CONTRAORDENAÇÕES AMBIENTAIS GRAVES
SANÇÃO DE ADMOESTAÇÃO
Sumário

Nas contraordenações por incumprimento das regras do Regime Geral de Gestão de Resíduos, classificadas pela Lei Quadro das Contraordenações Ambientais com “contraordenação ambiental grave”, a coima não pode ser substituída na fase judicial do processo de contraordenação pela sanção de admoestação, prevista no artigo 51º do Regime Geral das Contraordenações.
É aplicável a tais contraordenações a jurisprudência fixada pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 6/2018 (DR 219/2018, Série I, de 14/11/2018, páginas 5306 a 5315).

Acresce que, se o artigo 47º-A da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais apenas permite a aplicação da sanção de advertência na fase administrativa do processo às contraordenações ambientais leves, não teria sentido que na fase judicial a lei admitisse a substituição da coima por admoestação nas contraordenações ambientais graves e muito graves.

Nas situações em que se coloquem questões de igualdade e proporcionalidade na determinação das coimas, a lei fornece várias possibilidades de adequação da pena concreta às circunstâncias do caso e à culpa do agente, sem que seja necessário contrariar a vontade legislativa. A Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, para além da possibilidade de o agente da contraordenação ter incorrido em erro sobre a ilicitude e ver a coima especialmente atenuada (artigo 12º), permite a suspensão da sanção (artigo 20º-A) e a atenuação especial da coima com redução dos seus limites abstratos para metade (artigo 23º-A e 23º-B).

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1 Decisão recorrida

Despacho proferido em 26abr2025, no qual foi decidido manter a decisão administrativa da Inspeção Geral da Agricultura, do Mar do Ambiente e do Ordenamento do Território, de condenação do arguido AA, pela prática de uma contraordenação ambiental grave (incumprimento da obrigação de inscrição no SIRER), prevista e punida pelos artigos 97º e 117º nº 2 al. uuu) do Decreto-Lei nº 102-D/2020, de 10 de dezembro (RGGR), conjugado com os artigos 88º nº 1 als. a) e b) e 199º nº 1 do Decreto-Lei nº 152-D/2017, de 11 de dezembro (UNILEX), sancionável nos termos do artigo 22º nº 3 al. a) da Lei nº 50/2006, de 29 de agosto (LQCA) e alterar a condenação na coima de 2 mil euros para a condenação na pena de admoestação, advertindo o arguido para todos os anos diligenciar junto da CM de … e da APA pelo cumprimento de todas as normas ambientais relativas à sua atividade de apicultor.

1.2. Recurso, resposta e parecer

1.2.1. O Ministério Público recorreu pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que mantenha a condenação do arguido na coima de 2 mil euros.

Alegou, em resumo, para fundamentar a sua pretensão, o seguinte:

- A admoestação, prevista no artigo 51º do RGCO, tem em vista casos de reduzida gravidade da infração e da culpa do agente, encontrando-se, por isso, reservada para contraordenações leves ou simples;

- Nos casos em que o legislador procede a uma classificação das contraordenações em função da sua gravidade, o que reflete, necessariamente, o grau de ilicitude das mesmas, devem considerar-se como de reduzida gravidade as que são classificadas como leves, só a estas sendo aplicável a admoestação em substituição da coima;

- Também o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº6/2018 do STJ estipulou que a admoestação prevista no artigo 51º do RGCO não é aplicável às contraordenações graves previstas no artigo 34º nº 2 do DL nº 78/2004 de 3 de abril;

- Ao aplicar uma admoestação a uma contraordenação ambiental grave, o tribunal violou o disposto no artigo 51º nº 1 do RGCO, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que condene o arguido na coima de 2000€.

1.2.2. O arguido respondeu, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso, essencialmente com os seguintes fundamentos:

- A infração é formalmente grave mas materialmente leve, o arguido cumpriu sempre as suas obrigações e atuou sem dolo e com culpa reduzida, apenas por desconhecimento, visto ser um apicultor com baixa literacia digital;

- Após a notificação, fez voluntariamente o registo que se encontrava em falta;

- O impacto económico da coima de 2 mil euros é excessivo e desproporcionado face à atividade modesta e rendimentos do arguido;

A admoestação cumpriu o seu efeito pedagógico e a lei permite-a, mesmo em contraordenações formalmente classificadas como graves.

