A intoxicação alcoólica constitui uma psicose exógena, reconhecida como doença mental pela Organização Mundial de Saúde.
A perícia psiquiátrica é a adequada para fazer o diagnóstico médico da existência de uma doença mental resultante do estado de embriaguez e causadora da “anomalia psíquica” prevista no referido artigo 20º. Esse exame é realizado por um médico psiquiatra. A participação de especialistas em psicologia e criminologia é determinada pelo Instituto Nacional de Medicina Legal.
A perícia sobre a personalidade, prevista no artigo 160º do CPP, que visa avaliar as características psíquicas e comportamentais do arguido, independentes de causas patológicas, e o seu grau de socialização, nomeadamente para a decisão sobre a revogação da prisão preventiva, a culpa e a determinação da sanção, não é a adequada para avaliar uma eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, em resultado de uma causa patológica, como a intoxicação alcoólica.
1.1. Decisões recorridas
Recurso interlocutório:
Despacho proferido em 23mar2025, no qual o tribunal indeferiu o requerimento de realização de segunda perícia apresentado pelo arguido AA.
Recurso principal:
Acórdão proferido em 18jun2025, no qual foi condenado o arguido acima referido nos seguintes termos:
A) Pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º nºs 1 e 2, als. e) e h) do CP, relativo ao ofendido BB, na pena de 4 anos de prisão;
B) Pela prática de cada um dos 8 crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 131º e 132º nºs 1 e 2 als. e) e h) do CP, relativos aos ofendidos CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ, nas penas de 3 anos e 6 meses de prisão;
C) Pela prática de 1 crime de ameaça agravada, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 153º nº 1 e 155º nº 1 al. a) do CP, na pena de 6 meses de prisão;
D) Pela prática de 1 crime de dano qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 212º nº 1, 213º n.º 1 al. a) e 202º al. a) do CP, relativo à ofendida KK, na pena de 9 meses de prisão;
E) Pela prática de 1 crime de dano, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 212º nº 1 do CP, relativo ao ofendido GG, na pena de 6 meses de prisão;
F) Pela prática de 1 crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 292º nº 1 do CCP, na pena de 4 meses de prisão;
G) Na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 10 meses, pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, relativo ao ofendido BB;
H) Na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 8 meses, pela prática de cada um dos 8 crimes de homicídio na forma tentada, relativos aos ofendidos CC, DD, EE, FF, GG, HH, II e JJ);
I) Na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez;
J) Em cúmulo jurídico, na pena única de 7 anos de prisão e na pena acessória única de 2 anos de proibição de conduzir veículos motorizados.
1.2. Recursos, resposta e parecer
1.2.1. recurso interlocutório
1.2.1.1. O arguido recorreu do despacho que indeferiu o seu requerimento para a realização de uma segunda perícia visando apurar a sua imputabilidade e perigosidade, pedindo a sua revogação e substituição por outro que ordene a realização/renovação de perícia nos termos conjugados do artigo 158º e 160º do CPP, a realizar por serviços e profissionais psicólogos.
Invocou, em suma, os seguintes fundamentos:
- O relatório elaborado pelo IML não demonstra como nem de que forma chegou às conclusões que permitiram responder aos quesitos.
- Existem quesitos que ficaram por responder.
- A médica psiquiátrica que realizou o exame apenas pode concluir que não existe sintomatologia patológica, questão que nem sequer se colocava.
- A questão da imputabilidade do arguido deve ser esclarecida, pois assim o exige a verdade material e demais direitos da defesa, de forma pericial e científica e não apenas com base numa conversa informal com o arguido, da qual se retiraram conclusões de caráter subjetivo e pouco motivadas ou fundamentadas.
- A perícia psiquiátrica tem em vista apurar a eventual existência de diagnóstico de anomalia psíquica, que possa relevar para o processo em curso e a apreciação dos factos, e não estabelecer qualquer diagnóstico psicopatológico.
- Por isso, sem sobreposição com a perícia prevista no artigo 159º do CPP, a perícia prevista no artigo 160º do CPP move-se no campo do prognóstico, visando realizar uma avaliação dinâmica do funcionamento psíquico, com o propósito de descrever a estrutura da personalidade do sujeito avaliado, nas suas esferas cognitivas e afetivas, e permitindo identificar, quer potencialidades e capacidades pessoais, quer possíveis alterações comportamentais, afetivas ou cognitivas, com vista à formulação de um juízo relativo ao grau de grau de perigosidade e de socialização, fundado na previsibilidade futura do seu comportamento, atendendo também aos fatores de risco e de proteção identificados.
- Considerando estas especificidades, e uma vez que a avaliação da personalidade é uma avaliação psicológica que constitui um ato da profissão de Psicólogo/a, apenas deve ser realizada por Psicólogos e Psicólogas – ao invés do referido no artigo 160º nº 2 do CPP. Assim, deverão ser estes profissionais os responsáveis por este tipo de perícia, até porque, metodologicamente, se requer a utilização de instrumentos de avaliação psicológica, por exemplo, na mensuração de traços de personalidade, ou análise do processamento da informação cognitiva ou as denominadas funções executivas.
- Pese embora a perícia tenha sido requerida e deferida nos termos do artigo 159º do CPP, o seu objeto e quesitos colocam-na numa perícia a realizar nos termos do artigo 160º do CPP, já que o que estaria em causa, tal como refere o despacho que a deferiu, seria a situação de imputabilidade do agente à data da prática dos factos e não a questão de saber se sofria de alguma anomalia psíquica com caráter crónico ou patológico.
- A Perícia sobre a Personalidade, prevista no artigo 160º do CPP releva para a decisão sobre a revogação da prisão preventiva, a culpa do agente e a determinação da sanção. Sendo a avaliação psicológica um ato que permite recolher informações sobre construtos psicológicos (e.g. sintomatologia psicopatológica, personalidade, inteligência, memória, emoções/afetos, comportamentos, motivações, atitudes, valores, qualidade de vida e bem estar) com recurso a instrumentos de avaliação específicos e psicometricamente robustos, sendo estes objeto de interpretação e definição de resultados, com o objetivo de produzir relatórios de avaliação psicológica, a avaliação psicológica é um ato cuja realização é da exclusiva responsabilidade dos Psicólogos e Psicólogas.
1.2.1.2. O Ministério Público respondeu defendendo a improcedência do recurso, com os seguintes fundamentos resumidos:
- O relatório da perícia cumpre os objetivos que estiveram na base do requerimento inicial do arguido e da sua realização.
- Ela foi requerida e realizada por médico psiquiatra ao abrigo do estatuído nos artigos 159º e 351º do CPP, a cargo do INML. (artigos 5º nº 1 da Lei nº 45/2004 e 163º nº 2 do CPP).
- Quer a defesa quer o arguido foram notificados para se pronunciarem sobre a matéria atinente à exposição dos quesitos enunciados tribunal e nada disseram, donde se pode concluir que concordaram.
- A perícia realizada respondeu a todos os quesitos formulados. No que respeita ao primeiro, que no momento da prática dos factos o arguido não padecia de alguma anomalia psíquica que justifique um juízo de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída, nomeadamente pelo facto de apresentar uma taxa de álcool no sangue de 2,33 g/l. No que respeita ao segundo, que do ponto de vista médico-legal tinha capacidade para avaliar o desvalor dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação. No que respeita ao terceiro, perante a inequívoca imputabilidade do arguido, ficou prejudicada a questão da sua perigosidade.
1.2.1.3. No seu parecer, o Ministério Público na Relação acompanhou a argumentação da resposta acima referida.
1.2.2. recurso principal
1.2.2.1. O arguido recorreu do acórdão com a pretensão de ser absolvido de três crimes de homicídio qualificado, de ser condenado pelos demais crimes de homicídio qualificado em concurso meramente aparente, de, em relação aos outros crimes, ser absolvido e antes condenado nos termos do artigo 295º do CP e de a pena ser especialmente atenuada nos termos do artigo 72º nº 2 al. c) do CP e depois alterada para pena não privativa da liberdade.
Para tanto, sinteticamente, invocou os seguintes argumentos:
- O tribunal recorrido deveria ter ponderado, aplicando ou rejeitando, a tipificação da conduta de acordo com a estatuição e tipificação do artigo 295º do CP, existindo omissão de pronúncia.
- O tribunal recorrido também não se pronunciou sobre a questão dos nove crimes de homicídio estarem numa relação de concurso meramente aparente, incorrendo noutra omissão de pronúncia.
- O arguido foi condenado por três crimes de homicídio qualificado na forma tentada, por referência às vítimas II, JJ e BB, sem que a prova testemunhal tivesse permitido demonstrar que conduziu o carro contra estas pessoas, pelo que deverá ser absolvido destes crimes.
- Foi também condenado por ameaça agravada, contrariamente ao testemunho de BB que referiu não ter sentido medo e que nunca percebeu que o arguido o quisesse matar.
- A pena deveria ter sido especialmente atenuada pelo arrependimento sincero do arguido e por ter pedido desculpa a todas a vítimas no julgamento.
- Em face das exigências de prevenção especial positiva medianas e do arrependimento do arguido, o tribunal devia ter optado por pena não privativa da liberdade nos crimes que assim o permitiam.
1.2.2.2. O Ministério Público respondeu, defendendo a improcedência do recurso nos seguintes termos resumidos:
- Não há lugar à aplicação do disposto no artigo 295º do CP, visto que, conforme consta do acórdão, de toda a prova produzida ficou claro que, que apesar do estado de embriaguez do arguido, inexistiu qualquer facto indiciário suscetível de alicerçar a tese da defesa acerca de uma eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída.
- Nunca poderia o tribunal considerar que os nove crimes de homicídio qualificado na forma tentada se encontravam em concurso aparente, porquanto se trata de bens iminentemente pessoais, pelo que existem tantos crimes quantas as vítimas.
