REJEIÇÃO DO REQUERIMENTO PARA A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL DE INSTRUÇÃO
NEGAÇÃO DOS FACTOS ACUSADOS
INVOCAÇÃO DE FACTOS NOVOS
INDICAÇÃO DE NOVAS TESTEMUNHAS
Sumário

I - Não deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal da instrução, o RAI onde o arguido apenas nega os factos que lhe foram imputados na acusação ou que descreve factos não considerados no inquérito.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I. RELATÓRIO

1.1. A decisão

No Processo de Instrução nº 129/20.9T9GRD do Juízo de Competência Genérica de Vila Nova de Foz Côa, foi proferido o seguinte despacho em 10/2/2025 (transcrição):

No âmbito deste processo, o MP deduziu acusação pública contra os arguidos:

AA, …

e

Pela prática:

- Os arguidos AA e …, em coautoria e na forma consumada, na prática de um crime de participação económica em negócio, p. e p. 377.º, n.º 1 do Código Penal, o último punível atento o disposto no art. 28.º, n.º 1 do Código Penal.

- Cada uma das sociedade arguidas, na forma consumada, na prática de um crime de participação económica em negócio, p. e p. 377.º, n.º 1 do Código Penal.


***

Da acusação do Ministério Público constam os seguintes factos:


***

Os arguidos vieram requerer a abertura da fase de instrução.

Os arguidos … alegam, em suma, que …


***

O arguido AA alegou, em suma, que não praticou os factos, e que a sua intervenção nos procedimentos era formal e instrumental, na medida em que “dado o impulso e demonstrada a necessidade pelos serviços do procedimento, o arguido autorizava em abstrato o procedimento e a despesa.”

Mais: alegou que se tivesse tido todas as informações relativas aos factos descritos nos autos teria dado instruções aos serviços para alterar o procedimento. Alegou, ainda, que jamais pretendeu prejudicar o Município ….

Por fim, alega que a acusação não contém todos os factos que demonstrem que o arguido lesou os interesses patrimoniais que lhe foram confiados. 

O arguido requereu a reinquirição dos coarguidos, a inquirição de 3 testemunhas (identificadas no requerimento) e, ainda, a prestação de declarações do arguido.


***

Cumpre apreciar.

Importa apreciar se estão verificados, de igual forma, os requisitos materiais para a admissão deste requerimento.

A instrução constituiu uma fase processual de cariz facultativo que se destina a comprovar a decisão, neste caso do MP, de acusação, ou seja, se a causa deve ou não ser submetida a julgamento.

Significa isto que, materialmente, a instrução não deverá consistir numa fase suplementar de investigação à investigação já levada a cabo pelo MP. Na instrução visa-se, sim, reapreciar a decisão do MP, com fundamento em novas diligências probatórias sob direção do juiz de instrução, coadjuvado pelos órgãos de polícia criminal (artigo 288º, nº 1 do CPP).

Assim sendo, ao arguido requerente da abertura da fase de instrução caberá indicar as razões de facto e de direito que o fazem discordar da decisão do MP, bem como indicar atos de instrução que pretenda que o Juiz de instrução leve a cabo, e a indicar os meios de prova que entenda não terem sido considerados na fase do inquérito (artigo 287º, nº 2 do CPP).

Ora, do teor do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido AA, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, consta apenas uma versão diferente dos factos pelos quais vêm acusadas, tendo negado os mesmos, não tendo indicado outros factos que, por si ou conjugados entre si, conduzam a uma não comprovação da decisão do MP.

Ora, pela leitura do requerimento apresentado percebe-se que o arguido AA mais não fez do que contrariar a acusação do Ministério Público, negando que ela contém aquilo que efetivamente contém. Limitou-se a negar a prática dos factos descritos, talqualmente foram apreciados e valorados pelo Ministério Público…. Ora, o que o arguido AA, verdadeiramente, pretende, é defender-se da acusação do Ministério Público antecipando a fase de julgamento. Não pretende um juízo de comprovação da decisão de acusação. O seu propósito é apenas e tão só apresentar uma versão diferente dos factos, uma versão em que os mesmos deveriam ter sido valorados de outra forma. No fundo, e em suma, o arguido AA nega que tenha atuada da forma descrita na acusação.