1.2.3. Na Relação, o Ministério Público emitiu parecer concordante com o recurso.

2. Questões a decidir no recurso

A única questão controvertida a decidir é saber se a contraordenação praticada pelo arguido, classificada na lei como grave, pode ser sancionada com admoestação.

3. Fundamentação

3.1. Matéria de facto provada no despacho

(transcrição):

1. A APA - Agência Portuguesa do Ambiente, IP verificou, em 25/05/2022, que o Arguido constava na Lista de aderentes à Entidade Gestora SPV - Sociedade Ponto Verde, ou seja, colocou no mercado embalagens e resíduos de embalagens, mas não se encontrava inscrito no SIRER, conforme verificado na 'Lista de Produtores Enquadrados - janeiro 2022', no sítio https://www.apambiente.pt/sites/default/files/ Residuos/SIRER/ProdutoresEnquadrados 04012022.pdf;

2. O arguido não procedeu ao cumprimento da obrigação de inscrição no prazo de 1 mês após a ocorrência do facto que determina a sua obrigatoriedade, conforme art. 19º, nº 1º do RGGR do UNILEX;

3. O Arguido encontrava-se em incumprimento da obrigação de inscrição no SIRER, em violação do art. 97º do RGGR;

4. O Arguido, como produtor de produto, independentemente da qualidade em que o faça, a título profissional ou ocasional, que coloca no mercado embalagens e resíduos de embalagens, tinha obrigação de conhecer e cumprir com o prescrito para o exercício desta atividade, devendo ter procedido, em tempo, à sua inscrição no SIRER, tanto mais que aderiu a uma entidade gestora para o seu fluxo de resíduos;

5. Não o tendo feito, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz.

6. O arguido agiu livre e voluntariamente sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Outros factos provados com relevo para a boa decisão da causa

1. O arguido em 19.03.2024 procedeu ao registo no SIRER.

2. O arguido tem 65 anos de idade, é um pequeno apicultor e estava inscrito na sociedade ponto verde.

3.2. Apreciação do mérito do recurso

Não ocorrendo vício de conhecimento oficioso, o recurso respeita apenas à matéria de direito, de acordo com o disposto no artigo 75º do RGCO.

No essencial, o tribunal recorrido argumentou assim para sustentar a possibilidade de redução da coima de 2 mil euros para a sanção de admoestação:

«Dispõe o art.º 51º do RGCO que:

“1 - Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.

2 - A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação.”

Não desconhecemos o entendimento do qual resulta que sendo a contra ordenação classificada como grave ou muito grave, deixa de ser possível proceder a admoestação.

No entanto discordamos desse entendimento e explicamos porquê.

Os diplomas nacionais de determinação de contra ordenações de natureza ambiental, correspondem grosso modo à transposição de directivas da união europeia, a qual na sua ânsia de cumprir e fazer cumprir convenções internacionais de protecção do ambiente, omite da legislação a classificação como pequena infracção, e omite também da sua legislação a possibilidade da classificação como pequena infracção se efectuar por referência ao pequeno/minúsculo produtor.

A simples distinção entre pessoa singular ou colectiva não nos parece suficiente para assegurar o pleno e efectivo cumprimento do principio da igualdade e da equidade, razão pela qual entendemos ser possível a aplicação de admoestação quando não obstante a contra ordenação seja classificada como grave, a condenação concreta o é pelo mínimo legal da coima, como é o caso (veja-se o art.º 22, nº3 a) da Lei de Quadros 50/2006 - aliás a lei que determina o mínimo e o máximo da sanção aplicável, ou se a norma que determina a moldura legal da coima e que curiosamente na decisão administrativa é identificada num nota de rodapé)

Atento o exposto entendemos que considerando a pequenez do arguido como produtor e o facto de ter já reposto a legalidade, é suficiente a aplicação ao arguido de uma admoestação (…)»

Uma primeira nota para assinalar que o tribunal recorrido (apesar de ter titulado a decisão como “sentença”) decidiu o recurso de contraordenação por despacho, ao abrigo do disposto no artigo 64º do RGCO. Fê-lo, certamente, por considerar desnecessária a realização de audiência, visto ter entendido que, independentemente do resto, a coima havia de ser substituída por admoestação.

