I - O segredo profissional consiste no dever ético de não revelar dados confidenciais que tenham chegado ao conhecimento através do exercício da actividade profissional e abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento através do exercício de tal actividade.
II - Os advogados deixam de estar sujeitos ao segredo profissional quando o requeiram ao presidente do Conselho Distrital respectivo e este o autorize, ou quando seja deferido o incidente processual de quebra do segredo profissional.
III - A decisão de determinar a prestação do depoimento com quebra do segredo profissional ou de indeferir o pedido assenta no critério da prevalência entre os interesses em conflito, ou seja, do interesse preponderante, que se afere, nomeadamente, por referência à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, à gravidade do crime e à necessidade de protecção dos bens jurídicos.
IV - No caso dos advogados os interesses em conflito são, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça penal e, por outro, a relação de confiança com o cliente e a dignidade do exercício da profissão, que conferem ao advogado as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regular o patrocínio forense, como elemento essencial à administração da justiça.
V - A conclusão sobre a existência de um interesse preponderante depende da verificação, em concreto e em face da forma como o pedido de quebra do segredo profissional está formulado, de o depoimento da testemunha se revestir de absoluta necessidade, isto é, imprescindibilidade (o meio de prova sujeito a sigilo ser indispensável e não meramente útil), essencialidade (o mesmo ser de tal modo determinante que, a não ser concedida a dispensa, a parte interessada poderá ver a sua posição claudicar, total ou parcialmente) e exclusividade (inexistir qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo).
VI - Se os factos relativamente aos quais se pretende que o depoimento do advogado incida dizem respeito a crimes de falsificação de documento, estão em causa crimes de natureza pública, cujo objecto é a protecção, a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental, interesse social premente.
VII - Se o Ministério Público, ao suscitar o incidente, apenas invoca, conclusivamente, a imprescindibilidade do depoimento no que respeita aos factos a que foi indicado o testemunho, se se revela que a prova é essencialmente documental e se são vastos os elementos probatórios que a respeito da actuação do arguido vêm indicados ao longo da acusação pública, resulta que existem meios probatórios alternativos à quebra do segredo profissional que permitem apurar os factos em apreço.
Acordam em conferência, os juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra
I.Relatório
1.
No processo nº186/21.0T9PMS-X do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Central Criminal de Leiria (Juiz 3) – foi deduzida acusação que imputou aos arguidos a prática dos seguintes crimes.
I - …
II - …
III -- … al. a) e 256º, nº 1, als. b) e d) e nº 3, todos do Código Penal: -- (Factos descritos em 52 a 56).
IV - …
V -- …
VI -- …
VII -- …
VIII -- …
2.
No elenco da prova testemunhal indicada na acusação consta como testemunha …, advogado, melhor identificado a 1482 a 1503, a fim de ser inquirido a respeito dos pontos 68 a 74 da acusação, suscetíveis de integrar a prática pelo arguido … de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255,al.a) e 256º,nº1,als.e) e f) e nº3, ambos do CPenal.
Consta dos mesmos a seguinte factualidade:
“68 -- Na sequência desígnio mencionado em 32 e 33, no dia 5 de Abril de 2021, o arguido … instaurou contra a sociedade … o Procedimento Cautelar de Suspensão de Deliberação Social, … visando a suspensão da deliberação referida em 31.2.
69 -- Nesse Procedimento Cautelar de Suspensão de Deliberação Social o arguido … arrogou-se accionista da sociedade … bem sabendo que o não era.
70 -- Para fazer prova da qualidade referida em 69, o arguido o … entregou ao Exmº. Sr. Dr. …, Advogado, fotocópias dos contratos que tinham sido forjados nos termos supra descritos em 37 a 39, 47 a 49 e 57 a 59, assim como fotocópias dos títulos das acções haviam forjados nos termos supra descritos em 42 a 44, 52 a 54 e 62 a 64, documentos esses que o arguido … sabia não serem verdadeiros, mas cuja falta de autenticidade o Exmº. Sr. Dr. … desconhecia.