Ora, uma mera versão diferente dos factos ou a sua negação não pode fundamentar a abertura da fase da instrução, pois tal consubstancia-se numa mera contestação motivada, contestação essa que o arguido AA poderá apresentar após notificação do despacho de recebimento da acusação (artigo 311º-B do CPP).       

Como já decorre do anteriormente dito, a fase da instrução não serve para contradizer os factos constantes da acusação, nem para negá-los, ou deles apresentar uma diferente leitura ou interpretação. A fase da instrução destina-se a comprovar se, dos elementos probatórios valorados pelo Ministério Público em sede de inquérito, decorrem ou não factos suficientemente indiciários da prática de crime por parte do ou dos arguidos.

   É precisamente o que o arguido AA pretende fazer neste processo.

   Em suma, no requerimento de abertura de instrução que apresenta, o arguido limitou-se a antecipar a fase de julgamento, contestando a acusação.

   A prova que ofereceu, a par das razões que invoca para a sua defesa terão, em sede própria, i.e., a do julgamento, a virtualidade de atacar, ou não, aquela que foi a convicção indiciária que culminou na dedução da acusação por parte do Ministério Público.

Em face do exposto, o Tribunal rejeita o requerimento de abertura de instrução, por parte do arguido AA com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 286º, nº1, 287º, nº s 2, a contrario sensu, e 3 do Código de Processo Penal.

Notifique.

1.2.O recurso

1.2.1. Das conclusões do arguido

Inconformado com a decisão, o arguido AA interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

15. Assim e pese embora o entendimento do Mmº Juiz a quo, toda a matéria de facto e de direito contante do RAI, além de contrariar a matéria indiciária da Acusação foi apresentada e é suficiente, no mínimo para ser criticada pelo JIC e eventualmente, como pretendeu o arguido para não ser apresentado a julgamento, pretensão que ficou prejudicada, bem como os seus direitos de defesa;

16. Sobre os elementos típicos do crime, elementos objetivo e subjetivo de que vem o arguido acusado, duvidas não existem que o mesmo alegou no RAI os fundamentos da sua divergência relativamente ao entendimento plasmado na Douta Acusação;

19. Pelo que, o Mmº Juiz ao quo ao fundamentar a douta decisão na circunstância que o arguido se ter limitado no RAI a antecipar a fase de julgamento e a contestar o libelo acusatório é salvo o devido respeito redutor e prejudica gravemente as garantias de defesa do arguido;

21. O arguido requereu novas provas, nomeadamente a inquirição de novas testemunhas para além das ouvidas em sede de inquérito;

22. Como resulta do alegado supra, o arguido cumpriu o disposto no artº 287 nº 2 do CPP, pelo que nos termos do artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal que o RAI deveria ser admitido;

23. Acresce que, apenas, razões de natureza formal e adjetiva se encontram legalmente previstas como fundamento para rejeição da instrução, já não questões de mérito do próprio requerimento que apenas podem justificar o indeferimento de diligências que hajam sido requeridas por não serem necessárias à realização das finalidades da instrução (cfr. artigo 291º, nº 1);

24. Assim perante as disposições legais citadas que, para além do mais, permitem a realização de instrução, apenas para debate do fundamento da acusação e eventual manifesta improcedência dos argumentos aduzidos no requerimento de instrução pelo arguido não é admissível a rejeição em causa, pois não estamos na presença de qualquer fundamento de inadmissibilidade legal da instrução;

25. Sem prescindir, sempre se dirá ser manifesto em face do RAI que a sua argumentação é, pelo menos, idónea a questionar o elemento subjetivo de tipo de crime imputado ao arguido, o que também desmente o argumentação do despacho recorrido;

             


1.2.2 Da resposta do Ministério Público

Respondeu em 1ª instância o Ministério Público, …

1.2.3. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação emitiu o seguinte parecer …

1.2.4. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.P., foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência.

