CRIMES SEXUAIS
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
INVESTIGAÇÃO DE FACTOS ADQUIRIDOS DURANTE O JULGAMENTO
USO ABUSIVO DE DIREITOS DE DEFESA
UNIDADE CRIMINOSA
BENS EMINENTEMENTE PESSOAIS
Sumário

A ativação oficiosa da prestação de esclarecimentos ou da realização de uma segunda perícia para apurar factos relevantes adquiridos para o processo no julgamento, admitida pelos artigos 158º e 340º do CPP, é uma faculdade ordenada em função do eventual interesse para a descoberta da verdade. A sua omissão só conduzirá ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º nº 2 al. a) do CPP, se a factualidade em causa for relevante para a decisão e se do processo resultar que o tribunal não teve a iniciativa de os investigar quando devia e podia tê-la tido, ou porque indeferiu um requerimento nesse sentido ou porque não atuou oficiosamente quando era clara a necessidade de o fazer.
No caso de o tribunal omitir o exercício oficioso desse poder-dever, sem que algum sujeito processual o tenha solicitado, a omissão integra a nulidade prevista no artigo 120º nº 2 al. d) do CPP, que deve ser arguida nos termos do seu nº 3. No caso de ter sido indeferido requerimento em que se pedia a produção dessa prova, a forma de sindicar a correta aplicação dos fundamentos de rejeição ali previstos é o recurso.

Os direitos de defesa não são absolutos e ilimitados. Os comportamentos processuais contraditórios – venire contra factum propriu – revelam um uso abusivo do processo, fora das finalidades para que os direitos são concedidos. O reconhecimento da existência de um dever de lealdade processual e da sua relevância para analisar a legitimidade para interpor recurso de decisões de maneira oposta a comportamentos processuais anteriores é muito importante. O arguido que não requereu ao juiz a investigação de factos em julgamento nem suscitou a nulidade dessa omissão e que a invoca em recurso para seu benefício, atua com deslealdade processual e em abuso de direito de defesa.

Só há erro de julgamento da matéria de facto sindicável em recurso quando o recorrente indique elementos que demonstrem que a convicção a que o tribunal de primeira instância chegou sobre a veracidade de certo facto é errada, por se ter demonstrado um facto oposto, é implausível, por não ter sustentação nas provas de acordo com as regras de avaliação, ou é duvidosa, por existem outras hipóteses alternativas de verdade factual igualmente plausíveis.

Nos crimes sexuais a pluralidade de ações típicas não pode subsumir-se à figura do crime continuado, uma vez que o artigo 30º nº 3 do CP expressa e inequivocamente o impede. A figura do chamado “crime de trato sucessivo” nos crimes sexuais, acolhida por alguma jurisprudência, seja por razões de justiça material do caso concreto seja pela dificuldade de individualizar com exatidão no tempo e no espaço o número de atos típicos, contraria uma proibição intencionalmente querida pelo legislador.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1. Decisão recorrida

Acórdão proferido em 21mar2025, na qual foi condenado o arguido AA nos seguintes termos:

- Por um crime de abuso sexual de crianças, previsto no artigo 171º nº 1 do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão; por três crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos nos artigos 171º nºs 1 e 2 e 177º nº 1 al. b) do CP, na pena de 5 anos de prisão por cada um deles; por dois crimes de coação sexual agravados, previstos nos artigos 163º nº 1 e 177º nº 1 al. b) e nºs 7 e 8 do CP, na pena de 1 ano e 10 meses de prisão por cada um deles; no cúmulo jurídico das penas de prisão, fixar a pena conjunta em 8 anos e 6 meses de prisão;

- Na pena acessória de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período de 5 anos, termos do artigo 69º-B nº 2 do CP, por cada um dos seis crimes em que foi condenado; no cúmulo jurídico das penas acessórias, fixar a medida da pena acessória única em 10 anos;

- Na pena acessória de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, por um período de 5 anos, nos termos do artigo 69º-C nº 2 do CP, por cada um dos 6 crimes em que foi condenado; no cúmulo jurídico das penas acessórias, fixar a medida da pena única em 10 anos;

- A pagar a BB o quantitativo de 10000 mil euros, a título de reparação.

1.2. Recurso, resposta e parecer

1.2.1. O arguido recorreu do acórdão, pedindo a alteração da matéria de facto provada, com a consequência absolvição de todos os crimes e, subsidiariamente, a alteração da qualificação jurídica dos factos para um só crime de abuso sexual agravado e um só crime de coação sexual agravada, a redução das penas parcelares por esses crimes, para 4 anos e 1 ano e 6 meses, respetivamente, a condenação numa pena única com execução suspensa e regime de prova e a redução proporcional das penas acessórias e da indemnização para reparação da vítima.

Para tanto, resumidamente, invocou os seguintes fundamentos:

- Com base nas declarações para memória futura prestadas pela vítima BB, deveria ter dado como provado que a mesma, antes dos factos em julgamento, fora vítima de abusos sexuais, quando tinha 6 anos de idade;

- Em função de relevante informação sobre esse facto de já ter sido vítima de crimes de natureza sexual antes dos episódios objeto deste processo, na decisão sobre os factos provados deveriam ter sido valorados esses episódios de abuso sexual anteriores e não apenas a parte das declarações da vítima relativa aos episódios de violência sexual contidos na acusação;

- O tribunal conjugou com o depoimento da vítima os depoimentos das testemunhas CC e DD, mas não atribuiu nenhuma relevância ao depoimento da testemunha EE, que de maneira isenta e objetiva relatou que a mãe dele e das vítima, a testemunha FF, poderá ter apresentado a queixa para se vigar por a sua mãe não ter permitido que a vítima e o irmão GG continuassem a viver em casa dela;

- O relatório da perícia médico-legal de Psicologia também é omisso sobre esses outros episódios anteriores, mas, não obstante, sem os considerar, atribui aos factos deste processo as consequências observadas na vítima;

- O tribunal reconheceu na motivação do acórdão a existência de um anterior episódio de abuso sexual, com base nas declarações da vítima, pelo que o relatório de perícia psicológica devia ter sido analisado e considerado, tomando isso em conta, na medida que esses outros episódios necessariamente também contribuíram para as “alterações psicopatológicas, somáticas e de comportamento normalmente encontradas em menores vítimas de violência sexual” assinaladas na perícia;

- Em função disso, não se poderiam ter dado como provados os pontos 5 a 7 e 9 a 25 da matéria de facto, devendo os mesmos transitar para os factos não provados, em especial no que se refere aos pontos 22, 23, 24 e 25, na medida que não se prova que tais alterações emocionais sejam consequência direta e necessária das condutas empreendidas pelo arguido;

- Nas suas declarações, a vítima revisitou as suas memórias e reviveu todas as situações e como qualquer criança vítima de crimes de natureza sexual não consegue distinguir, de forma clara e precisa, de que maneira cada um dos episódios de violência sexual sofridos deixaram no seu consciente e subconsciente as lembranças e os traumas verificados e relatados no relatório de perícia psicológica;

- Essas declarações da vítima deviam ter sido consideradas e valoradas, tomando em conta que embora não haja motivos para considerar que faltou à verdade, evidencia-se a necessária existência de uma sobreposição de emoções e experiências igualmente traumáticas, no que respeita ao desencadeamento de episódios de efabulações, empolamentos ou confusão mental, ainda que totalmente involuntários, no sentido de se aquilatar a sua real capacidade para prestar declarações de forma isenta, livre da interferência de outros factos igualmente graves e traumatizantes, que tendo marcado a depoente, possam confundir o seu discernimento e tornar as suas declarações enfermas por incredibilidade;

- O tribunal fundamentou também a credibilidade que das declarações da vítima nos depoimentos das testemunhas CC e HH, sobrinha e filha do arguido, respetivamente, ambas a dar conta de que o mesmo teria praticado atos de natureza similar, mas seria sempre de se questionar por qual razão nenhuma delas agiu atempadamente no sentido de prevenir que o arguido fizesse mais uma vítima;