71 -- Na sequência do descrito em 68, para fazer prova da qualidade referida em 69, nos dia 12 de Abril de 2021, o Exmº. Sr. Dr. … juntou aos Autos identificados em 68, cujos originais exibiu em sede de Audiência no dia 8 de para, de igual forma, virem a servir de meios de prova aos factos ali alegados pelo arguido ….
72 -- Bem sabendo o arguido … que os documentos referidos em 71, que havia entregue ao Exmº. Sr. Dr. …, assim como os seus originais que igualmente lhe havia entregue para que estes os juntasse aos Autos identificados em 68 e os exibisse em de Audiência no âmbito dos mencionados Autos, respectivamente, nos termos descritos em 71, não eram verdadeiros.
73 -- Ao ter actuado da forma supra descrita em 68 e 72, bem sabia o arguido … que tinha apresentado e exibido ao Exmº. Sr. Dr. …, quer os contratos que tinham sido forjados nos termos supra descritos em 37 a 39, 47 a 49 e 57 a 59, quer os títulos das acções haviam forjados nos termos supra descritos em 42 a 44, 52 a 54 e 62 a 64, documentos esses que o arguido … sabia não serem verdadeiros, com o propósito de conseguir que o Tribunal … viesse a dar provimento à dita providência, assim tendo conseguido por em causa a fé pública, confiança e credibilidade que tais meios de prova devem merecer, não só perante o Estado Português, como também para os Órgãos de Soberania e demais público em geral.
…
3.
Na audiência de julgamento que teve lugar no dia 7 de maio de 2025, a mencionada testemunha invocou o segredo profissional relativamente à matéria em causa, por dela ter tido conhecimento no âmbito da sua atividade profissional, enquanto advogado do arguido ….
4.
Tal recusa foi considerada legítima pelo Tribunal recorrido e, nessa sequência, veio o Ministério Público desencadear o presente incidente com vista à prestação do depoimento pela identificada testemunha com quebra do segredo profissional.
5.
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Coimbra, constatando-se que a legitimidade da recusa, ao contrário do estatuído, veio a ser decidida sem que tenha havido quaisquer averiguações, ou seja, sem que o tribunal perante o qual foi invocada a recusa se tenha munido do parecer do organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, cfr. estatuído no artigo 135º,nº4, do CPP, veio este Tribunal determinar a devolução dos autos à primeira instância com vista ao suprimento da referida omissão.
6.
Solicitado tal parecer, veio o Conselho Regional da Ordem dos Advogados do Porto pronunciar-se no sentido de a recusa ter sido legítima, porquanto estarem em causa factos sujeitos a segredo profissional.
7.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência.
Cumpre decidir, pois nada obsta ao conhecimento do mérito.
II. Fundamentação
Em causa está o levantamento do segredo profissional a que está sujeito o advogado Dr. …, no exercício da sua atividade profissional, no que tange a factos que lhe advieram do exercício das suas funções.
Com efeito, tendo sido arrolado como testemunha, veio escusar-se a prestar depoimento, alegando que os factos sobre os quais é pretendido o seu depoimento (factos 68 a 74 da acusação) constituem matéria sujeita a sigilo profissional, porquanto, como aliás decorre dos factos, foi mandatário do arguido …, no âmbito da providência cautelar …
Ora, o segredo profissional abrange tudo quanto tenha chegado ao conhecimento de alguém através do exercício da atividade profissional e na base de uma relação de confiança (neste sentido, Conselheiro Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, Vol.1, 3ª edição, 2008, pág.961).
Trata-se, assim, de um dever ético de não revelar dados confidenciais que tenham chegado ao conhecimento através do exercício de uma atividade profissional.
No que tange aos advogados, o dever de sigilo profissional consta do respetivo Estatuto da Ordem dos Advogados, que estabelece no seu art. 92º, nº1,na redação dada pela Lei 145/2015, de 9/9, que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, seguindo-se depois nas diversas alíneas do mesmo preceito a enunciação, não taxativa, das situações sujeitas ao referido segredo.
Com efeito, «pressuposto do correto desempenho da advocacia é a confiança que o cliente deposita no advogado e que este deve fazer por merecer não revelando factos ou exibindo documento abrangidos pelo segredo profissional. Não havendo confiança absoluta no advogado para lhe revelar todos os factos, o mesmo não poderá, obviamente, exercer cabal e eficazmente a sua profissão.