II. OBJECTO DO RECURSO

Assim, examinadas as conclusões de recurso, a questão a conhecer e decidir é a da manutenção do despacho de rejeição do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido/recorrente .

III. FUNDAMENTAÇÃO

Transcrevemos parcialmente (na parte que interessa à decisão a proferir) o requerimento para a abertura da instrução do recorrente :

Desde logo, verifica-se que a factualidade descrita na acusação quanto ao ora arguido, não tem correspondência com a realidade, nem está suportada pelos documentos juntos aos autos e ainda, a sua conduta não preencheu o tipo objetivo e subjetivo do crime de que vem acusado.

Com efeito, o douto despacho de acusação menciona matéria conclusiva e sem qualquer conexão com a realidade, mormente a prática do crime de participação económica em negócio por inexistência de factos que demonstrem a conduta intencional dirigida a obter vantagem patrimonial, a consciência de que a sua conduta é contrária aos princípios que lhe estavam confiados e dessa forma lesava os interesses patrimoniais que lhe cumpria defender, favorecendo economicamente as sociedades arguidas.

No âmbito do mandato do Presidente, … foram efetivamente celebrados contratos com a empresa … por ajuste direto para a prestação de serviços, tendo em vista a realização de diversos eventos festivos na cidade da ….

Posteriormente, o ora Arguido, como Presidente …, realizou diversas atividades no concelho de … de acordo com estratégia política e de desenvolvimento defendida para o concelho entre os anos de 2014 a 2019, tendo lançado os procedimentos concursais, por ajuste direto.

Na verdade e dos diversos procedimentos realizados pelo Município da … não foi o aqui arguido Presidente do … informado pelos serviços do valor das contratações anteriormente efetuadas pelo seu Município, nem que os demais procedimentos não estavam dentro dos limites do valor definido por lei para os fazer.

Nem disso foi feita menção por qualquer técnico interveniente no procedimento e até dos serviços financeiros da Câmara que tal contratação por essa via, ajuste direto, não poderia ser realizada.

10º

Como Presidente da … intervinha nos procedimentos de aquisição de bens ou prestação de serviço para proceder à autorização prévia da despesa e do procedimento.

15º

A sua intervenção nos procedimentos era formal e instrumental, na medida em que dado o impulso e demonstrada a necessidade pelos serviços do procedimento, o arguido autorizava em abstrato o procedimento e a despesa.

19º

O arguido sempre agiu no pressuposto do cumprimento da lei pelos serviços e que o valor das propostas era o valor do mercado, aliás constava das informações que: - O valor base será idêntico ao valor do ano anterior.

20º

Não era possível ao arguido, por quem passava a maior parte das autorizações para lançar os procedimentos de contratação do …, proceder em concreto à avaliação das empresas e verificação da legitimidade e cumprimento da legalidade de todas as propostas.

21º

Obrigação esta, que impendeu, nesta forma de atuação, sempre, sobre os serviços e respetivas chefias ou do júri dos procedimentos, conforme fosse o caso.

22º

Com efeito, o douto despacho de Acusação não menciona para além da decisão de contratar e da autorização da despesa qualquer intervenção em concreto do arguido quanto à indicação das empresas a contactar ou da necessidade de adquirir quaisquer bens ou serviços necessários ao funcionamento do município.

IV. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O recorrente …, arguido no processo, insurge-se contra a decisão do juiz de instrução que rejeitou o seu requerimento para a abertura da instrução, por inadmissibilidade legal.

A instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento (artigo 286º, nº 1 do C.P.P.).

Conforme refere Maia Costa, in Código de Processo Penal comentado, Almedina, 2022 - 4ª edição revista, p. 969, «A instrução constitui uma fase processual autónoma, de carácter facultativo, que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar tomada no final do inquérito.

