I - De acordo com o disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, ex vi art. 41.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10, é nula a decisão judicial, proferida em processo de contra-ordenação, que não se pronunciou sobre as questões jurídicas suscitadas pelo arguido no recurso da decisão da autoridade administrativa, muito em particular relativas à substituição da coima por admoestação ou, a título subsidiário, pela sua redução a metade, com base numa pretendida atenuação especial da sanção aplicada.
II - O dever de suprimento do vício por parte do tribunal de recurso, imposto pelo n.º 2 do art. 379.º do CPP, não tem natureza absoluta e não pode surgir desprendido das garantias de defesa, muito em particular do direito ao recurso assegurado ao arguido pelo ordenamento jurídico.
III - Nos casos de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, o suprimento deste vício por parte do tribunal da relação comportaria uma preterição das garantias de defesa, resultante da eliminação do direito ao recurso, nos moldes previstos pelo art. 73.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10.
IV - Por forma a assegurar o duplo grau de jurisdição, nestes casos, o tribunal da relação não pode suprir o vício da omissão de pronúncia e deve ordenar a baixa dos autos ao tribunal de primeira instância, de modo a permitir ao arguido interpor recurso, caso assim o entenda, para o tribunal da relação da decisão que venha a recair sobre a questão jurídica, por si suscitada, na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra
I - RELATÓRIO:
…, veio interpor recurso da decisão proferida no dia 03-04-2025 pelo Juízo Local Criminal da Guarda – Juiz 2, que julgou totalmente improcedente a impugnação por apresentada e, em consequência, manteve a decisão da “Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária” que lhe aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor pelo período de 60 (sessenta) dias, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelos arts 81.º, n.º 6, al. b), 136.º, 138.º e 146.º, al. j), todos do CE.
*
A recorrente … apresentou as seguintes conclusões …
“…
III - No julgamento da impugnação judicial, o douto tribunal a quo pronunciou-se por questão que não foi submetida pelo recorrente ao seu conhecimento – a sanção acessória ser substituída pela sanção de admoestação,
IV - E, não se pronunciou ou emitiu decisão sobre matéria que o recorrente submeteu à apreciação do tribunal – a coima ser substituída pela sanção de admoestação e, subsidiariamente, ser aplicada não excedendo o mínimo legal, e reduzida a metade, por efeito da sua especial atenuação.
…
VII - Nos termos do art. 379°, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPP, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, sendo tal disposição correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, por força do n.º 4 do art. 425.° do mesmo diploma.
VIII - Do confronto do recurso de impugnação judicial e da douta decisão ora sindicada, resulta claro e inequívoco, que o douto tribunal a quo não decidiu quanto à questão colocada pelo recorrente.
…
Quando assim não se entenda, o que, por mera hipótese, se admite:
XII - Mais julgou o douto tribunal a quo a requerida atenuação especial da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada ao recorrente.
XIII - Decisão que sustentou na proximidade da taxa de álcool no sangue registada com o limite a partir do qual a infração passa a ser punida como crime.
XIV - No exercício decisório o douto tribunal a quo cometeu um erro de julgamento gerador da violação de lei substantiva, por erro de interpretação da norma contida no disposto no art. 140º do CE.
…
XVI - Resultou provado que:
a) a contraordenação praticada pelo recorrente é classificada como muito grave;
b) o recorrente efetuou o pagamento voluntário da coima;
c) O recorrente não tem averbado no seu registo de condutor a prática de qualquer contraordenação grave ou muito grave ou facto sancionado com proibição ou inibição de conduzir;
XVII - Preenchidos que estão os pressupostos normativos de que se faz depender a possibilidade de a sanção acessória poder vir a ser especialmente atenuada, restará apenas ater às circunstâncias da infração.
XVIII - Neste particular também resultou assente que o recorrente apresentava uma TAS de 1,14 g/l.
XIX - No entanto, também resultou assente que com a sua conduta o recorrente atuou com negligência, não foi interveniente em acidente de viação, não tem antecedentes criminais, e que, a infração dos autos resultou duma situação isolada.
XX - Da norma em causa – art. 140º do CE – não resulta qualquer limitação quantitativa aplicável às contraordenações rodoviárias relativas à condução sob influência de álcool.
