PLATAFORMA DIGITAL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
PRESUNÇÃO
CONTRATO DE TRABALHO
Sumário


I. A presunção constante do artigo 12.º-A do Código do Trabalho aplica-se a relações contratuais anteriores à entrada em vigor da norma, desde que as características relevantes ocorram após essa entrada em vigor.
II. Verificando-se algumas das características do artigo 12.º-A, nomeadamente, os índices de subordinação previstos nas alíneas a) e c), uma vez que a retribuição e os poderes de direção, supervisão e controle são elementos essenciais da relação laboral, presume-se a existência de contrato de trabalho.
III. Para ilidir a presunção exige-se que a plataforma prove que o estafeta não tem contrato de trabalho, trabalhando com efetiva autonomia.

Texto Integral


Processo n.º 30225/23.4T8LSB.L1.S1

Recurso revista


I.Relatório

1. - O Ministério Público intentou ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho, contra

Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda., pedindo que se declare reconhecida a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre o trabalhador AA e a Ré, Uber Eats Portugal Unipessoal, Lda., com reporte a 2 de abril de 2023.

2. - A Ré contestou, concluindo pela improcedência da acção.

3. - A sentença da 1.ª instância, aplicando o artigo 12.ª-A do Código de trabalho, decidiu julgar a ação improcedente, por não provada a existência do contrato de trabalho.

4. - O Tribunal da Relação acordou confirmar a sentença recorrida, mas por que considerou não provadas, pelo menos, duas das características a que alude o artigo 12.º do Código do Trabalho.

5. - O M. Público interpôs recurso de revista, concluindo, em síntese:

1. Apesar de, quer o Tribunal de Primeira Instância, quer o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, terem decidido pela improcedência da ação, não se verifica dupla conforme, uma vez que a decisão do Venerando TRL possui uma fundamentação substancialmente diferente da fundamentação da sentença recorrida.

2. O Tribunal de Primeira Instância julgou a ação totalmente improcedente, entendendo que, perante a factualidade dada como provada, não se verificava nenhuma das caraterísticas previstas nas diversas alíneas do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, concluindo e decidindo, por isso, no sentido de que não existia presunção de existência de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.

3. O Venerando TRL entendeu que, tendo em consideração que a relação jurídica estabelecida entre a Recorrida Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda. e o estafeta AA se iniciou numa data anterior à entrada em vigor do referido artigo 12.º-A do Código do Trabalho (aditado pela Lei n.º 13/2023, de 03 de abril), se deve aplicar ao caso concreto o regime jurídico do contrato individual de trabalho previsto no artigo 12.º do Código do Trabalho, não tendo, por isso avaliado a presunção que emerge do atual artigo 12.º-A daquele diploma.

4. Verifica-se, assim, que, perante a mesma factualidade assente:

- O Tribunal de Primeira Instância julgou a ação totalmente improcedente, por entender que não se verificava nenhuma das caraterísticas previstas nas diversas alíneas do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.

- O Tribunal da Relação de Lisboa, julgou o recurso improcedente, por entender que não se verificava nenhuma das caraterísticas previstas nas diversas alíneas do artigo 12.º do Código do Trabalho.

6. O douto acórdão recorrido limitou-se a analisar a relação jurídica estabelecida entre a Recorrida Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda. e o estafeta AA com base no disposto nas diversas alíneas do artigo 12.º do Código do Trabalho, por considerar que o regime jurídico para o enquadramento da relação jurídica estabelecida entre as partes tinha que ser definido em função do momento em que se constituiu aquela relação, a qual efetivamente teve início em data anterior à entrada em vigor das alterações introduzidas no Código do Trabalho pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril.

7. Sem embargo do profundo respeito que nos merece a referida decisão, entendemos que a lei não obriga a que, na qualificação de uma relação jurídica estabelecida antes da entrada em vigor das alterações legislativas que vieram estabelecer o novo regime da presunção de laboralidade no âmbito de plataforma digital, se deve aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se iniciou essa relação jurídica.

(…).

9. Acresce que, já depois da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril – que alterou o Código do Trabalho e legislação conexa, no âmbito da “agenda do trabalho digno” – foi aprovada e publicada a Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2024 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:32024L2831), relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais.

(…).

13. Pelo exposto, considerando que o douto acórdão do TRL decidiu de forma errada ao entender que o artigo 12.º-A do Código do Trabalho não se aplicava à relação jurídica em causa nos autos (estabelecida entre a Recorrida Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda. e AA), requer-se que:

- Seja decidido que a presunção prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho só se deve aplicar para o futuro, mas abrange os contratos celebrados antes de a mesma ser criada, desde que esses contratos subsistam após a entrada em vigor do referido preceito legal.

- Seja avaliado e decidido se o contrato que está na base da relação jurídica estabelecida entre a Recorrida Uber Eats Portugal, Unipessoal, Lda. e o estafeta AA, que teve início em 12 de abril de 2023, mas prosseguiu após o dia 1 de maio de 2023, deve, ou não, ser reconhecido como sendo um contrato de trabalho, tendo em consideração as características previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.

14. Foi a evidência de que os estafetas que exercem funções para plataformas digitais necessitam de proteção na determinação do seu estatuto profissional que motivou a alteração legislativa operada pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, no âmbito da “agenda do trabalho digno”, e foi também essa necessidade que esteve na base da referida Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2024, relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais.

(…).

38. Apela-se, por isso, no sentido de que, mesmo entendendo que a presunção de laboralidade em trabalho no âmbito de plataforma digital prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho não é aplicável à relação jurídica em causa nos autos – o que se espera não aconteça –, V. Exas., Venerandos Conselheiros do STJ decidam que, apenas com base nos indícios de laboralidade previstos no artigo 12.º do Código do Trabalho, a factualidade assente pelo Tribunal de Primeira Instância é suficiente para concluir no sentido do reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre AA e a Uber Eats Portugal – Unipessoal, Lda..

39. Pelo exposto, porque o douto acórdão do Venerando TRL violou não só o disposto no art.º 12.º-A, como o disposto nos artigos 11.º e 12.º, todos do Código do Trabalho, deve ser concedido provimento ao presente recurso, requerendo-se que esse Venerando Supremo Tribunal revogue o douto acórdão objeto deste recurso, substituindo-o por uma decisão que reconheça que a relação jurídica entre o estafeta AAe a Recorrida Uber Eats Portugal – Unipessoal, Lda. reveste a natureza de trabalho dependente, reconhecendo, assim, a existência de um contrato individual de trabalho.

6. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.

II. - Fundamentação de facto

1. - Com relevância para a decisão, há a considerar os seguintes factos:

1. A Ré é uma sociedade que tem como objeto social: “prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão de pagamentos; Atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com restauração; Consultoria, conceção e produção de publicidade e marketing; Aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais”;

2. A Ré é uma plataforma de prestação de serviços de entregas on line, nomeadamente de refeições, através de uma aplicação informática criada e desenvolvida para tal efeito, efetuando a mencionada plataforma a gestão de um negócio que estabelece a ligação entre o estafeta e o cliente, assegurando ainda as necessárias parcerias com empresas do setor da restauração e do comércio;

3. Para a execução das referidas atividades, a Ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet – atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados;

4. Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a Ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para esse efeito;

5. As funções desempenhadas pelo estafeta consistem na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), transportando esses produtos até ao cliente final.

6. Assim, a Ré atua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma: Os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo); - Os utilizadores estafetas; e - Os utilizadores clientes;

7. A atividade da Ré inclui: - A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e - A intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas;

8. AA, com o número de contribuinte 1, beneficiário da segurança social com o nº 1, titular da Autorização de Residência nº 1, válida até 10.8.2026, com residência na Rua 1, titular do endereço electrónico ...@gmail.com e do telefone 1;6 presta a referida atividade de estafeta para a Ré plataforma digital UBER EATS desde 2/4/2023;

9. AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;

10. No decurso de uma ação inspetiva realizada pela ACT no dia 27/09/2023, pelas 13H10, foi verificado que AA se encontrava nas imediações do centro comercial Colombo, em Lisboa, a aguardar a preparação para recolha de pedido efetuado por cliente na aplicação móvel Uber Eats e posterior entrega na morada indicada pelo cliente, tendo-se apurado que desenvolve a sua atividade da seguinte forma: - O estafeta estava registado na plataforma digital UBER EATS, como “Parceiro de Entregas Independente”, através da criação de uma conta na plataforma, na aplicação disponibilizada na internet para o efeito; - Visando o registo em causa, e de acordo com exigência da aplicação UBER EATS, foram submetidos pelo estafeta na referida aplicação os seus documentos de identificação, bem como o certificado de registo criminal, o comprovativo de abertura de atividade como trabalhador independente, entre outros; - Foi ainda associado à conta do estafeta o meio de transporte em que este se desloca, no caso, motociclo, conforme requerido pela plataforma;

- O estafeta, para finalizar o registo, ficou ainda obrigado a aderir aos termos e condições aplicáveis constantes do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”;

11. Embora a UBER EATS não mantenha um suporte em papel da adesão aos termos e condições aplicáveis, tem um registo eletrónico de adesão aos mesmos com data e hora;

12. AA realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos/tarefas que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma UBER EATS, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;

13. Para iniciar a prestação do serviço na plataforma UBER EATS, o estafeta teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter atualizada e ativa sendo que, uma vez ativada a conta, é iniciada a atividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta (o email utilizado ...@gmail.com) e de uma palavra passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade;

14. Para se poder registar e exercer as referidas funções de estafeta para a Ré, este tinha que ter atividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens;

15. Os prestadores de atividade registados na Plataforma decidem livremente o local onde prestam a sua atividade, ou seja, se prestam a sua atividade numa determinada zona da cidade ou até mesmo do país.

16. Podem inclusivamente bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejam contactar.

17. A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, podendo mudar de localidade quando entenderem, desde que previamente efetuem o registo de mudança de área na plataforma e o registo fique aceite e efetuado por parte da UBER;

18. A plataforma fixa, unilateralmente, o valor dos montantes a pagar ao estafeta para as entregas que efetua por entrega, podendo, no entanto, o estafeta “filtrar", aceitando ou não os pedidos que aparecem no ecrã, através do preço por quilómetro (designado de “Taxa Mínima por Quilómetro”)";

19. Com efeito, apesar de o estafeta poder definir na aplicação o valor mínimo por quilómetro, ou seja, o montante mínimo que aceita para proceder à entrega de cada pedido, não existe qualquer negociação entre o prestador e a plataforma quanto aos critérios que estão subjacentes à definição dos valores;

20. Não existe também qualquer intervenção do estafeta no processo de negociação de preços entre a plataforma e os parceiros de negócio, nomeadamente, restaurantes e estabelecimentos comerciais;

21. Cada serviço tem o seu valor definido que o estafeta vê na plataforma e é livre de aceitar, ou não, mas apenas por esse valor;

22. Na Plataforma, os prestadores de atividade dispõem de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua Taxa Mínima por Quilómetro, sem necessidade de alterarem a Taxa Mínima por Quilómetro que anteriormente escolheram, e selecioná-las para entrega, se assim o desejarem, através da ferramenta “Radar de Viagens”;

23. Desta forma, os prestadores de atividade podem ajustar o seu preço por quilómetro sempre que quiserem sem o baixar e assim não perder qualquer oferta de entrega que possa surgir na Plataforma;

24. Os prestadores de atividade escolhem quando são pagos, através da ferramenta "Cashout", tendo o estafeta em apreço escolhido ser pago semanalmente. Apenas no caso de não optarem por recolher os rendimentos através do Cash Out é que os mesmos são pagos semanalmente;

25. O estafeta é pago por transferência bancária e fica disponível na plataforma o registo de todos os pagamentos recebidos ao longo de um ano, assim como o comprovativo da transferência.

26. O estafeta recebe os valores das entregas que efetuar, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo;

27. A plataforma exige que a prestação da atividade do estafeta seja efetuada fazendo uso de uma mochila térmica para transporte dos pedidos UBER EATS, sendo que, para a plataforma validar o perfil no ato de criação da conta o estafeta tem de submeter prova de detenção da mochila de transporte, a qual deve cumprir requisitos mínimos quanto às dimensões – 44 cm de largura x 35 cm de profundidade x 40 cm de altura - assim como quanto ao estado de conservação e limpeza;

28. O estafeta não está obrigado a usar roupa distintiva da marca UBER EATS nem a apresentar-se em conformidade com qualquer critério que não seja o pessoal;

29. A partir do momento em que o estafeta faz login na aplicação e passa a estar online, a plataforma, ora Ré, fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização do dispositivo que tem de estar obrigatoriamente ligado para que a aplicação funcione e permita ao estafeta receber pedidos de entrega, sendo, pois, indispensável ao exercício da atividade e à atribuição dos pedidos dos clientes;

30. O GPS é uma ferramenta necessária para o funcionamento da Plataforma e para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;

31. A localização é um dos fatores relevantes para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade;

32. O GPS permite aos clientes acompanhar a sua encomenda a partir do momento em que o estafeta a recolhe;

33. O Estafeta é livre de escolher o percurso que entender para fazer cada entrega, assim como o tempo que cada entrega possa levar escolhendo o sistema de GPS que entende para efetuar o percurso ou até nem o utilizar;

34. A plataforma tem a possibilidade de recolher a classificação efetuada ao estafeta, quer pelo cliente quer pelo comerciante/restaurante, através de meios eletrónicos inseridos na aplicação;

35. O estafeta é livre para escolher o seu horário;

36. É livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma;

37. E durante quanto tempo permanece ligado;

38. Sendo ainda livre para rejeitar e aceitar as ofertas de entrega que entender

39. O que resulta na impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.

40. Não são raras as vezes em que as entregas não são realizadas por não existirem prestadores de atividade com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum prestador de atividade aceitar uma determinada oferta de entrega;

41. O Prestador de Atividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si.

42. E a sua conta continua ativa;

43. O estafeta não se liga à plataforma desde o dia 23/10/2023, tendo-se voltado a ligar em março de 2024, permaneceu ligado durante cerca de quinze dias e não se voltou a ligar à plataforma;

44. O estabelecimento, o tipo de pedido, o valor do serviço, o cliente final e a morada de entrega são indicados ao estafeta pela plataforma UBER EATS através da referida aplicação que deve consultar no telemóvel;

45. A prática de partilha de contas, por motivos de segurança e conformidade legal, não é permitida na Plataforma, conforme decorre da cláusula 5.n. dos termos e condições aplicáveis;

46. Ou seja, o estafeta não pode permitir que terceiros utilizem a sua conta, devendo manter os seus detalhes de login confidenciais a todo o tempo;

47. Só quando o estafeta efetua o login na plataforma é que pode aceder às ofertas de entregas disponíveis;

48. A plataforma pode restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta ao vincular-se aos termos do contrato de utilização da aplicação, designadamente, se permitir a utilização de conta por terceiros não autorizados, ou por comportamentos fraudulentos";

49. Conforme decorre da cláusula 11 e da cláusula 16. dos termos e condições aplicáveis a Ré tem o direito de restringir o acesso à Plataforma e a resolver o contrato com o prestador de serviços nas seguintes situações:

a) Quando a Ré está a cumprir uma obrigação legal;

b) Quando o prestador de atividade não cumpre as suas obrigações contratuais;

c) Quando está em causa a segurança dos clientes; e

d) Por motivos de autoproteção (situações de fraude)

50. O sinal de GPS deve encontrar-se ativo entre os pontos de recolha e de entrega, de outro modo, o bom funcionamento da aplicação e o próprio serviço ficam comprometidos;

51. O estafeta autoriza a UBER a aceder à localização do seu dispositivo quando está logado;

52. Aliás, se os estafetas não tiverem o GPS ligado a aplicação não funciona para entregas, uma vez que é o GPS que permite à plataforma apresentar-lhes propostas de entregas tendo em consideração a sua localização e a proximidade com o ponto de recolha;

53. O estafeta e o estabelecimento que prepara o pedido podem introduzir dados na aplicação de modo a permitir a monitorização de cada recolha, transporte e entrega;

54. A Plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos), clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha, e estafetas (como o Prestador de Atividade em causa na presente ação) que desejam fazer entregas aos clientes;

55. A aplicação e o site da Uber Eats Portugal (ora ré) são pertença da Uber Eats dos Estados Unidos;

56. A Ré contratou um seguro de responsabilidade civil com a seguradora Allianz e um seguro de proteção de parceiros de entrega que abrange o Prestador de Atividade.";

57. Após aceitar a entrega o estafeta não se pode fazer substituir por ninguém.

58. Antes de aceitar uma entrega existe na plataforma a possibilidade de o estafeta designar um substituto, o qual tem que estar registado na Uber com conta ativa e como substituto, para que este aceite os pedidos que entre ambos entenderem, sendo que a ré procederá ao pagamento ao estafeta substituído.

59. O estafeta pode prestar atividade a terceiros, incluindo via outra plataforma. A Plataforma é uma das muitas ferramentas que eles têm para realizar entregas. Os prestadores de atividade podem ter sua própria clientela e atendê-la com liberdade e sem necessidade de comunicar isso à Uber Eats. Eles também podem usar outras plataformas concorrentes, incluindo ao mesmo tempo que estão a prestar a sua atividade na Plataforma. Cabe esclarecer que os prestadores de atividade não estão adstritos a qualquer obrigação de exclusividade, podendo livremente escolher por prestar a sua atividade através de outras plataformas digitais ou qualquer outro meio que escolham, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.

60. Para se registarem na Plataforma, os prestadores de atividade não estão sujeitos a qualquer tipo de processo de recrutamento, no sentido de não haver análise de CV, entrevistas ou qualquer tipo de processo de seleção, exceto o preenchimento dos requisitos contratuais já mencionados supra;

61. A R. não faz uso do feedback dado pelos clientes a cada entrega do estafeta, apenas lhe atribuindo pontos por cada entrega que efetua para efeitos de descontos na aquisição de material diverso.

II. - Fundamentação de direito

1. - Objecto do recurso:

- Dado que as Instâncias divergiram sobre a qual o normativo aplicável, importa, pois, saber se é de aplicar o artigo 12.º ou o artigo 12.º-A, ambos do Código do Trabalho, ao caso dos autos, e quais as correspondentes consequências jurídicas.

2. - Da presunção de contrato de trabalho: plataforma digital.

A questão da presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital - a epígrafe do artigo 12.º-A, do CT/2009 -, já foi apreciada e decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça nos seguintes acórdãos: de 15.05.2025 proc. n.º 1980/23.3T8CTB.C2.S1; de 28.05.2025 proc. n.º 29923/23.7T8LSB.L1.S1; de
03.10.2025 proc. n.º 29352/23.2T8LSB.L1.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado; e de 15.10.2025 proc. n.º 28891/23.0T8LSB.L1.S1, Relator Conselheiro Júlio Gomes, todos in www.dgsi.pt, no sentido de que esta presunção deve considerar-se aplicável mesmo a relações laborais constituídas anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, de 03 de abril, mas desde que a factos ocorridos, posteriormente, à sua entrada em vigor, com destaque para a fundamentação desenvolvida no acórdão de 15.05.2025 proc. n.º 1980/23.3T8CTB.C2.S1 que aqui acompanhamos.

3. - Neste sentido, estando provado – factos n.ºs 8 e 10 – que o estafeta AA presta a atividade para a Ré plataforma digital, Uber Eats, desde 02 de abril de 2023, e prestava em 27 de setembro de 2023, é de aplicar o disposto no artigo 12.º-A, do Código do Trabalho, aditado pela Lei n.º 13/2023, de 03 de abril, no âmbito da agenda do trabalho digno, entrada em vigor a 01 de maio de 2023 e retificada a 29 de maio pela Declaração de Retificação n.º 13/2023.

4. - O artigo 12.º-A, do CT - “Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital” – prescreve:

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;

b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;

c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;

d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;

e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;

f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.

2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.

3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.

(…)”.

4.1. - a) - A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela.

Decorre dos n.ºs 9, 12, 18 e 21 dos factos dados como provados, que AA realiza a atividade de estafeta, mediante pagamento, cujo valor a plataforma fixa, unilateralmente, independentemente, de ser aceite, ou não, pelo estafeta.

Logo, mostra-se preenchido o primeiro pressuposto de laboralidade da presunção do artigo 12.º-A do CT/2009.

4.2. - b) - A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;

Resulta dos n.ºs 4 a 7 e 13, dos factos dados como provados que a Ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes; ou seja, a Ré actua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma: (i) os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo); (ii) os utilizadores estafetas; (iii) e os utilizadores clientes finais.

Tal realidade, permite-nos considerar preenchido requisito de laboralidade do n.º 1, alínea b) do artigo 12.º-A do CT/2009.

4.3. - c) - A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;

A partir do momento em que o estafeta faz login na aplicação e passa a estar online, a plataforma fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização do dispositivo que tem de estar obrigatoriamente ligado para que a aplicação funcione e permita ao estafeta receber pedidos de entrega, sendo, pois, indispensável ao exercício da atividade e à atribuição dos pedidos dos clientes; sendo que o GPS é uma ferramenta necessária para o funcionamento da Plataforma e para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade, pois, a localização é um dos fatores relevantes para a apresentação de ofertas de entrega aos prestadores de atividade, permitindo aos clientes acompanhar através do GPS a sua encomenda a partir do momento em que o estafeta a recolhe – cfr. n.ºs 29 a 32, 52, dos factos dados como provados.

Tal factualidade é condizente com o requisito de laboralidade do n.º 1, alínea c) do artigo 12.º-A do CT/2009.

4.4. - e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;

Dos factos n.ºs 45, 46, 48 e 49, resulta que o estafeta não pode permitir que terceiros utilizem a sua conta na plataforma, podendo esta restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, resolvendo o contrato.

Também aqui, a factualidade provada é condizente com o requisito de laboralidade do n.º 1, alínea e) do artigo 12.º-A do CT/2009.

4.5. - f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.

Embora estando provado no n.º 14 da matéria de facto que o estafeta tem de usar “veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens”, também está provado no ponto 13.º que “Para iniciar a prestação do serviço na plataforma UBER EATS, o estafeta teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma”, nos termos aí definidos, e sendo-lhe exigido, ainda, o uso de uma mochila térmica para transporte dos pedidos Uber Eats, com os requisitos descritos no ponto 27 dos factos dados provados.

4.6. - Estão, assim, verificados cinco dos seis requisitos de laboralidade previstos no número 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009 e que, nessa medida, sustentam, de modo afirmativo, a natureza laboral do vínculo jurídico-profissional entre o estafeta AA e a Ré Uber Eats.

5. - Da Ilisão da Presunção da Laboralidade

5.1. - O artigo 12.º-A, n.º 4, dispõe: “a presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.”.

5.2. - Como referido no ponto 4.6., encontram-se verificados os índices da presunção de laboralidade, previstos nas alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 1 do transcrito artigo 12.º-A do CT, ou seja, um total de cinco dos seis elementos possíveis, com relevância para os índices de subordinação previstos nas alíneas a) e c), uma vez que os poderes de direção, supervisão e controle são elementos essenciais da relação laboral.

No mencionado acórdão do STJ, de 15.10.2025, proc. n.º 28891/23.0T8LSB.L1.S1, foi consignado:

“O controlo em casos como o dos presentes autos ocorre, designadamente, através da geolocalização e do controlo do acesso à aplicação. Ainda que a geolocalização seja também útil face ao modelo de negócio adotado ela permite o controlo da prestação. A existência de bónus e, sobretudo, de sanções que no limite podem consistir em desconectar um estafeta da aplicação correspondem, no fundo, nos seus resultados ao exercício de um poder disciplinar. Mas importa ainda considerar a inserção do estafeta na organização empresarial da plataforma. (…), a sua atividade só pode existir graças á plataforma, sem a qual ficaria desprovida de sentido. (…). O estafeta não acede autonomamente ao mercado, mas integra o serviço proporcionado pela plataforma.

Face a esta inserção indícios de aparente autonomia perdem boa parte do seu alcance: assim, a plataforma permite que o estafeta trabalhe para outras plataformas, mas para além das dificuldades práticas em que tal ocorra sem prejudicar a classificação do estafeta no âmbito de cada plataforma, o direito do trabalho português, à semelhança de muitos, não proíbe o pluriemprego e o contrato de trabalho não exige exclusividade; o estafeta pode ser proprietário de alguns instrumentos de trabalho, mas o principal em toda a operação, a aplicação informática, pertence à plataforma. O estafeta pode recusar algum serviço e conectar-se quando quiser, mas tal é possibilitado pelo modelo empresarial com um grande número de estafetas “concorrendo” entre si. Essa liberdade na escolha do tempo vem acompanhada de um controlo apertado na geolocalização e de aspetos económicos como a fixação da contrapartida no essencial pela plataforma e a circunstância de que a mesma emite os recibos.”

Concluindo: a plataforma não logrou provar que o estafeta AA trabalhava com efetiva autonomia, devendo, pois, o contrato ser requalificado como contrato de trabalho.

IV. - Decisão

Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social julgar procedente o recurso de revista e, em consequência, reconhecer a existência de contrato de trabalho entre o estafeta, AA, e a Ré, Uber Eats, desde 2 de abril de 2023.

Custas a cargo da Ré.

Lisboa, 29 de outubro de 2023

Domingos José de Morais (Relator)

Mario Belo Morgado

Júlio Gomes