(…) A comprovação consiste no controlo jurisdicional sobre qualquer dessas decisões por parte de um juiz diverso do juiz de julgamento.

(…) A instrução não é um julgamento «antecipado», com o mesmo nível de garantias e direitos de defesa, com a mesma intensidade de produção e apreciação da prova. A instrução, insiste-se, visa apenas a comprovação da acusação, isso é, saber se existe fundamento para abrir a fase de julgamento, que é a fase central e paradigmática do processo penal, segundo o modelo garantista herdado do iluminismo».

De acordo com Vinício Ribeiro, in Código de Processo Penal, notas e comentários, 3ª edição, Quid Juris, em anotação ao artigo 286º, p. 629-630, «Da análise da doutrina e da jurisprudência, e tendo em atenção o disposto nos textos legais, nomeadamente no presente normativo, temos de concluir que a instrução é uma instância de controlo e não de investigação, embora no seu âmbito possa ser feita investigação (cfr., v.g., art. 288.º, nº 4). O juiz investiga autonomamente, mas dentro do acervo factual que lhe é apresentado no requerimento de abertura da instrução. Tal requerimento delimita os poderes de actuação do Juiz».

De acordo com o nº 2 do artigo 287º do C.P.P., o requerimento para a abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar.

No que respeita à possibilidade de rejeição do requerimento para abertura de instrução, estabelece o nº 3 do artigo 287º do C.P.P. que aquele requerimento «só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.».

Conforme escreve Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal anotado, 16ª edição, Almedina 2007, p. 629, «a rejeição por inadmissibilidade legal de instrução inclui os casos em que aos factos não correspondem a infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura da instrução, v. g. ilegitimidade do requerente (caso do MP) ou inadmissibilidade legal de instrução (v.g. casos dos crimes particulares e de alguns processos especiais)».

Maia Costa, in op. cit. p. 974, reporta-se, além do caso expressamente consagrado no nº 3 do artigo 286º do C.P.P. à :

«a) falta de legitimidade do requerente (Ministério Público ou ofendido não constituído assistente) ;

b) quando a instrução é requerida contra incertos ou desconhecidos;

c) quando a instrução é requerida contra pessoa que não foi investigada no inquérito …

d) quando os factos constantes do requerimento não foram investigados no inquérito;

e) quando é requerida pelo assistente em crime particular».

Já Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos Humanos, volume II, 5ª edição atualizada, UCP, p. 204-205 elenca os seguintes casos de inadmissibilidade legal da instrução :

« a. Instrução requerida nas formas de processo especial

b. Falta dos pressupostos processuais

c. Nulidades da acusação ou do arquivamento

d. Instrução requerida apenas para modificação da qualificação jurídica dos factos

e. Instrução requerida pelo MP

f. Instrução requerida pelo ofendido não constituído assistente…

g. Instrução requerida pelo assistente relativa a crime particular …

h. Requerimento do assistente que não contém a narração de factos, apenas peticionando a realização de diligência instrutórias …

i. Requerimento do assistente contra incertos

j. Requerimento do assistente que contém factos que não constituem crime …

k. Requerimento do assistente relativamente a factos que não foram objecto do inquérito …

l. Requerimento do assistente relativamente a factos que o MP arquivou nos termos do artigo 280.°, n.° 1, ou do artigo 282.°, n.° 3 …

m. Requerimento do assistente que respeita a factos que não alterem substancialmente a acusação do MP …

n. Requerimento do assistente que não indica as disposições legais violadas

o. Requerimento do assistente que respeita a crime em relação ao qual ele não tem legitimidade para se constituir assistente …

p. Requerimento com vista à aplicação ou rejeição da suspensão provisória do processo …».

Por sua vez, Fernando Gama Lobo, in Código de Processo Penal anotado, 4ª edição, Almedina 2022, p. 646-647 aponta como integrando a inadmissibilidade legal da instrução, a «falta de legitimidade para tal do requerente, ou de ser deduzida contra desconhecidos, ou no facto de a forma do processo a não admitir (v.g. formas de processo especiais) ou na existência de nulidades do inquérito (v.g. irregularidade das notificações) que impeçam a tramitação subsequente . Mas também (é a regra) na deficiente elaboração dos próprios requerimentos de abertura de instrução, quando estes não respeitarem as exigências legais , sendo muito habitual, a situação em que o requerimento do assistente … Enfim, a inadmissibilidade legal da instrução, não se esgota nas causas específicas previstas nesta norma, mas também noutras genéricas espalhadas pelo código. Dir-se-á que a instrução, pode qualificar-se legalmente inadmissível, quando não tem sustentação legal e padece de qualquer disfuncionalidade jurídica grave.».

Elucidativa é a posição manifestada por Pedro Soares de Albergaria, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, Almedina, p. 1199-1200, quando escreve que «A possibilidade de o arguido requerer a abertura da instrução configura um direito de defesa do mesmo sustentado na CRP (art. 32º) em termos de poder sujeitar a comprovação por um terceiro imparcial (o JI) a acusação que contra ele foi deduzida … a faculdade de o arguido requerer a abertura da instrução está expressamente limitada à hipóteses de, pela procedência da pretensão, o feito não vir a ser introduzido em juízo (art. 286º) – do que decorre que o requerimento de instrução que não seja autossuficiente neste desiderato não será admissível…

Assim, de entre muitas outras hipóteses, será admissível o requerimento para abertura de instrução quando, por uma distinta leitura dos factos, o arguido … proceda à simples negação de que eles tivessem sequer sucedido ou que os reconhece mas acrescente de outros que a indiciarem-se convocariam uma causa de justificação ou de exculpação, ou até que admita todos os factos que integrariam os tipo de ilícito e de culpa, mas negue estar verificada uma condição objetiva de punibilidade.».

Analisando o despacho recorrido, vemos que o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, ora recorrente, foi rejeitado, pois «… Ora, pela leitura do requerimento apresentado percebe-se que o arguido … mais não fez do que contrariar a acusação do Ministério Público, negando que ela contém aquilo que efetivamente contém. Limitou-se a negar a prática dos factos descritos, talqualmente foram apreciados e valorados pelo Ministério Público. O arguido … expôs uma discordância relativamente à apreciação que o Ministério Público fez da matéria indiciária, da forma como interpretou e valorou os factos pelos quais o arguido AA foi acusado. Ora, o que o arguido …, verdadeiramente, pretende, é defender-se da acusação do Ministério Público antecipando a fase de julgamento. Não pretende um juízo de comprovação da decisão de acusação. O seu propósito é apenas e tão só apresentar uma versão diferente dos factos, uma versão em que os mesmos deveriam ter sido valorados de outra forma. No fundo, e em suma, o arguido … nega que tenha atuada da forma descrita na acusação.» .

Não desconhecemos que parte da nossa doutrina e jurisprudência acolhe esta tese, que foi defendida no despacho recorrido. Mas com ela não concordamos .

Em primeiro lugar, o artigo 287º do C.P.P. aponta para uma interpretação restritiva do preceito em causa, quando prescreve que o requerimento para abertura da instrução pode ser rejeitado com base nas situações ali mencionadas.

Em segundo lugar, o legislador de 1987 pretendeu somente tornar a fase da instrução facultativa, não visou restringir os fundamentos para a sua admissão . Isso mesmo resulta do preâmbulo do código de processo penal : « … a instrução, de carácter contraditório e dotada de uma fase de debate oral - o que implicou o abandono da distinção entre instrução preparatória e contraditória -, apenas terá lugar quando for requerida pelo arguido que pretenda invalidar a decisão de acusação, ou pelo assistente que deseje contrariar a decisão de não acusação. Tal opção filia-se na convicção de que só assim será possível ultrapassar um dos maiores e mais graves estrangulamentos da nossa actual praxis processual penal. (…)».

