SUSPENSÃO DA PENA DE PRISÃO
PROGNÓSTICO DE REINSERÇÃO EM LIBERDADE
PROPORCIONALIDADE DA PENA
PEDIDO IMPLÍCITO NO RECURSO
Sumário

A desestruturação da vida pessoal e social do arguido, decorrente da adição ao consumo de estupefacientes, com condenações anteriores por crimes patrimoniais, instrumentais dessa adição, das tentativas frustradas de desvinculação dos consumos em comunidades terapêuticas, da recaída no consumo, não ocasional, mesmo depois de completado um programa de reabilitação e de iniciada ocupação laboral, a da ineficácia dos fatores de inserção e acompanhamento familiar como elementos de contenção de comportamentos desviantes, que depois evoluem para ações penalmente ilícitas, mas, principalmente, da prática de um novo furto em pleno período de suspensão de uma pena de prisão anterior com regime de prova, tudo isso torna problemática a possibilidade de estabelecer um prognóstico positivo de reinserção em liberdade e de suspender a execução da pena ao abrigo do disposto no artigo 50º nº 1 do CP.
Porém, poderão ainda ser relevantes para não inviabilizar por completo a renovação desse prognóstico favorável as circunstâncias de o arguido ter feito um esforço para terminar a dependência das drogas, cumprindo o programa de reabilitação até ao fim e ficando em abstinência de consumos por um período considerável, apenas com uma recaída que não durou mais de três meses, e de beneficiar do apoio da irmã e se encontrar com ocupação profissional.

Mesmo que esse prognóstico positivo seja ténue, tratando-se de um furto de 65 euros, dos quais foram restituídos 25 euros, a ilicitude muito diminuída do facto é um fator a considerar na determinação das consequências do crime e relevante para a decisão de suspensão. Primeiro, porque o artigo 50º nº 1 do CP permite que as circunstâncias concretas do crime sejam ponderadas no momento da aplicação da pena alternativa de suspensão da prisão. Segundo, por aplicação do princípio da proporcionalidade das penas, ínsito no artigo 18º nº 2 da CRP e expresso no artigo 49º nº 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que, para além de enunciar um valor fundamental da ordem jurídica que funciona como critério orientador da interpretação e aplicação da lei, é de aplicação direta nos tribunais.

O ato processual de interposição de recurso enquadra-se no conceito civilistico de negócio jurídico, como ato juridicamente relevante de manifestação de vontade visando o exercício de um direito, sendo-lhe aplicáveis as regras de interpretação da declaração negocial previstas no código civil, nomeadamente as dos artigos 217º e 236º. O pedido formulado no recurso pode ser expresso ou tácito e deve ser interpretado com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com tal sentido.

O recurso em que o Ministério Público pediu que a pena de prisão de 9 meses, com execução suspensa e regime de prova, seja alterada para pena efetiva, contêm implicitamente um pedido de agravamento das condições a que a pena suspensa ficou subordinada, mesmo que não pedido expressamente.

Texto Integral

1. Relatório
1.1. Decisão recorrida

Sentença proferida em 14mai2025, na qual foi condenado o arguido AA, por um crime de furto simples, previsto no artigo 203º nº 1 do CP, na pena de 9 meses de prisão, com execução suspensa por 3 anos, com sujeição a regime de prova assente num plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, que deverá conter como regras de conduta: a) intervenção terapêutica destinada à problemática aditiva, até ao termo do período da suspensão ou até ao final do tratamento, se este o anteceder; b) despistes regulares, ainda que posteriores à eventual cessação da terapêutica mencionada em 1, até ao fim da suspensão da pena.

1.2. Recurso, resposta e parecer

O Ministério Público recorreu da sentença, pedindo que a mesma seja revogada, de modo a que a pena em que o arguido foi condenado seja de prisão efetiva.

Para tanto, alegou resumidamente o seguinte:

- Foi violado o disposto no artigo 50º nº 1 do CP, na medida em que o pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão não se encontra verificado.

- O facto de o arguido estar empregado e de beneficiar de apoio familiar não o impediu de praticar o crime de furto.

- Os seus antecedentes criminais afastam, decisivamente, a possibilidade de lhe ser aplicada a suspensão da execução da pena.

- No âmbito de outro processo, o arguido tinha sido condenado pela prática de três crimes de furto e seis crimes de furto qualificado, numa pena única de 4 anos e 10 meses de prisão suspensa na sua execução por 5 anos, subordinada a regime de prova, sem que isso tivesse surtido o necessário efeito de ressocialização, uma vez que no decurso desse período de suspensão praticou o crime objeto do presente processo, o que evidencia a sua insensibilidade a este tipo de penas.

- A personalidade do arguido revelou-se refratária a uma normal convivência social de acordo com as regras do direito, e deixou claro nas sucessivas condenações que não se deixa intimidar com penas de substituição.

- Nestas circunstâncias, a prognose sobre o comportamento do arguido à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização é claramente negativa.

- As exigências de prevenção geral no crime de condução sem habilitação legal são elevadas, desde logo pela grande frequência com que continua a ser praticado em todo o país.

- Não existindo um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, deve ser condenado na pena de 9 meses de prisão efetiva.