- Igualmente nunca poderia proceder a argumentação do recorrente quanto à sua absolvição pelos três crimes de homicídio qualificado na forma tentada, por referência às vítimas II, JJe BB, porquanto consta na decisão que o arguido atuou com a “intenção de (i) incutir medo no ofendido BB, (ii) provocar estragos de valor avultado em bens de terceiro; (iii) tirar a vida a BB, usando para o efeito um meio que seria particularmente idóneo a aumentar a potencialidade do êxito da sua conduta; (iv) conformando-se com a possibilidade de tirar a vida aos restantes 8 ofendidos – factualidade que perspetivou com acuidade, quer relativamente aos ofendidos que se encontravam na esplanada, quer relativamente aos ofendidos que se encontravam no interior (…)”
- Não obstante o pedido de desculpas formulado pelo arguido, a sua postura ao longo de todo o julgamento não foi demonstrativa de qualquer arrependimento ou interiorização das consequências da sua conduta, conforme bem relata o acórdão.
- A isso acresce o facto de ter um extenso registo criminal, totalizando oito condenações, quatro das quais pelo crime de condução sem habilitação legal, havendo sofrido já duas penas de prisão, suspensas na sua execução, que abrangem um lapso temporal compreendido entre os anos de 2011 e 2020, não sendo de todo possível ao tribunal formular um qualquer juízo de prognose favorável que permita pela aplicação de pena não privativa da liberdade.
1.2.2.3. O Ministério Público na Relação emitiu parecer concordante com aquela resposta.
2. Questões a decidir no recurso
Importa em primeiro lugar, porque é prejudicial em relação ao demais, tratar do recurso interlocutório em que se discute a validade do despacho que indeferiu a realização da segunda perícia. Se tal decisão não se mantiver, o tribunal terá de admitir esse meio de prova, o que inutilizará o acórdão final. Se, porém, aquela decisão for confirmada, então importará conhecer o recurso principal quanto ao mérito do acórdão condenatório, em que, seguindo a ordem correta de apreciação e não a do recurso (estruturado, salvo o devido respeito, de forma muito confusa), se colocam as seguintes questões: (i) omissão de pronúncia nos dois pontos (i.a) subsunção dos factos no crime do artigo 295º do CP e (i.b) concurso aparente nos crimes de homicídio; (ii) erro de julgamento da matéria de facto, quando (ii.a) a três crimes de homicídio qualificado tentado e a (ii.b) ao crime de ameaça agravado; (iii) atenuação especial da pena e (iv) condenação em pena não privativa da liberdade.
3. Fundamentação
3.1. Factualidade processual, relevante para a apreciação do recurso interlocutório
- Na contestação, o arguido requereu a realização de perícia psiquiátrica sobre a sua capacidade e imputabilidade à data dos factos, nos termos do artigo 159º nºs 6 e 7 do CPP.
- Na fase de julgamento, o tribunal deferiu esse pedido nos seguintes termos (extrato):
«(…)
Nos termos do disposto no art. 351.º, n.º 1 do C.P.C., «[Q]uando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente, ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o restado psíquico daquele».
Por seu turno, o Tribunal pode também ordenar a comparência do perito quanto na audiência se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade diminuída do arguido.
Por último, de acordo com o subsequente n.º 3 «[E]m casos justificados, pode o tribunal requisitar a perícia a estabelecimento especializado.»
No caso em concreto, importa sopesar os seguintes elementos probatórios:
- relatório de exame químico-toxicológico do I.N.M.L.C.F. (ref.ª citius n.º …, de …/2024) que aponta indiciariamente para o facto de, na ocasião em apreço, o arguido ter conduzido a viatura de matrícula … com uma taxa de álcool no sangue de 2,33 g/l (+- 0,30 g/l de margem de erro);
- prova testemunhal que transversalmente relata a circunstância de o arguido se encontrar visivelmente embriagado, embora demonstrasse estar consciente, apresentando um discurso coerente e capacidade normal de locomoção (pelo menos até ao momento em que iniciou a marcha da referida viatura em direcção ao estabelecimento em causa).
Destarte:
a) Após deliberação, determina-se (ainda antes da conclusão da produção dos demais elementos de prova, de modo a evitar deslocações desnecessárias dos diferentes intervenientes processuais) a realização da prova pericial sobre o estado psíquico do arguido, ao abrigo do disposto nos arts. 159.º e 351.º do C.P.P., a cargo do I.N.M.L. (cfr. art. 5.º, n.º 1, da Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto), subordinada aos seguintes quesitos:
1) No momento da prática dos factos relatados na acusação o arguido padecia de alguma anomalia psíquica que justifique um juízo de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída, nomeadamente pelo facto de apresentar uma taxa de álcool no sangue de 2,33 g/l (+- 0,30 g/l de margem de erro)?
2) No momento da prática dos factos constantes da acusação o arguido tinha capacidade para avaliar o desvalor dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação?
3) Em caso de incapacidade de avaliar e/ou se determinar com a avaliação efectuada, o arguido, por força de doença mental/psíquica que padeça, apresenta perigo para terceiros?
b) Notifique o Ministério Público e a Defesa do arguido para, querendo, se pronunciarem sobre a matéria atinente à exposição dos quesitos acima enunciados.
(…)»
- O arguido nada requereu.
- O Gabinete Médico Legal e Forense do … (…) fez o exame pericial e produziu o seguinte relatório, assinado por médica psiquiátrica (extrato):
«DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
De acordo com a avaliação clínica realizada, somos da opinião que o Arguido apresenta sintomatologia compatível com o diagnóstico de Perturbação de Uso de Álcool (CID-10: F 10 OMS, 1992).
Não se apurou que à data dos factos em apreciação nos presentes autos (janeiro de 2024) apresentasse sintomatologia abnorme ou qualquer sintoma psicótico grave, de natureza delirante ou alucinatória que lhe pudesse ter perturbado o sentido da realidade, ou o impedisse de agir com consciência e vontade. Não foi apurada evidência, direta ou indireta, que nos leve a crer que, nessa altura, não tivesse capacidade para avaliar a ilicitude dos factos e/ou para se determinar em função da avaliação feita, motivo pelo qual cremos estarem preenchidos pressupostos médico-legais para IMPUTABILIDADE
Ainda que tal comportamento tenha sido cometido sob o efeito da ingestão de álcool, tal situação não configura, em rigor, uma anomalia psíquica grave e não se trata de uma situação acidental, mesmo que se admita que possa ter ocorrido algum período confusional, o que não nos parece verosímil, o que é certo é que o arguido optou por se colocar em tal situação, motivo pelo qual deverá ser responsabilizado por tal.
Uma vez que concluímos pela imputabilidade do agente, não nos pronunciamos quanto à sua perigosidade, nos termos do art. 91º do C.P., ainda que se possa referir que será da maior importância que permaneça abstinente de consumos.
O Arguido não tem acompanhamento em Consulta de Psiquiatria nem Psicologia no Estabelecimento Prisional.
Encontra-se medicado com:
- …
RESPOSTA AOS QUESITOS
1) Não;
2) Estritamente do ponto de vista médico-legal considera-se que sim;
3) Prejudicado.»
- Notificado deste relatório, o arguido requereu o seguinte (extrato):
«(..)
Salvo melhor entendimento, a perícia é de todo incompleta, sendo que apensa refere que o arguido não tinha qualquer sintomatologia abnorme ou qualquer sintoma psicótico grave, de natureza delirante ou alucinatória que lhe pudesse ter perturbado o sentido da realidade.
O relatório pronuncia-se até sobre questões que não se incluem na sua competência, tal como é notório na seguinte passagem:
-Ainda que tal comportamento tenha sido cometido sob o efeito da ingestão de álcool, tal situação não configura, em rigor, uma anomalia psíquica grave e não se trata de uma situação acidental, mesmo que se admita que possa ter ocorrido algum período confusional, o que não nos parece verosímil, o que é certo é que o arguido optou por se colocar em tal situação, motivo pelo qual deverá ser responsabilizado por tal.
mais refere que:
Uma vez que concluímos pela imputabilidade do agente, não nos pronunciamos quanto à sua perigosidade, nos termos do art. 91º do C.P., ainda que se possa referir que será da maior importância que permaneça abstinente de consumos deixando por responder um quesito, o qual se afigura da maior importância, ainda que se dê como demonstrada a imputabilidade do arguido.
O médico subscritor não mobilizou qualquer escala, critério psicológico ou metodologia para que pudesse responder aos quesitos suscitados, pelo que, não podemos deixar de dar nota ao facto de que o exame foi praticado por quem ou segundo especialidade que não ter competência e metodologia técnica para averiguar sobre os quesitos propostos.
termos em que e seguindo de perto o parecer da Ordem dos psicólogos, o qual se dá por integralmente reproduzido, é a defesa do entendimento que:
(…)
No caso em apreço e sub judice, os argumentos supra citados não se poderiam considerar mais oportunos.
De facto e de direito é notória a incapacidade da perícia realizada por médico e especialidade psiquiátrica, não tendo a mesma utilizado, mobilizado ou convocado qualquer metodologia que, objetiva e cientificamente demonstrasse qual o estado do arguido, se no momento dos factos se encontrava em situação de imputabilidade diminuída ou se ou arguido demonstra perigosidade futura.
Ainda que a defesa tenha requerido perícia psiquiátrica, nos termos e para os efeitos do artigo 159.º n.º 6 e 7, a perícia deverá ser realizada por psicólogo, só assim se demonstrando e esgotando a descoberta da verdade material.
Termos em que deverá ser realizada perícia por profissional na área da psicologia forense, afigurando-se a mesma essencial para e descoberta da verdade material e resposta a todos os quesitos indicados pelo tribunal.»
- Sobre esse requerimento, foi proferido o seguinte despacho, agora sob recurso (integral):
«Notificado do relatório da perícia realizada nos autos, veio o arguido requerer a realização de nova perícia por profissional na área da psicologia forense, por entender que a anterior não respondeu ao quesito atinente à eventual verificação da perigosidade do arguido, bem como em virtude de ter sido realizada sem metodologia técnica e por perito sem competência.
Pronunciando-se sobre esta matéria, o Ministério Público pugnou pelo seu indeferimento.
Vejamos.