- A vítima, nas declarações para memória futura, disse que contou à mãe, logo na primeira vez em que foi abusada sexualmente, quando ainda morava com a irmã CC, e que a mãe lhe disse para não contar a ninguém e não tomou qualquer atitude em relação aos abusos, antes deixando que ela fosse viver para junto do alegado abusador;

- O tribunal não valorou o depoimento da testemunha EE, irmão da vítima, que viveu com a sua avó II desde que nasceu e que referiu que a vítima chorou muito porque queria ficar com a avó, onde também, vivia o arguido;

- Do alegado, resulta que a matéria de facto provada não se encontra fundamentada com elementos de prova que afastem dúvidas legítimas essenciais sobre a sua veracidade, pelo que deve o acórdão recorrido ser substituído por outro que determine a absolvição do arguido em função da fragilidade da prova produzida, visto a matéria de facto provada nos pontos 5 a 7 e 9 a 25 dever ser considerada não provada;

- Caso assim não se entenda, a qualificação jurídica dos factos deve levar à condenação apenas por um crime de abuso sexual de crianças agravado, na pena de 4 anos de prisão, e por um crime de coação sexual agravado, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, procedendo-se ao cúmulo jurídico e à condenação numa pena de prisão suspensa, com regime de prova, procedendo a absolvição quanto aos demais crimes de que foi o arguido acusado.

1.2.2. O Ministério Público respondeu, opondo-se à procedência do recurso e alegando, em suma, o seguinte:

- O recurso em matéria de facto não se destina à realização de um segundo julgamento no tribunal superior, visando unicamente a correção de eventuais erros pontuais e circunscritos da matéria de facto fixada em primeira instância quando existam provas que imponham decisão diferente;

- A decisão recorrida aprecia a prova de forma objetiva e motivada, expondo os raciocínios que nortearam tal apreciação, através de um processo lógico e racional, e nunca arbitrário ou frontalmente violador de regras de experiência comum;

- A prova produzida sustenta inequivocamente a prática dos factos, inexistindo fundamento para alterar a decisão em matéria de facto;

Os factos imputados integram a prática dos crimes porque o arguido foi condenado, inexistindo qualquer fundamento legal para unificar as condutas;

- As penas parcelares e a pena única são adequadas à culpa intensa, às necessidades de prevenção, e à personalidade do arguido.

1.2.3. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, sinteticamente com os seguintes argumentos:

- O tribunal valorou correta e criteriosamente, sem dúvidas, a prova à luz das regras da lógica, da experiência comum e da normalidade da vida a que estava vinculado.

- Ter essa valoração sido feita em sentido diferente do entendimento do recorrente não é suficiente pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de primeira instância, apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção;

- Antes seria necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, pois a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela;

- A subsunção jurídica efetuada está correta, face aos factos provados, integrando os elementos típicos dos crimes pela prática dos quais o arguido foi condenado;

- As penas mostram-se justas e adequadas;

- São elevadas no caso as exigências de prevenção geral de integração e uma redução das penas seria atentatória da necessidade estratégica de combate a este tipo de crimes, faria desacreditar as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada e não serviria os imperativos de prevenção geral.

- Fazem-se ainda sentir elevadas exigências de prevenção especial positiva, sendo que os critérios de prevenção especial emitiriam um perigoso sinal ao arguido, permitindo-lhe, ao invés de inverter o caminho percorrido, optar pela prática de crimes.

- Como consta do acórdão recorrido, evidencia o arguido uma muitíssimo escassa interiorização do mal das condutas que empreendeu, as quais não admitiu, não revelando arrependimento nem qualquer empatia pela menor, sua sobrinha, que vitimou no interior da residência então comum, adotando deste modo um posicionamento que faz duvidar, por completo, de que haja percecionado a extensão dos danos que condutas como as que empreendeu determinam.

2. Questões a decidir no recurso

Tal como está colocada a controvérsia em relação ao acórdão recorrido, as questões a decidir são, por ordem lógica de apreciação, as seguintes: (i) erro de julgamento da matéria de facto; (ii) qualificação jurídica dos factos; (iii) adequação das penas fixadas e (iv) adequação do valor da indemnização civil.

3. Fundamentação

3.1. Factos provados e sua motivação

(transcrição do acórdão sem as notas de rodapé):

A) FACTOS PROVADOS

Com relevância para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos:

A.1.) DA ACUSAÇÃO e RESULTANTES DA DISCUSSÃO DA CAUSA

1. BB nasceu no dia … de 2006 e é filha de DD e de FF.

2. O arguido AA e FF são filhos da arguida II.

3. No lapso temporal infra descrito em 8., o arguido AA residiu sempre com a respetiva progenitora, ora arguida, na localidade de …, …, no concelho de ….

4. BB residiu com os respetivos progenitores no … até data não concretamente apurada dos meses de abril ou maio de 2016, altura em que, na sequência da separação do casal, a menor regressou a Portugal com a sua progenitora e o seu irmão GG, indo todos residir, durante cerca de 6 meses, para a residência de CC – também filha de FF –, em ….

5. Em data não concretamente apurada do mês de maio de 2016, quando BB se encontrava de visita em casa da sua avó materna, II, o arguido AA interpelou a menor para que ambos fossem para o seu quarto visionar um filme, ao que a esta acedeu.

6. Neste circunstancialismo, quando ambos se encontravam sozinhos no quarto do arguido, sentados na cama, AA introduziu uma das mãos no interior da camisola da menor e acariciou-a na zona do peito.

7. De seguida, o arguido introduziu uma das mãos no interior das calças que BB envergava e acariciou-a na vagina; por fim, o arguido deu-lhe um beijo nos lábios.

8. Ainda no ano de 2016, em data não concretamente apurada, mas seguramente após o início do ano letivo e antes do Natal, BB passou a residir com a avó materna e o arguido na morada referida em 3., situação que se prolongou até cerca do mês de junho de 2019.

9. Neste circunstancialismo, em data não concretamente apurada, no período referido em 8., quando BB e o arguido se encontravam sozinhos no quarto deste, o mesmo colocou uma das mãos no interior das calças daquela e introduziu um dedo no interior da sua vagina.

10. No mesmo contexto espácio-temporal, noutra ocasião, o arguido, fazendo uso da sua força física, agarrou numa das mãos de BB e, contra a vontade desta, puxou-a e colocou-a sobre o seu pénis.

11. Nesse circunstancialismo, o arguido largou a mão da menor e, na sua presença, agarrou o seu pénis com a mão e efetuou movimentos ascendentes e descendentes.

12. Noutra ocasião, ainda no período referido em 8., mas quando BB e o arguido se encontravam sozinhos na marquise da residência indicada em 3., este colocou uma das mãos no interior das calças daquela e introduziu um dedo no interior da sua vagina.

13. Na mesma ocasião, o arguido colocou os seus lábios sobre a vagina da menor, fazendo movimentos com os mesmos.

14. Noutra ocasião, ainda no referido lapso temporal, também na marquise, o arguido, fazendo uso da sua força física, agarrou numa das mãos de BB e, contra a vontade desta, puxou-a e colocou-a sobre o seu pénis.

15. Nesse circunstancialismo, o arguido largou a mão da menor e, na sua presença, agarrou o seu pénis com a mão e efetuou movimentos ascendentes e descendentes.

16. Noutra ocasião, ainda no período mencionado em 8., antes da hora do jantar, quando BB e o arguido se encontravam sozinhos na marquise da residência aludida em 3., este aproximou-se daquela pelas costas, colocou uma das mãos no interior da roupa da menor e introduziu um dedo no interior da sua vagina.

17. Nesse circunstancialismo, a arguida II entrou na marquise, tendo AA cessado de imediato o descrito comportamento.

18. Na sequência de algumas das situações acima descritas, num número não apurado de vezes, o arguido disse a BB que não contasse a ninguém o sucedido, tendo-lhe ainda concomitantemente oferecido quantias monetárias situadas entre 3,00€ e 10,00€, que ela recebeu.

19. O arguido agiu conforme acima descrito a fim de satisfazer a sua lascívia sexual, conhecendo a idade de BB, que esta era sua sobrinha e que as suas condutas molestavam a sua liberdade e autodeterminação sexual, o que representou, quis e conseguiu.

20. O arguido prevaleceu-se da circunstância de BB ser sua sobrinha, bem como de residirem na mesma habitação para lograr, a sós com a mesma, os factos descritos em 8., 9., 10. e 11., 12. e 13., 14. e 15. e 16., molestando o sentimento de segurança na intimidade inerente à permanência da menor no seu domicílio, o que representou, quis e conseguiu.

21. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.

22. Como consequência direta e necessária das condutas empreendidas pelo arguido, acima descritas, BB evidenciava, em 01 de junho de 2022, alterações psicopatológicas traduzidas em sintomatologia ansiosa e depressiva marcada por dificuldade nas interações sociais, sentimentos de inferioridade, inadequação pessoal, desconforto, timidez e hesitação nas interações sociais, perda de energia vital, falta de motivação e de interesse pela vida, medo persistente, hostilidade, suspeita e desconfiança em relação ao exterior e tendência para o isolamento.

23. BB revelava, ainda como consequência direta e necessária das condutas empreendidas pelo arguido, nervosismo, insónias e pesadelos, sentimentos de culpa, irritabilidade, agressividade, registando diminuição ou perda de apetite, dores abdominais e medos persistentes e irracionais.

24. BB evidenciava, como consequência direta e necessária das condutas empreendidas pelo arguido, em relação ao desenvolvimento sexual/afetivo, uma postura de afastamento/medo face à aproximação/início de uma relação afetiva, que mantém presentemente, esquivando-se a contactos físicos com indivíduos do género masculino, determinantes de níveis elevados de ansiedade.

25. Como consequência direta e necessária das condutas empreendidas pelo arguido, BB careceu de assistência psicológica, por profissional de saúde, durante, pelo menos, um ano.

A.2) RELATIVOS ÀS CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIOECONÓMICAS E PASSADO CRIMINAL DE AA

26. AA nasceu no dia … de 1966.

27. AA nasceu em …, no seio de uma família numerosa, na qual foi o segundo de uma fratria de 6 elementos.

28. O progenitor do arguido era alcoólico e protagonizava episódios de violência doméstica para com o cônjuge, II, e para com os filhos, tendo AA adquirido também hábitos de consumo de bebidas alcoólicas em excesso junto do pai, com quem trabalhava desde a adolescência.

29. Com efeito, quando o arguido contava 12 anos de idade, a família deslocou-se para o …, fixando-se no concelho de ….

30. Nessa altura, AA, que apenas concluiu o 1.º ciclo do ensino básico, abandonou a escola e começou a trabalhar com o pai, como carpinteiro, numa oficina. Posteriormente, o progenitor do arguido abriu o seu próprio negócio de carpintaria e AA trabalhou com ele durante vários anos, praticamente até aquele se reformar.

31. A partir dessa altura, o percurso laboral do arguido tornou-se mais instável, com períodos de desemprego. No entanto, AA manteve-se inscrito no IEFP e frequentou algumas ações de formação dessa entidade.

32. AA está desempregado desde há 8 anos, situação à qual não são alheios os vários problemas de saúde de que padece, principalmente, ao nível ósseo.

33. O enquadramento económico atual não regista alterações relativamente a 2019, mantendo-se bastante precário, assente apenas na pensão de sobrevivência de II e no Rendimento Social de Inserção de que o arguido beneficia, ascendente, em maio de 2023, a 530,00€ mensais.

34. Para além de dois relacionamentos afetivos que manteve no passado, durante os quais viveu em união de facto, AA viveu sempre integrado na família de origem. O arguido descreve tais relacionamentos como globalmente positivos, tendo resultado do primeiro deles uma filha, HH, nascida em … de 1992, com quem mantém contacto regular, mas não próximo.

35. À data dos factos a situação residencial de AA era idêntica à atual. Reside há 20 anos na morada referida em 3., uma casa térrea com terreno, detentora de suficientes condições de habitabilidade, pertença da família, em zona de tipo rural, na periferia de …, sem problemáticas sociais associadas. O arguido pernoita em anexo independente.

36. AA mantém um relacionamento afetivo e de entreajuda bastante consistente com a mãe, nascida em … de 1940, assumindo o papel de cuidador daquela, que já apresenta algumas limitações no quotidiano, decorrentes da idade, na continuidade do que já tinha desempenhado com o pai, falecido em 2015.

37. A mãe do arguido, em contrapartida, adota uma postura excessivamente protetora e desculpabilizante relativamente a AA.

38. O arguido já efetuou tratamento à dependência alcoólica em regime ambulatório, mas sem sucesso. O seu percurso vivencial encontra-se associado ao consumo abusivo de álcool, com condicionalismos vários aos vários níveis da sua vida, familiar, laboral e social, o que AA não reconhece, porém.

39. Na rede de convivialidades do arguido não se identificam ligações pró-criminais.

40. No que se refere ao seu processo de desenvolvimento, não obstante os constrangimentos revelados na abordagem das questões da sexualidade, AA descreveu-o, perante os serviços de reinserção social, como normal e ajustado, não identificando, em si próprio, problemas a este nível, nomeadamente, atração sexual por menores ou procura de estímulos desajustados.

41. Perante os serviços de reinserção social, AA encara a sua situação jurídico-penal com confiança no sistema de justiça penal, denotando respeito pelo mesmo e aceitando a sua intervenção; o arguido adotou um discurso pobre e defensivo, tendo revelado uma perceção difusa do bem jurídico em causa nesta tipologia de crime.

42. O presente processo não teve, aparentemente, impacto significativo aos vários níveis da vida do arguido, tendo a família manifestado o seu suporte ao mesmo.

43. O arguido não regista averbamentos no seu Certificado do Registo Criminal.

B) FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a decisão a proferir não se provou que:

a. BB tenha regressado a Portugal, vinda do …, no ano de 2015 e que ainda nesse ano tenha ido residir com a sua irmã CC;

b. Antes da ocorrência dos factos julgados demonstrados sob os pontos 5. a 7., ou posteriormente, enquanto BB residiu em casa de II, FF tenha avisado a sua progenitora, ora arguida, de que desconfiava de que o seu irmão AA praticava abusos sexuais sobre menores e de que não deveria deixar a BB sozinha com o tio, mormente, enquanto ela ia trabalhar;

c. Não obstante tal conhecimento, a arguida não tenha impedido BB de ficar sozinha, no interior da sua residência, com AA, mormente, no quarto dele e na marquise, durante todo o período aludido no ponto 8. dos factos julgados provados;

d. A materialidade julgada provada sob o ponto 5. tenha ocorrido à vista de II;

e. A arguida II tenha representado que o arguido AA praticasse atos suscetíveis de molestar a liberdade e autodeterminação sexual de BB;

f. As carícias referidas no ponto 7. dos factos julgados demonstrados tenham sido concretizadas através de movimentos circulares;

g. Desde que BB passou a residir na morada indicada no ponto 3. dos factos julgados provados, o arguido com uma frequência quase diária, exigisse à menor que fosse com ele para o quarto dele;

h. Os factos julgados demonstrados sob os pontos 5. a 7., 8., 9., 10. e 11., 12. e 13., 14. e 15. e 16. tenham ocorrido em outras ocasiões;

i. Na sequência dos movimentos referidos nos pontos 11. e 15. dos factos julgados provados, AA tenha ejaculado;

j. O arguido AA haja forçado BB a não relatar os factos apurados sob os pontos 5. a 7., 8., 9., 10. e 11., 12. e 13., 14. e 15. e 16.;

k. O arguido tenha aproveitado a circunstância de BB ser sua sobrinha, bem como de residirem na mesma habitação para lograr, a sós com a mesma, os factos descritos nos pontos 5. a 7.;

l. A arguida II assistiu várias vezes, o arguido AA a levar a sobrinha, quer para o quarto, quer para a marquise, sem qualquer oposição, de forma a impedir que ambos estivessem sozinhos, sabendo que, ao não fazer qualquer esforço para impedir que o arguido AA estivesse sozinho com a sua neta, estava a prestar auxílio material ou moral à prática por aquele de um facto doloso, típico e culposo;

m. A arguida agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é censurável, proibida e punida por lei penal.

C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO

O Tribunal estribou a sua convicção, quanto à factualidade julgada como provada, com base na análise crítica e valoração, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, da prova por declarações, testemunhal e documental produzida e analisada em sede de audiência de julgamento, conjugada com a prova pericial, esta, subtraída à livre apreciação do julgador, nos termos do art. 163.º, 1, do Código de Processo Penal (não se patenteando razões que sustentem qualquer divergência do Tribunal do juízo contido no parecer do Exmo. Sr. Perito, nos termos previstos no n.º 2 do mesmo preceito).

Assim, a convicção sobre a factualidade julgada demonstrada sob os pontos 1. e 2. fluiu da análise do teor das certidões dos assentos de nascimento de BB, AA e FF, constantes dos autos.

Para consignação da materialidade vertida no ponto 3., valoraram-se, desde logo, as declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pela arguida II, nessa conformidade, bem como as declarações para memória futura prestadas, nesse sentido, em 12 de outubro de 2021 e perante Mm.ª Juiz de Instrução – cfr. o auto de fls. 142 a 144 –, pela ofendida BB (declarações que estão registadas no CD junto à contracapa do 1.º volume do processo e que se encontram transcritas a fls. 166 a 202).

A convicção quanto à factualidade julgada demonstrada sob os pontos 4. e 8. fluiu, por seu turno, da análise crítica e conjugada das declarações para memória futura prestadas por BB (na medida em que explicou ter regressado a Portugal, com a sua progenitora FF e o seu irmão GG, em data que já não logrou recordar, na sequência da separação dos seus pais, acrescentando que, inicialmente, no nosso país, viveram em casa da sua irmã CC durante um período de cerca de 6 meses, tendo ela, após, ido residir, juntamente com GG, em casa da sua avó materna, onde também já residiam o seu irmão EE e o ora arguido AA) e pelos depoimentos prestados, de modo sereno e escorreito, pelas testemunhas CC e DD, irmã e pai da ofendida, respetivamente.

Com efeito, a testemunha CC asseverou que em abril/maio de 2016, a sua mãe, acompanhada pelos seus irmãos BB e GG regressaram do …, tendo os três residido em sua casa durante os meses que se seguiram, até cerca de um mês após o início do ano letivo de 2016/2017; que, de seguida, a sua mãe FF deixou os filhos BB e GG a residir em casa da sua avó materna, II, tendo também como referência que, no Natal de 2020 (quando contou à sua irmã BB que, na sua infância, havia sido abusada sexualmente pelo tio de ambas, AA, e a mesma lhe confidenciou que o mesmo sucedera com ela quando residira em casa da avó), a sua irmã já saíra da casa de II há cerca de um ano e meio.

Por outro lado e concomitantemente, a testemunha DD, reportou ter vindo residir para Portugal no dia … de 2019 e que, nessa altura, tomou conhecimento de que seu filho GG estava “abandonado em …”, sendo que a sua filha BB transitara entre casas, da sua avó, ora arguida, para a da respetiva progenitora, FF.

Conjugadamente, valoraram-se ainda as declarações prestadas pela arguida em sede de audiência de julgamento, na medida em que, pese embora tenha referido já não se recordar da data em que BB deixou de residir consigo (pensando que terá sido em 2019 ou 2020, conforme disse), explicou que, nessa altura, zangou-se com o seu neto GG e decidiu que não aceitaria que o mesmo continuasse a residir na sua casa, na sequência do que a sua filha FF foi buscar os dois filhos, GG e BB, dizendo que, se aquele não ficava, esta também não permaneceria.

Conjugados os elementos probatórios aludidos, logrou o Tribunal convencer-se da ocorrência dos factos em análise, incluindo os períodos em que tiveram lugar, tal como consignados provados.

Para consignação da materialidade vertida nos pontos 5. a 18., valoraram-se as declarações para memória futura prestadas, nessa mesma conformidade, por BB, já aludidas. Quanto a estas, releva dizer que, pese embora evidenciando percetível embaraço / vergonha / inibição / constrangimento ( compreensíveis em função da natureza dos factos que relatou, manifestamente atentatórios do sentimento de pudor de qualquer jovem medianamente recatada, aliada à sua tenra idade, então, de apenas 15 anos), BB descreveu, de modo circunstanciado e verosímil e, manifestamente, sem recurso a quaisquer exageros, as atuações que o arguido empreendeu sobre/em relação à sua pessoa nas ocasiões que se referem nos factos julgados provados. A forma simples do seu discurso, simultaneamente espontâneo/pouco estudado ou elaborado, mas sem dúvida repleto de pormenores circunstanciadores do lugar e do modo das ações que imputou ao seu tio AA (pormenores esses que conferem, precisamente, credibilidade ao que relatou), logrou o convencimento, sem margem para dúvidas, de que a jovem declarou com verdade sobre a factualidade de que foi, efetivamente, vítima, sendo percetível que não lançou mão de efabulações ou empolamentos com o escopo de prejudicar o ora arguido AA. Aliás, aquilo que se evidencia é que, ao tempo em que prestou tais declarações para memória futura, BB, não obstante afirmar assertivamente ter declarado, em tudo, sem faltar à verdade, teve a preocupação de revelar à Mm.ª Juiz de Instrução que, naquele momento da sua vida, queria distanciar-se do que lhe tinha acontecido, não se expor e concentrar-se nos seus estudos, mas que o seu pai e outros elementos da sua família pretendiam que o processo prosseguisse contra o seu tio, a fim de que o comportamento do mesmo assumisse consequências – que não apenas para a(s) vítima(s).

Este convencimento do Tribunal quanto à credibilidade merecida pelas declarações para memória futura prestadas por BB encontra, aliás, inteiro respaldo no relatório da perícia médico-legal de Psicologia - fls. 271 a 275 verso dos autos, datado de 02 de junho de 2022. Nesse relatório, o Exmo. Perito seu subscritor – Consultor de Psicologia do INMLCF –, identifica os elementos em que se baseia o relatório, explicando detalhadamente cada um deles, concluindo, a final, na parte que ora releva: “(…) não conseguimos identificar tendência para a efabulação, sendo que conseguimos identificar características normalmente encontradas em relatos verídicos, em particular, uma estrutura lógica, uma produção verbal não estruturada, uma quantidade de detalhes adequada, descrições do contexto envolvente, descrição de interações, reprodução de conversações, descrição de complicações inesperadas durante os incidentes, detalhes inusuais e supérfluos, relato preciso de detalhes não compreendidos pelo próprio, relação com associações externas e alusão ao estado mental subjetivo do próprio e do acusado”.

Por fim, pode dizer-se que a credibilidade merecida por tais declarações encontra, ainda, suporte nos depoimentos prestados pelas testemunhas CC e HH, sobrinha e filha do arguido AA, respetivamente.

Com efeito, ambas as testemunhas depuseram de modo – não obstante compreensivelmente emotivo – coerente e assertivo, tendo relatado, circunstanciadamente, que também elas foram, enquanto crianças, vítimas de atos de natureza similar aos assacados por BB a AA, em períodos em que coabitaram com ele (factos esses que, conforme explicaram, a menor BB desconhecia até ao Natal de 2020; aliás, segundo reportado AA sobre ela por CC, apenas a sua mãe FF tivera conhecimento, até essa data, dos atos praticados por AA sobre ela, tendo-lhe dito que não deveria relatá-los a mais ninguém; por outro lado, HH revelou nunca ter relatado os atos praticados pelo seu pai até ao dia em que CC a contactou telefonicamente a fim de lhe transmitir que iria ser apresentada denúncia contra o seu pai por abusos sexuais que a sua irmã BB lhe reportara).

Por tudo o que se acaba de dizer, ficou o Tribunal convicto de que os factos em análise ocorreram conforme consignados demonstrados e que deles foi autor o arguido AA.

Numa nota adicional, releva deixar consignado que, relativamente aos factos vertidos nos pontos 16. e 17., valoraram-se as declarações para memória futura da ofendida, em detrimento do relato que a mesma fez quando foi ouvida, em esclarecimentos, em sede de audiência de julgamento, na parte em que declarou de modo díspar do que fizera anteriormente. Efetivamente, aquando da sua audição no decurso do inquérito, ocorrida em 12 de outubro de 2021, BB descreveu os factos conforme consignados demonstrados, asseverando que, nessa ocasião, o arguido introduziu um dedo de uma das mãos na sua vagina, tendo cessado tal comportamento imediatamente quando II entrou na marquise; aquando da sua audição em sede de audiência de julgamento, no transato dia 29 de janeiro de 2025 - motivada apenas e tão-só pela necessidade de ser explicitado o eventual conhecimento que II teria dos atos perpetrados por AA -, BB disse achar que, nessa data, o seu tio não chegara a introduzir o dedo na sua vagina, tendo-lhe acariciado a parte exterior desse órgão sexual. Ora, no confronto entre as duas versões, o Tribunal conferiu credibilidade àquela que foi relatada em data mais próxima dos factos até porque, conforme resulta dos ensinamentos da Medicina, “se os eventos são muitos intensos pode levar à inibição do processamento no HF2 da codificação memória explícita e subsequentemente a recordação” (cfr. Maria Moura et al, A memória e o impacto do trauma numa perspectiva desenvolvimental, Acta Med Port. 2010; 23(3):427-236, p. 433, disponível na internet).

A materialidade descrita sob os pontos 19. a 21. fluiu da materialidade objetiva apurada, analisada à luz das regras da lógica e da experiência, da qual se infere. Salienta-se que, atento o circunstancialismo globalmente apurado, mormente, a reiteração dos factos, todos ocorridos no indubitável interior da residência dos autos, é entendimento deste Tribunal que o arguido se prevaleceu indubitável e efetivamente da circunstância de BB ser sua sobrinha, bem como, sobretudo, de residirem na mesma habitação para lograr, a sós com a mesma, manter com ela, em diversas ocasiões, os contactos físicos de natureza sexual apurados, molestando o sentimento de segurança na intimidade inerente à permanência da menor no seu domicílio, o que, naturalmente, representou, quis e conseguiu. Não é sequer cogitável que o arguido não soubesse, ante a natureza dos atos que praticou, a idade da menor sua sobrinha e a repulsa que tais atuações causam na comunidade, que as suas condutas consubstanciavam a prática de crimes.

Para consignação da factualidade inserta nos pontos 22. a 25., valorou-se o teor do relatório da perícia médico-legal de Psicologia que faz fls. 271 a 275-verso dos autos, em conjugação com os depoimentos, com as características acima mencionadas, prestados pelas testemunhas CC (que relatou que observou que BB, após os factos, “tinha ataques de pânico constantes”, e que a contactava telefonicamente a chorar, a partir da escola e de casa, circunstancialismo que a determinou a pedir, junto da APAV, acompanhamento psicológico para a sua irmã; mais reportou que, presentemente, a sua irmã já não experiencia tais ataques de pânico com a mesma frequência, mas que não consegue estabelecer relacionamento, com contacto físico, com rapazes, o que ela, testemunha, verificou, conforme disse, no verão transato, quando um amigo colocou um braço por cima dos ombros de BB, fazendo com que a mesma, repudiando tal ato, tivesse ficado muito ansiosa) e DD (que relatou que, quando já residia consigo mas antes de ter relatado a CC a atuação de AA – que, por sua vez, os relatou a ela, testemunha –, a BB chorava muito à noite, mas não dizia o motivo; mais explicitou que, na sequência dos factos que vivenciou, BB careceu de acompanhamento psicológico durante um ano).

A materialidade vertida no ponto 26. fluiu do teor da certidão do assento de nascimento do arguido, constante dos autos.

A convicção sobre o inserto nos pontos 27. a 42. sustenta-se na análise do teor do relatório social elaborado pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, junto aos autos a fls. 450 a 454, em conjugação com o teor da certidão do assento de nascimento de II, para consignação da data de nascimento dela, na qualidade de progenitora de AA.

Por fim, a ausência de antecedentes criminais do arguido (ponto 43.) fluiu da análise do teor do Certificado do Registo Criminal de fls. 599-verso.

Debrucemo-nos, agora, sobre a materialidade consignada como não demonstrada.

Quanto ao consignado sob a alínea a., fluiu da prova testemunhal coisa distinta, nos termos acima expostos e para os quais remetemos.

No que tange ao vertido nas als. b., c. e e., temos que, nas declarações que prestou em sede de audiência de julgamento, a arguida II negou veementemente tais factos, asseverando que nunca representou que o seu filho AA praticasse atos suscetíveis de molestar a liberdade e autodeterminação sexual de BB (ou de qualquer outra criança, mormente, outras suas netas), asseverando que nunca viu nada que a fizesse elaborar tal representação e que nunca ninguém a alertou ou lhe comunicou esse facto. Asseverou, ainda, que, pese embora protetora do seu filho, é protetora da sua família em geral, designadamente, das suas netas, pelo que jamais compactuaria com qualquer situação suscetível de causar-lhes moléstias, ainda que protagonizada pelo seu filho AA.

Por seu turno, inquirida a testemunha FF, progenitora de BB, a mesma começou por dizer que a sua filha CC apenas lhe relatou ter sido vítima de abusos sexuais por parte de AA em 2016 (facto que CC contrariou expressamente, na medida em que relatou, de modo espontâneo, ter contado à sua mãe durante a adolescência, quando contava 16 anos de idade) mas que, na sequência de tal relato, quando deixou os filhos GG e BB a residir em casa da sua mãe, ainda em 2016, “pediu muito” a II que não deixasse “nunca a BB sozinha com o tio” e que não queria a filha “naquele quarto” (referindo-se ao quarto de AA); acrescentou que a ara arguida sabia que AA “já tinha feito o mesmo com as outras sobrinhas e filha”. Instada, todavia, a esclarecer o porquê desta sua afirmação, FF exclamou: “- Eu não tinha que dizer as coisas à minha mãe, ela tinha que saber!”, tendo ainda admitido que nunca disse à sua mãe que não queria a BB sozinha com o tio por saber que o mesmo já molestara sexualmente a CC, e que nunca falou, de modo direto, em abusos sexuais. Por fim, neste conspecto, terminou dizendo “achar” que a sua mãe sabia que o ora arguido praticava atos sexuais sobre as menores suas sobrinhas e filha, logo acrescentando que II sempre protegeu mais esse filho em detrimento dos outros. De sua vez, HH, filha do arguido (que, conforme disse, residiu com este e

Por seu turno, no depoimento que prestou, com as características acima enunciadas, CC asseverou que nunca disse à sua avó que fora molestada sexualmente pelo seu tio, no interior da residência então comum.

De sua vez, HH, filha do arguido (que, conforme disse, residiu com este e com a avó II até ter ingressado na universidade), igualmente reportou, assertivamente, que nunca relatou à sua avó – nem a quem quer que fosse, até ter sido contactada pela prima CC dando-lhe notícia de que iria ser apresentada queixa contra o seu progenitor por factos de cariz sexual perpetrados sobre a pessoa de BB – que AA a seviciara sexualmente.

Por fim, nesta sede, BB, nas declarações para memória futura que prestou, referiu ter relatado à sua mãe o episódio ora descrito sob os pontos 5. a 7. dos factos julgados demonstrados quase imediatamente depois da respetiva ocorrência, tendo-lhe a mesma dito para não contar a ninguém (o que ela, conforme disse, acatou, por temer que a revelação da situação tivesse repercussões familiares nefastas, à semelhança do que acontecera no …, quando relatou ao seu pai – contra similares instruções da sua mãe – que fora vítima de sevícias sexuais por banda de um amigo de FF, facto que viria a determinar a separação dos seus progenitores, de que o seu irmão GG a culpava, apodando-a de “mentirosa” e dizendo-lhe que “estragara a família”); mais disse que na ocasião em que a sua avó entrou na marquise, a mesma terá visto a interação do seu tio consigo, e que II não reagiu, “ficou normal” e não disse nada a AA, razão pela qual não falou com ela sobre a situação, que, no seu dizer, viria a repetir-se. Todavia, ouvida em esclarecimentos em sede de audiência de julgamento, BB relatou coisa distinta – não temos dúvidas, mercê da dissipação da memória causada pelo trauma, pela necessidade de sobreviver a ele e, bem assim, da mera passagem do tempo atuando sobre a mnese, tempo esse que, para uma pessoa tão jovem, é muito, pois que representa cerca de metade da sua vida –, tendo começado por dizer que a sua avó, quando ela foi residir com ela, já sabia dos atos praticados por AA, posto que “já acontecera com a sua irmã”; sequencialmente, disse ter havido uma situação em que a avó observou uma interação, na marquise, com o seu tio, tendo tido ambas uma conversa cujo teor já não saberia reproduzir, mas que incluiria a avó a dizer-lhe que, “se acontecesse mais alguma coisa, deveria gritar alto, para a despertar”; mais disse ter havido uma segunda situação em que a avó II vira que o mesmo tinha a mão dentro das calças dela, porquanto entrou marquise e viu AA a agarrá-la por trás, acrescentando não saber se II vira que o mesmo tinha a mão dentro das calças dela, porquanto ele fez rodar os corpos dos dois quase de imediato, de modo a ocultar o seu ato; terminou dizendo que a sua avó se esforçava efetivamente para que o seu tio – que se encontrava habitualmente embriagado – não a abordasse, sendo que por vezes não conseguia porquanto adormecia após o almoço, tendo chegado, nessas alturas, a pedir ao seu irmão Igor para ficar na companhia da menor, alegando que o tio “estava bêbedo”, o que EE por vezes não acatava, saindo de casa.

Ora, concatenado o conjunto da prova produzida, mister é concluir que o mesmo não sustenta a afirmação, com um mínimo de segurança, dos factos sobre que nos debruçamos. E, não podendo afirmá-los com segurança, conforme imposto pelo processo penal português, houve que julgá-los não demonstrados, conforme se fez. Consequentemente, impôs-se julgar não provada a materialidade descrita sob as als. l. e m..

Dos factos vertidos nas als. d., f. e i. não incidiu qualquer prova.

No que concerne à materialidade inserta nas als. g. e h., importa atentar em que, não obstante, nas declarações para memória futura que prestou, BB, quando questionada, haja dito que foi interpelada pelo seu tio “todos os fins de semana” e “duas a três vezes” durante a semana (de segunda a sexta feira), certo é que, questionada, a então menor não soube concretizar, por tipologia de atos (daqueles que relatou e que são subsumíveis a normativos distintos, nos quais se estabelecem molduras penais igualmente distintas), a periodicidade da respetiva ocorrência, antes tendo dito que “variava”, “dependia”, mormente, do tempo de que AA dispunha em cada abordagem que fazia.

Ora, neste circunstancialismo, perante tamanha indefinição, não se mostra possível quantificar, com um mínimo de rigor e para além dos consignados como demonstrados, os atos, por tipo de atuação, empreendidos pelo arguido durante o lapso temporal em que coabitou com BB.

Em conformidade e em obediência ao princípio in dubio pro reo, impôs-se julgar como não demonstrado o acervo factual em análise.

No que tange à al. j., dir-se-á (para lá da natureza, conclusiva, da formulação vertida no libelo acusatório) que se fez prova de coisa distinta, resultando das declarações para memória futura prestadas por BB que se determinou a não relatar os factos (apenas o termos acima expostos) por temer consequências nefastas ao nível familiar, posto que o seu irmão GG já a responsabilizada pela separação dos progenitores comuns pela situação ocorrida no …, também já referida.

Por fim, no que respeita à al. k., dir-se-á resultar da prova produzida, desde logo, que na data de ocorrência dos factos consignados assentes sob os pontos 5. a 7., BB não coabitava com o ora arguido AA; donde, o mesmo não pode ter atuado com aproveitamento desse circunstancialismo e da proximidade física que o mesmo proporcionava, posto que ainda não existia. Por outro lado, flui igualmente da prova por declarações para memória futura que, ao tempo, BB não conhecia o seu tio AA, tendo vivido no … desde bebé, até aos 9 anos; e que foi precisamente nessa visita a casa da sua avó, ocorrida imediatamente após a sua chegada a Portugal, que os factos ocorreram. Ora, não existindo uma relação de proximidade/confiança estabelecida, inerente à relação familiar de tio/sobrinha, não pode afirmar-se que tais factos foram praticados pelo arguido aproveitando essa mesma relação (tanto mais que são facilmente cogitáveis situações em que, inexistindo tal relação familiar, em contexto de visita, fosse possível ao arguido atuar de modo similar relativamente a outros menores, filhos de amigos, de vizinhos, etc.).

Impôs-se, assim, julgar como se fez.

Consigna-se que o Tribunal se não pronunciou sobre quaisquer factos atinentes às condições pessoais da arguida II – incluindo o respetivo passado criminal –, ao abrigo dos princípios que resultam das disposições legais contidas nos arts. 368.º a 371.º do Código de Processo Penal, considerando a decisão que, infra, se tomará relativamente a ela.

Consigna-se também que os depoimentos prestados pelas demais testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento, que acima se não referiram, não basearam a formação da convicção do Tribunal em qualquer sentido, evidenciando-se que todas elas se revelaram comprometidas com a defesa dos seus próprios interesses e/ou da posição dos arguidos.

Mais se consigna que, quanto ao demais vertido na acusação pública, que se não consignou como provado nem como não demonstrado, estão em causa, em nosso entendimento, factos irrelevantes, formulações meramente conclusivas, destituídas de substrato factual, ou conceitos de Direito.

3.2. Erro de julgamento da matéria de facto

Antes de analisarmos a impugnação dos factos provados, propriamente dita, há um ponto prévio que importa ver, que o recorrente qualificou como erro de julgamento de facto, mas não é.

Começou o recorrente por alegar que a vítima, nas declarações para memória futura que o tribunal valorou, disse ter sido vítima de abusos sexuais perpetrados por outra pessoa, no …, quando tinha 6 anos (portanto cerca de 3 anos antes dos factos objeto deste processo). Daí, conclui-se no recurso, devia o tribunal ter incluído essa informação no pedido de exame pericial e ter dado como provado esse facto.

A questão foi erradamente colocada como erro de julgamento de facto, quando não é disso que se trata. Não está em causa que algum facto enunciado no acórdão recorrido como provado ou não provado devesse ter sido julgado ao contrário, mas sim ter havido omissão de um facto relevante para a decisão. Corretamente qualificado o vício alegado no recurso, do que se trata é de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício este que se encontra previsto no artigo 410º nº 2 al. a) do CPP. É indiferente a errada qualificação do vício no recurso porque esta questão é de conhecimento oficioso, conforme jurisprudência fixada pelo STJ, no acórdão uniformizador 7/1995, de 19OUT1995 (DR 298/95, Iª Série A, de 28/12/1995, páginas 8211 a 8213).

O vício em questão tem de resultar ostensivamente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência. No que importa para o caso, só haverá, portanto, insuficiência de factos provados, se pela simples leitura do texto do acórdão se perceber que a decisão proferida pelo tribunal foi tomada sem que se tivessem considerado todos os factos relevantes para a mesma. Essa insuficiência de factos pode resultar de não ter sido considerada no acórdão factualidade investigada no julgamento ou de não terem sido investigados factos essenciais para a decisão.

Em regra, a alegação dos factos relevantes para a determinação da culpabilidade, da pena e das outras consequências jurídicas do crime, nomeadamente da indemnização, deve ser feita pelo Ministério Público na acusação (artigo 283º nº 3 al. b) do CPP) ou pelo arguido na contestação (artigo 315º do CPP). No entanto, ainda que os factos não sejam introduzidos em julgamento pelos sujeitos processuais no momento próprio, no decurso do julgamento, oficiosamente ou a requerimento, o tribunal poderá ordenar a produção das provas necessárias para apurar esses factos, ao abrigo do disposto no artigo 340º do CPP. Ou seja, seguindo por ora a lógica da alegação do vício no recurso, a partir do momento em que o tribunal tomou conhecimento da possibilidade de a vítima ter sido abusada sexualmente em momento anterior, devia ter procurado verificar em que medida esse facto podia ou não influir na decisão que tinha de tomar. Devia, nomeadamente, ter introduzido essa questão no exame pericial para que se pudesse apurar em que medida as consequências dos abusos sexuais foram causadas pelos atos praticados pelo recorrente e não pelos anteriores abusos sexuais.

Vendo o processo, percebe-se que o tribunal não ativou oficiosamente a possibilidade admitida pelo artigo 158º do CPP, de ordenar a prestação de esclarecimentos pela perita ou a realização de uma nova perícia ou a renovação da efetuada. Isso quer dizer que não entendeu que essa diligência tivesse interesse para a descoberta da verdade. Mas, como também resulta do processo, a defesa do arguido igualmente não requereu essa prova suplementar, como podia fazer.

Chegados aqui, a questão que se nos coloca agora é a de saber que consequência tem o facto de o tribunal não ter averiguado oficiosamente factos que podiam ser relevantes para a decisão, numa situação em que não foram alegados na acusação ou na contestação e em que nem o Ministério Público nem a defesa do arguido requereram que fossem averiguados, como podiam ter feito ao abrigo do disposto nos referidos artigos 158º e 340º. A indagação oficiosa pelo tribunal daquela factualidade é apenas uma faculdade, ordenada em função do eventual interesse que tenha para a descoberta da verdade. A sua omissão nem sempre levará ao vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão. Só pode concluir-se que a omissão na decisão de factos indiciados em julgamento conduzirá ao vício previsto no artigo 410º nº 2 al. a), se forem relevantes para a decisão e se do processo resultar que o tribunal não teve a iniciativa de os investigar quando devia e podia tê-la tido – ou por ter indeferido requerimento nesse sentido ou por não ter atuado oficiosamente quando era clara a necessidade de o fazer. O foco de análise para apurar se há vício processual não deve estar, portanto, na omissão dos factos na decisão, mas sim na sua relevância e na existência ou não de motivo justificativo da abstenção da ação investigatória pelo tribunal.

Queremos com isto dizer que o problema que o recurso nos coloca é de saber, por um lado, se o facto em causa era relevante para a decisão e, por outro lado, quais são as consequências da violação do poder-dever de investigar factos em julgamento ao abrigo dos artigos 158º e 340º.

No que respeita à relevância o facto, há que distinguir.

Para a determinação da prática dos crimes pelo arguido, é obviamente indiferente que a vítima tivesse sido objeto de semelhantes abusos sexuais no passado. O preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos penais imputados ao arguido resultará das ações que ele praticou e das intenções e pensamentos que teve quando o fez e não de factos passados praticados por terceiros.

Para a avaliação da credibilidade dos depoimentos da vítima, a existência de abusos sexuais em momento anterior pode ter importância. No recurso alega-se que as crianças com idades tão baixas, que sejam vítimas de abusos sexuais sucessivos, perpetrados por pessoas diferentes e em momentos distintos, podem ter dificuldade em discernir uns factos dos outros e em incorrer em relatos imprecisos. Isso em tese é verdade. Porém, no caso em apreço não tem sustentação por três razões. Em primeiro lugar, porque resulta evidente dos depoimentos prestados pela vítima que ela se referiu às agressões sexuais do arguido sem qualquer confusão com o que lhe acontecera antes. Em segundo lugar, porque o que disse sobre os factos praticados pelo arguido foi corroborado por outros meios de prova, como bem se dá conta na motivação da matéria de facto do acórdão. E em terceiro lugar, porque, mesmo que as agressões sexuais anteriores tivessem possibilidade de influir na credibilidade do depoimento da vítima, isso seria fator que se colocaria apenas no momento da verificação do erro de julgamento e não numa qualquer omissão de factos no acórdão – isto é, para aferir a credibilidade da prova por causa daquela circunstância, não é necessário que a mesma tenha ficado a constar nos factos provados.

Para a determinação da pena, os tais abusos sexuais anteriores são irrelevantes para a atenuar. A ilicitude dos crimes de abuso sexual e de coação sexual e a culpa do agente em nada são diminuídos pela circunstância de a vítima ter sofrido abusos anteriores de outras pessoas. Esse facto seria relevante, isso sim, se o arguido o conhecesse e mesmo assim tivesse praticado os atos que se provaram. Nesse caso, seriam bem mais intensas a ilicitude e a culpa no seu comportamento. Não se encontrando isso provado, o facto é inócuo para a determinação da pena.

Há, todavia, um ponto na decisão para o qual podia ser eventualmente relevante que tivesse ficado a constar nos factos provados que a vítima sofreu abusos sexuais de outro homem quando tinha 6 anos de idade. Referimo-nos ao arbitramento da indemnização, visto que pode aqui existir uma situação em que os danos sofridos pela vítima tivessem resultado de uma concorrência de causas. Ou seja, por outras palavras, sofrendo a vítima danos psicológicos e comportamentais atribuíveis a agressões sexuais e havendo distintas agressões dessa natureza, poderia ser necessário apurar a medida do nexo de causalidade imputável às ações do arguido.

Assim, havendo, em tese, ainda que marginalmente, a possibilidade de o facto em questão dever ter sido considerado pelo tribunal, importa avançar para ver que consequências processuais resultam da circunstância de não ter sido investigado, nem oficiosamente nem a requerimento.

Nos acórdãos do TRG, de 27abr2009 (processo 12/03.2TAFAF.G1) e do TRC de 7out2014 (processo 174/13.0GAVZL.C1), consultáveis em www.dgsi.pt, com os quais concordamos, embora a propósito de questão distinta mas ainda assim aplicável (estava em causa a omissão de diligências para apurar as condições sociais do arguido), concluiu-se que a omissão de exercício daquele poder-dever constitui nulidade processual ou erro de aplicação da lei, consoante tenha ou não sido ativado por requerimento dos sujeitos processuais. No caso de o tribunal omitir o exercício oficioso desse poder-dever de produção de um meio de prova essencial para a descoberta da verdade sem que algum sujeito processual o tenha solicitado, essa omissão integra a nulidade prevista no artigo 120º nº 2 al. d) do CPP, que deve ser arguida nos termos do seu nº 3. Porém, se ao tribunal for requerida a produção de uma prova e o tribunal indeferir esse requerimento, a forma de sindicar a correta aplicação dos fundamentos de rejeição ali previstos é o recurso. A distinção fundamental a ter em conta é que a ilegalidade decorrente da omissão de um ato processual obrigatório é um vício relativo à forma do procedimento, ao passo que a ilegalidade da recusa da prática desse ato é um vício relativo ao conteúdo da decisão – sobre a correta ou incorreta interpretação ou aplicação da lei.

A necessidade de produção de um meio de prova suplementar, necessário para investigar o facto em julgamento, obriga o tribunal a praticar o ato processual correspondente para ativar a investigação. A omissão de tal ato está expressamente cominada na lei como nulidade dependente de arguição (artigos 118º nº 1 e 120º nº 1 al. d) do CPP), pelo que a sua impugnação tem de fazer-se pela via da arguição da nulidade. Este mecanismo de impugnação, ao permitir a correção do vício processual e a prática do ato omitido em tempo útil e perante o juiz de primeira instância, é a que melhor protege os princípios da celeridade e estabilidade dos atos processuais. Apenas haverá vício de conteúdo da decisão nas situações em que o tribunal recuse a realização da diligência de prova, ou desatenda a arguição de nulidade que referimos, por considerar que não se verificam os respetivos pressupostos.

