou a 31/12/2019?
O recorrente invoca que não tendo a insolvente qualquer actividade desde 25/06/2009, a obrigação de manter contabilidade organizada terminou a 31/12/2019.

E para tal alega o disposto no art.º 130º do CIRC na redação da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, aplicando-se aos períodos de tributação que se iniciem a partir de 1 de janeiro de 2017, que dispõe:
1 — Os sujeitos passivos de IRC, com exceção dos isentos nos termos do artigo 9.º, são obrigados a manter em boa ordem, durante o prazo de 10 anos, um processo de documentação fiscal relativo a cada período de tributação, que deve estar constituído até ao termo do prazo para entrega da declaração a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 117.º, com os elementos contabilísticos e fiscais a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças.

A alínea c) do n.º 1 do art.º 117º do CIRC dispõe:
1 — Os sujeitos passivos de IRC, ou os seus representantes, são obrigados a apresentar:
(…)
c) Declaração anual de informação contabilística e fiscal, nos termos do artigo 121.º

De referir que a citada “Declaração…” passou a integrar a IES – Informação Empresarial Simplificada, como dispõe o art.º 2º, n.º 1, alínea b) do DL 8/2007, de 17/01.

Aquela alegação não tem qualquer fundamento.

Para efeitos de qualificação da insolvência como culposa, o n.º 1 do art.º 186º atribuiu relevância a uma actuação, no caso a da alínea h) do n.º 2 do art.º 186º - incumprido a obrigação de manter contabilidade organizada - que tenha ocorrido “….nos três anos anteriores…” à data da declaração da insolvência.

Daqui resulta que pelo menos nos três anos anteriores à declaração de insolvência o devedor tem de manter contabilidade organizada (obrigação cujo incumprimento, diga-se, o recorrente não coloca em causa de forma minimamente consistente, antes admitindo que tal situação se verifica desde 2009, embora, precise-se, só releve a sua verificação desde 2018, e sendo ainda certo que, como se deixou dito em sede de enquadramento jurídico, a verificação do facto-índice faz presumir a existência de dolo ou culpa grave e do nexo de causalidade entre o mesmo e a criação ou agravamento da insolvência).

E isto é assim, tenha a sociedade, ou não, actividade, já que a lei não prevê esse facto como excludente da referida obrigação.

De referir que no caso o incumprimento da referida obrigação é substancial pois ficou provado – ponto 13 A) - que desde Junho de 2009 que a insolvente deixou de proceder a qualquer registo/lançamento (contabilístico) das respectivas operações activas e passivas, o que significa uma absoluta inexistência de qualquer contabilidade, ficando vedada, desde modo, a possibilidade de, através da mesma, se compreender a situação patrimonial e financeira da devedora.

Note-se que, como resulta do ponto 18 contra a insolvente foram instauradas 9 execuções, não havendo qualquer registo de dívidas e muito menos de activos.

Por outro lado, o normativo citado pelo recorrente não dispõe sobre a obrigação de manter contabilidade organizada e, muito menos, estabelece qualquer limite temporal para isso (a referida obrigação mantém-se enquanto a sociedade tiver personalidade jurídica), limitando-se a dispor sobre o prazo de manutenção da documentação fiscal – o que é uma realidade substancialmente diferente - e que é de 10 anos relativo a cada período de tributação, o que significa, por exemplo, que a manutenção da documentação relativa ao ano de 2009 terminou em 2019, mas a manutenção da documentação relativa aos períodos de 2018, 2019, 2020 e 2021, abrangidos pela qualificação, devia, caso existisse, ser mantida até 2028, 2029, 2030 e 2031.

Destarte improcede este fundamento de impugnação.

5.4.3. A apresentação junto da CRComercial do requerimento de dissolução da sociedade e a comunicação ao Serviço de Finanças ... que a sociedade não tinha qualquer actividade desde 2009 são incompatíveis com qualquer uma das causas de qualificação previstas nos n.ºs 1, 2 e 3 do art.º 186º do CIRE?
A matéria da dissolução e liquidação das sociedades comerciais, cujo regime jurídico está distribuído pelos art.ºs 141º a 145º (dissolução) e 146º a 165º (liquidação) e pelo Anexo III ao DL 76-A/2006, de 29 de março, onde está plasmado o Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais (doravante RJPADLEC) (cfr. art.º 144º do CSC, o qual dispõe que o ”regime do procedimento administrativo de dissolução é regulado em diploma próprio.”).