A aludida perícia sobre o estado psíquico do arguido foi determinada ao abrigo dos arts. 159.º e 351.º do C.P.P. e realizada pelo INMLCF, I.P. nos termos do disposto no art. 5.º da Lei 45/2004, de 19 de Agosto, por médico psiquiatra.
Do teor da mesma não se vislumbram os vícios apontados pelo arguido – cfr. art. 163.º, n.º 2, do C.P.P.
Por outro lado, a resposta ao quesito atinente à verificação da perigosidade afigurar-se-ia despicienda, à luz do art. 91.º do C.P., face à conclusão de que o arguido é imputável.
Face ao exposto, indefere-se o requerido pelo arguido.»
3.2. Factos provados e não provados e fundamentação do acórdão recorrido, relevantes para a apreciação do recurso principal
2.1 Factos provados:
Da audiência de julgamento resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:
1. No dia 29 de janeiro de 2024, cerca das 20h50m, o arguido, na companhia de outro indivíduo de identidade não concretamente apurada, dirigiu-se ao estabelecimento de restauração e bebidas denominado “…”, sito na Estrada Nacional … (Estrada da …), em …, a fim de ali consumirem bebidas alcoólicas.
2. Face à recusa do funcionário do estabelecimento, BB, em lhes fornecer bebidas gratuitamente, os mesmos agarraram-no pelo colarinho, com a clara intenção de iniciar confronto físico, que não veio a ocorrer em virtude da oposição daquele e da intervenção de terceiros ali presentes.
3. Contrariados nos seus intentos, o arguido, e o outro sujeito de identidade desconhecida, ausentaram-se do local, tendo o primeiro ainda verbalizado, na direção de Leopoldo Fernandes, «já aí venho, vou-te dar um tiro, vocês já vão ver».
4. Volvidos cerca de 10 minutos, pelas 21h30m, o arguido regressou, desta feita sozinho e ao volante de veículo automóvel de marca e modelo …, com a matrícula …, o qual estacionou de frente para a entrada do estabelecimento.
5. Ato contínuo, o arguido saiu do interior do veículo e, dirigindo-se, uma vez mais, a BB, que se encontrava na esplanada, afirmou «vou-te marar», ao que aquele lhe respondeu «vai-te embora», virando-lhe as costas e entrando no estabelecimento.
6. Nessa altura, encontravam-se no exterior, na zona da esplanada:
- CC, posicionado mais próximo da parede lateral esquerda (perspetiva de quem está de frente para a entrada do estabelecimento);
- DD, companheira do primeiro, que conversava com EE, próxima da porta de entrada, posicionados ambos mais para o lado direito (tendo por referência a mesma perspetiva);
- FF e GG, que conversavam junto à porta de entrada do estabelecimento; e
- HH, este último um pouco mais recuado da entrada, posicionado junto à parede lateral esquerda.
7. Por sua vez, no interior do estabelecimento encontravam-se II, encostado ao balcão, de frente para a porta de entrada, e a sua esposa JJ, sentada a uma mesa ali existente, de costas voltadas para a mesma entrada, sendo que o mencionado BB, após ali entrar, contornou o balcão e acedeu ao espaço interior do mesmo, posicionando-se junto à zona de acesso à cozinha.
8. Em reação à conduta deste último, descrita em 5., e na senda de o seguir e alcançar, o arguido introduziu-se novamente na viatura que conduzira até ali, iniciando a marcha, apontou-a na direção da entrada do estabelecimento (trajetória que englobava a zona onde se encontravam, no exterior, as seis pessoas mencionadas em 6. e, no interior, o casal mencionado em 7.) e acelerou, assim colhendo e sucessivamente:
- o ofendido CC, que rebolou sobre o capô da viatura, vindo a cair no chão, em decúbito ventral, junto à parede lateral esquerda da esplanada;
- os ofendidos FF e GG, que seguiram até ao interior do estabelecimento, sobre o capô do veículo, o qual, no trajeto, embateu contra a porta / vitrine de vidro delimitadora, assim a estilhaçando e transpondo, arrastando na sua frente mesas e cadeiras, tendo aqueles sido subsequentemente projetados em direção ao balcão aquando do embate da viatura no mesmo;
- o ofendido II, que ficou entalado entre o balcão existente no interior do estabelecimento e a viatura, que somente no momento do embate contra o referido balcão se imobilizou.
9. O veículo conduzido pelo arguido só não colheu EE e HH, dado que estes lograram afastar-se a tempo da sua trajetória, tendo o último ainda auxiliado DD a afastar-se da mesma, empurrando-a na direção de uma mesa ali existente, lado direito da esplanada (perspetiva de quem se encontra de frente para a entrada do estabelecimento).
10. De igual forma, a viatura conduzida pelo arguido só não atingiu diretamente JJ, em virtude de a mesma ter sido protegida por uma parede existente, no interior, junto à mesa onde se encontrava sentada, e não atingiu BB dado que este, logo que entrou no estabelecimento, contornou o balcão ali existente, acedendo ao espaço interior do mesmo, estando assim protegido pela interposição da referida estrutura.
11. Logo após o embate contra o balcão do estabelecimento, o arguido introduziu a marcha-atrás, na senda de encetar fuga do local.
12. Enquanto recuava na direção da saída, o arguido ia colhendo novamente, com a viatura, o ofendido CC, que ainda se encontrava prostrado no chão da esplanada, e a sua companheira DD, que, entretanto, acorrera em seu auxílio, pelo que o atropelamento só não se verificou dada a rápida reação de CC, que empurrou a companheira contra a parede, colocando-se, ele próprio, encostado à mesma.
13. A viatura conduzida pelo arguido só se deteve após o embate no vértice traseiro e na lateral posterior direita de veículo de matrícula …, propriedade de GG, que se encontrava estacionado junto à entrada do estabelecimento, paralelamente ao mesmo.
14. O arguido foi então impedido, pelos civis presentes, de abandonar o local, tendo sido retido e subsequentemente entregue a elementos do Posto Territorial de … da G.N.R., que procederam à sua detenção e subsequente libertação.
15. Por ostentar diversos ferimentos, o arguido foi transportado para o Hospital … de …, onde deu entrada, no serviço de urgência, pelas 22h38m do dia 29/01/2024, sob o episódio n.º …, e donde se ausentou na madrugada do dia seguinte, sem que lhe tivesse sido dada alta.
16. Acresce que, nas sobreditas circunstâncias espácio-temporais, o arguido conduziu a viatura de matrícula … com uma taxa de álcool no sangue registada de 2,33 g/l (+- 0,30 g/l de margem de erro).
17. As palavras proferidas pelo arguido na direção do ofendido BB, descritas em 3., atento o contexto e o tom sério e credível com que as verbalizou, provocaram neste receio e intranquilidade, perante a possibilidade de que aquele pudesse vir a concretizar os intentos que anunciara, atentatórios da sua vida.
18. Face à atuação do arguido descrita em 8., foram provocados danos vários no estabelecimento gerido por KK, denominado “…”, sobretudo ao nível da porta, balcões e recheio, cujo prejuízo patrimonial ascende à importância de € 9.561,00 (nove mil, quinhentos e sessenta e um euros).
19. Do embate referido em 13. resultaram estragos na viatura de matrícula …, sobretudo ao nível do para-choques e guarda lamas posterior direito, cujo valor de reparação orçado ascende a € 3.000,00 (três mil euros).
20. Em virtude da atuação do arguido descrita em 8. a 12.:
- o ofendido CC sofreu, e para além de fenómenos dolorosos nas zonas atingidas, traumatismo torácico e lombar esquerdo, do cotovelo direito e dos membros inferiores (escoriações no joelho direito e perna esquerda).
Na sequência da ocorrência, o ofendido foi assistido no local pelo INEM.
- o ofendido GG sofreu, e para além de fenómenos dolorosos nas zonas atingidas, traumatismo facial (escoriações com vidros), do polegar direito, torácico e dorsal e do membro inferior esquerdo (entorse da TT).
O ofendido foi transportado para o Hospital … de …, com vista a ser medicamente assistido.
- o ofendido FF sofreu, e para além de fenómenos dolorosos nas zonas atingidas, traumatismo torácico esquerdo (após embate no balcão) e dos membros inferiores (para-choques contra o balcão).
Na sequência da ocorrência, o ofendido foi assistido no local pelo INEM.
- o ofendido II sofreu, e para além de fenómenos dolorosos nas zonas atingidas, traumatismo da mão direita (escoriações em vidro) e perna esquerda.
Na sequência da ocorrência, o ofendido foi assistido no serviço de urgência do Hospital de …, onde deu entrada pelas 00h01m do dia 30/01/2024, sob o episódio de urgência n.º ...
- a ofendida DD sofreu, e para além de fenómenos dolorosos nas zonas atingidas, lesões num dos braços e escoriações várias nas mãos.
Na sequência da ocorrência, o ofendido foi assistido no serviço de urgência do Hospital de …, onde deu entrada pelas 00h01m do dia 30/01/2024, sob o episódio de urgência n.º ….
- a ofendida DD sofreu, e para além de fenómenos dolorosos nas zonas atingidas, lesões num dos braços e escoriações várias nas mãos.
Na sequência da ocorrência, a ofendida foi assistida no local pelo INEM.
21. O arguido sabia que ao dirigir, ao ofendido BB, palavras de tal jaez (factos descritos em 3.), atuava de forma adequada a incutir-lhe receio pela sua vida, atingindo-o no seu sentimento de segurança e, logo, perturbando a respetiva liberdade de ação e decisão; intento que o arguido quis, representou e logrou alcançar.
22. Com a conduta descrita em 8., o arguido sabia que, como queria, provocava estragos de valor elevado em bens alheios e que o fazia contra a vontade de quem de direito; o que, não obstante, concretizou.
23. Mais estava o arguido ciente de que, ao recuar com a viatura na direção do exterior do estabelecimento, com vista à fuga do local, estando ali estacionado outro veículo, a ocupar parcialmente espaço que coincidia com a sua trajetória, poderia vir a embater no mesmo, assim lhe causando estragos, danificando bem de terceiro, contra a respetiva vontade; possibilidade que previu e resultado com o qual se conformou; assim o intentando e concretizando.