(…)
E tal obrigação de sigilo existe, quer quando os seus serviços são contratados de forma duradoura, quer de forma esporádica, quer haja, ou não, representação do cliente, quer esta seja judicial ou extrajudicial, quer o advogado chegue, ou não, a aceitar o serviço para que foi procurado independentemente do serviço ser ou não remunerado» (Conselheiro Santos Cabral, in Código de Processo Penal, anotação ao art. 135º, pág. 543).
Porém, tal segredo não é absoluto existindo situações excecionais em que o advogado o pode quebrar.
É o que resulta do disposto no citado preceito legal, nos seus números 4 e 6.
Como deles decorre, o advogado deixa de estar sujeito ao segredo profissional quando o requeira ao Presidente do Conselho Distrital respetivo e este o autorize [trata-se do procedimento previsto no art. 92º, nº 4 do EOA].
Pode ainda ser dispensado quando seja deferido o incidente processual de quebra do segredo profissional, regulado no art. 135º do C. Processo Penal.
Nos termos deste dispositivo legal, que versa sobre o segredo profissional, «os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos».
Assim, invocada a escusa por quem a lei permite ou impõe que guarde segredo e existindo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da invocação, o tribunal onde ela foi deduzida procede às averiguações necessárias e caso conclua pela ilegitimidade da escusa, ordena a prestação do depoimento ou da forma de cooperação pretendida (art. 135º, nº 2 do C. Processo Penal). Sendo legítima a escusa, compete ao tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente foi suscitado decidir sobre a quebra do segredo (art. 135º, nº 3 do C. Processo Penal), depois de ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável (nº 4 do mesmo artigo).
No caso vertente, o Ex.mo advogado não requereu previamente a dispensa do segredo profissional, antes o tendo invocado e dai ter-se escusado a depor sobre os factos em causa.
Tal recusa foi considerada legítima e dai que tenha sido suscitado a este Tribunal da Relação, na sequência de requerimento por parte do Ministério Público, o presente incidente, com vista que se ordene a prestação de depoimento por parte do Sr. Advogado, quanto aos concretos pontos indicados na acusação.
Suscitado que foi então o presente incidente e chegado este ao tribunal superior, a decisão ponderará a quebra do segredo profissional sempre que ela se mostre justificada, à luz do princípio da prevalência do interesse preponderante, expressamente previsto no nº 3 do art. 135º do C. Processo Penal, devendo ter-se em conta, para este efeito, nomeadamente, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
Com efeito, dispõe, o nº3, do citado artigo 135º do CPP que o tribunal “pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o principio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente, tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos..”
Deste modo, o princípio que rege a decisão a proferir, de determinação da prestação do depoimento com quebra do segredo profissional ou do indeferimento do pedido, é o da prevalência do interesse preponderante, que se aferirá, nomeadamente, por referência à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, à gravidade do crime e à necessidade de proteção dos bens jurídicos.
É este, pois, o pressuposto substancial da quebra do segredo profissional, este jurídico-penalmente tutelado no art.195 do C.Penal.
Ora, o princípio do interesse preponderante impõe ao tribunal superior a realização de uma cuidada, atenta e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de decidir qual deles deverá, no caso vertente, prevalecer.
E tais interesses são, por um lado, o interesse do Estado na realização da justiça penal e, por outro, o interesse tutelado com o estabelecimento do segredo profissional na Advocacia, ou seja, a tutela da relação de confiança entre o advogado e o cliente e da dignidade do exercício da profissão, devendo a lei assegurar ao advogado as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regular o patrocínio forense, como elemento essencial à administração da justiça, nos termos do art. 208º, da CRP.
Ora, aferindo-se a prevalência do interesse preponderante, pressuposto da quebra do segredo profissional, nomeadamente, por referência à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, à gravidade do crime e à necessidade de proteção dos bens jurídicos, vejamos então se o interesse na realização da justiça, à qual é essencial a descoberta da verdade material, é preponderante de modo a justificar a imposição da quebra do segredo.