1.3. Resposta

O arguido respondeu, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso, sinteticamente com os seguintes fundamentos:

- A interpretação e aplicação do artigo 50º nº 1 do CP feita na sentença recorrida corresponde à interpretação mais conforme à ratio legis da norma, assegurando devidamente as finalidades da punição.

- A solução preconizada pelo Ministério Público poderia conduzir à perda do trabalho do arguido, à perda da sua atual situação mais estável a nível social, familiar e profissional, bem como fomentar uma nova recaída na toxicodependência, pelo seu encarceramento por um crime de natureza patrimonial de menor gravidade.

1.4. Parecer

O Ministério Público na Relação emitiu parecer discordante do recurso, salientando, em resumo, que a respetiva argumentação não é suficiente para fundar a revogação da sentença recorrida, mas que, caso isso seja considerado legalmente admissível, de harmonia com o disposto no artigo 51º nº 1 al. a) do CP, a suspensão da execução da pena aplicada deve ser subordinada à condição acrescida de o arguido entregar ao explorador da Casa de Pasto “…” a quantia de 40 euros, correspondente à diferença entre a quantia subtraída e a quantia recuperada.

2. Questões a resolver

Face aos termos como o recurso está apresentado, a questão controvertida é a de saber se a sentença interpretou e aplicou corretamente as normas que permitem a suspensão da execução da pena de prisão. Importará, também, num segundo momento, verificar a possibilidade, sugerida no parecer do Ministério Público na Relação, de agravar as condições de suspensão da execução da pena.

3. Fundamentação

3.1. Factos provados na sentença

«II.1 – Factos Provados

1 – No dia 13 de março de 2025, o arguido entrou no estabelecimento Casa de Pasto …, em ….

2 – Num movimento repentino, retirou um mealheiro que aí se encontrava que continha quantia não inferior a 65,00 €.

3 – De seguida, saiu do estabelecimento, apeou-se no seu velocípede e abandonou o local.

4 – Atuou com o propósito de se apropriar da quantia monetária que se encontrava dentro do mealheiro.

5 – Sabia que a quantia não era sua e que agia sem o conhecimento e contra a vontade do seu proprietário, o que representou quis e logrou.

6 – Agiu de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou que:

7 – O arguido sofreu as seguintes condenações criminais:

i) Por sentença de 12 de março de 2013, transitado em julgado em 10-04-2013, proferida no âmbito do Processo Comum n.º 935/11.5…, que correu termos no ….º Juízo do Tribunal Judicial de …, foi condenado, por factos reportados a 05/11/2011, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na pena de 180 dias de multa, extinta pelo cumprimento em 05/05/2015.

ii) Por sentença de 04/10/2016, transitada em julgado em 03/11/2016, proferida no âmbito do Processo Sumário n.º 488/16.8…, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de …, Juiz …, Tribunal Judicial da Comarca de …, foi condenado, por factos reportados a 03/10/2016, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de desobediência, na pena única de 100 dias de multa, extinta pelo cumprimento em 18-12-2017.

iii) Por sentença de 24/01/2017, transitada em julgado em 24/02/2017, proferida no âmbito do Processo Comum n.º 395/15.1…, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de …, Juiz …, Tribunal Judicial da Comarca de …, foi condenado, por factos reportados a 30/04/2015, pela prática de um crime de Tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, extinta pelo cumprimento em 24/06/2018.

iv) Por sentença de 10/05/2017, transitada em julgado em 05/06/2017, proferida no âmbito do Processo Comum n.º 377/16.6…, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de …, Juiz …, Tribunal Judicial da Comarca de …, foi condenado, por factos reportados a 03/08/2016, pela pratica de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa, convertida em 9 horas de trabalho, extinta pelo cumprimento em 03/05/2018.

v) Por acórdão de 02/06/2023, transitado em julgado em 03/07/2023, proferido no âmbito do Processo Comum n.º 126/22.0…, que correu termos no Juízo Central Criminal de …, Juiz …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, foi condenado, por factos reportados a 01/04/2022, pela prática de um crime de furto simples, por factos reportados a 28/03/2022, pela prática de um crime de furto simples, por factos reportados a 21/02/2022, pela prática de um crime de furto qualificado, por factos reportados a 30/03/2020, pela prática de um crime de furto simples, por factos reportados a 13/02/2022, pela prática de um crime de furto qualificado, por factos reportados a 05/12/2021, pela prática de um crime de furto qualificado, por factos reportados a 12/04/2022, pela prática de um crime de furto qualificado, por factos reportados a 11/02/2022, pela prática de um crime de furto qualificado e por factos reportados a 26/03/2022, pela prática de um crime de furto qualificado, na pena única de 4 anos e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos.

8 - À data dos factos, como na atualidade AA, de 38 anos de idade, residia sozinho na morada constante dos autos.

9 – Em termos afetivos AA na atualidade conta com apoio das irmãs BB, CC e da progenitora por forma a manter um comportamento abstinente face aos consumos de produtos estupefacientes e uma vida normativa, sendo as irmãs e a progenitora o seu principal referencial psicoafectivo.

10 – À habitação reporta-se a um armazém, transformado em habitação, propriedade do DD, para quem o arguido trabalha, com condições mínimas de habitabilidade.