A dissolução constitui o efeito jurídico de determinados factos ou causas de dissolução e opera a modificação da situação ou do estatuto da sociedade dotada de personalidade jurídica (cfr. Ricardo Costa, in Código das Sociedade Comerciais em Comentário, II, 3ª edição, anotação ao art.º 143º, pág. 693-696 e 727-733 e que seguiremos de perto).

A dissolução não é o acto responsável pela extinção dessa personalidade, mas a primeira fase do processo, complexo, que conduz aquela e, desse modo, à cessação do conjunto de direitos e deveres imputáveis à esfera jurídica do ente societário.

Na realidade, salvo quando a lei disponha de forma diversa, a dissolução tem como efeito a entrada da sociedade em liquidação (art.º 146º, n.º 1 do CSC), mantendo a mesma a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte da lei ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas. (art.º 146º, n.º 2 do CSC).

A dissolução desencadeia a entrada da sociedade em liquidação – e que constitui a segunda fase do referido processo de extinção -, cujas finalidades são, “pelo que respeita aos sócios, evitar que as relações sociais, quer activas, quer passivas, passem a constituir relações pessoais de cada um dos sócios, ou em contitularidade com outros ou individualmente; definir e extinguir as relações mútuas dos sócios. No que toca aos credores, pretende-se (…) a satisfação dos seus créditos enquanto permanece o ente que juridicamente é devedor (ou o património deste).” (cfr. Raul Ventura, Dissolução e liquidação de sociedades, pág. 216).

Mas o “interesse dos credores só reclama a liquidação desde que exista um património autónomo.” (cfr. Raul Ventura, Dissolução e liquidação de sociedades, pág. 217).

“Em termos práticos a liquidação implica o levantamento de todas as situações jurídicas relativas à sociedade em liquidação, a resolução de todos os problemas pendentes que a possam envolver, a realização pecuniária (se for o caso) dos seus bens, o pagamento de todas as dívidas e o apuramento do saldo final, a distribuir pelos sócios. “  (cfr. António Menezes Cordeiro, in Direito das Sociedades, I, 5ª edição, pág. 1035).

Há situações em que não se verifica a referida fase de liquidação, como sucede nos casos previstos nos art.ºs 11º, n.º 4 e 27º do Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, que aqui não releva aprofundar.

A sociedade só se considera extinta com o registo do encerramento da liquidação (art.º 160º n.º 2 do CSC).

Está provado que o recorrente apresentou junto da CRComercial ... um requerimento de dissolução da sociedade (ponto 6 dos factos provados).

Ficou provado (ponto 7) que a CRComercial ... decidiu não iniciar qualquer processo de dissolução e liquidação da sociedade, por considerar não se encontrarem reunidos os pressupostos legais para o efeito, pelo que o requerimento endereçado àquela foi totalmente inconsequente, não tendo conduzido à extinção da sociedade de tal modo que, por manter a personalidade jurídica, veio a ser declara insolvente.

Ficou ainda provado que o recorrente comunicou ao Serviço de Finanças ... que a sociedade não tinha qualquer actividade desde 2009 (ponto 8).
 
Porém, esta entidade não tinha qualquer competência para processar a dissolução administrativa da sociedade, de tal modo que ficou provado (ponto 8) que a AT decidiu não iniciar qualquer processo de dissolução e liquidação por não ser o competente para o efeito, tendo remetido o expediente à CRComercial ..., por ser a entidade competente para o efeito.

Em face do exposto, o requerimento e a comunicação referidos, são absolutamente inócuos para considerar inverificada a causa de qualificação da insolvência, pelo que também improcede este fundamento de impugnação.

5.4.4. A sentença recorrida violou o disposto no n.º 4 do art.º 189º do CIRE ao não fixar o valor das indemnizações devidas?
O n.º 4 do art.º 189º do CIRE dispõe:
Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.

A violação do normativo citado pode ocorrer em virtude de uma de duas situações:
- Os autos continham elementos para fixar em montante certo o valor das indemnizações e o juiz relegou para liquidação de sentença o cálculo do montante dos prejuízos;
- Os autos não continham os elementos para fixar o montante das indemnizações e o juiz fixou-as em montante certo.