24. Sabia também o arguido que, ao atuar como atuou, usando um meio de significativa perigosidade (veículo automóvel), que dirigiu violentamente contra pessoas que se encontravam no exterior e interior daquele estabelecimento, atentaria contra o seu corpo e a sua saúde, podendo mesmo causar-lhes a morte; possibilidade que previu e resultado (morte) com o qual se conformou e que só não se consumou por razões que lhe foram alheias; em nenhum momento se tendo coibido de agir em tais moldes, assim, e de tudo ciente, dificultando consideravelmente a defesa dos ofendidos e atingindo-os de forma indiscriminada.
25. E fê-lo, querendo mesmo, com recurso ao sobredito veículo automóvel (sabedor da sua especial perigosidade, precedentemente descrita), atentar contra o corpo, a saúde e a vida do ofendido BB, com quem se desentendera momentos antes; o que, de tudo ciente, intentou e só não concretizou por razões alheias à sua vontade.
26. O arguido sabia que um desentendimento ocorrido com o funcionário do estabelecimento não poderia justificar tais atos, tendo sido determinado por um motivo incompreensível e manifestamente insignificante.
27. Sabia ainda o arguido que, antes de iniciar o exercício da condução, havia ingerido bebidas alcoólicas em quantidade que faria ultrapassar o limite legal de 1,2 g/l, pelo que não podia conduzir o sobredito veículo em tais condições.
28. Ainda assim, quis e conduziu a viatura naquelas circunstâncias.
29. Em tudo, agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
30. Do certificado do registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:
i) O arguido foi condenado nos autos de processo sumário n.º 1/11.3…, que correram os seus termos no Tribunal Judicial de … – ….º Juízo, por factos praticados a 10-01-2011 e sentença transitada em julgado em 10-02-2011, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 70 dias de multa. A pena foi extinta com data de 06-09-2011;
ii) O arguido foi condenado nos autos de processo n.º DUR-…/2011, que correram os seus termos no Tribunal Judicial de … (Jdo. 1a. Inst. e Instruccion n. 5 de …), por sentença transitada em julgado em 29-08-2011, pela prática de um crime contra a ordem e a tranquilidade públicas, na pena de 02 meses de prisão, suspensa na sua execução;
iii) O arguido foi condenado nos autos de processo abreviado n.º 51/13.5…, que correram os seus termos no Tribunal Judicial de … – ….º Juízo, por factos praticados a 18-12-2013 e sentença transitada em julgado em 14-07-2014, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 180 dias de multa. A pena foi extinta, pelo cumprimento, com data de 02-12-2015;
iv) O arguido foi condenado nos autos de processo abreviado n.º 27/14.5…, que correram os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …, por factos praticados a 23-05-2014 e sentença transitada em julgado em 01-12-2014, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 100 dias de multa. A pena foi extinta pelo pagamento com data de 13-02-2017;
v) O arguido foi condenado nos autos de processo sumaríssimo n.º 43/15.0…, que correram os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Competência Genérica de …, por factos praticados a 17-12-2015 e sentença transitada em julgado em 26-05-2017, pela prática de um crime de furto simples, na pena de 140 dias de multa. A pena de multa foi substituída por 140 horas de trabalho a favor da comunidade. A pena foi extinta, pelo cumprimento, com data de 08-04-2019;
vi) O arguido foi condenado nos autos de processo comum n.º 60/20.8…, que correram os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …, por factos praticados a 04-08-2020 e sentença transitada em julgado em 16-09-2021, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 06 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 01 ano, sujeita à condição de o arguido no período da suspensão entregar 600 euros aos Bombeiros Voluntários de …. A pena foi extinta com data de 22-09-2022;
vii) O arguido foi condenado nos autos de processo comum n.º 277/20.5…, que correram os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …, por factos praticados a 18-02-2020 e sentença transitada em julgado em 11-09-2022, pela prática de um crime de injúria agravada, na pena de 03 meses e 15 dias de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 01 ano, sujeita a regime de prova;
viii) O arguido foi condenado nos autos de processo comum n.º 152/20.3…, que correram os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca dos … – Juízo Local Criminal de …, por factos praticados a 22-02-2020 e sentença transitada em julgado a 30-04-2024, pela prática de um crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou coisa achada, na pena de 90 dias de multa, à taxa de 6,00€, substituída por prisão subsidiária, declarada extinta em 25-06-2024.
31. O arguido é o terceiro mais velho, de uma fratria de seis elementos. Autonomizou-se do agregado familiar de origem, aos 18 anos de idade, de acordo com os valores vigentes no seu grupo cultural.
32. À data dos factos, o agregado familiar do arguido era constituído pelo próprio, pela companheira LL (39) e pelos 5 filhos; MM (20), NN (16), OO (14), PP (11) e QQ (6).
33. Quando em liberdade, AA residia com o seu agregado familiar em habitação social, propriedade do Município de …, dotada de infraestruturas básicas, mas de dimensão desadequada para o número de residentes, pela qual pagam 40,00€ a título de renda mensal.
34. O agregado familiar em causa conta com o valor de 400,00€, auferido pela companheira a título de rendimento social de inserção, bem como 450,00€ a título de abono de família. O arguido trabalha sazonalmente em …, sem vinculo laboral, em atividades ligadas à viticultura, com períodos de tempo que podem oscilar entre dois meses ou três, nesse período aufere cerca de 900€ mês.
35. O arguido concluiu o 4.º ano de escolaridade. No entanto não sabe ler e escreve o nome com dificuldade.
36. AA, desde muito novo que apresenta hábitos aditivos ao nível das bebidas alcoólicas, tendo a situação piorado até à sua reclusão.
37. Dentro do estabelecimento prisional o mesmo tem mantido comportamento adequado e correto para com os colegas e agentes prisionais, encontrando-se a frequentar um programa EFA, para obter o 6º ano.
38. Dentro do estabelecimento prisional o mesmo tem mantido comportamento adequado e correto para com os colegas e agentes prisionais, frequentando o RCVV afim de adquirir o 4º ano de escolaridade.
2.2) Factos não provados
a) Na ocasião descrita no ponto 5), o arguido, dirigindo-se ao ofendido BB, dirigiu-lhe a seguinte expressão: «vou dar- te um tiro».
A demais matéria não foi objecto de resposta uma vez que tem carácter conclusivo, constitui considerações de direito, ou não têm relevância para a decisão da causa.
2.3) Motivação da decisão da matéria de facto:
A decisão da matéria de facto resultou da análise crítica e conjugada do acervo probatório produzido em sede de audiência de julgamento, nomeadamente das declarações do arguido (audiência de julgamento e debate instrutório); prova pericial, a saber: relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal (CC) – fls. 590-591, relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal (GG) – fls. 594-595, relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal (II) – fls. 598-599, relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal (JJ) – fls. 602-603, relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal (FF) – fls. 606-607, relatório de exame químico-toxicológico elaborado pelo I.N.M.L.C.F. – ref.ª citius n.º …, de …/2024, relatório de perícia psiquiátrica forense elaborado pelo I.N.M.L.C.F. (fls. 739-742); reconstituição dos factos: auto de reconstituição (versão arguido) – fls. 514-521, auto de reconstituição (versão testemunhas/ofendidos) – fls. 522-535; depoimento das testemunhas, bem como da prova documental reunida nos autos, designadamente relatório de inspeção judiciária, fls. 181-199, folha de suporte (certificado de matrícula) – fls. 200, relatório de recolha de vestígios – fls. 202-227, auto de notícia e anexo – fls. 230-232, relatório para a polícia (ULSNA) – fls. 241, análise para quantificação da taxa de álcool no sangue e exame de confirmação de substâncias psicotrópicas – fls. 242-244, relatório de urgência (II) – fls. 252, auto de apreensão de veículo – fls. 275, ficha de registo automóvel (matrícula …) – fls. 277-278, autos de apreensão (zaragatoas de algodão com vestígios hemáticos e imagens de videovigilância) – fls. 279-281, auto de visionamento de registo de imagens – fls. 282-285, relatório de ocorrência C.B. … – fls. 383-384, relatório de averiguação/peritagem – fls. 478-499, relatório de reconstituição – fls. 537-563, auto de notícia e demais documentação anexa (NUIPC: 9/24.9GGPTG) – ref.ª citius n.º …, de 19/07/2024, orçamento de reparação do veículo automóvel de matrícula … – ref.ª citius n.º…, de 22/07/2024, certificado do registo criminal e relatório social do arguido.
A prova descrita foi valorada e concatenada de acordo com as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador, à luz do disposto no artigo 127.º do C.P.
Os factos contidos nos pontos 1) a 5) resultaram provados das declarações dos ofendidos GG, FF, DD, BB, CC que de modo, espontâneo, isento, convergente (no essencial) e credível, sem demonstrar qualquer sanha persecutório para com o arguido (bem como pelo contrário, mormente tendo em conta a reacção ao pedido de desculpas dirigido pelo arguido, confirmando esta matéria ao Tribunal.
Diga-se, ainda, no que concerne à expressão proferida pelo arguido, reflectida no ponto 5), foram essenciais as declarações do ofendido BB, visado pelas mesmas, que, confirmando a afirmação do arguido plasmada no ponto 3), referiu, a este propósito, que o arguido lhe terá dito que o ia marar (o que significa (i) enlouquecer ou (ii) morrer – dicionário infopédia).
Em todo o caso, o ofendido entendeu aquela expressão como, vou «cascar-te» (nas suas palavras), o que, por sua vez significa que o arguido pretendia agredi-lo fisicamente.
Neste ponto, o depoimento da testemunha DD divergiu do oferecido pelo ofendido. Efectivamente, esta testemunha confirmou em audiência de julgamento a versão da pronúncia.
Porém, não obstante a credibilidade que o depoimento desta testemunha mereceu, quanto a este tema, entendeu o Tribunal reconhecer maior fidedignidade ao depoimento da testemunha BB por ter sido este o visado pelas referidas expressões. Na verdade, esta circunstância (tendo em conta o impacto emocional que terá causado no ofendido), terá a susceptibilidade de melhor sedimentar o processo de retenção de memória da testemunha,
A matéria vertida nos pontos 6) a 14) resultou da conjugação do depoimento dos ofendidos e das testemunhas RR e SS (militares da G.N.R. que participaram nas subsequentes diligências policiais), que prestaram depoimento convergente no que toca ao cerne da dinâmica, contexto espácio-temporal, e protagonistas dos factos em causa, bem como do auto de reconstituição (versão das testemunhas /ofendidos) – fls. 522-535, corroborado em parte pelo auto de reconstituição (versão do arguido – fls. 514-521), auto de notícia e relatório de ocorrência.
Aos elementos probatórios referidos acresce, com particular importância, o auto de visionamento de imagens (gravação de um vídeo captado pela câmara instalado no estabelecimento comercial em causa) – cfr. fls. 282-285).
Os factos contidos no ponto 16) defluem do relatório de exame químico-toxicológico do I.N.M.L.C.F., acima referido.
O ponto 17) resultou demonstrado face ao depoimento do ofendido BB que, não obstante apresentar alguma dificuldade ao nível da clareza do discurso, acabou por referir que tomou como real a possibilidade de o arguido encetar um tipo de conduta visando provocar-lhe mal.
Note-se, sobre este ponto, que o ofendido relatou ao Tribunal que terá perspectivado a necessidade de ter que se defender, mencionando que, naquela ocasião e para esse efeito, contava com o apoio dos seus familiares e amigos. Por outro lado, a testemunha explicou que, em virtude de o arguido se encontrar embriagado, «tudo poderia acontecer».
Não se olvida que o ofendido chegou a afirmar ao longo do seu depoimento que, naquela ocasião «não levou muito a sério». Contudo, atendendo ao sentido global do seu depoimento, tal afirmação terá surgido da necessidade de sinalizar perante todos os presentes em audiência de julgamento que era bem capaz de se defender, se tal fosse necessário (o que foi transparecendo ao longo do seu depoimento), aliado a algumas dificuldades de expressão verbal, já apontadas.
A matéria factual vertida no ponto 18) ficou demonstrada pelo relatório de averiguação / peritagem – fls. 478-499, cujo teor foi explicado e confirmado pela testemunha TT, perito avaliador responsável pela sua elaboração.
Quanto ao ponto 19), o Tribunal fundou a sua convicção no respectivo orçamento de reparação (ref.ª …, de 22-07-2024).
A matéria contida no ponto 20) decorreu da análise dos respectivos relatórios de perícia de avaliação corporal, acima mencionados.
No que respeita aos factos ínsitos nos pontos 21) a 29), o Tribunal alicerçou a sua decisão na ponderação do iter criminis, bem como na análise da restante factualidade dada como provada, conjugada entre si de forma crítica, e sopesada segundo as regras de experiência comum e à luz do princípio da livre apreciação da prova.
De facto, afigura-se crível, à luz do normal acontecer das coisas, tendo como padrão o homem médio, que o arguido tivesse agido do modo descrito com a intenção de (i) incutir medo no ofendido BB, (ii) provocar estragos de valor avultado em bens de terceiro; (iii) tirar a vida a BB, usando para o efeito um meio que seria particularmente idóneo a aumentar a potencialidade do êxito da sua conduta; (iv) conformando-se com a possibilidade de tirar a vida aos restantes 8 ofendidos – factualidade que perspectivou com acuidade, quer relativamente aos ofendidos que se encontravam na esplanada, quer relativamente aos ofendidos que se encontravam no interior – note-se que na primeira ocasião em que o arguido se deslocou àquele café, o arguido esteve no seu interior (atente-se no depoimento da testemunha DD) pelo que seria impossível não ter a noção de que poderiam estar funcionários e clientes no seu interior (aliás, o ofendido BB estava no seu interior, facto que terá motivado o arguido a direcionar a viatura para aquele local, com o ímpeto de se vingar do mesmo após uma discussão sobre um assunto insignificante – recusa em vender cerveja); (v) sabendo que não estava em condições de conduzir o veículo em causa face ao álcool que tinha ingerido.
Consequentemente, o arguido sabia necessariamente que o comportamento em causa era proibido e punido por lei.
Chegados aqui, importa notar que, naquela ocasião, o arguido tinha capacidade para avaliar o desvalor da sua conduta e desvalor dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação (cfr. relatório pericial sobre o estado psíquico do arguido, determinada ao abrigo dos arts. 159.º e 351.º do C.P.P. e realizada pelo INMLCF, I.P. nos termos do disposto no art. 5.º da Lei 45/2004, de 19 de Agosto, por médico psiquiatra - fls. 739 a 742).
Sobre esta matéria, alega a defesa que o arguido estava de tal modo embriagado que não tinha qualquer noção de que naquele momento poderia ter agido de uma outra qualquer maneira ou de forma diferente (artigo 25.º da contestação).
Contudo, tal conclusão não encontrou respaldo em nenhum dos elementos probatórios carreados para os autos, para além das frágeis declarações do próprio arguido que infra melhor se analisarão.
Bem pelo contrário, as testemunhas ouvidas em audiência de julgamento foram unânimes em enquadrar o estado de embriaguez do arguido num grau médio, sem relatar qualquer facto indiciário de um grau elevado susceptível de alicerçar a tese da defesa acerca de uma eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido.
A este propósito, relembre-se os seguintes segmentos da prova testemunhal:
- GG referiu que o arguido estava embriagado, mas que não o tinha visto cambalear;
- FF afirmou que o mesmo «estava um pouco adiantado»;
- DD mencionou que, momentos antes, na primeira ocasião (a testemunha referiu que entre a 1.ª ocasião e a 2.ª ocasião em que o arguido se dirigiu ao referido estabelecimento comercial teria decorrido um período de 20 minutos), o arguido tinha conversado consigo e com o seu marido, apresentando um discurso coerente, recordando-se inclusivamente de um episódio passado da vida da testemunha;
- EE afirmou que o arguido se encontrava embriagado, mas não era daquelas pessoas que estavam a cair;
- UU, por seu turno, referiu que o arguido estava um bocadinho bêbado.
Estes elementos de prova permitem alcançar, reforçando o valor probatório da perícia que, em momento anterior aos dos factos atinentes à conduta relacionada com a condução do veículo, o arguido apresentava-se embriagado, mas aparentemente consciente (no sentido de apresentar um comportamento incompatível com um estado de embriaguez elevado que lhe afectasse irremediavelmente o seu discernimento).
A própria conduta em análise aponta para a necessidade de o arguido se encontrar munido de capacidade intelectual e motora, de modo a iniciar o acto de condução, apontando e dirigindo o veículo para o interior do estabelecimento comercial, logrando, assim, concretizar os seus intentos.
Acresce que, a conduta posterior do arguido transparece, também, a conclusão acima plasmada quanto à sua imputabilidade, uma vez que, após ter chocado com o balcão do estabelecimento comercial, iniciou novamente a marcha do veículo, em marcha a ré, tentando fugir do local, o que não conseguiu face à iniciativa das pessoas que ali se encontravam.
Esta circunstância demonstra que o arguido se apercebeu do desvalor da sua conduta, reagindo de modo imediato com o fito de se eximir à subsequente repressão.
Por seu turno, quer em audiência de julgamento, quer na fase de instrução, as declarações do arguido revelaram-se vagas, inconsistentes, centradas (de modo evidente) no propósito de evidenciar que, naquela ocasião, estava demasiado embriagado para ter noção do que se passou, e fugidias (o arguido reiteradamente solicitou para repetir as perguntas, de modo a ganhar tempo para pensar no modo de direcionar a sua resposta, demonstrando falta de espontaneidade).
Para tanto, inicialmente, o arguido tentou reduzir o seu depoimento ao facto de se lembrar da discussão com o ofendido BB, para depois afirmar que não se lembrava de mais nada.
Todavia, instado a explicar o sucedido, o arguido logrou explicar o tipo e quantidade de álcool que bebeu (com particular acuidade na fase de instrução – recordando-se até da marca e tamanho da cerveja); o encadeamento dos factos (as circunstâncias atinentes à primeira e segunda deslocação); bem como o motivo que levou à discussão com o ofendido Leopoldo.
O acima expendido torna a tese do arguido inverosímil, já que não se percebe como seria possível aquele lograr reter memória pormenorizada dos factos imediatamente anteriores à conduta em censura, caso estivesse, como afirmou, totalmente embriagado e desprovido da capacidade de entendimento.
Veja-se também que as declarações do arguido, no global, também revelaram inconsistência, prejudicando ainda mais a sua credibilidade.
Com efeito, inicialmente o arguido referiu que após a discussão com o BB não se lembrava de mais nada.
Todavia, em sede de debate instrutório, após ter sido questionado acerca dos factos, o arguido acabou por, posteriormente, afirmar, agora, que não se lembra de mais nada a partir do momento em que foi agredido (após ter encetado sem sucesso a tentativa de fuga).
Refira-se, ainda, que esta incongruência suscita necessariamente estranheza, tendo em conta que a ausência de memória, constitui o principal alicerce da sua defesa, sendo expectável que o arguido apresentasse um discurso sólido e coerente, pelo menos quanto a essa matéria.
Destarte, face à sua inconsistência, incoerência, inverosimilhança, não se vislumbrando ainda qualquer amparo de outro elemento probatório, sendo outrossim totalmente contrariado pelo restante acervo probatório, mormente da prova pericial, concluiu o Tribunal pela total falta de credibilidade das declarações prestadas pelo arguido nos presentes autos.
No que diz respeito aos antecedentes criminais, descrito no ponto 30), o Tribunal baseou a sua convicção no respectivo certificado do registo criminal.
Para dar como provada a factualidade relativa às condições pessoais e económicas do arguido descritas nos pontos 31) a 38), o Tribunal louvou-se no relatório social elaborado nos autos pela D.G.R.S.P.
A factualidade dada como não provada resultou da análise da prova descrita a propósito da fundamentação subjacente ao ponto 5).
