I. Verificando-se algumas das características do artigo 12.º-A, nomeadamente, os índices de subordinação previstos nas alíneas a) e c), uma vez que a retribuição e os poderes de direção, supervisão e controle são elementos essenciais da relação laboral, presume-se a existência de contrato de trabalho.
II. Para ilidir a presunção exige-se que a plataforma prove que o estafeta não tem contrato de trabalho, trabalhando com efetiva autonomia.
Recurso revista
I. – Relatório
1. - O Ministério Público intentou ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho, contra
Glovoapp Portugal, Unipessoal, Lda., pedindo que se declare reconhecida a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre o estafeta, AA, e a Ré, Glovoapp Portugal, com reporte a 19 de Julho de 2023.
2. - A Ré contestou, concluindo pela improcedência da acção.
3. - A sentença da 1.ª instância julgou a ação improcedente, por não provada, e absolveu a Ré do pedido.
4. - O Tribunal da Relação acordou julgar a apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida.
5. - O M. Público interpôs recurso de revista excepcional, concluindo, em síntese:
(…).
9. Se estivermos atentos ao muito baixo valor da retribuição, à precariedade do trabalho prestado quando as plataformas digitais têm total liberdade para colocar fim aos contratos, à existência de contratos que, apresentados pelas plataformas, são inegociáveis, ao facto de o acesso destes trabalhadores a mecanismos de representação e negociação coletiva ser quase inexistente, à circunstância de existirem largos períodos de tempo em que estes trabalhadores simplesmente não são remunerados (tempo de espera), e se atentarmos nas suas condições precárias e deficiente ou inexistente proteção social, percebemos que a zona cinzenta em que estes trabalhadores exercem as suas funções precisa muito de ser regulada.
10. A maioria dos trabalhadores das plataformas, incluindo os motoristas de distribuição de alimentos, como é o caso dos autos, são formalmente trabalhadores por conta própria – como foi considerado nas doutas decisões recorridas –, mas verifica-se que eles têm que respeitar muitas das mesmas regras e restrições que um trabalhador por conta de outrem, o que indicia que se encontram, de facto, numa relação de trabalho e que, por conseguinte, devem beneficiar dos direitos laborais e da proteção social concedidos aos trabalhadores ao abrigo do direito laboral.
11. O crescente número de plataformas de trabalho digital e do número de pessoas que trabalham para estas plataformas, designadamente do número de motoristas de distribuição de alimentos, como é o caso do estafeta em causa nos presentes autos, levou a que, com a “agenda de trabalho digno”, o legislador tenha manifestado intenção de melhorar o acesso destes trabalhadores aos direitos laborais e à proteção social, melhorando a qualidade global do trabalho disponível e as condições de emprego oferecidas, com acesso a opções de pagamento por doença, subsídios de desemprego ou regimes de apoio ao rendimento.
(…).
46. (…), porque entendemos estar demonstrada a verificação dos supra referidos indícios de laboralidade em causa nas alíneas a), b), c), d) e f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, consideramos que se pode e deve concluir que, no caso, operou a presunção de laboralidade plasmada naquele artigo, ao contrário do que considerou o Tribunal de Primeira Instância e o Tribunal da Relação (que apenas aceitou como verificada a característica da alínea f) do n.º1 do artigo 12.º-A, e, mesmo essa, com um voto de vencido), o que implica que se caracterize a relação em apreço, como uma genuína relação laboral.
6. - Por Acórdão da Formação, de 17 de setembro de 2025, foi admitida a revista, por considerado verificados os requisitos do artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código Processo Civil (CPC).
7. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.