No caso em análise, o dever de sigilo, destina-se a proteger as relações de confiança entre o Ex.mo advogado, de quem se pretende a prestação do depoimento e o arguido …, a quem o primeiro prestou serviços no exercício das suas funções de advogado.
Por outro lado, na perspetiva da realização da justiça, estamos perante um depoimento pretendido em sede de audiência de julgamento, que tem por objeto os concretos factos descritos nos pontos 68 a 74 da acusação.
Haverá que encontrar um ponto de equilíbrio entre os valores em conflito, quais sejam o da busca da verdade material e por esse modo da realização da justiça, por um lado, e o interesse que legítima a recusa em revelar certos factos por estar a coberto do sigilo profissional, por outro.
Cada sigilo profissional visa proteger determinados valores socialmente relevantes, não havendo, como parece lógico, necessária coincidência entre tais valores nos diversos sigilos.
Ensina Costa Andrade, In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 795 a 796 que essa fórmula do "interesse preponderante", legalmente adotada, projeta-se em quatro implicações: em primeiro lugar, na intencionalidade de vincular o julgador a padrões objetivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação; em segundo lugar, no afastamento de qualquer uma das duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal, como a tese inversa de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional; em terceiro lugar, no entendimento de que a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despida do peso específico dos crimes a perseguir), não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo. Por último, no reconhecimento de idoneidade à dimensão repressiva da justiça penal para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo, tudo dependendo da gravidade dos crimes a perseguir, consagrando-se, assim, a solução mitigada que admite a justificação (ex vi ponderação) da violação do segredo desde que esteja em causa a perseguição dos crimes mais graves e que provocam maior alarme social.
Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª Ed. atualizada, Universidade Católica Editora, pág.363 a 364 «(…) nem todos os bens jurídicos tutelados pela lei penal justificam a quebra do sigilo profissional. O critério da necessidade da proteção dos bens jurídicos é ainda mais rigorosamente delimitado pelo critério da “gravidade do crime”. É aqui que reside o cerne do juízo de justificação feito pelo tribunal superior: na ponderação da gravidade do crime investigado em contrapeso com o prejuízo da intrusão na privacidade da pessoa obrigada ao segredo profissional. A gravidade deve ser aferida em abstrato e em concreto. Em abstrato, o conceito de "gravidade do crime" ou de "crime grave" deve ser condensado de acordo com a bitola fixada no artigo 187.º, n.º 1, al.ª a), isto é, considerando-se como "crime grave" o crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a três anos, atenta a similitude material entre a tutela do direito à privacidade pelo artigo 187.º e a tutela do segredo profissional pelo artigo 135.º. (…).
Isto não quer obviamente dizer que a revelação da informação sob segredo profissional deva sempre ter lugar quando estiver em causa a investigação de crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão. A ponderação da gravidade dos crimes puníveis com pena superior a três anos de prisão não é indispensável, pois a gravidade do crime deve ser aferida não apenas em abstrato, mas também em concreto, em face das concretas circunstâncias que envolveram a prática do crime.».
Quanto à imprescindibilidade do depoimento e à necessidade de proteção dos bens jurídicos, salienta o mesmo autor, in obra citada, págs.363 a 364, o seguinte:
«A imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade significa duas coisas: a descoberta da verdade é irreversivelmente prejudicada se a testemunha não depuser ou, depondo, o depoimento não incidir sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional e, portanto, o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, não há meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade».
(…) «A “necessidade" de proteção de bens jurídicos identifica-se com uma “necessidade social premente (pressing social need) de revelação da informação coberta pelo segredo profissional ( …)», ou seja, «(…) a quebra do sigilo só é justificável se corresponder a um interesse social premente (…)», o que não se verifica, em princípio, «quando se indicie a prática de crimes particulares, salvo se o crime tiver um impacto social notório» ou «quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal».