XXI - Esta norma é aplicável somente às contraordenações muito graves.
XXII - Pelo que, não poderá ser só este critério a ponderar para aferir “as circunstâncias da infração”.
XXIII - Nem tão pouco a prevalecer sobre os demais elementos que compõem e permitem avaliar essas mesmas circunstâncias.
XXIV - Pelo que, ao excluir estes elementos da sua avaliação, errou o douto tribunal a quo quanto à interpretação da norma contida no art. 140º do CE, na medida em que é inquestionável que os elementos supra mencionados são componentes das circunstâncias da infração.
…
*
O MINISTÉRIO PÚBLICO, junto do Juízo Local Criminal da Guarda, respondeu ao recurso …
*
Por seu turno, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal da Relação de Coimbra, emitiu parecer …
*
Admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO:
a) Factos provados:
A primeira instância considerou como provados os seguintes factos:
“1) No dia 05-02-2022, pelas 01:48 horas na EN ...33, km 28 … conduzia o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, matrícula …, com uma TAS de, pelo menos, 1.141 g/l, correspondente à TAS registada de 1,24 g/l, deduzido o valor do erro máximo admissível.
2) Com a conduta descrita o recorrente revelou desatenção e irreflectida inobservância das normas de direito rodoviário, actuando com manifesta falta de cuidado e prudência que o trânsito de veículos aconselha e no momento se lhe impunham, agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que a conduta descrita nos autos é proibida e sancionada pela lei contraordenacional.
3) O recorrente não tem averbado no seu registo de condutor a prática de qualquer contraordenação grave ou muito grave.
4) O recorrente efectuou o pagamento voluntário da coima.
5) O recorrente não foi interveniente em acidente de viação.
6) O recorrente não tem antecedentes criminais.
Para além destes, o tribunal recorrido não julgou como provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.
b) Objecto do recurso:
O recurso em processo de contra-ordenação deve seguir a tramitação dos recursos em processo penal, com excepção das especialidades que resultem do Regime Geral das Contra-ordenações e Coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27-10, na redacção que lhe foi introduzida pelo DL n.º 244/95, de 14-09.
Dentro dessas especialidades, de acordo com o disposto no art. 75.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10, importa anotar que nos processos de contra-ordenação, os tribunais de segunda instância conhecem apenas, por regra, de matéria de direito, funcionado enquanto tribunais de revista.
Deste modo, o art. 74.º, n.º 4, do DL n.º 433/82, de 27-10, remete para o regime jurídico dos recursos que se mostra vertido no Livro IX do CPP.
Como decorre do disposto nos arts. 402.º, 403.º e 412.º, todos do CPP, as conclusões do recorrente delimitam o recurso apresentado, estando vedado ao tribunal hierarquicamente superior àquele que proferiu a decisão recorrida conhecer de questões ou de matérias que não tenham sido suscitadas, com excepção daquelas que sejam de conhecimento oficioso.
Isto significa compete ao sujeito processual, que se mostra inconformado com a decisão judicial, indicar, nas conclusões do recurso, que segmento ou que segmentos decisórios pretende ver reapreciado(s), delimitando o recurso quanto aos seus sujeitos e/ou quanto ao seu objecto.
A delimitação (objectiva e/ou subjectiva) do recurso condiciona a intervenção do tribunal hierarquicamente superior, que se deve cingir à apreciação e à decisão das matérias indicadas pela parte recorrente, com excepção de eventuais questões que se revelem de conhecimento oficioso.
Está vedado ao tribunal de recurso proceder a uma reapreciação de questões que não tenham sido suscitadas e, por consequência, os seus poderes de cognição encontram-se delimitados pelo recurso interposto pelo sujeito processual, sem prejuízo daquelas que se revelem de conhecimento oficioso.
Os recursos não se destinam a proceder a um novo julgamento de todo o objecto da causa, antes visam a reapreciação de questões anteriormente decididas, mediante o impulso processual do sujeito que se mostre afectado pela decisão.
No caso vertente, o arguido … excepcionou a nulidade da decisão judicial, proferida …, por entender que esta padece do vício da omissão de pronúncia, que se encontra previsto pelo art. 379°, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPP.
Para tanto alegou, em suma, que o tribunal a quo pronunciou-se sobre uma questão jurídica que por si não foi suscitada (relativa à substituição da sanção acessória de inibição de conduzir pela sanção de admoestação), ao mesmo tempo em que omitiu pronúncia sobre a pretensão por si formulada mediante a apresentação do recurso de impugnação judicial (relativa à substituição da coima pela sanção de admoestação ou, subsidiariamente, pela sua redução a metade, por entender que a coima devia ser especialmente atenuada).
Apreciando e decidindo:
Estabelece o art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, aplicável por força do disposto no art. 41.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10, que “(…) é nula a sentença (…) quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (…)”.
Este dispositivo, respeitante aos vícios da sentença, comina com nulidade, quer a omissão de pronúncia (o tribunal não apreciou questões que devia ter conhecido), quer o excesso de pronúncia (o tribunal apreciou questões que não podia ter conhecido).
A “(…) nulidade resultante da omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou sobre questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – art. 660.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi art. 4.º do CPP (…)” – in “Código de Processo Penal Comentado”, 2014, pág. 1182.
Ainda a respeito do vício da sentença decorrente a omissão de pronúncia, observa, logo de seguida, o Conselheiro Oliveira Mendes que “a falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta de falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão ”.
Em idêntico sentido, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-11-2011, proferido no Proc. n.º17/09.0TELSB (www.dgsi.pt): “(…) como uniformemente tem sido entendido no STJ, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença”.
Acrescenta ainda o mencionado acórdão do Supremo Tribunal: “(…) A pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – a nulidade da sentença – deve incidir sobre problemas, os concretos problemas, as questões específicas sobre que é chamado a pronunciar-se o tribunal (o thema decidendum), e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegadas. A doutrina e jurisprudência distinguem entre questões e razões ou argumentos; a falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade; o não conhecimento dos segundos, será irrelevante (…)”.
In casu, com a interposição de recurso da decisão da autoridade administrativa (“Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária”), o arguido … pretendia que “(…) em alternativa à coima, deveria ter sido aplicada a sanção de admoestação prevista no art. 51.º do RGCO, a qual se afigura justa, adequada, suficiente e proporcional face aos contornos do caso concreto para a ressocialização do recorrente (…)” ou “(…) quando assim não se entendesse, sopesando todo o circunstancialismo supra referido, não ter esta excedido o mínimo legal, e, nos termos do disposto no art. 72.º do CP, aplicável ex vi do art. 32.º do RGCO (…) ter sofrido uma especial atenuação, sendo reduzida para metade (…)” - vide arts. XIV, XV e XVI das conclusões.
De igual modo, pretendia “(…) a redução para metade do limite mínimo da sanção acessória de inibição de conduzir em que foi condenado”, por entender que estavam preenchidos “(…) todos os pressupostos legais para que a sanção acessória de inibição de conduzir prevista para a infracção cometida pelo recorrente tivesse sofrido uma atenuação especial, o que efectivamente não chegou a sucedeu (…)” – vide, a este propósito, arts. XXI e XXII das conclusões do recurso.
Como decorre, textualmente, da decisão recorrida, o tribunal a quo pronunciou-se sobre a “sanção acessória ser substituída pela sanção de admoestação” e, subsidiariamente, sobre se estavam “verificados os pressupostos da atenuação especial da sanção acessória”.
Do exposto resulta, como, aliás, deixa assinalado o recorrente …, que o tribunal a quo pronunciou-se sobre questões jurídicas que não foram por si suscitadas (a substituição da sanção acessória de inibição de conduzir por admoestação), ao mesmo tempo em que nada disse sobre o thema decidendum do recurso de impugnação judicial apresentado pelo condutor, relativo à aplicação, a título principal, de uma sanção de admoestação ou à atenuação especial da coima aplicada à contra-ordenação em referência nestes autos.
Como deixa observado o Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto do Tribunal da Relação de Coimbra, “(…) a Mma. Juiz a quo não se chegou a pronunciar sobre o pedido de substituição da coima pela admoestação ou sobre a sua atenuação especial, tendo-se limitado a apreciar a aplicação daqueles institutos jurídicos à sanção acessória de inibição de conduzir (…)”.