II. - Fundamentação de Facto:
1. - Com relevância para a decisão, há a considerar os seguintes factos:
1. A Ré explora uma plataforma digital de intermediação tecnológica que se encontra ligada 24 horas por dia e 365 dias por ano;
2. A R. tem como objeto social desenvolvimento e exploração de uma plataforma tecnológica, comércio a retalho por via eletrónica, comércio não especializado de produtos alimentares e não alimentares, bebidas e tabaco e, de um modo geral, de todos os produtos de grande consumo, comercialização de medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos de dermocosmética e de alimentos para animais, a importação de quaisquer produtos, o comércio de refeições prontas a levar para casa e a distribuição ao domicílio de produtos alimentares e não alimentares. Exploração, comercialização, prestação e desenvolvimento de todos os tipos de serviços complementares das atividades constantes do seu objeto social. Realização de atividades de formação, consultoria, assistência técnica, especialização e de pesquisa de mercado relacionadas com o objeto social. Qualquer outra atividade que esteja direta ou indiretamente relacionada com as atividades acima identificadas
3. A R. efetua a intermediação de três tipos de utilizadores da plataforma:
− “Os estabelecimentos comerciais, sejam restaurantes ou outros estabelecimentos aderentes;
− Os estafetas; e
− Os utilizadores clientes”.
4. Para a execução das referidas atividades, a Ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes – através de uma aplicação móvel (App) ou através da internet – atua como intermediária na entrega dos produtos encomendados;
5. A atividade desempenhada pelo estafeta consiste na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), transportando esses produtos até ao cliente.
6. A atividade da Ré inclui: - A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e – A intermediação entre a venda dos produtos e a respetiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efetuaram as encomendas;
7. A Ré presta serviços de acesso e intermediação a diferentes tipos de utilizador da plataforma – serviços esses pelos quais a Ré recebe os pagamentos das diferentes taxas provenientes desses utilizadores, identificadas em baixo:
− Os estabelecimentos comerciais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada “Taxa de Parceria”);
− Os utilizadores prestadores de serviços pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada “Taxa de Plataforma”);
− Os utilizadores clientes finais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada “Taxa de Serviço”).
8. AA, natural da República da Índia, NIF 1, NISS 1, Cartão do Cidadão n.º 1, com residência na Travessa 1, endereço de correio electrónico ...@gmail.com, titular do n.º de telefone 1 presta a referida atividade de estafeta para a plataforma GLOVO, desde 19 de Julho de 2023
9. AA, realiza a referida atividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma GLOVOAPP, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;
10. No dia 20.09.2023, pelas 20h05m, AA encontrava-se, no acesso ao Centro Comercial de Alvalade, sito na Praça Alvalade, em Lisboa, onde existem vários estabelecimentos de restauração, no exercício das referidas funções de estafeta, quando foi identificado por inspetores da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT)
11. A GLOVOAPP tem um registo eletrónico de adesão aos mesmos com data e hora;
12. O estafeta paga uma taxa quinzenal de €1,85 pela utilização da plataforma da R. como contrapartida do acesso aos outros utilizadores da plataforma, nomeadamente os clientes, estabelecimentos, acesso a cobertura de seguro durante as entregas, aquisição de material, gestão e intermediação no serviço de recolha e pagamentos, bem como o acesso a apoio a serviço de assistência da Glovo para problemas técnicos que possam advir;
13. O pagamento referido apenas será devido se nos últimos quinze dias o estafeta tiver realizado entregas;
14. O estafeta tem de esperar 10 minutos pelo cliente caso este não esteja na morada e caso não pretenda esperar os dez minutos de que o cliente dispõe para chegar pode recusar a entrega e não será pago por isso;
15. Para aceder aos pedidos que existem na plataforma GLOVOAPP, o estafeta teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter atualizada e ativa sendo que, uma vez ativada a conta, é iniciada a atividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta o email e de uma palavra passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade;
16. Para se poder registar e exercer a referida atividade de estafeta através da plataforma da Ré, o estafeta tinha que ter atividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens;
17. A manutenção e reparação do veículo, telemóvel e mochila que utiliza são suportados pelo estafeta;
18. Os prestadores de atividade registados na Plataforma decidem livremente o local onde prestam a sua atividade, ou seja, se prestam a sua atividade numa determinada zona da cidade ou até mesmo do país.
19. Podem inclusivamente bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejam contactar.
20. A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, podendo mudar de localidade quando entenderem, desde que previamente efetuem o registo de mudança de área na plataforma e o registo fique efetuado e processado por parte da Glovo;
21. O estafeta recebe os valores das entregas que efetuar, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo;
22. O estafeta é livre para escolher o seu horário;
23. É livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma;
24. E durante quanto tempo permanece ligado;
25. Sendo ainda livre para rejeitar e aceitar a ofertas de entrega que entender;
26. Mesmo após aceitar a entrega pode cancela-la sem que exista qualquer consequência para si;
27. O que resulta na impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.
28. O Prestador de Atividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si.
29. E a sua conta continua ativa;
30. Só quando o estafeta efetua o login na plataforma é que pode aceder às ofertas de entregas disponíveis;
31. A Ré contratou um seguro de responsabilidade para os estafetas durante os serviços de recolha e entrega, nomeadamente no caso de lesão permanente ou temporária durante e em óbito, com a Chubb European Group SE, sucursal em Espanha.";
32. Nos dados fornecidos pelo estafeta à R. está o início da atividade nas finanças, o ATCUD (código único de documento), regime de IVA e IRS, documento de identificação;
33. A plataforma transmite a encomenda dos artigos ao parceiro, através da sua interface da plataforma e o parceiro aceita ou rejeita a encomenda;
34. Caso seja aceite a encomenda, a plataforma, através da aplicação “Glovo Couriers” oferece a um utilizador-estafeta o serviço de entrega associado ao referido pedido; caso o utilizador-cliente opte por recolher o pedido diretamente junto do parceiro (take away), esta oferta não será efetuada ao estafeta;
35. Pelo menos a partir de maio de 2023, o utilizador estafeta pode aceitar, não responder ou rejeitar o serviço proposto que, por sua vez, pode ter sido anteriormente rejeitado por outros utilizadores estafeta;
36. Após aceitar um serviço o utilizador estafeta pode ainda rejeitá-lo;
37. A aplicação apresenta aos referidos estafetas aquando da oferta de um serviço o preço do serviço, o mapa com os pontos de recolha e entrega assinalados e a rua da morada do ponto de recolha, sem o número da porta;
38. Quando os estafetas pretendem aceitar o serviço, após aceitação dos erviço na aplicação, esta apresenta ao estafeta o preço do serviço, um mapa com os pontos de recolha (morada do parceiro) e entrega (morada do utilizador cliente) assinalados, o nome e morada do parceiro (ponto de recolha), informações de contacto do parceiro (quando existam), estimativa do tempo de espera no parceiro, o nome e morada do utilizador-cliente (ponto de entrega), a distância estimada, os detalhes do pagamento, a lista dos artigos do pedido e o valor do mesmo;
39. Os estafetas escolhem o itinerário que vão utilizar para a realização do serviço, tanto desde o ponto onde efetuam a aceitação do serviço até ao ponto de recolha, como desde o ponto de recolha até ao ponto de entrega, pois a aplicação da R. exibe um mapa com ambos os pontos assinalados e morada de cada ponto, sem apresentar qualquer itinerário ou rota proposto;
40. No decurso do serviço de entrega a aplicação, quando ligada, solicita aos estafetas que os mesmos assinalem a conclusão das seguintes atividades: chegada à morada do parceiro ponto de recolha), recolha dos artigos no parceiro, chegada à morada do utilizador cliente ponto de entrega); entrega dos artigos ao utilizador-cliente e conclusão do serviço, mas quando os estafetas não assinalam na aplicação a conclusão dessas atividades, não comprometem a execução do serviço, apenas recebendo o preço do serviço e ficando disponíveis para aceitar novos serviços quando comunicam a última das atividades que é a conclusão do serviço;
41. A aplicação indica a necessidade de ter acesso à geolocalização dos estafetas enquanto estes se encontram online a aguardar por uma oferta de serviço, a partir da aceitação do serviço os estafetas podem permitir ou não que a plataforma tenha acesso á sua localização sem que isso tenha impacto na realização do serviço ou leve a alguma penalização;
42. Os estafetas após aceitarem o serviço na aplicação podem escolher o meio de transporte utilizado, definir o percurso a seguir e podem desligar a geolocalização do telemóvel;
43. Após entregar as encomendas e caso os clientes tenham optado pelo pagamento em dinheiro, os estafetas têm de receber destes o pagamento do pedido em dinheiro, ficando com a obrigação de proceder ao depósito da quantia cobrada na conta determinada pela plataforma, a favor da R.;
44. Os estafetas podem aceitar ou recusar qualquer serviço através da aplicação, mesmo depois de terem inicialmente aceitado esse serviço, sem que tal afete o estatuto da sua conta na aplicação, a apresentação de futuros serviços e o preço de tais serviços futuros.
45. Quando os estafetas rejeitam o serviço proposto, após a rejeição desse serviço na aplicação é apresentada uma interface de confirmação da rejeição para evitar rejeições acidentais, não havendo qualquer penalização pela rejeição de serviços propostos.
46. O preço base do serviço que é apresentado aos estafetas é calculado pela plataforma de acordo com um valor base, compensação pela distância e compensação pelo tempo de espera consumido na realização desse serviço; sobre o preço base podem incidir promoções da aplicação.
47. Os estafetas podem selecionar e alterar um “multiplicador”, uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço;
48. Adicionalmente, os estafetas podem receber gratificações dos clientes.
49. OS estafetas são remunerados por cada serviço e depois de os terem realizado, independentemente do tempo que tenham estado previamente online na aplicação, nem recebem qualquer valor pela espera entre a conclusão de uma entrega e a aceitação de novo pedido;
50. A ré paga, quinzenalmente, através de transferência bancária, diretamente aos estafetas os valores correspondentes às entregas efetuadas e processa os pagamentos a efetuar, mediante a emissão de uma fatura em nome da ré e que tem por emissor os prestadores de atividade (estafetas).
51. Por autorização dos estafetas, mediante adesão no Portal das Finanças, os recibos emitidos são registados no Portal das Finanças pela R.;
52. Nos Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas”, estão previstas várias situações que podem determinar a desativação temporária ou permanente da conta do prestador de atividade, designadamente as enumeradas no ponto 5.2., de onde se destacam as possibilidades de tal acontecer se o estafeta: utilizar a Plataforma para insultar, ofender, ameaçar e/ou agredir Terceiros, nomeadamente, Utilizadores Cliente, Estabelecimentos Comerciais, outros Estafetas e pessoal da GLOVO; violar a lei ou quaisquer outras disposições dos Termos e Condições Gerais ou outras políticas da GLOVO; participar em atos ou conduta violentos; e violar os seus direitos na aplicação da GLOVO, causando danos materiais e/ou imateriais a outro Utilizador da plataforma (Estafetas, Utilizadores Cliente e/ou Estabelecimentos Comerciais).
53. Tal como resulta do ponto 5.4.2. dos referidos “Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas”, “A GLOVO pode, mas não é obrigada, a monitorizar, rever e/ou editar a sua Conta. A GLOVO reserva-se o direito de, em qualquer caso, eliminar ou desativar o acesso a qualquer Conta por qualquer motivo ou sem motivo, até mesmo se considerar, a seu critério exclusivo, que a sua Conta viola os direitos de terceiros ou direitos protegidos pelos Termos e Condições”.
54. A ré pode, igualmente, desativar a conta de comerciantes e de clientes em caso de violação de lei ou de fraude.
55. Desde maio de 2023 os utilizadores clientes finais são convidados a avaliar a forma como o estafeta realizou o seu trabalho e a plataforma toma-a visível apenas para 0 estafeta, da mesma forma que os clientes são convidados a avaliar os comerciantes que vendem os seus produtos, sem que tal seja usado para avaliar a qualidade da atividade ou a forma como é executada e sem influenciar a oferta de novos pedidos o que é designado de sistema de reputação;
56. Os estafetas escolhem os dias e horas em que pretendem ligar-se à aplicação da ré.;
57. Os estafetas podem subcontratar noutro prestador de serviços de entrega
58. Antes de iniciar a sua ligação à aplicação da ré e caso pretendam usar veículos a motor, os estafetas devem declarar dispor de carta de condução e seguro de responsabilidade civil do veículo usado.
59. Os estafetas podem receber e aceitar ofertas de serviços de entrega em diferentes localizações dentro da zona geográfica que escolhem.
60. Os estafetas são responsáveis pela perda ou danificação dos produtos que transportam.
61. Os estafetas não são obrigados a utilizar uniforme identificativo da Ré, podendo, como qualquer outra pessoa, comprar merchandising da Ré (incluindo a mochila isotérmica para transporte de comida) na loja on-line desta.
62. A ré não controla nem limita que os estafetas prestem a mesma atividade para plataformas concorrentes nem controla nem limita que os mesmos prestem outras atividades.
63. Quando o estafeta chega ao local e o cliente não se encontra no mesmo entra em contacto com o cliente e depois informa a Glovo desse facto enquanto aguarda dez minutos;
64. Se volvidos os dez minutos o cliente não chega o estafeta é pago pelo serviço efetuado exceto se o mesmo fosse pago em dinheiro pelo cliente, circunstância em que não recebem pelo serviço por o cliente não ter atendido;
65. O estafeta em apreço no ano de 2023 e 2024 declarou rendimentos fiscais para outra entidade além da Glovo em termos e condições que constam da declaração das finanças de fls. 185 dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. - Factos Não Provados e motivação
A matéria de facto foi toda dada por provada por acordo.
II. - Fundamentação de direito
1. - Objecto do recurso:
A questão essencial é a de saber se o vínculo contratual existente entre o estafeta, AA, e a Ré, Glovoapp Portugal, constitui um contrato de trabalho.
2. - Da presunção de contrato de trabalho: plataforma digital.
A questão da presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital - a epígrafe do artigo 12.º-A, do CT/2009 -, já foi apreciada e decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sentido da existência de um contrato de trabalho, nos seguintes acórdãos: de 28.05.2025 proc. n.º 29923/23.7T8LSB.L1.S1; de 03.10.2025 proc. n.º 29352/23.2T8LSB.L1.S1, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado; e de 15.10.2025 proc. n.º 28891/23.0T8LSB.L1.S1, Relator Conselheiro Júlio Gomes, todos in www.dgsi.pt.
3. - O artigo 12.º-A, do CT - “Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital” – prescreve:
“1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;
c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;
d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;
e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.
2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.
3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.
(…)”.
3.1. - a) - A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela.
Decorre dos n.ºs 49, 50, 51 dos factos dados como provados, que “Os estafetas são remunerados por cada serviço e depois de os terem realizado, independentemente do tempo que tenham estado previamente online na aplicação”, remuneração essa paga pela Ré, quinzenalmente, diretamente aos estafetas, através de transferência bancária e emitindo os respectivos recibos.
Logo, mostra-se preenchido o primeiro pressuposto de laboralidade da presunção do artigo 12.º-A do CT/2009.
3.2. - b) - A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;
Resulta dos n.ºs 3 a 8 e 15, dos factos dados como provados que a Ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes; ou seja, a Ré actua na intermediação entre os diferentes utilizadores da plataforma: (i) os utilizadores parceiros (estabelecimentos comerciais, como restaurantes, por exemplo); (ii) os utilizadores estafetas; (iii) e os utilizadores clientes finais.
Tal realidade, permite-nos considerar preenchido requisito de laboralidade do n.º 1, alínea b) do artigo 12.º-A do CT/2009.
3.3. - c) - A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;
A partir do momento em que o estafeta faz login na aplicação e passa a estar online, a plataforma fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização do dispositivo que tem de estar obrigatoriamente ligado para que a aplicação funcione e permita ao estafeta receber pedidos de entrega, sendo, pois, indispensável ao exercício da atividade e à atribuição dos pedidos dos clientes – cfr. n.ºs 9, 30, 37, 38, 40, 41, 43 dos factos dados como provados.
Tal factualidade é condizente com o requisito de laboralidade do n.º 1, alínea c) do artigo 12.º-A do CT/2009.