Como ficou dito em sede de enquadramento jurídico, numa leitura integrada da alínea e) do n.º 2 e do n.º 4 do art.º 189º do CIRE, o valor da indemnização devida pelo afectado pela qualificação da insolvência como culposa, deve corresponder ao valor dos danos que o credor provavelmente não teria sofrido se não fosse a conduta daquele ou, dito de outra forma, deve corresponder ao valor dos danos que seja possível imputar causalmente à conduta que esteve na origem da qualificação da insolvência como culposa, não tendo, necessariamente, como referência o valor dos créditos não satisfeitos, que é, única e exclusivamente, o limite máximo da indemnização.

É certo que se propugna (Catarina Serra in O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2022 – Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência, Julgar, 48, Setembro/Dezembro de 2022, pág. 37) “que a sentença condenatória seja, a partir de agora, o mais completa e precisa possível, especificando a parte da indemnização que cabe a cada credor.”

Porém, como também ficou referido em sede de enquadramento jurídico, se tal tarefa pode estar facilitada na situação a que se refere a alínea a) do n.º 2 do art.º 186º, em que o prejuízo dos credores corresponde, ao valor dos bens destruídos, danificados, inutilizados, ocultados, ou feitos desaparecer, o mesmo não sucede em situações como a da alínea h) do n.º 2 do art.º 186º, em que podem não existir elementos seguros e consistentes que permitam fixar em montante certo o valor dos créditos cuja não satisfação possa ser imputada ao incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada.

A sentença recorrida decidiu “condenar o afectado Requerido AA a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património”.

E resulta dos fundamentos que os créditos não satisfeitos são todos os créditos reclamados e que constam do ponto 16, porque a massa insolvente não dispunha de património.

Destarte, interpretando a sentença, dir-se-á que a mesma fixou a indemnização devida a cada um dos credores, nos termos da 1ª parte do n.º 4 do art.º 189º, no montante do crédito que cada um deles reclamou.

Sucede que os autos não contêm elementos que sustentem tal “fixação”.

É que é necessário que o tribunal tenha em consideração o período em que ocorreu a conduta omissiva, sob pena de estar a quantificar para efeitos indemnizatórios créditos constituídos fora do período em que ocorreu a conduta omissiva que deu causa à qualificação da insolvência como culposa - o incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

E, no caso, não existem elementos que permitam considerar, de entre os créditos identificados no ponto 16 dos factos provados, aqueles que se constituíram no período dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

E, sendo assim, apenas é possível aplicar a 2ª parte do n.º 4 do art.º 189º, ou seja, fixar o critério com base no qual haverá lugar à fixação da indemnização.

Em face do exposto, o segmento da decisão recorrida em que consta “˗ condenar o afectado Requerido AA a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património” deve ser revogado e substituído por outro com o seguinte teor: “ - condenar o afectado Requerido AA a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos constituídos pela e a cargo da insolvente nos três anteriores ao início do processo de insolvência e que não foram satisfeitos, até às forças do respectivo património, créditos esses a apurar em sede de liquidação de sentença”.

5.5. Custas
Dispõe o art.º 527º n.º 1 do CPC que a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

E o n.º 2 dispõe que “dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.”

O recorrente ficou vencido quanto às três primeiras questões e a recorrida ficou vencida quanto à última questão, pelo que as custas da apelação devem ser repartidas na proporção de ¾ pelo recorrente e ¼ pela recorrida.

6. Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 1ª Secção desta Relação em revogar a decisão recorrida no segmento em que decidiu “condenar o afectado Requerido AA a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património” e em sua substituição decide-se “Condenar o afectado Requerido AA a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos constituídos pela e a cargo da insolvente, nos três anteriores à data em que foi requerida a insolvência e que não foram satisfeitos, até às forças do respectivo património, créditos esses a apurar em liquidação de sentença”, mantendo-se a mesma em tudo o mais.

Custas pelo recorrente e pela recorrida que se fixam na proporção de, respectivamente, ¾ e ¼.

Notifique-se
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Guimarães, 04/11/2025
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Alexandra Maria Viana Parente Lopes
                Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício