i) A falta de cumprimento de obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento (quais sejam a manutenção do não pagamento ao longo de vários meses, com reconhecimento de “situação complicada” inclusivamente por um dos sócios da devedora, existência de outras dívidas e impossibilidade dos sócios da sociedade as suprirem), revelem a impossibilidade de satisfazer pontualmente as obrigações creditícias, constitui um dos elementos através do qual se pode reconhecer uma situação de perigo justificativo do arresto.
ii) O fundado receio de perda de garantia patrimonial não impõe a demonstração da vontade do devedor se eximir às suas responsabilidades, podendo bastar-se com a constatação da incapacidade de honrá-las.
iii) Para sindicar a proporcionalidade do arresto determinado e na ausência de factos julgados indiciariamente provados que demonstrem uma desproporcionalidade, deve o Requerido lançar mão da oposição, que, além do mais, pode conter o pedido de redução da providência aos limites ajustados à defesa do periculum in mora (artigo 372.º, n.º 1, alínea b), do CPC).
(Sumário da Relatora)
II. FUNDAMENTOS
1. Fundamentos de facto
1.1 Na decisão recorrida julgaram-se indiciariamente provados os seguintes factos:
«1. A (…), Construção e Manutenção, S.A. é uma sociedade que tem por objeto social a construção civil e empreitadas de obras públicas e particulares, bem como a realização de estudos e projetos. Reabilitação de imóveis. Prestação de serviços relacionados com todas e quaisquer outras atividades conexas com o exercício de atividade de construção, decoração, fiscalização, representações e Administração de propriedades. Exploração, fabrico e transformação e extração industrial de terras, areias, britas e inertes diversificados.
2. Por sua vez a Requerida é uma sociedade por quotas que tem por objeto social a compra, venda e revenda de bens imobiliários; construção de edifícios residenciais e não residenciais; promoção de bens imobiliários; desenvolvimento; exploração de bens imobiliários, arrendamento de bens imobiliários, entre outros.
3. Requerente e Requerida celebraram em 12 de agosto de 2024 dois contratos de empreitada, em que a Requerente figurava como Empreiteira e a Requerida como Dona de Obra conforme Documentos 1 e 2.
4. Os aludidos contratos, entre si semelhantes no seu conteúdo, versavam sobre dois lotes da propriedade da Requerida.
5. Em ambos os contratos a Requerente obrigou-se à execução da obra de desenvolvimento de uma construção de uma moradia unifamiliar com piscina e muros de vedação, de acordo comum projeto aprovado pela Câmara Municipal de Lagos, cuja cópias se encontram anexas aos respetivos contratos.
6. Projetos para os quais a Dona da Obra, aqui Requerida, solicitou dois orçamentos, conforme Documentos 3 e 4, à Requerente para a execução de todos os atos necessários à execução e construção das moradias mediante o pagamento de um preço.
7. Orçamentos esses que foram adjudicados pela Requerida, dando os mesmos origem aos aludidos contratos de empreitada.
8. Um dos contratos, junto sob a forma de Documento 1 versava sobre o Lote 26 e o segundo contrato versava sobre o Lote 27 sob a forma de Documento 2.
9. O primeiro contrato é referente ao Lote 26 e o preço acordado a pagar pela Requerida como pagamento pela obra executada cifrou-se em € 1.546.562,10, valor ao qual acrescia o respetivo IVA.
10. Por sua vez, o segundo contrato, referente ao Lote 27 cifrou-se em € 1.313.228,60, valor ao qual acrescia o respetivo IVA.
11. Ora, foi assim na sequência destes dois contratos que se iniciou a relação comercial aqui descrita e no âmbito da qual a Requerente iniciou os seus trabalhos no dia 08 de julho de 2024 no lote 27 e no dia 13 de julho do mesmo ano no lote 26.
12. Até dezembro de 2024, à medida que o projeto se desenvolvia e os trabalhos iam sendo efetuados pela Requerente a Requerida ia liquidando todas as faturas que lhe eram remetidas pela Requerente.
13. Data depois da qual, de um momento para o outro deixou de o fazer.
14. Desde 26 dezembro de 2024, data do último pagamento efetuado, que a Requerida deixou de liquidar as faturas que eram devidas por conta dos contratos em causa e na sequência dos respetivos trabalhos prestados, estando à presente data já em dívida o montante de € 435.733,83 por conta dos mesmos, conforme documento de fls. 101 e ss. (conta corrente), explicando, ao montante da fatura era retido pela requerida e não pago a quantia concretamente referida em cada uma das faturas (3% do montante ainda sem IVA).
15. Dado o volume de faturação em aberto a Requerida suspendeu os trabalhos no dia 12 de maio de 2025.
16. Desde então que tem junto da Requerente pugnado pelo pagamento dos valores em falta, sempre sem sucesso.
17. Tais trabalhos efetuados e por liquidar encontram-se assim consubstanciados na emissão de diversas faturas devidamente identificadas, sob a forma de Documentos 5 a 25.
18. Na sequência de todas as interpelações verbais para pagamento foi sempre dito que a situação estava complicada, mas que iam resolver, o que fez com que a Requerente fosse aguardando até à presente data.
19. Acontece que recentemente o discurso alterou-se, tendo sido transmitido por um dos sócios da Requerida que a mesma se encontrava numa situação complicada, sem acesso a financiamento bancário, pelo que não sabia, quando ou se iam, sequer, conseguir cumprir com o pagamento dos valores em dívida.
20. Veio ainda, entretanto, a Requerente a saber que a Requerida já soma outras dúvidas, junto de outras entidades, por trabalhos em obras na mesma urbanização e cujos trabalhos também terão sido suspensos por falta de pagamento.
21. Foi comunicado à requerente que nenhum dos sócios da requerida tinha a possibilidade de entrar com mais capital e pagar a dívida.
22. Perante esta informação, enviou ainda a Requerida, numa última tentativa de resolução desta situação, uma carta à Requerida, datada de 13.06.2025, conforme Documentos 29 e 30, solicitando o pagamento dos valores em dívida, à qual não teve qualquer resposta.
23. A Requerida é dona dos dois lotes, descritos na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob os n.ºs (…) e (…) e será dona de outros não identificados, mas sujeitos ao mesmo enquadramento dos presentes (empreitada a realizar por terceiros e cujos trabalhos foram suspensos por falta de pagamento).
24. Este património é facilmente transmissível em Portugal e no Algarve em particular em que o mercado se encontra muito dinâmico.
25. A empresa tem a intenção de vender os bens – cfr. o objeto indiciado da requerida. »
1.2 A decisão recorrida não considerou provado que:
«Circulam informações sobre a intenção dos sócios de se verem livres “da empresa e dos problemas”.»
E, especificadamente sobre o arresto, estatui o artigo 391.º, n.º 1, do CPC que o “credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito, pode requerer o arresto dos bens do devedor”.
De acordo, ainda, com o preceituado no artigo 387.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi do artigo 376.º, n.º 1, do mesmo diploma, “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”.
Destes normativos se extrai que, para que seja decretado o arresto, é suficiente que sumariamente possa concluir-se pela séria probabilidade do direito de crédito invocado e pelo justificado receio de que a demora na resolução definitiva do litígio cause ao requerente prejuízo irreparável ou de difícil reparação, por justificado receio de perda da garantia patrimonial daquele crédito.
A Recorrente entende, antes de mais, não poder extrair-se dos factos apurados o fundado receio de perda de garantia patrimonial.
Sem razão, porém, adiante-se já.
Efetivamente, a conjugação dos factos perfunctoriamente assentes sob 12 a 14, 18 a 21, 24 e 25, apontam no sentido inverso do que a Recorrente procura sustentar, já que até dezembro de 2024 foi liquidando todas as faturas que lhe foram remetidas pela Requerente, deixando depois de o fazer, até que a dívida à data da instauração do procedimento somava a já muito expressiva (não só atento seu valor absoluto, mas quando visto também a que ascende a mais de 15% do valor global das duas obras em curso – cfr. factos 9 e 10) quantia de € 435.733,83 e, interpelada ao pagamento, invocou estar a situação “complicada”, sem acesso a financiamento bancário, pelo que não sabia quando ou se ia, sequer, conseguir cumprir com o pagamento daquele valor, somando, para além do mais, outras dívidas junto de outras entidades por trabalhos em obras na mesma urbanização, também suspensos por falta de pagamentos, sem que qualquer dos sócios da ora Recorrente tenha a possibilidade de entrar com mais capital e pagar a dívida. Ora, esta descrição factual é tradutora de que a Requerida, ora Recorrente, atravessa dificuldades financeiras acentuadas, não sendo desprezível o risco de que, face ao seu objeto comercial, em que se inclui a compra, venda e revenda de bens imobiliários (cfr. facto 2), aliene os imóveis em questão sem que pague a dívida à Requerente (que não é sua única credora) ou até que os demais credores se queiram fazer pagar de tal venda.
Tanto bastava para que o tribunal a quo concluísse, como concluiu, pelo fundado receio de perda de garantia patrimonial. Efetivamente, a falta de cumprimento de obrigações que, pelo seu montante [expressivo, in casu, como vimos] ou circunstâncias do incumprimento [in casu manutenção do não pagamento ao longo de vários meses, com reconhecimento de “situação complicada” inclusivamente por um dos sócios da Requerida, existência de outras dívidas e impossibilidade dos sócios da sociedade as suprirem], revelem a impossibilidade de satisfazer pontualmente as obrigações creditícias, constitui um dos elementos através do qual se pode reconhecer uma situação de perigo justificativo do arresto[1].
Na verdade, ao contrário do que sustenta a Recorrente, não se impunha a demonstração de um comportamento que indicasse a prática de “fuga” de qualquer responsabilidade, bastando-se o instituto com a evidência de uma séria impossibilidade de satisfazer pontualmente as obrigações creditícias ou, dito de outro modo, com o perigo de insatisfação do crédito. O montante elevado do crédito, associado à falta de liquidez da Requerida e a acumulação de dívidas, apontam para tal perigo.
Por outro lado, se é inquestionável, como refere a ora Recorrente, que lhe assiste o direito de vender os imóveis em questão (como ficou demonstrado perfunctoriamente querer fazer – cfr. facto 25 – e terá facilidade em fazer – cfr. facto 24), por ser um dos seus direitos enquanto proprietária e porquanto é, também, essa uma das suas área de atividade (cfr. ponto 2), não é menos certo que à Requerente assiste o direito de ver saldado o seu crédito, pelo que é natural que pretenda acautelar este seu direito obviando a que a eventual venda se destine a saldar outras dívidas da Recorrente e cuja existência está perfunctoriamente demonstrada (cfr. facto 20).
Acresce não poder atribuir-se um relevo significativo ao facto de ter sido um dos sócios da Requerida a dar conta da situação complicada desta, v.g. do facto de estar sem acesso a financiamento bancário e de os sócios não terem possibilidade de capitalizar a sociedade e pagar a dívida (cfr. ponto 14 das conclusões do recurso e 19 e 21 dos factos provados). Na realidade, o decretamento do arresto não exige a ausência de vontade de pagar, bastando-se com a incapacidade de o fazer, in casu inclusivamente veiculada por um dos sócios da requerida (“não sabia, quando ou se iam, sequer, conseguir cumprir com o pagamento dos valores em dívida” – cfr. facto 19).
2.2 Da desproporcionalidade do arresto decretado
A Recorrente defende, ainda, que os lotes valorizaram os seus valores de mercado e que o tribunal a quo devia ter curado pela aplicação do princípio da proporcionalidade (pontos 7 e 9 das conclusões do recurso), subentendendo-se que, na sua opinião, o valor dos imóveis cujo arresto foi determinado será superior ao da dívida invocada pela Requerente.
Contudo, para fazer valer esta sua posição, devia a Requerida ter lançado mão da oposição, que, além do mais, podia conter o pedido de redução da providência aos limites ajustados à defesa do periculum in mora (artigo 372.º, n.º 1, alínea b), do CPC). Optou, ao invés, pelo recurso, pelo que não se pode fazer valer de factos que se situem para além dos considerados perfunctoriamente demonstrados pelo tribunal a quo.
Como ilustrativamente escreve Abrantes Geraldes[2], a propósito do atual artigo 393.º, n.º 2, do CPC, “desde que os autos o revelem, compete ao juiz limitar a apreensão aos bens que se mostrem necessários a garantir o pagamento do crédito […]. Também aqui não se justifica a adoção de critério excessivamente benévolo para o requerido, sob pena de se frustrar o objectivo último do arresto, ou seja, a promoção do cumprimento coercivo da obrigação. Com efeito, efectuado o arresto, nem sempre é perceptível a amplitude da situação patrimonial do devedor. Apesar de concretizada a apreensão, não está afastada a possibilidade de surgirem, na fase da reclamação de créditos, credores preferentes, alguns deles com garantias reais ocultas. Como as que estão previstas para os privilégios creditórios”.
Assim, não resultando dos factos indiciariamente provados uma desproporção clamorosa entre a dívida da Requerida e o que possa ser o valor atual dos imóveis arrestados, não pode censurar-se a opção do tribunal a quo de abarcar no arresto os dois imóveis em questão.
Não se vislumbra, em síntese, motivo para alterar a decisão recorrida.
3. Custas
Custas pela Recorrente, atento o decaimento (artigo 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC e Tabela I-B do Regulamento das Custas Processuais).
III. DECISÃO
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 30 de outubro de 2025
Sónia Kietzmann Lopes (Relatora)
Manuel Bargado (1º Adjunto)
Filipe Aveiro Marques (2º Adjunto)
(Acórdão assinado digitalmente)
________________________________________________
[1] Neste sentido, Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Volume, 2.ª ed., Almedina, págs. 188 e seguintes.
[2] In ob. cit., pág. 201.