3.4. - e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;
Dos n.ºs 52, 53, 54, 55, dos factos dados como provados resulta que a plataforma Globo avalia a forma como o estafeta realiza o seu trabalho, podendo, em qualquer caso, determinar a desativação temporária ou permanente da conta do prestador de atividade.
Também aqui, a factualidade provada é condizente com o requisito de laboralidade do n.º 1, alínea e) do artigo 12.º-A do CT/2009.
3.4. - f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.
Embora estando provado no n.º 16 da matéria de facto que o estafeta tem de usar “veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens”; também está provado no ponto 15. que “Para aceder aos pedidos que existem na plataforma GLOVOAPP, o estafeta teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter atualizada e ativa sendo que, uma vez ativada a conta, é iniciada a atividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta o email e de uma palavra-passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade”.
3.5. - Estão, assim, verificados cinco dos seis requisitos de laboralidade previstos no número 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho de 2009, e que, nessa medida, sustentam, de modo afirmativo, a natureza laboral do vínculo jurídico-profissional entre o estafeta, AA, e a Ré, Glovoapp Portugal.
4. - Da Ilisão da Presunção da Laboralidade
4.1. - O artigo 12.º-A, n.º 4, dispõe: “a presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.”.
4.2. - Como referido no ponto 3.5., encontram-se verificados os índices da presunção de laboralidade, previstos nas alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 1 do transcrito artigo 12.º-A do CT, ou seja, um total de cinco dos seis elementos possíveis, com relevância para os índices de subordinação previstos nas alíneas a) e c), uma vez que os poderes de direção, supervisão e controle são elementos essenciais da relação laboral.
No mencionado acórdão do STJ, de 15.10.2025, proc. n.º 28891/23.0T8LSB.L1.S1, foi consignado:
“O controlo em casos como o dos presentes autos ocorre, designadamente, através da geolocalização e do controlo do acesso à aplicação. Ainda que a geolocalização seja também útil face ao modelo de negócio adotado ela permite o controlo da prestação. A existência de bónus e, sobretudo, de sanções que no limite podem consistir em desconectar um estafeta da aplicação correspondem, no fundo, nos seus resultados ao exercício de um poder disciplinar. Mas importa ainda considerar a inserção do estafeta na organização empresarial da plataforma. (…), a sua atividade só pode existir graças á plataforma, sem a qual ficaria desprovida de sentido. (…). O estafeta não acede autonomamente ao mercado, mas integra o serviço proporcionado pela plataforma.
Face a esta inserção indícios de aparente autonomia perdem boa parte do seu alcance: assim, a plataforma permite que o estafeta trabalhe para outras plataformas, mas para além das dificuldades práticas em que tal ocorra sem prejudicar a classificação do estafeta no âmbito de cada plataforma, o direito do trabalho português, à semelhança de muitos, não proíbe o pluriemprego e o contrato de trabalho não exige exclusividade; o estafeta pode ser proprietário de alguns instrumentos de trabalho, mas o principal em toda a operação, a aplicação informática, pertence à plataforma. O estafeta pode recusar algum serviço e conectar-se quando quiser, mas tal é possibilitado pelo modelo empresarial com um grande número de estafetas “concorrendo” entre si. Essa liberdade na escolha do tempo vem acompanhada de um controlo apertado na geolocalização e de aspetos económicos como a fixação da contrapartida no essencial pela plataforma e a circunstância de que a mesma emite os recibos.”
Concluindo: a plataforma não logrou provar que o estafeta, AA, trabalhava com efetiva autonomia, devendo, pois, o contrato ser requalificado como contrato de trabalho.
IV. - Decisão
Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social julgar procedente o recurso de revista e, em consequência, reconhecer a existência de contrato de trabalho entre o estafeta, AA, e a Ré, Glovoapp Portugal, desde 19 de Julho de 2023.
Custas a cargo da Ré.
Lisboa, 29 de outubro de 2023
Domingos José de Morais (Relator)
José Eduardo Sapateiro
Júlio Gomes