11 – Com cerca de 7 anos de idade e após a separação dos progenitores, passou a integrar o agregado da progenitora e mais 3 irmãos, numa dinâmica relacional, segundo referido desajustada na intervenção/supervisão por parte dos descendentes, com deficitárias condições socio económicas.

12 – A separação dos progenitores, fragilizou o equilíbrio familiar e capacidade da progenitora para supervisionar e cuidar dos filhos, o que conduziu à institucionalização do arguido e dos irmãos, durante 3 anos.

13 – A progenitora estabeleceu dois novos relacionamentos maritais, que foram pautados por um quadro de violência doméstica dirigida aos vários elementos da família, cônjuge e menores, o que afetou negativamente o desenvolvimento do arguido.

14 – Com cerca de 16ª anos de idade, terminou o 9º ano de escolaridade, iniciando atividade laboral após a conclusão do mesmo.

15 – Em termos laborais, o arguido regista um percurso laboral pautado por períodos de alguma inatividade, e períodos de atividade profissional, sobretudo em atividades no setor da pesca e da náutica.

16 – Em fevereiro de 2024, iniciou atividade de pescador, numa embarcação, da qual o EE é proprietário.

17 – Na atualidade, encontra-se a trabalhar com o patrão DD, como mariscador e soldador.

18 – Aufere, em média 1000€/mensais.

19 – Não tem encargos, usufruindo ainda do apoio da irmã CC, onde faz algumas refeições e a sua higiene pessoal.

20 – Em termos de rotinas e ocupação de tempos livres, não são conhecidas atividades estruturadas que execute com regularidade.

21 – O seu grupo de convivialidades surge referenciado maioritariamente e na atualidade, ao agregado familiar tendo-se afastado do seu grupo de pares.

22 – AA, apresenta um longo historial de consumos de produtos estupefacientes que iniciou ainda na adolescência, numa fase inicial com consumos de haxixe e posteriormente aos 18 anos de idade cocaína.

23 – Por sua iniciativa iniciou alguns tratamentos para desvinculação dos consumos, aos quais nunca apresentou efetiva adesão, nem os conclui.

24 – Entre 20 junho de 2022 e 20 de dezembro de 2023, esteve na comunidade terapêutica …, em …, onde cumpriu programa terapêutico, face aos consumos de produtos estupefacientes, encontrando-se o arguido desde então abstinente, situação corroborada pela irmã.

25 – Cumpriu programa terapêutico na comunidade terapêutica …, …, de onde saiu abstinente face aos consumos.

26 - AA refere que à data dos alegados factos, teve uma recaída face aos produtos estupefacientes, sendo que há cerca de duas semanas que deixou os consumos, situação corroborada pela irmã CC.

II.2 – Factos não provados

Com relevância para a boa decisão da causa, não se deixaram provar os seguintes factos:

a) Que a quantia inserida no mealheiro fosse de 1000,00€. (…)»

3.2. Mérito do recurso

Como decorre do exposto acima, está em causa, apenas, a adequação da pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão.

Na sentença recorrida a decisão de suspender a pena foi motivada assim (extrato):

«Preside a todo o regime legal das penas o entendimento de que a privação de liberdade constitui solução de última ratio, sendo de preferir soluções alternativas, crucial é que as finalidades preventivas do direito penal beneficiem de prossecução efectiva.

Este entendimento, que configura um verdadeiro princípio no ordenamento jurídico-penal português, resulta da percepção de que as medidas detentivas, especialmente em casos de curta duração, estão dotadas de um efeito estigmatizante que produz efeitos contraproducentes no desígnio de ressocialização do agente.

(…)

Deste modo, impõe-se apreciar a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão.

Estatui o art. 50.º, n.º 1, do Código Penal que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.

(…)

Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que, efectivamente, foi aplicada pena de prisão inferior a 5 anos.

Relativamente ao juízo material, há necessariamente que convocar o facto de o arguido já ter praticado factos semelhantes e ter praticado os factos criminais agora em apreciação no decurso de suspensão da pena de prisão, o que necessariamente pesa no presente juízo de prognose.

Todavia, o arguido encontra-se profissionalmente inserido e beneficia de apoio familiar, apoio que o tribunal teve oportunidade de percepcionar directamente, pela constante assistência, por parte da irmã do arguido, às sucessivas sessões de julgamento realizadas, o que consubstanciam factores de protecção e contribuem positivamente para um juízo de prognose favorável.

Ademais, a prática de crimes contra o património por parte do arguido mostra-se associada à sua problemática aditiva, sendo aliás do conhecimento geral a estreita relação entre crimes contra o património e situações de adição.

Aliás, veja-se que os factos praticados nos autos foram praticados durante uma recaída por parte do arguido, sendo, desta feita, a sua adição e, acima de tudo, o seu compromisso para com a abstinência que urge, acima de tudo, endereçar, não se podendo olvidar nem descurar a complexidade atinente à toxicodependência e à cessação da mesma, não raras vezes com recaídas.

Mais se entende que a reclusão poderia contribuir negativamente para o problema central do arguido – a relação do mesmo com os produtos estupefacientes -, não só em face do ambiente de reclusão como por via das relações interpessoais que iria criar e manter, e, finalmente, pelo estigma associado à reclusão, atingindo-se efeito contraproducente por essa via

Considera, assim, este tribunal que ainda é possível fazer um juízo de prognose favorável, no sentido de que a ameaça da prisão inibirá o arguido de praticar novos crimes, tanto mais que a suspensão será complementada com obrigações que visarão debelar e controlar a verdadeira problemática do arguido.

Por todos estes factores, para o que se convoca igualmente o princípio da última ratio das penas privativas da liberdade, entende o tribunal que as exigências concretas de punição se satisfazem com a suspensão, não resultando goradas as necessidades de prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, concedendo-se derradeira oportunidade ao arguido para evitar a sua reclusão.

Para que a prossecução das finalidades das penas seja, efectivamente, realizada, a suspensão deverá ser sujeita a regras de conduta, ao abrigo do disposto no art. 52.º do Código Penal.

(…)

Em face do que se tem dito, é imprescindível que a suspensão da execução da pena de prisão seja sujeita à obrigação, por parte do arguido, de se submeter a tratamento médico especializado e adequado à sua problemática aditiva, incluindo o internamento, contanto que o médico responsável pelo acompanhamento o avalie como necessário e pelo período que considere como essencial.

Mais deverá ser sujeito à obrigação de realização de despistes periódicos até ao fim da suspensão da pena.

O cumprimento da obrigação de sujeição a tratamento será acompanhado e fiscalizado pela DGRSP, nos termos do disposto no art. 51.º, n.º 4, ex vi art. 52.º, n.º 4, do Código Penal.

O período de suspensão será de 3 (três) anos, ao abrigo do disposto no art. 50.º, n.º 5, do Código Penal, justificando-se tal alargamento com as contingências habitualmente associadas aos comportamentos aditivos e respectiva superação, à necessidade de consistência da terapêutica e, por fim, ao reforço da consciência crítica do arguido para os factos por ele praticados.»

Decorre dos factos provados que o arguido tem de 38 anos de idade, reside sozinho num armazém transformado em habitação e conta com o apoio das irmãs e da mãe. A separação dos pais, nos seus 7 anos de idade, fragilizou o equilíbrio familiar e a capacidade da mãe para supervisionar e cuidar dos filhos, o que conduziu à sua institucionalização durante 3 anos. Com cerca de 16 anos de idade, terminou o 9º ano de escolaridade e iniciou a atividade laboral, num percurso errático, com períodos de inatividade e atividade profissional, sobretudo nos setores da pesca e da náutica. Atualmente trabalha como mariscador e soldador auferindo em média 1000 mensais. Não tem encargos fixos. Apresenta um longo historial de consumos de produtos estupefacientes que iniciou na adolescência, numa fase inicial de haxixe e a partir dos 18 anos de cocaína. Por sua iniciativa, fez tratamentos para desvinculação dos consumos, sem efetiva adesão. Entre 20 junho de 2022 e 20 de dezembro de 2023, esteve numa comunidade terapêutica, onde cumpriu programa terapêutico, encontrando-se desde então abstinente, com uma recaída à data da prática dos factos da condenação que durou até às vésperas do julgamento. Foi condenado em pena de multa, por decisão transitada em 10abr2013, por um crime de ofensa à integridade física qualificada praticado em 5nov2011; em nova pena de multa, por decisão transitada em 3nov2016, por um crime de condução sem habilitação legal e um crime de desobediência praticados em 3out2016; na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa por igual período, por decisão transitada em 24fev2017, por um crime de tráfico de menor gravidade praticado em 30abr2015; em pena de multa, por decisão transitada e 5jun2017, por um crime de condução sem habilitação legal praticado em 3ago2016; na pena única de 4 anos e 10 meses de prisão, com execução suspensa por 5 anos, por decisão transitada em 3jul2023, por um crime de furto simples praticado em 1abr2022, um crime de furto simples praticado em 28mar2022, um crime de furto simples praticado em 21fev2022, um crime de furto qualificado praticado em 13fev2022, um crime de furto qualificado praticado em 5dez2021, um crime de furto qualificado praticado em 12abr2022, um crime de furto qualificado praticado em 11fev2022 e um crime de furto qualificado praticado em 26mar2022.

Os requisitos materiais para a suspensão da pena encontram-se previstos no artigo 50º nº 1 do do CP: atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior aos factos e às circunstâncias deste, a pena será suspensa de for concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Tais finalidades, como resulta do artigo 40º do CP, são, a par da proteção de bens jurídicos, essencialmente de ressocialização. Elas incluem fatores de prevenção especial positiva, que consiste no objetivo de ressocializar a pessoa que violou a proteção de bens jurídicos e deve ser motivada pela sanção a adotar um modo de vida normativo, conformado com o respeito por esses valores; fatores de prevenção especial negativa, que consiste na necessidade de garantir que o agente do crime se abstém de outras práticas criminosas no futuro e, reflexamente, fatores de prevenção geral positiva, traduzida na proteção da confiança da comunidade na validade da norma jurídica violada e especialmente na efetividade da sua força coerciva.

A suspensão da execução da pena de prisão será de aplicar quando, em função da personalidade do arguido, das suas condições da sua vida e das demais circunstâncias relevantes, for possível estabelecer um juízo de prognose positivo sobre as possibilidades de ressocialização em liberdade. No essencial, pretende-se que o condenado seja positivamente influenciado a adotar um modo de vida normativo e a abster-se da repetição de comportamentos criminosos pela solene advertência em que consiste a condenação e pela ameaça da efetiva privação da liberdade em caso de violação dos deveres impostos. Mas, como limite negativo da possibilidade de suspender a execução da prisão, será igualmente necessário ter em conta os objetivos de prevenção geral. A suspensão da pena não pode comprometer a confiança da comunidade na ordem jurídica e na validade da norma penal violada.

O caso em apreço é indubitavelmente de fronteira. A desestruturação da vida pessoal e social do arguido, decorrente da adição ao consumo de estupefacientes, com um passado de condenações por crimes patrimoniais, instrumentais dessa adição, as tentativas frustradas de desvinculação dos consumos em comunidades terapêuticas, a recaída no consumo, que não foi ocasional (durou de março a maio de 2025), mesmo depois de, finalmente, completado um programa de reabilitação que durou um ano e meio e de se encontrar a trabalhar, a ineficácia dos fatores de inserção e acompanhamento familiar como elementos de contenção de comportamentos desviantes, que depois evoluem para as ações penalmente ilícitas, mas principalmente, com significado muito negativo, a prática do furto objeto deste processo, em pleno período de suspensão de uma pena de prisão anterior, acompanhado de regime de prova, quando, encontrando-se a trabalhar, nem era suposto, mesmo na lógica do seu comportamento, que “tivesse de furtar” para ter dinheiro para a droga, tudo isso torna problemática a conclusão a que chegou o tribunal recorrido, de considerar que é ainda possível fazer um prognóstico positivo de reinserção em liberdade.

Salvo circunstâncias excecionais, a prática de um novo crime no período de suspensão da pena de prisão por crimes em tudo semelhantes, ademais quando existem outras condenações anteriores, exige uma análise muito rigorosa sobre a subsistência do prognóstico positivo de ressocialização sem a aplicação de pena de prisão. Em casos desses, são escassos os fatores de confiança no êxito da ressocialização em liberdade. E, para além disso, o sistema de reação penal formal ao crime tem de fazer sentido, tem de ser compreensível, tem de ser consequente. A coercividade da norma é um fator importantíssimo de prevenção especial e geral. Se a norma é violada sem consequências, nem o agente do crime tem motivação suficientemente forte para a respeitar no futuro nem a sociedade acredita na sua validade.

O tribunal recorrido, reconhecendo embora a dificuldade do caso, renovou o prognóstico favorável a uma segunda suspensão da pena de prisão com base na circunstância de o arguido ter feito um esforço para terminar a dependência das drogas, cumprindo um programa até ao fim e ficando em abstinência de consumos por um período considerável, a recaída, que não foi ocasional mas também não durou mais que três meses, o apoio da irmã e, com maior importância ainda, a atual ocupação profissional.

Foi tendo em conta estes fatores, que no entendimento do tribunal recorrido não afastam por completo a possibilidade de fazer um prognóstico positivo de reinserção em liberdade, e ainda, considerando a preferência legal pelas penas alternativas à prisão e os efeitos estigmatizantes do encarceramento resultante de penas de curta duração, que a pena de prisão acabou por ser suspensa.

Como vimos, há fatores de sinal contrário, diretamente relevantes para a verificação dos requisitos materiais da suspensão da pena de prisão, que tornam o caso problemático. Concedemos que não estamos na presença de uma situação em que seja de todo impossível que o arguido seja sensível à advertência da condenação e à ameaça da pena e seja motivado por isso a não voltar a delinquir. As condições fixadas na sentença para a suspensão – regime de prova e obrigação de tratamento – podem, se corretamente executadas e fiscalizadas, ajudar a alcançar esse objetivo.

Muito embora, em abono da verdade, se tenha de assinalar que é duvidoso que um prognóstico positivo tão ténue pudesse, noutras circunstâncias, ser suficiente para justificar uma nova suspensão da pena de prisão. Porém, no caso em análise apreço acresce outro fator que se afigura decisivo.

O furto em questão resultou na apropriação de 65 euros, dos quais foram restituídos 25 euros. Estamos, portanto, na presença de um ilícito com um resultado de desapropriação patrimonial de 40 euros. Um ilícito “bagatelar” de valor quase insignificante. Este fator não pode deixar de ser considerado relevante para a determinação das consequências do crime.

Num primeiro plano, porque o artigo 50º nº 1 do CP enumera as circunstâncias do crime como um dos elementos de análise na decisão sobre a aplicação da pena alternativa de suspensão da prisão. É evidente que num crime de maior grau de ilicitude, em que as finalidades de proteção dos bens jurídicos são mais prementes, a suspensão da prisão será mais excecional, mesmo que no plano estrito da avaliação das condições de ressocialização do agente do crime o prognóstico possa ser mais positivo. Do mesmo modo, ao contrário, numa situação em que esse prognóstico se apresente mais ténue, mas em que o crime praticado seja de baixíssimo grau de ilicitude, a possibilidade de suspensão será acrescida.

Num segundo plano, como decorrência do princípio da proporcionalidade das penas, ínsito no artigo 18º nº 2 da CRP e expresso no artigo 49º nº 3 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - «As penas não devem ser desproporcionadas em relação à infração» - vigente em Portugal por força do disposto no artigo 8º nº 4 da CRP. Este princípio, para além de enunciar um valor fundamental da ordem jurídica que funciona como critério orientador da interpretação e aplicação da lei, é de aplicação direta nos tribunais (cfr. nº 1 do referido artigo 18º).

Significa isto que a pena concreta não pode ser excessiva em relação ao desvalor do crime em presença. Diante de bens jurídicos em colisão – de um lado, o direito fundamental à liberdade e do outro o interesse do Estado na ação penal – a restrição do direito individual que resulta da imposição da pena não pode implicar um sacrifício substancialmente superior ao benefício obtido pela realização do interesse público. A proporcionalidade da pena constitui, portanto, um limite ao poder punitivo do Estado, que tem de ser observado em concreto na sua determinação judicial.

Num ordenamento jurídico, como é o nosso, em que o sistema punitivo penal assenta no facto ilícito praticado e tem como limite a culpa concreta do seu autor e em que o princípio da mínima intervenção do direito penal se apresenta como uma das razões para a regra da subsidiariedade das penas privativas de liberdade, na avaliação concreta da opção entre uma pena privativa da liberdade e uma pena alternativa, o tribunal não pode deixar de considerar as razões de proporcionalidade para aplicar una pena que não vá além da justa medida.

Dito isto, independentemente das maiores ou menores possibilidades de atingimento dos fins das penas com a aplicação de uma pena substitutiva de prisão suspensa, esta sempre se imporia por razões de proporcionalidade. Ou seja, no confronto entre uma pena efetiva de 9 meses de prisão, que consideramos uma reação manifestamente desproporcionada para um furto de 65 euros, em que houve recuperação de 25 euros e em que não se verificam outros fatores de agravamento da ilicitude, e uma pena substitutiva prisão suspensa em que são muito ténues as expetativas de reinserção em liberdade, o principio da proporcionalidade da pena, de aplicação direta, impõe, sem dúvida, a opção pela segunda alternativa.

Em resultado do que a sentença recorrida terá de ser confirmada, embora não exatamente pelos fundamentos que a mesma acolheu, ou, melhor, não apenas por esses fundamentos, mas também por aqueles novos que acabámos de expor.

Importa agora verificar a possibilidade, sugerida no parecer do ministério Público na Relação, de agravar as condições de suspensão da execução da pena com a imposição de uma condição económica ao arguido. Não temos dúvida que impor ao arguido o dever de compensar monetariamente a vítima do crime é legal, é exequível e é adequado. Legal, porque os artigos 51º nº 1 als. a) e b) do CP o permitem. Exequível, porque o arguido está a trabalhar e aufere cerca de 1000 euros mensais. E adequado porque, no plano do atingimento dos fins das penas, uma suspensão da pena de prisão no limite do admissível será mais eficaz para as exigências de prevenção especial se impuser um sacrifício patrimonial ao arguido e será mais justa, e por isso mais conforme à proteção dos bens jurídicos, se permitir a compensação da vítima. O ponto controvertido é saber se essa possibilidade está incluída no objeto do recurso e, assim, nos poderes de cognição e decisão da Relação, numa situação em que o Ministério Público recorreu pedindo a troca da pena de substituição pela pena de prisão e não formulou um pedido subsidiário de agravamento das condições da suspensão da pena.

O parecer do Ministério Público na Relação não tem a virtualidade de ampliar o objeto do recurso, na medida em que não tem função dispositiva nem sequer interpretativa do interesse em causa. Trata-se, apenas, da emissão de uma opinião jurídica sobre o sentido da decisão, sem poderes de conformação do conteúdo do ato de interposição do recurso. Não ignoramos que o objeto do recurso é definido pelas conclusões da sua motivação e pelo respetivo pedido1. O tribunal de recurso, salvas as matérias em que a lei lhe atribui o poder de intervenção oficiosa, não pode conhecer além do que lhe é pedido. É isso que resulta da conjugação das disposições dos artigos 402º (âmbito do recurso), 403º (limitação do recurso na disponibilidade do recorrente) e 412º nº 1 (enunciação dos fundamentos do recurso e do pedido) do CPP. Não podemos, portanto, salvo as questões de conhecimento oficioso, ter dúvidas sobre a impossibilidade de o tribunal de recurso conhecer além do que lhe é pedido. Contudo, o problema não se esgota aqui. Nem o CPP nem o CPC – aplicável subsidiariamente no processo penal – contêm regras definidoras dos critérios de interpretação dos requerimentos apresentados pelos intervenientes processuais. Porém, o ato processual de interposição de recurso não deixa de se enquadrar no conceito civilistico de negócio jurídico, como ato juridicamente relevante de manifestação de vontade visando o exercício de um direito. Como tal, são-lhe aplicáveis as regras de interpretação da declaração negocial previstas no CC, nomeadamente as dos artigos 217º e 236º. Assim, o pedido formulado no recurso pode ser expresso ou tácito. Será expresso, se decorrer direta e inequivocamente do texto. Será tácito, se puder deduzir-se de factos que com toda a probabilidade o revelem. E, para descortinar o propósito dessa declaração, a mesma há de ser lida com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário – no caso, declaratários serão o tribunal e o arguido recorrido – possa deduzir do comportamento do declarante – declarante será aqui o recorrente –, salvo se este não puder razoavelmente contar com tal sentido. Ora, aplicando estas normas à situação em apreço, temos que o Ministério Público não concordou com a pena de substituição, incluindo as condições a que ficou subordinada, e pediu a condenação em pena de prisão efetiva. É evidente, pois, que considerou a pena demasiado leniente e pediu o seu agravamento. Esse agravamento, por maioria de razão, não procedendo o pedido de condenação em pena de prisão efetiva, pode materializar-se com o aumento das condições a que a pena suspensa ficou subordinada. Da mesma forma que não se contesta a existência de um pedido implícito nas situações em que o Ministério Público pede em recurso o aumento de uma pena de 5 para 10 anos, sem que peça subsidiariamente que, não procedendo o pedido principal, ao menos, a mesma seja aumentada para outra medida superior aos 5 anos; não será de contestar que, pretendendo o Ministério Público o agravamento da espécie da pena, implicitamente pretenda que, não procedendo essa pretensão, ao menos a mesma possa ser agravada nas condições a que ficou sujeita. Um pedido de agravamento da pena formulado pelo titular da ação penal, com fundamento na sua insuficiência para o atingimento dos respetivos fins, lida pelo arguido recorrido normal e por um tribunal normal, contém, com toda a probabilidade, um pedido implícito de agravamento da pena para espécie ou medida de gravidade intermédia entre a aplicada e a pedida. Embora a propósito de assunto diferente (estava em causa um pedido de constituição de assistente), os tribunais de recurso já decidiram que os requerimentos dos intervenientes processuais podem ser interpretados à luz das regras do direito civil e que podem conter pedidos implícitos. Acresce que no caso nem pode argumentar-se que exista propriamente um agravamento da pena. As condições a que fica submetida a pena de prisão suspensa fazem parte das consequências do crime mas não integram o conteúdo da sanção penal. Isso decorre com toda a clareza do disposto no nº 3 do artigo 51º do CP – Ac. TRL, de 25set2025 (processo 299/24.7T9LSB.L1).

Nesta medida, é nosso entendimento que o tribunal de recurso, com base no pedido implícito de agravação da pena (pena em sentido lato, englobando no caso a sua espécie e as condições de imposição), formulado no recurso do Ministério Público, pode manter a pena de 9 meses de prisão com execução suspensa aplicada em primeira instância, mas sujeitá-la à imposição de outros deveres, para além dos já fixados na sentença recorrida. Acresce que, como referido no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, Almedina, página 180, «O instituto da proibição de reformatio in pejus [do artigo 409º do CPP] não compreende prescrições (diretas ou indiretas) sobre o poder cognitivo do tribunal superior quanto a recursos interpostos por MP ou assistente que visem a alteração da sentença contrária aos interesses do arguido, nem compreende qualquer regulação sobre o interesse em agir do MP para efeitos de interposição de recurso contra sentença condenatória». Isto é, as possibilidades de agravamento da pena nos recursos não interpostos em benefício do interesse do arguido estão limitadas pelo pedido mas não pela proibição do artigo 409º do CPP. Como dito acima, impor ao arguido o dever de compensar monetariamente a vítima do crime é legal, é exequível e é adequado. O atingimento das finalidades da punição a que a pena de prisão suspensa está subordinada ficará melhor alcançado. O arguido, vendo agravadas as condições em que pode beneficiar de uma suspensão que pode ser vista como a derradeira oportunidade, já concedida no limite e muito por se ter tratado de um furto de valor quase insignificante, sentirá com mais intensidade a censura da condenação e será mais facilmente motivado a adotar um modo de vida normativo e a abster-se de outras práticas criminosas. E, no plano da prevenção geral positiva, traduzida na proteção da confiança da comunidade na validade da norma jurídica violada, a vítima, ao ser compensada, verá a reação formal ao crime como mais efetiva e afirmativa da força coerciva das normas. A compensação a que nos referimos não necessita de se limitar ao valor de que a vítima ficou desapossada – 40 euros. Ela deve ter também o conteúdo pedagógico de agravar o sacrifício económico do arguido, nos limites do que é exequível (não esqueçamos que trabalha e aufere 1000 euros por mês, sem que tenha despesas fixas relevantes), e de compensar os outros prejuízos sofridos pela vítima, como as deslocações à polícia e ao tribunal, os incómodos e o tempo perdido. A quantia será, portanto, fixada em 150 euros, que o arguido terá de pagar em 60 dias.

4. Dispositivo

Com os fundamentos expostos, julga-se o recurso parcialmente procedente e em consequência decide-se manter nos seus exatos termos a sentença recorrida, mas acrescentar às condições impostas para a suspensão da pena a de o arguido entregar ao proprietário do estabelecimento Casa de Pasto …, em …, e demonstrar essa entrega no processo, a quantia de cento e cinquenta euros no prazo de sessenta dias a contar do trânsito em julgado do presente acórdão.

Sem custas.