Ressuma do exposto que a conclusão sobre a existência de um interesse preponderante está dependente da verificação, em concreto, em face da forma como o pedido de quebra do segredo profissional se encontra formulado, se o depoimento da testemunha se reveste de absoluta necessidade, isto é, imprescindibilidade (o meio de prova sujeito a sigilo ser indispensável e não meramente útil), essencialidade (o mesmo ser de tal modo determinante que, a não ser concedida a dispensa, a parte interessada poderá ver a sua posição claudicar, total ou parcialmente) e exclusividade (inexistir qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo).
Posto isto, vejamos.
No caso vertente, os factos relativamente aos quais se pretende o depoimento do Sr. Advogado dizem respeito a dois dos crimes de falsificação de documento imputados ao arguido, cada um deles punido com pena de 6 meses a 5 anos de prisão ou com pena de multa de 60 a 600 dias.
Está assim em causa um tipo de ilícito típico, de natureza pública, que tem por objeto de proteção, a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, no que respeita à prova documental, bem jurídico tutelado no artigo 2º da CRP.
O tipo de ilícito é grave e o bem jurídico protegido com a incriminação identifica-se com um interesse social premente.
Todavia, na senda do que aduzimos, outro fator densifica o princípio da prevalência do interesse preponderante, desde logo, o da imprescindibilidade do depoimento.
Neste particular, o ora requerente, Ministério Público, ao suscitar o incidente com vista a que à quebra do sigilo profissional do Sr. Advogado, limitou-se, conclusivamente, a invocar a imprescindibilidade do seu depoimento no que respeita aos factos a que foi indicado o testemunho.
Todavia, tal qualidade não pode considerar-se demonstrada, sem mais, com a mera afirmação do requerente.
Na verdade, como supra se referiu, apesar de o segredo profissional do Advogado não ser absoluto, o seu levantamento só deve ser possível em casos excecionais.
E, no caso vertente, não vislumbramos que o depoimento do Sr. Advogado se revista de absoluta necessidade, que seja essencial para a prova dos factos em apreço e constitua o único meio de prova dos mesmos.
Com efeito, analisando a factualidade relativamente à qual é pedida a quebra do sigilo é evidente que a sua prova há-de ser essencialmente documental, pelo que de modo nenhum o depoimento pretendido poderá ser o exclusivo meio de prova de tal factualidade.
São vastos os elementos probatórios que a respeito da atuação do arguido vêm indicados ao longo da acusação pública (prova por declarações, testemunhal, documental e pericial), sendo que, no que em especial se refere à instauração do Procedimento Cautelar de Suspensão de Deliberação Social e aos concretos elementos documentais que nele foram juntos, seja aquando da sua propositura, seja no decurso da audiência de julgamento, matéria vertida nos pontos sobre os quais é requerido o depoimento, foi indicada também na acusação pública abundante prova documental , cfr. deflui das notas 46 a 49 de rodapé.
Ou seja, no caso vertente, existem meios probatórios alternativos à quebra do segredo profissional que permitem apurar os factos em apreço, mais concretamente a prática pelo arguido dos crimes em apreço.
E, como se defendeu no Ac. da Relação de Guimarães de 28 de outubro de 2019, proferido no âmbito do proc.2360/13.4TABRG.G.G1, no qual interviemos como juiz adjunta “ Se da análise da factualidade relativamente à qual é pedido o depoimento com quebra de sigilo se concluir que o depoimento pretendido não apresenta a característica de imprescindibilidade, v.g. por não ser o exclusivo meio de prova, não deve ser afastada a regra da confidencialidade que preside ao entendimento de que o sigilo profissional é o primeiro direito e o primeiro dever de um advogado”.
Por conseguinte, não podendo concluir-se pela imprescindibilidade do depoimento da testemunha para prova da factualidade indicada pelo requerente do incidente em apreço e, considerando que a proteção dos bens jurídicos em causa nos autos de que os presentes são incidente pode ser alcançada por outros meios que a lei igualmente prevê, não se afigura admissível a quebra do sigilo profissional em apreço.
III. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra em indeferir o incidente de quebra do sigilo profissional com vista à prestação de depoimento nos termos pretendidos pelo Ministério Público no processo 186/21.0T9PMS, por parte da testemunha ….
Sem custas.
Incidente sem tributação.
(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos as signatários – art.94º, nº2, do C.P.P.)
Coimbra, 5 de novembro de 2025