3.3. Recurso interlocutório – segunda perícia
O que está aqui em causa, em suma, é saber se o tribunal tinha de deferir a realização da segunda perícia requerida pelo arguido. Tendo em conta os contornos da controvérsia, o problema desdobra-se em três aspetos: (i) se a perícia foi realizada por entidade competente, (ii) se o relatório pericial está suficientemente fundamentado e respondeu às questões colocadas e (iii) se estavam verificados os pressupostos do artigo 158º nº 1 do CPP para a realização de nova perícia ou renovação da anterior.
Quanto ao primeiro ponto, o recorrente defende que o exame pericial devia ter sido realizado por um psicólogo e não por um médico psiquiatra.
A expressão “anomalia psíquica” usada no artigo 20º do CP é um conceito normativo não necessariamente coincidente com o conceito médico de “doença mental”. O legislador optou por não fornecer uma definição da anomalia psíquica, precisamente para abranger outras situações que não sejam qualificadas medicamente como doenças mentais, mas que possam levar à declaração de inimputabilidade. Anomalia psíquica englobará, portanto, qualquer alteração das facultades intelectuais cognitivas ou sensoriais suscetível de privar ou diminuir sensivelmente a capacidade de avaliação da ilicitude do facto ou de determinação de acordo com essa avaliação.
A intoxicação alcoólica constitui uma psicose exógena, reconhecida como doença mental pela Organização Mundial de Saúde, no documento Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, de 1992, como se dá nota no relatório pericial que se encontra no processo (Perturbação de Uso de Álcool (CID-10: F 10 OMS, 1992).
Daqui resulta que a perícia psiquiátrica é a adequada para fazer o diagnóstico médico da existência de uma doença mental resultante do estado de embriaguez e determinante da situação incapacidade prevista no referido artigo 20º.
Sendo assim, de acordo com a lei vigente, é manifesto que o exame pericial requerido pelo arguido se enquadra nas perícias médico-legais reguladas no artigo 159º do CPP (cfr. o disposto expressamente no seu nº 6) e que a entidade competente para a realizar é o Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), mais concretamente, no caso, o Serviço de Clínica e Patologia Forense do Gabinete Médico legal e Forense do … (…), por força das disposições conjugadas dos artigos 2º nº 1 e 24º nºs 1 e 2 do RJPMLF, aprovado pela Lei 45/2004, e artigo 9º nº 2 al. b) da Portaria 19/2013. E de acordo com o disposto no artigo 24º nº 1 do RJPMLF, o exame é realizado por um médico perito, que, tratando-se de perícia de psiquiatria, não pode deixar de ser um psiquiatra. É certo que o artigo 159º nº 6 do CPP permite que nas perícias relativas a questões psiquiátricas participem especialistas em psicologia e criminologia. Simplesmente, é ao INML que compete decidir sobre a participação desses especialistas, atento o que dispõem os artigos 2º nº 4 e 5º nº 1 do RJPMLF.
Cremos que a argumentação do recorrente assenta num equívoco. O parecer da Ordem dos Psicólogos em que se apoia, que defende uma alteração legislativa no sentido da perícia prevista no artigo 160º do CPP dever ser obrigatoriamente realizada por psicólogos, refere-se às perícias sobre a personalidade e não às perícias psiquiátricas. A perícia sobre a personalidade visa avaliar as características psíquicas e comportamentais do arguido, independentes de causas patológicas, e o seu grau de socialização, nomeadamente para a decisão sobre a revogação da prisão preventiva, a culpa e a determinação da sanção. Não se trata, portanto, da perícia adequada para avaliar uma eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, em resultado de uma causa patológica, como a intoxicação alcoólica.
Assim, mesmo que houvesse lugar à realização de uma nova perícia, ao contrário do sustentado no recurso, a mesma haveria de ser uma perícia psiquiátrica, no âmbito do artigo 159º do CPP, e não uma perícia sobre a personalidade, no âmbito do artigo 160º do CPP.
No que respeita ao seguindo ponto, não vemos como possa considerar-se que o relatório pericial não se encontra fundamentado e não deu resposta a todas as questões colocadas pelo tribunal.
O relatório dá nota das fontes de informação que foram usadas: análise da documentação do processo e exame clínico psiquiátrico do arguido, descreve a situação do arguido, conclui que o mesmo apresenta sintomas de doença psiquiátrica compatível com o diagnóstico de perturbação de uso de álcool e conclui que à data dos factos não se verificava uma situação de incapacidade de avaliação da ilicitude ou de determinação de acordo com essa avaliação.
Depois, em resultado dessas conclusões, que se encontram suficientemente motivadas, respondeu aos quesitos colocados pelo tribunal:
«1) No momento da prática dos factos relatados na acusação o arguido padecia de alguma anomalia psíquica que justifique um juízo de inimputabilidade ou de imputabilidade Processo nº 2025/019045.RQ1 diminuída, nomeadamente pelo facto de apresentar uma taxa de álcool no sangue de 2,33g/l (+-0,30g/ de margem de erro)?
Não.
2) No momento da prática dos factos constantes da acusação o arguido tinha capacidade para avaliar o desvalor dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação?
Estritamente do ponto de vista médico-legal considera-se que sim.
3) Em caso de incapacidade de avaliar e/ou se determinar com a avaliação efetuada, o arguido, por força de doença mental/psíquica que padeça, apresenta perigo para terceiros?
Prejudicado»
Não se percebe como pode o recorrente afirmar que a perícia não foi fundamentada e muito menos como argumenta que não respondeu a todas as questões. O terceiro quesito colocado pelo tribunal, relativo à perigosidade, era condicional. A questão só tinha interesse no caso de se concluir pela inimputabilidade, visto que nessas situações a maior ou menor perigosidade do agente do facto pode influir na decisão final. Tendo-se concluído pela imputabilidade, a terceira questão tornou-se inútil e a resposta ficou prejudicada. Por fim, a propósito do terceiro ponto, afinal o mais importante, interessa ver se está verificado o requisito material do artigo 158º nº 1 do CP para o tribunal ordenar a realização de uma segunda perícia: «isso se revelar de interesse para a descoberta da verdade».
Lendo o acórdão recorrido, torna-se logo evidente que a realização de uma segunda perícia não tinha qualquer justificação, por ser inócua para se decidir o que estava em causa, que era apenas saber se o arguido, à data dos crimes, estava incapacitado de avaliar a ilicitude da sua ação ou de se determinar de acordo com essa avaliação. O relatório pericial dá uma resposta inequívoca. Mas, para além disso, existem outros elementos de ponderação corroborantes da prova pericial, que afastaram por completo qualquer dúvida sobre a imputabilidade do arguido. As testemunhas disseram que ele não cambaleava e tinha um discurso coerente e com memória, o que revela atuação consciente. Ele conduziu e apontou o automóvel para o interior do estabelecimento, o que revela intencionalidade. Ele tentou fugir do local, o que mostra perceção do desvalor. Em tribunal, sabia o que tinha bebido e em que quantidades, explicou o essencial da dinâmica dos factos e o motivo que gerou a discussão que desencadeou o seu comportamento. Com a prova pericial e os elementos corroborantes de que o tribunal dispunha, não existia qualquer indício de que o arguido pudesse ter praticado os factos em estado de inimputabilidade que tornasse necessário, no interesse da descoberta da verdade, ordenar a realização de um segundo exame pericial.
Em face do exposto, o recurso interlocutório é improcedente.
3.4. Recurso principal
3.4.1. Omissão de pronúncia
A sentença (ou, no caso, o acórdão) que deixar de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, é nula, por força do disposto no artigo 379º nº 1 al. c) do CPP.
No recurso, afirma-se que a decisão recorrida incorreu em omissão de pronúncia sobre duas questões que se encontravam alegadas na contestação: (i) a subsunção dos factos no crime do artigo 295º do CP e (ii) o concurso aparente nos crimes de homicídio.
A propósito do primeiro ponto, lê-se no acórdão o seguinte:
«Por último, diga-se, ainda relativamente à qualificação jurídica dos factos que, tendo em conta a factualidade dada como provada na matéria atinente ao elemento subejctivo dos crimes em apreço, será de rejeitar a subsunção da matéria em apreço no crime de embriaguez e intoxicação p.p. no art. 295.º do C.P.»
É assim manifesto que o tribunal não deixou de se pronunciar sobre a questão que lhe tinha sido colocada. Afirmou que, face aos factos provados, era de rejeitar a subsunção no crime do artigo 295º do CP.
E é inteiramente verdade. Tendo-se provado que o arguido atuou de forma dolosa e culposa, isto é, conhecendo os elementos dos tipos de crime, atuando com o propósito de os consumar, com liberdade de atuação e determinação e ciente da proibição legal (factos dos pontos 21 a 29), a sua conduta nunca se poderia enquadrar no crime de embriaguez e intoxicação, pois este exige que o agente tenha praticado os factos colocado num estado de inimputabilidade derivado da ingestão de bebida alcoólica.
O recorrente confundiu omissão de pronúncia com pronúncia favorável. O acórdão recorrido analisou a questão por si colocada. Simplesmente, não o fez no sentido de lhe dar razão. Não há, portanto, omissão de pronúncia.
A propósito do segundo ponto, do concurso aparente de crimes, o arguido defendeu na contestação que apenas poderia ter cometido um crime de homicídio, de acordo com o critério da pluralidade de processos resolutivos, na exata medida da seguinte interrogação: «quis e previu que a sua ação atentaria contra a vida de 9 pessoas, sendo ainda certo que não seria ao arguido possível perceber quantas pessoas se encontravam no experior e no interior do estabelecimento comercial?».
No acórdão sob recurso, depois de se identificar no relatório a questão - «O arguido deduziu contestação (…) propugnando: (…) inexistência de um concurso de crimes no que respeita aos crimes de homicídio» e de se considerar que foram praticados «os 9 crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, de que vinha pronunciado», concluiu-se que «os crimes cometidos pelo arguido se encontram numa relação de concurso efectivo».