Deste modo, afigura-se pacífico que a decisão recorrida omitiu pronúncia sobre questões jurídicas que devia ter conhecido, por terem sido suscitadas pelo arguido no recurso que interpôs para o tribunal judicial da decisão da autoridade administrativa (“Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária”), relativa à aplicação de uma sanção de admoestação ou à atenuação especial da coima aplicada pela prática da contra-ordenação.
Esta matéria constituía, em parte, o objecto do recurso de impugnação judicial apresentado pelo recorrente …, representativo de uma pretensão jurídica dirigida ao tribunal recorrido no sentido de ser modificada a decisão da autoridade administrativa, que não podia deixar de merecer apreciação por parte do órgão jurisdicional.
De acordo com o disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, ex vi art. 41.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, é nula a decisão judicial, proferida em processo de contra-ordenação, que não se pronunciou sobre as questões jurídicas suscitadas pelo arguido no recurso interposto da decisão da autoridade administrativa, muito em particular relativas à substituição da coima por admoestação ou, a título subsidiário, pela sua redução a metade, com base numa atenuação especial da sanção aplicada.
Maiores dúvidas se levantam quanto a saber se este tribunal de recurso deve, obrigatoriamente, suprir a nulidade da decisão (como se viu, resultante da omissão de pronúncia sobre a totalidade das questões jurídicas suscitadas pelo arguido AA) ou se, pelo contrário, competirá ao tribunal de primeira instância a supressão desse vício, mediante a prolacção de uma nova decisão que conheça o recurso apresentado na sua totalidade.
Têm surgido divergências doutrinais e jurisprudenciais a respeito da interpretação do art. 379.º, n.º 2, do CPP, muito em particular se a nulidade da sentença deve ser obrigatoriamente suprida pelo tribunal de recurso ou se, ao invés, em determinados casos, a nulidade terá se ser suprida pelo tribunal de primeira instância que proferiu a decisão viciada de nulidade.
O art. 379.º, n.º 2, do CPP, com a redacção introduzida pela Lei n.º 26/2010, de 30-08, tinha a seguinte redacção: “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do art. 414.º”.
Posteriormente, o mencionado n.º 2 do art. 379.º, passou a apresentar a seguinte redacção, com a entrada em vigor da Lei n.º 20/2013, de 21-02: “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do art. 414.º”.
Enquanto que, na anterior redacção, o legislador concedia ao tribunal de recurso a faculdade de suprir as nulidades da sentença, que se encontram previstas pelo n.º 1 do art. 379.º do CPP, caso o julgasse adequado, na sua actual redacção, o tribunal de recurso encontra-se vinculado a fazê-lo, ou, dito por outras palavras, tem o dever de suprir o vício de que enferma a decisão do tribunal de primeira instância.
Note-se que o n.º 2, na sua anterior redacção, afirmava que era “lícito” ao tribunal de recurso suprir as nulidades, enquanto que presentemente, com um diferente sentido interpretativo, o legislador consigna que o tribunal de recurso tem o “dever” de as suprir.
Com a alteração introduzida a este dispositivo visou-se conferir uma maior celeridade ao processo criminal e, ao mesmo tempo, privilegiar a justiça material, procurando que os vícios da sentença do tribunal da primeira instância não impedissem o conhecimento do objecto do processo por parte do tribunal de recurso.
Em vez do tribunal ad quem se limitar a proferir decisão que declare a nulidade da sentença ditada pelo tribunal a quo, o tribunal de recurso tem o dever de suprir, por si próprio, esse vício, para, de seguida, conhecer das demais questões suscitadas pelo recorrente, muito em particular as relacionadas com o mérito da causa, ou seja, se é (ou não) possível imputar ao arguido a pratica dos factos descritos na acusação e se essa factualidade apresenta (ou não) relevância criminal e, em caso afirmativo, quais as consequências para o agente.
Procura-se evitar que os autos tenham de baixar ao tribunal de primeira instância, de modo a que seja proferida nova sentença, expurgada das nulidades previstas pelo n.º 1 do art. 379.º do CPP.
Essas preocupações com a celeridade processual também encontram acolhimento no n.º 3 do art. 379.º do CPP (de igual modo, introduzido pela Lei n.º 20/2013), quando se prevê que se “(…) em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator (…)”.