Évora, 14 de outubro de 2025

Manuel Soares (relator por vencimento)

Carla Francisco

Maria Clara Figueiredo

Declaração de voto

Votámos o acórdão e concordamos como o sentido da decisão relativamente à primeira das questões apreciadas, sufragando-se a fundamentação relativa à manutenção da decisão recorrida no que tange à suspensão da execução da pena de prisão, porquanto aí se entendeu, sopesadas todas as circunstâncias do crime e da situação pessoal do arguido, revelar-se possível a realização do juízo de prognose positivo sustentador da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos preceituados pelo artigo 50º do CPP.

O mesmo não sucede no que diz respeito ao sentido decisório da questão subsequente, qual seja o do aditamento de uma nova condição da suspensão. Com o devido respeito pela posição que fez vencimento, permitimo-nos discordar da mesma e sustentar o presente voto de vencida nos termos e com os fundamentos seguidamente melhor explicitados.

Na verdade, entendemos que a decisão recorrida deveria manter-se nos seus precisos termos também no que diz respeito à medida concreta da pena de substituição, pois que, a nosso ver, outra não poderia ser a solução processualmente admissível. A ponderação de aditamento de uma condição da suspensão não se nos afigura possível, em virtude de se não conter dentro do objeto do recurso, que, como é sabido, se encontra delimitado pelo teor das conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, nas quais, in casu, se solicita apenas a não aplicação da pena de substituição, sem que tenha sido formulado qualquer pedido subsidiário relativamente a esta, para a eventualidade de o recurso principal vir a improceder.

Com efeito, em processo penal, o tribunal de recurso está vinculado ao chamado princípio do dispositivo atenuado, ou seja, conhece apenas do que é impugnado nas conclusões do recurso – nos termos das disposições conjugadas dos artigos 402.º, 403.º e 412.º CPP – devendo, para além das mesmas, conhecer apenas das matérias de conhecimento oficioso.

Não acompanhamos a fundamentação do acórdão no que tange ao entendimento de que o Ministério Público, ao não concordar com a pena de substituição, pedindo a condenação em pena de prisão efetiva, tenha implicitamente manifestado discordância relativamente às condições a que a suspensão ficara subordinada. Na verdade, a mais de tal posição não ter sido expressa no recurso, a mesma não resulta implícita de nenhuma das alegações que o compõem.

Não colhe, a nosso ver, o entendimento vertido no acórdão no sentido de que, consubstanciando o pedido de condenação em prisão efetiva um agravamento da pena aplicada na decisão recorrida, “por maioria de razão”, o mesmo comporta o aumento das condições da pena de substituição, ainda que não solicitado. É que, ao contrário do exemplo apresentado no acórdão relativo à procedência parcial do recurso, com agravamento da pena de prisão em medida inferior à peticionada pelo recorrente (o Ministério Público pede em recurso o aumento de uma pena de 5 para 10 anos, e o tribunal superior aumenta a pena para uma medida superior a 5, mas inferior a 10 anos), na situação vertente o agravamento realizado no acórdão não se reporta à pena cuja medida foi impugnada no recurso, mas sim a pena autónoma, de substituição, cuja medida concreta – período e condições – o recorrente não questionou. São, por isso, a nosso ver, situações absolutamente distintas que reclamam tratamento processual diferenciado.

Estas as razões pelas quais entendemos que, na situação dos autos, recorrendo o Ministério Público apenas da suspensão da execução da pena, pedindo a sua não aplicação – não incluindo, subsidiariamente, qualquer pedido de alteração ou reforço das condições de suspensão, nem a respetiva fundamentação, nem tendo manifestado quanto àquelas qualquer discordância – não pode o tribunal ad quem julgar improcedente o recurso (mantendo a suspensão) e acrescentar condições novas à suspensão aplicada na sentença recorrida. Tal significaria alterar o regime da pena aplicada, indo para além do objeto do recurso, em termos, aliás, inconciliáveis com o princípio da segurança jurídica e com o respeito pelas garantias de defesa do arguido, ao qual não seria dada oportunidade de contraditar a argumentação introduzida ex novo para sustentar a condição acrescentada.

Concebemos apenas como legalmente admissível a introdução pelo tribunal de recurso de condições adicionais não incluídas no objeto do recurso, quando tal aditamento resulte de exigência legal, o que sucederia se a suspensão decretada em 1.ª instância tivesse ficado ilegalmente deficiente (por exemplo, em caso de ausência de fixação de regime de prova quando a lei o exige, nos termos do artigo 53º, nºs 3 e 4 do CP). Nesse caso, o tribunal estaria a suprir uma ilegalidade oficiosamente, não a agravar a situação do arguido fora da pretensão recursiva do Ministério Público. Mas se não há vício legal, a “melhoria” das condições, não se revela admissível, sob pena de excesso de pronúncia deste tribunal, sancionada pelo artigo 379º, nº 1, alínea c) do CPP.

Maria Clara Figueiredo

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1 Esta regra é enunciada na esmagadora maioria dos acórdãos de todos os tribunais de recurso, mas sem desenvolvimento, limitando-se praticamente a uma remissão acrítica para o Assento do STJ 7/95, de 19/10/95 (DR I-A, nº 298/95, de 28/12/95) – que, porém, não trata sequer desta matéria diretamente na fixação de jurisprudência – ou para um ou outro acórdão do mesmo STJ – em que, todavia, apenas se repete a formulação, sem mais fundamentação.