Está fora de discussão que a contraordenação pela qual o arguido foi condenado está expressamente classificada na lei como “grave”. Isso decorre com total clareza da conjugação do disposto nas seguintes normas:

- A contraordenação em causa é o incumprimento da obrigação de inscrição no Sistema Integrado de Registo Eletrónico de Resíduos (SIRER), prevista no artigo 97º nº 1 do DL 102-/D/2020, que contém o Regime Geral de Gestão de Resíduos (RGGR) e no artigo 19º nº 1 do DL 152-D/2017, que contém o Regime de Gestão de Fluxos Específicos de Resíduos (RGFER);

- O incumprimento dessa obrigação de inscrição no SIRER constitui contraordenação, punível com coima de 2 mil a 20 mil euros, face ao disposto no artigo 22º nº 3 al. a) da Lei 50/2006, que estabelece o quadro das contraordenações ambientais (LQCO);

- Essa contraordenação está classificada como “contraordenação ambiental grave” no artigo 117º nº 2 al. uuu) (à data da decisão administrativa, pois entretanto, com a alteração introduzida pelo DL 24/24, de 26mar, passou a constar na al. xxx), embora exatamente com a mesma redação).

O ponto controverso a que aqui temos de dar resposta é o de saber se a essa “contraordenação ambiental grave” pode corresponder a sanção de admoestação, prevista no artigo 51º do RGCO, reservada para os casos de «reduzida gravidade da infração e da culpa”».

A resposta não pode deixar de ser negativa. A lei não admite que uma contraordenação ambiental expressamente classificada como grave seja sancionada com uma admoestação. Vejamos então porquê.

Não ignoramos que há jurisprudência de tribunais superiores no sentido de admitir a possibilidade de aplicação de admoestações a contraordenações graves. É exemplo dessa jurisprudência dos tribunais superiores o Ac. TCAN, de 3fev2022 (processo 02128/17.9BEPRT) referido pelo arguido na resposta ao recurso. Simplesmente, em nosso entendimento, essa jurisprudência, aliás minoritária, como, de resto, a decisão recorrida, não tiveram em conta o sentido do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 6/2018 (DR 219/2018, Série I, de 14/11/2018, pag. 5306 a 5315).

No acórdão do STJ acabado de referir, fixou-se jurisprudência no sentido de a admoestação prevista no artigo 51º do RGCO não ser aplicável à contraordenação ambiental grave prevista no artigo 34º nº 2 do DL 78/2004, que estabelece o regime de prevenção e controlo das emissões de poluentes para a atmosfera. No essencial, o que aí se afirmou, para fundamentar a decisão, foi que, tendo o legislador, por legítima opção de política legislativa, classificado, em abstrato, como grave ou muito grave o desvalor jurídico de determinado comportamento previsto como contraordenação para todas as situações subsumíveis na norma, independentemente do grau de ilicitude e culpa que em concreto possa verificar-se, não é admissível aplicar-lhe uma sanção que a lei reserva para os casos de reduzida gravidade da infração e da culpa.

Evidentemente que a jurisprudência fixada nos termos referidos, apesar de tratar de outra contraordenação, é aplicável à contraordenação em apreço. Trata-se em ambos os casos de “contraordenações ambientais graves”, em que estão em causa elementos de ponderação absolutamente idênticos.

É este, de resto, o sentido da jurisprudência predominante das Relações, como pode ver-se, exemplificativamente, nas seguintes decisões: AC TRL 19mar2024 (processo 1095/23.4T9AMD.L1), TRL 9out2024 (processo 421/23.0T9AGD.P1), TRP 6mar2024 (processo 361/21.0T9AVR.P2), TRE 8nov2022 (processo 173/22.1T8SLV.E1) e TRE 5mar2024 (processo 2597/23.8T8FAR.E1). Em todas estas decisões foi seguida a jurisprudência fixada no referido acórdão STJ 6/2018, com base na mesma ideia base de não ter sentido que na aplicação casuística das normas os tribunais adotem soluções interpretativas contrárias à vontade legislativa expressa de modo inequívoco.