Em primeiro lugar, o recurso confunde impugnação dos factos provados e impugnação da sua qualificação jurídica. Não se pode questionar a qualificação jurídica dos crimes com base numa factualidade diferente daquela que se provou, se esta não for impugnada primeiro. Ora, não tendo o recorrente impugnado os factos provados do ponto 24, dos quais resulta que atuou representando a possibilidade de atropelar mortalmente as nove vítimas, a sua interrogação perde qualquer sentido.
No que respeita à qualificação jurídica dos factos que deu como provados, é certo que o tribunal não discutiu ao detalhe os argumentos da contestação no sentido de afastar a existência do chamado concurso aparente nos crimes de homicídio. Ao escrever que os crimes estão numa relação de concurso efetivo, deixou claro que não aderia à tese sustentada pelo recorrente. Porém, nesta parte, a fundamentação é demasiado escassa e concede-se que o dever de pronúncia que impendia sobre o tribunal, de se pronunciar sobre esta questão, exigia mais.
O acórdão está, portanto, inquinado pela nulidade de omissão de pronúncia, prevista no artigo 379º nº 2 do CPP.
Dito isto, há que ver se esta nulidade pode ser suprida pelo tribunal de recurso, tendo em conta o que dispõe o nº 2 daquele artigo 379º.
A questão é controversa. No Comentário do Código de Processo Penal, o Professor Paulo Pinto de Albuquerque considera que o tribunal de recurso só pode exercer o poder de suprir a nulidade da sentença nos casos de excesso de pronúncia, declarando suprimida a parte que não devia ter sido conhecida, mas não a omissão de pronúncia. No mesmo sentido podem ser consultados os acórdãos do TRL, de 14abr2003 (CJ, XXVIII, 2, pag. 143 e seg.), TRE, de 8jul2003 (CJ XXVIII, 4, pag. 252 e seg.) e TRE 8set2015, processo 40/01.2GBJA.E1, 3fev2015, processo 512/11.0GAVNO.E1 e 10dez2009, processo 179/05.5TAABR.E1 (os três últimos em www.jurisprudencia.csm.org.pt). O argumento fundamental destas decisões jurisprudenciais é que o suprimento do vício pela Relação elimina um grau de recurso.
Esta interpretação, porém, em certas situações é limitadora dos poderes do tribunal de recurso e contrária aos princípios da celeridade e utilidade dos atos processuais. A garantia constitucional do direito ao recurso não exige que a parte vencida tenha direito a interpor recurso de cada segmento da decisão. Por outro lado, se os sujeitos processuais tiverem tido a possibilidade de discutir a questão controversa nas alegações apresentadas perante o tribunal de recurso, não existe sequer o risco de se produzir uma decisão-surpresa, relativamente à qual não possa exercer-se o contraditório. A garantia do direito ao recurso está estabelecida para que a questão possa ser debatida pelos sujeitos processuais e objeto de decisão num tribunal superior e não exatamente, em todos os casos, para lhes proporcionar a possibilidade de a verem apreciada sucessivamente por dois órgãos jurisdicionais de diferentes graus.
Numa situação como esta que estamos a analisar, em que interessa apenas verificar se os factos provados sustentam a qualificação jurídica relativamente ao número de crimes de homicídio tentado cometidos pelo arguido, não vemos que sentido e utilidade pudesse ter remeter para a primeira instância a decisão de completar o acórdão com uma fundamentação mais desenvolvida, quando essa apreciação pode ser feita neste momento sem a mínima subversão das regras dos recursos.
A redação do artigo 379º nº 2 do CPP, introduzida pela Lei 26/2010, de 30ago2010, substituindo o vocábulo “sendo lícito ao tribunal supri-las” pelo vocábulo “devendo o tribunal supri-las”, não restringindo ao tribunal onde a sentença foi proferida, outra finalidade não teve que não fosse a de impor ao tribunal de recurso um dever de suprimento do vício e não uma mera faculdade – pressupondo obviamente que estão disponíveis todos os elementos necessários.
Concordamos, portanto, com a solução interpretativa de que a nulidade da sentença por omissão de pronúncia deve, sempre que possível, se o processo dispuser de todos os elementos, ser suprida pelo tribunal de recurso, como decidido nos acórdãos do STJ, de 2jun2014 e 30mar2016 (em www.dgsi.pt) e TRE 23fev2021, processo 276/16.1PBTMR.E1 (em www.jurisprudcencia.csm.org.pt).
Passamos assim a conhecer a questão sobre a qual o tribunal não se pronunciou.
Salvo o devido respeito, a possibilidade de se considerar que os crimes em causa se encontram numa relação de concurso aparente não tem apoio na correta interpretação da regra do artigo 30º nº 1 do CP. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Ou seja, no caso em apreço, está em causa o preenchimento do mesmo tipo de crime de homicídio relativamente a várias vítimas numa única ação. Nos crimes de homicídio, em que a morte faz parte do tipo, traduzindo-se o resultado proibido na violação de bens jurídicos eminentemente pessoais, há tantas negações de valores jurídico-penais autónomas quantas as pessoas atingidas. Sendo pacífico, na interpretação da lei, que para efeitos do concurso de crimes é relevante o critério da identidade ou pluralidade dos bens jurídicos protegidos, tratando-se de bens jurídicos eminentemente pessoais, em relação a cada uma das vítimas o bem jurídico violado é autónomo dos demais.
Sendo assim, o número de tipos de crime efetivamente cometidos é determinado pelo número de vítimas cujo bem jurídico vida foi violado, o que leva a concluir que não procede a tese da contestação, no sentido de se tratar se um concurso aparente de crimes e de a condenação apenas poder ser por um crime de homicídio tentado.
3.4.2. Erro de julgamento da matéria de facto
A forma de impugnação da decisão da matéria de facto pela verificação do cumprimento dos parâmetros legais que delimitam o princípio do estabelecimento dos factos provados e não provados com base na livre convicção do tribunal está regulada nos artigos 412º nºs 3, 4 e 6 e 431º al. b) do CPP.
O recorrente, embora de maneira confusa, identificou os pontos de facto que considera incorretamente julgados e as provas que no seu entender impõem decisão diferente da recorrida, referenciadas à sua localização no registo áudio. Há, como veremos, factos impugnados, relativamente aos quais o recurso não indica qualquer prova para sustentar a impugnação. Quanto a esses, não conheceremos a impugnação por falta de motivação. Quanto aos demais, encontra-se cumprido o ónus de impugnação, pelo que estamos em condições de prosseguir.
Antes disso, porém, importa referir as premissas que norteiam a reapreciação da prova que pode ser feita em recurso e quem, por isso, delimitam os nossos poderes de controlo.
O julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a certos princípios que a lei estabeleceu para garantir ao máximo possível que se descobre a verdade histórica e se chega a uma decisão justa. Entre esses princípios avulta o da imediação na recolha da prova, que assegura uma relação direta de contacto pessoal entre o julgador e a prova que terá de ser avaliada. Na segunda instância, diferentemente, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição e visualização das provas registadas, cuja análise tenha sido sugerida no recurso e de outras que se tenham por relevantes.
Em regra, portanto, a avaliação imediata e integral da prova em primeira instância obedece a uma forma de procedimento que dá mais garantias de se descobrir a verdade, do que a avaliação, meramente parcelar, feita com base na audição ou visualização dos registos de provas produzidas no passado, à distância e perante terceiros, que se faz na Relação. Esta diferença de procedimento e a maior fidedignidade que dela em regra resultará, justifica o princípio de que a reapreciação da prova em recurso não corresponde a um segundo julgamento, a uma segunda apreciação global das provas, como se não tivessem sido já objeto de pronúncia judicial. O duplo grau de jurisdição constitucionalmente garantido não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos sequenciais em tribunais diferentes, mas apenas a possibilidade de fiscalizar e controlar eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame das provas relevantes. A Relação não “julga outra vez”, limita-se a verificar se o tribunal recorrido “julgou bem”; não sobrepõe a sua convicção à convicção do tribunal recorrido, verifica apenas se a essa convicção tem apoio nas provas. Entender o contrário equivaleria a considerar que o legislador teria instituído um sistema ilógico, autorizando uma avaliação sucessiva das provas em dois momentos, mas com ferramentas diferentes, em que, incoerentemente, a decisão final caberia não à instância que avaliou com imediação toda a prova mas sim àquela que apenas a avaliou de forma mediata e parcelar e que, por isso, está menos apetrechada com os instrumentos necessários para reproduzir a verdade histórica do facto sujeito a julgamento.
Não podemos perder de vista, também, que o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º. Isso é válido tanto para o julgamento em primeira instância como para a verificação de eventuais erros de julgamento na Relação. Esse princípio coloca a generalidade das provas no mesmo patamar de importância e confere ao juiz uma margem de discricionariedade para as valorar, em vez de o sujeitar a um sistema de provas com importância tarifada e hierarquizada. Mas, como é evidente, discricionariedade não é arbítrio. O exame crítico da prova está vinculado a critérios objetivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. A fundamentação da decisão tem de explicitar o percurso intelectual desse exame crítico e do processo lógico-dedutivo que permitiu partir da prova (premissa) para o facto (conclusão), em que o juiz revela as razões porque acreditou numa certa reconstituição histórica plausível do facto e não noutra.
Por outro lado, há ainda a assinalar que a formação da convicção positiva sobre a veracidade do facto controvertido só é admissível de acordo com o princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção de inocência, se não existirem fatores de dúvida séria. O critério da dúvida razoável, como fator de análise e decisão da prova, limitador do princípio da livre apreciação, significa que a convicção sobre a veracidade do facto incriminatório só é admissível se não existir uma situação objetivamente intransponível de dúvida fundada e motivada na razão; isto é, uma dúvida que o tribunal tenha procurado remover e seja compreensível de acordo com uma avaliação racional e sensata.
Sendo assim, em conclusão, para que haja erro de julgamento da matéria de facto sindicável em sede de recurso, é preciso que se demonstre que a convicção a que o tribunal de primeira instância chegou sobre a veracidade de certo facto é errada, por se ter demonstrado um facto oposto, é implausível, por não ter sustentação nas provas de acordo com as regras de avaliação, ou então que é duvidosa, por existem outras hipóteses alternativas de verdade factual igualmente plausíveis.