Tem-se entendido que são motivos de economia e de celeridade processuais que determinam a atribuição dos autos ao mesmo relator, sem que se proceda à sua distribuição a outros juízes (a não ser nos casos de impossibilidade superveniente, por exemplo, decorrentes de cessação do exercício de funções), com base no argumento que o relator, que declarou a nulidade da sentença do tribunal de primeira instância, já se encontra inteirado do objecto do processo.
Ao prever que o recurso da nova decisão venha a ser atribuído ao mesmo relator, o n.º 3 do art. 379.º do CPP reconhece (pelo menos, de modo implícito) que o tribunal de recurso possa, nalguns casos, determinar a baixa dos autos ao tribunal de primeira instância, com vista a que venha a ser suprida a nulidade da sentença viciada.
Muito embora, com a alteração introduzida pela Lei n.º 20/2013, se tenha consagrado o dever de o tribunal de recurso suprir as nulidades da sentença, o n.º 3 do art. 379.º do CPP admite que, nalguns casos, tenha de ser “proferida nova decisão no tribunal recorrido”.
Este dispositivo não enuncia os casos em que se mostra afastado o dever de suprimento do vício por parte do tribunal de recurso, designadamente, por remissão para os diversos vícios de nulidade previstos pelas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP.
Para o que agora mais nos interesse, importa afirmar que o dever de suprimento do vício por parte do tribunal de recurso, imposto pelo n.º 2 do art. 379.º do CPP, não tem natureza absoluta e não pode surgir desprendido das garantias de defesa, muito em particular do direito ao recurso assegurado ao arguido pelo ordenamento jurídico.
O art. 73.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, admite que, em determinadas condições, o arguido possa vir a recorrer para o tribunal da relação da sentença ou do despacho judicial que conheceu do recurso interposto da decisão da autoridade administrativa proferida em processo de contra-ordenação.
Nos casos de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, o suprimento deste vício por parte do tribunal da relação comportaria uma preterição das garantias de defesa, resultante da eliminação do direito ao recurso previsto, em determinadas condições, pelo art. 73.º, n.º 1, do DL n.º 433/82.
Caso procedesse ao suprimento do vício da decisão do tribunal recorrido, o tribunal da relação comportar-se-ia como um tribunal de primeira instância (iria apreciar, em primeira mão, a questão jurídica suscitada nos autos, em vez de proceder à sua reapreciação, conforme lhe compete, em sede de recurso), ao mesmo tempo em que o arguido ficaria impossibilitado de recorrer da decisão proferida, nos moldes previstos pelo art. 73.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27-10.
“Por efeito da alteração introduzida ao texto do n.º 2 pela Lei n.º 20/2013, de 20 de Fevereiro, passou a constituir um dever do tribunal de recurso o suprimento das nulidades da sentença recorrida (é o que decorre da letra da lei «as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las…»), razão pela qual sobre o tribunal de recurso impende a obrigação de suprir as nulidades de que padeça a sentença recorrida, a menos, obviamente, que a nulidade só seja susceptível de suprimento pelo tribunal recorrido, situação que será a comum, visto que na grande maioria dos casos o suprimento pelo tribunal de recurso redundaria na supressão de um grau de jurisdição” – vide “Código de Processo Penal Comentado”, 2014, pág. 1183 e 1184.
Por forma a garantir o duplo grau de jurisdição, nestes casos, o tribunal da relação não pode suprir o vício da omissão de pronúncia e deve ordenar a baixa dos autos ao tribunal de primeira instância, de modo a permitir ao arguido interpor recurso, caso assim o entenda, para o tribunal da relação da decisão que venha a recair sobre a questão jurídica, por si suscitada, na impugnação judicial que apresentou da decisão da autoridade administrativa.
Em face do exposto, deve ser ordenada a baixa dos autos ao tribunal de primeira instância, com vista a que o Juízo Local Criminal da Guarda – Juiz 2, suprindo o apontado vício da omissão de pronúncia, aprecie e decida a questão jurídica suscitada pelo arguido … na impugnação judicial que apresentou da decisão da autoridade administrativa.
III – DECISÃO:
Em face do exposto, acordam os juízes que integram a 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso do arguido … e, em consequência, declarar nula, por omissão de pronúncia, a decisão proferida …
Sem custas.
Paula Cristina de Carvalho e Sá
Sara Reis Marques