Sem que se vejam argumentos de peso em sentido contrário, mesmo atendendo ao caso concreto, que não diverge substancialmente daqueles tratados nos acórdãos referidos, e não tendo ocorrido qualquer alteração das circunstâncias, quer no plano legislativo quer nos planos jurisprudencial e doutrinário, não há razão para nos afastarmos da jurisprudência uniformizada. Até porque, por imposição do artigo 8º nº 3 do CC, as decisões dos tribunais devem ter em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.

Mas, para além do exposto, no caso concreto acresce ainda outro argumento no sentido da impossibilidade de o tribunal substituir a coima por uma admoestação, que se afigura decisivo.

O artigo 47º-A da LQCO permite que a autoridade administrativa competente para processar as contraordenações ambientais decida não aplicar uma coima e apenas advertir o infrator, quando, além de outros pressupostos que não vêm ao caso, se tratar de uma contraordenação leve. Ora, se na fase administrativa, por opção de política legislativa, apenas é possível substituir a coima por uma advertência no caso de se tratar de contraordenação leve, a interpretação da lei de acordo com as regras aplicáveis e com base em critérios de razoabilidade não permite que se considere admissível na fase judicial aplicar uma admoestação a uma contraordenação grave – admoestação e advertência tem o mesmo significado sancionatório.

É certo que, com toda a probabilidade, as decisões dos tribunais que têm adotado uma solução como aquela do despacho recorrido são guiadas por critérios de proporcionalidade e pela tentativa de encontrar uma sanção que não vá além da justa medida. No fundo, consegue-se “adivinhar” que na base de tais decisões está o entendimento de que em muitos casos as coimas previstas na lei têm valores muito elevados, que podem no caso concreto ser exagerados. A decisão sob recurso seguiu esse caminho.

O argumento da decisão recorrida, de as leis nacionais nesta matéria ambiental corresponderem à transposição de diretivas da União Europeia e de, “na ânsia” de fazerem cumprir as convenções internacionais, omitirem a necessária diferenciação dos pequenos produtores na classificação das infrações, salvo o devido respeito, não tem valor. A adesão do País à União Europeia e a consequente vinculação à respetiva legislação, nas matérias ambientais ou noutras, de acordo com os tratados que assinou voluntariamente, constitui uma opção política que aos tribunais não compete questionar. A legislação interna decorrente da transposição de diretivas europeias tem exatamente o mesmo valor das outras leis e está sujeita às mesmas regras de interpretação.

Nas situações que se coloquem questões de igualdade e proporcionalidade na determinação das coimas, a solução adequada não pode ser a de ir ao encontro de um objetivo justo por um caminho ilegal. A lei fornece várias possibilidades de adequação da pena concreta às circunstâncias do caso e à culpa do agente, sem que seja necessário contrariar a vontade legislativa.

A LQCA, para além da possibilidade de o agente da contraordenação grave ter incorrido em erro sobre a ilicitude e de ver a coima especialmente atenuada (artigo 12º), permite a suspensão da sanção (artigo 20º-A) e a atenuação especial da coima com redução dos seus limites abstratos para metade (artigo 23º-A e 23º-B).

Do exposto, decorre que o despacho recorrido tem de ser revogado.

Tendo em conta que a matéria alegada no recurso de contraordenação não chegou a ser apreciada por ter ficada prejudicada e que a decisão sobre as questões aí suscitadas poderá estar dependente de produção de prova e está em qualquer dos casos dependente da fixação da matéria de facto alegada, a nossa decisão não poderá ser a de alterar o despacho do tribunal recorrido, por falta de elementos para o efeito, mas sim a de anular e devolver o processo, em conformidade com o disposto no artigo 75º nº 2 al. b) do RGCO. Competirá ao tribunal recorrido determinar os ulteriores termos do processo, nomeadamente ponderar sobre a utilidade e necessidade de realizar uma audiência ou de decidir de novo por despacho.

4. Decisão

Pelo exposto, acordamos em conceder provimento ao recurso e em anular a decisão recorrida e devolver o processo ao tribunal recorrido para que aí prossiga os seus termos.

Sem custas.

Évora, 14out2025

Manuel Soares

Jorge Antunes

Maria Beatriz Borges