É, pois, o momento de verificar as objeções do recorrente quanto à matéria de facto provada à luz dos aludidos princípios.
Começando pelo mais óbvio, há factos que o tribunal deu como provados e que o recorrente impugnou sem qualquer motivação. Isso sucedeu em relação aos factos dos pontos 8 (posicionamento das vítimas no estabelecimento) e 10 (razão de não terem sido atingidas as vítimas JJ e BB). Nesta parte, o recurso é manifestamente improcedente.
Prosseguindo, ainda no mais óbvio, o recurso indica como erradamente julgado o facto do ponto 12, que tem o seguinte conteúdo:
Enquanto recuava na direção da saída, o arguido ia colhendo novamente, com a viatura, o ofendido CC, que ainda se encontrava prostrado no chão da esplanada, e a sua companheira DD, que, entretanto, acorrera em seu auxílio, pelo que o atropelamento só não se verificou dada a rápida reação de CC, que empurrou a companheira contra a parede, colocando-se, ele próprio, encostado à mesma.
Relativamente a este facto, o recurso não indica qualquer prova, mas contém a seguinte expressão desgarrada e realçada a negrito “Contradição dinâmica”. Se bem interpretamos o recurso, o que se pretende dizer é que este facto contém dois segmentos contraditórios, na medida em que diz que a vítima DD foi colhida e mais adiante que não foi por ter sido desviada.
Porém, não há qualquer contradição. O que resulta do texto é que a vítima CC foi colhida no segundo momento, quando o veículo recuava para sair do local, e que a sua companheira, DD, correu para o ajudar e só não foi atropelada por ele a ter empurrado.
No que respeita aos pontos 3 dos factos provados e a) dos não provados, afirma-se no recurso que são contraditórios. Sem qualquer razão. No ponto 3 ficou provado que quando o arguido se ausentou do local disse à vítima BB «já aí venho, vou-te dar um tiro, vocês já vão ver». E no ponto a) dos factos não provados, deu-se como não demonstrado que cerca de 10 minutos depois, quando regressou ao local, ao sair do veículo, tivesse dito à vítima BB «vou dar-te um tiro». Como é bom de ver, tratam-se de factos ocorridos em momentos distintos, pelo que não existe qualquer contradição.
Resta, então, analisar a impugnação dos factos provados dos pontos 3, 7 e 21.
No ponto 3 ficou provado que o arguido se ausentou do local com palavras ameaçadoras dirigidas à vítima BB. Para impugnar este facto, o recurso indica o depoimento da testemunha JJ, no segmento em que esta disse que viu uma pessoa entrar o veículo mas não identificou o arguido porque estava protegida por uma parede, e da testemunha II, no segmento em que este disse que não viu quem conduzia o veículo e que só depois lhe disseram que era o Sr. AA.
Não se percebe o raciocínio do recurso. Se o que se pretende impugnar com a referência àqueles depoimentos é a autoria dos atropelamentos, isso não tem qualquer sentido na medida em que o arguido admitiu em julgamento ter sido ele o autor. No resto, as partes selecionadas dos depoimentos nada têm a ver com o conteúdo dos factos impugnados, pelo que a pretensão do recurso é manifestamente improcedente.
O mesmo sucede quanto ao facto do ponto 7, que se refere à posição das vítimas no interior do estabelecimento. O recurso indicou o depoimento da testemunha II no segmento acima referido. Uma vez mais, a impugnação não tem sentido pelas razões explicadas no parágrafo antecedente.
Resta a impugnação do facto do ponto 21, que tem o seguinte conteúdo:
«O arguido sabia que ao dirigir, ao ofendido BB, palavras de tal jaez (factos descritos em 3.), atuava de forma adequada a incutir-lhe receio pela sua vida, atingindo-o no seu sentimento de segurança e, logo, perturbando a respetiva liberdade de ação e decisão; intento que o arguido quis, representou e logrou alcançar.»
Alega o recorrente que a testemunha BB disse no julgamento que não entendeu bem que o arguido o quisesse matar. Como tal, não se podia dar como provado aquele facto, do qual resulta que as palavras ditas tinham conteúdo ameaçador, suscetível de causar medo.
Não se entende muito bem a impugnação dos factos do ponto 21, sem ao mesmo tempo se impugnarem os factos do ponto 17:
«As palavras proferidas pelo arguido na direção do ofendido BB, descritas em 3., atento o contexto e o tom sério e credível com que as verbalizou, provocaram neste receio e intranquilidade, perante a possibilidade de que aquele pudesse vir a concretizar os intentos que anunciara, atentatórios da sua vida.»
De todo o modo, basta ler a motivação do acórdão para se concluir que não houve qualquer erro de julgamento:
«(…) resultou demonstrado face ao depoimento do ofendido BB que, não obstante apresentar alguma dificuldade ao nível da clareza do discurso, acabou por referir que tomou como real a possibilidade de o arguido encetar um tipo de conduta visando provocar-lhe mal.
Note-se, sobre este ponto, que o ofendido relatou ao Tribunal que terá perspectivado a necessidade de ter que se defender, mencionando que, naquela ocasião e para esse efeito, contava com o apoio dos seus familiares e amigos. Por outro lado, a testemunha explicou que, em virtude de o arguido se encontrar embriagado, «tudo poderia acontecer».
Não se olvida que o ofendido chegou a afirmar ao longo do seu depoimento que, naquela ocasião «não levou muito a sério». Contudo, atendendo ao sentido global do seu depoimento, tal afirmação terá surgido da necessidade de sinalizar perante todos os presentes em audiência de julgamento que era bem capaz de se defender, se tal fosse necessário (o que foi transparecendo ao longo do seu depoimento), aliado a algumas dificuldades de expressão verbal, já apontadas.
(…)
De facto, afigura-se crível, à luz do normal acontecer das coisas, tendo como padrão o homem médio, que o arguido tivesse agido do modo descrito com a intenção de (i) incutir medo no ofendido BB (…)»
O que daqui resulta é que o tribunal formou livremente a sua convicção a partir das provas analisadas, fundamentou essa convicção de maneira completa e fundada num raciocínio coerente e adequado às regras da experiência para chegar a uma conclusão absolutamente plausível, mas que o recorrente tem uma convicção diferente. Só que, como dito no início, isso não chega para se alterar a matéria de facto provada.
Tendo em conta a análise que acabámos de fazer, de reavaliação das provas, à luz da convicção que o tribunal delas retirou e dos argumentos apresentados no recurso, torna-se evidente que não há qualquer erro de julgamento. As provas referidas no recurso não demonstram que a decisão de dar os factos impugnados como provados esteja errada, por se terem demonstrados factos contrários, por ser implausível, sem sustentação nas provas, ou por ser duvidosa, face a outra hipótese alternativa com algum grau de implausibilidade.
Sendo assim, é improcedente esta parte do recurso.
3.4.3. Atenuação especial da pena
O recorrente pretende que as penas dos crimes de condução perigosa, dano e ameaça sejam objeto de atenuação especial, visto ter demonstrado arrependimento sincero e pedido desculpa às vítimas.
A atenuação especial da pena prevista no artigo 72º do CP, na parte que releva para o caso, depende da existência de circunstâncias posteriores ao crime que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Para esse efeito, é considerado ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados. Esta norma constitui uma “válvula de segurança” do sistema penal, por razões de justiça e adequação. Efetivamente, há casos em que as circunstâncias concretas do crime, relativas à culpa do agente, à ilicitude do facto ou à necessidade da pena, tornariam desproporcional a condenação dentro dos limites abstratos da pena previstos para o crime. Porém, para que a pena seja reduzida na medida da atenuação especial, é necessário que a diminuição da culpa, da ilicitude ou da necessidade da pena seja acentuada, com caracteres de excecional relevo.
Repare-se no que o tribunal consignou no acórdão a propósito dos sentimentos do recorrente em relação aos crimes que praticou:
«Ainda de referir, sobre esta matéria, que, ao longo deste processo, o arguido optou por apresentar uma versão falsa dos factos, designadamente no que concerne à sua capacidade de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com a mesma, tentando ludibriar o Tribunal e impedir a descoberta da verdade e a realização da justiça (o direito ao silencio não se desdobra num direito a mentir cfr. douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2008, processo n.º 08P694, disponível in www.dgsi.pt) o que denota uma falta de interiorização do mal cometido.
Por outro lado, o arguido apresentou um pedido de desculpas aos nove ofendidos em audiência de julgamento.
Malgrado, também é certo que não procedeu à reparação dos danos patrimoniais causados, o que, em conjunto com a postura processual adoptada acima descrita, diminuiu drasticamente o sinal de arrependimento.
- Assim, dos factos ora julgados, o Tribunal extrai uma falta de preparação do arguido para, doravante, manter uma conduta lícita.»
O recorrente não só não admitiu os factos que praticou como procurou iludir a descoberta da verdade. Pediu desculpa às vítimas – como faria qualquer pessoa que quisesse obter um benefício na pena – mas sem que essa atitude utilitarista se tivesse materializado em alguma ação palpável de reparação dos prejuízos. Tratou-se, portanto, apenas, da verbalização de um pedido de desculpa, sem correspondência com um arrependimento sincero, muito longe da excecionalidade que pudesse justificar a atenuação especial da pena. Não há nos crimes nem no que lhes sucedeu qualquer fator de acentuada diminuição de culpa, de ilicitude ou da necessidade da pena.
3.4.4. Pena não privativa da liberdade
O recorrente pediu que a pena final em que vier a ser condenado não seja privativa da liberdade.
Naturalmente, essa pretensão assentava no pressuposto de que as penas seriam alteradas, ou por via da absolvição ou da atenuação especial.
Não sendo esse o caso e não admitindo a pena qualquer alternativa não privativa da liberdade, a apreciação deste fundamento do recurso fica prejudicada.
4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em julgar improcedentes o recurso interlocutório e o recurso principal e em confirmar o acórdão recorrido.
Fixa-se em 4 UC a THJ devida pelo decaimento no recurso.
Évora, 14 de outubro de 2015
Manuel Soares
Ana Mafalda Sequinho dos Santos
Carla Francisco