No despacho recorrido critica-se o facto de o arguido não explicar por que razão as testemunhas por si indicadas agora não foram inquiridas em sede de inquérito. Porém, tal extravasa por completo o âmbito deste recurso, na medida em que se desconhece se o arguido quis prestar declarações em sede de interrogatório, querendo, se avançou com os factos que agora descreve no requerimento para abertura da instrução, e se indicou as referidas testemunhas como sendo conhecedoras dos factos, etc

O que é certo é que estamos em face de um argumento que não pode fundar, de modo algum, a rejeição do seu requerimento para abertura da instrução !

 Depois, também não subscrevemos o despacho proferido em primeira instância, quando afirma que o ora recorrente :

- não invoca as razões de facto e/ou direito de discordância da acusação;

- não indica os meios de prova não tidos em consideração pelo Ministério Público.

Lido o requerimento de abertura da instrução, verificamos que o ora recorrente  descreve os factos e o direito dos quais resultará – na sua perspectiva – que não deve ser submetido a julgamento :

A indicação dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito, de acordo com o nº 2 do artigo 287º do C.P.P., deve ser feita constar do requerimento para abertura da instrução «sempre que disso for caso», pelo que a sua omissão também não é razão para rejeitar o requerimento em questão.

Deste modo, dado que o objectivo da instrução é suscitar a intervenção de um terceiro imparcial, de modo a tentar evitar a submissão do arguido a julgamento, constituindo mesmo um direito do arguido e uma garantia do processo penal, não vemos como é que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo ora recorrente «não serve as finalidades da instrução. Servirá… as finalidades do julgamento… não permite a comprovação judicial da decisão de acusar».

Exactamente por se tratar de um direito e de uma garantia, é que a lei apenas permite a rejeição do requerimento de abertura da instrução por ser extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, não sendo admissível diminuir a possibilidade de suscitar aquela intervenção por razões de celeridade processual ou através da interpretação lata do nº 3 do artigo 287º do C.P.P..

Chamamos à colação o que afirmou Souto Moura, in Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, Almedina, p. 118-119 : «… o nº 2 do art. 287º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta diretamente da finalidade assinalada à instrução: obter o controle judicial da opção do M.º P.º. Ora, se a instrução surge na economia do código com caráter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvair-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados».

No sentido de que o requerimento de abertura de instrução que nega os factos imputados na acusação ou descreve factos não considerados no inquérito, não deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal vejam-se os seguintes arestos, entre outros:

- da Relação de Coimbra de 10/4/2024, processo 9/21.0ghcbr.C1, relatado por João Novais;

– da Relação de Guimarães de 20/2/2017, processo 7/06.4gabtc.G1, relatado por Fátima Bernardes;

- da Relação de Lisboa de 26/6/2025, processo 727/24.1gaalq-A.L1-9, relatado por Paula Cristina Bizarro;

- da Relação de Lisboa de 7/11/2024, processo 968/23.9pvlsb.L1-9, relatado por Ivo Nelson Caires B. Rosa:

- da Relação do Porto de 4/2/2015, processo 681/13.5pbmai.P1, relatado por Pedro Vaz Pato;

- da Relação do Porto de 25/6/2014, processo 30/13.2pcprt-A.P1, relatado por Alves Duarte;

Todos acessíveis in www.dgsi.pt.

 Pelo exposto, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido cumpre os requisitos legais, razão pela qual procede o seu recurso, e consequentemente, revoga-se a decisão recorrida.

V. DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª secção penal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

Julgar procedente o recurso interposto pelo arguido … e, em consequência, revogam o despacho recorrido, ordenando a remessa dos autos à primeira instância com vista à prolação de despacho que admita o requerimento de abertura de instrução .

Sem custas (cfr. o artigo 513º do C.P.P. a contrario).

Coimbra, 5 de Novembro de 2025


 (Helena Lamas - relatora)


 (Cândida Martinho – 1ª adjunta)


 (Maria José Guerra – 2ª adjunta)