Aplicando este raciocínio ao caso concreto, temos que a defesa do arguido não requereu ao tribunal no julgamento que tomasse em conta o facto em questão para o efeito de completar o exame pericial ou para o efeito de o levar para os factos provados, apesar desse facto ser conhecido desde a prestação de declarações para memória futura. E temos também que a defesa não arguiu junto do tribunal de primeira instância a nulidade da omissão da prática desses atos que considerava necessários para a descoberta da verdade. Nada foi requerido e, ao ver-se que o tribunal não atuou oficiosamente, nada foi arguido. Só agora, no recurso, é que vem a defesa esgrimir argumentos contra o que considera ser uma omissão, que conheceu no julgamento e de que em parte é também responsável.

Os direitos de defesa não são absolutos e ilimitados. Os comportamentos processuais contraditórios – venire contra factum propriu – revelam um uso abusivo do processo, fora das finalidades para que os direitos são concedidos, dos quais o arguido não está isento. Do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, de 16dez2010 (DR, 1ª Série, nº 19, de 27/01/2011) retiramos alguns trechos que nos parecem relevantes para a análise do nosso caso, na perspetiva do cumprimento pelo arguido dos deveres inerentes à lealdade processual. Citando o autor Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, 3ª Edição, 2009, anotação ao artigo 401°, págs. 1021 a 1023): «O princípio da lealdade processual impõe-se aos sujeitos e participantes processuais e, por força deste princípio, não pode recorrer quem tiver promovido a decisão proferida e, designadamente, aquele que impugna decisão concordante com a sua anterior posição assumida no processo». «O princípio da lealdade no comportamento processual, nomeadamente na recolha de prova, representa uma imposição de princípios gerais inscritos na própria dignidade humana, e da ética, que deve presidir a todos os actos do cidadão. O mesmo liga-se, de forma inexorável, ao direito a um processo justo e ao princípio da igualdade de armas. Em termos gerais e, em qualquer litígio, a existência de um princípio geral da lealdade é essencial para a afirmação da existência do Estado de Direito». E referindo-se ao acórdão do STJ de 24set2003 (Coletânea de Jurisprudência, Nº 171 Tomo III/2003): «Princípio essencial, fundador e conformador do processo penal (de todos os modelos ou soluções particulares e mais ou menos idiossincráticas dos diversos sistemas processuais democráticos), o princípio do processo equitativo, na dimensão de "justo processo" ("fair trial"; "due process"), é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.O processo equitativo, como "justo processo", supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa». «A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual». E avançando nos argumentos: «Neste domínio são de realçar os deveres de vigilância e de boa fé processual: o primeiro obriga os sujeitos processuais a «reagir contra nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a actos em que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber»; o segundo impede que os sujeitos processuais possam «aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um “trunfo”, para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado» – cf. Ac. n.º 429/95 do TC.». «Assim, é inteiramente adequado o entendimento de que aquele que admite a possibilidade de, no futuro, vir a impugnar a matéria de facto, colabore e, evidenciando uma postura de lealdade processual, verifique, no final da respectiva audiência ou no prazo de arguição da irregularidade, se existiu alguma deficiência. Proc. n.º 77/00.9GAMUR.S1 - 3.ª Secção». «É que, para além da teleologia do processo penal, é o próprio dever de lealdade processual de todos os intervenientes no processo que impõe que a imperfeição seja suscitada por forma a causar o menor dano na tramitação processual e não como último argumento que se mantém resguardado para se utilizar como último recurso caso o resultado final não agrade. Proc. n.º 578/08 - 3.ª Secção». O reconhecimento da existência de um dever de lealdade processual e da sua relevância para analisar a legitimidade para interpor recurso de decisões de forma oposta a comportamentos processuais anteriores é muito importante. O arguido, que achando relevante investigar um facto e não o requereu ao juiz, e que na fase de recurso invoca em seu benefício essa omissão – por um vício um que, a ocorrer, também teria a sua contribuição – atua com deslealdade processual e em abuso de direito de defesa.

Achando que era necessário realizar alguma diligência e ao ver que o tribunal omitia essa ação, deveria ter suscitado a nulidade processual prevista no artigo 120º nº 2 al. d) do CPP – omissão de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. Não tendo isso sido feito, a nulidade que pudesse ocorrer encontra-se agora sanada. E também poderia ter requerido atempadamente que o tribunal realizasse a diligência que considerava necessária. Então, nesse caso, se o tribunal a indeferisse sem fundamento bastante, teria aí o fundamento de recurso que agora lhe falta.

Não tendo nada disso sido feito e, mais ainda, sendo claro da motivação do acórdão que o tribunal não viu interesse para a descoberta da verdade na realização dessa diligência, não vemos como possa agora concluir-se que foi omitida a prática de um ato de investigação necessário para apurar os factos relevantes para a decisão e que acórdão recorrido padeça do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410º nº 2 al. a).

No caso de não serem ativados os poderes concedidos pelos artigos 158º e 340º no decurso do julgamento, o vício de insuficiência da matéria de facto na decisão apenas ocorrerá naquelas situações em que seja evidente, face aos dados do processo, que o tribunal tinha à sua disposição provas cuja produção podia ter ordenado, que conhecia a possibilidade de fazer essa indagação oficiosa e que mesmo assim a omitiu. Neste caso, mesmo que a nulidade da omissão de realização de diligências essenciais para a descoberta da verdade se pudesse considerar sanada, o tribunal de recurso poderia concluir pela existência do vício da sentença previsto no artigo 410º nº 2 al. a). Precisamente porque numa situação como a descrita a possibilidade e necessidade de apurar outros factos para a decisão existia e era conhecida do tribunal. Não é essa a situação em apreço. O tribunal, apesar de não levar aos factos provados que a vítima já tinha anteriormente sofrido abusos sexuais, não deixou de ter essa circunstância em conta, pois referiu-a na motivação da decisão da matéria de facto. Isso significa duas coisas: primeiro, que toda a decisão foi tomada tendo esse facto em conta; segundo, que não havia necessidade de realizar qualquer outra diligência que o tribunal conhecesse ou devesse conhecer.

Não há, em conclusão, qualquer vício processual em resultado de o tribunal não ter dado como provado que a vítima sofreu abusos sexuais anteriores nem ter incluído esse tema na prova pericial.

Avancemos, então, para o erro de julgamento da matéria de facto.

A forma de impugnação da decisão da matéria de facto pela verificação do cumprimento dos parâmetros legais que delimitam o princípio do estabelecimento dos factos provados e não provados com base na livre convicção do tribunal está regulada nos artigos 412º nºs 3, 4 e 6 e 431º al. b) do CPP.

O recorrente identificou os pontos de facto que considera incorretamente julgados e as provas que no seu entender impõem decisão diferente da recorrida, referenciadas à sua localização no registo áudio. Como tal, encontra-se cumprido o ónus de impugnação ali estabelecido, pelo que estamos em condições de prosseguir.

Antes disso, porém, importa referir as premissas que norteiam a reapreciação da prova que pode ser feita em recurso e que, por isso, delimitam os nossos poderes de controlo.

O julgamento da matéria de facto em primeira instância obedece a certos princípios que a lei estabeleceu para garantir ao máximo possível que se descobre a verdade histórica e se chega a uma decisão justa. Entre esses princípios avulta o da imediação na recolha da prova, que assegura uma relação direta de contacto pessoal entre o julgador e a prova que terá de ser avaliada. Na segunda instância, diferentemente, a reapreciação da matéria de facto faz-se, em regra, sem imediação, com a audição e visualização das provas registadas, cuja análise tenha sido sugerida no recurso e de outras que se tenham por relevantes.

Em regra, portanto, a avaliação imediata e integral da prova em primeira instância obedece a uma forma de procedimento que dá mais garantias de se descobrir a verdade, do que a avaliação, meramente parcelar, feita com base na audição ou visualização dos registos de provas produzidas no passado, à distância e perante terceiros, que se faz na Relação. Esta diferença de procedimento e a maior fidedignidade que dela em regra resultará, justifica o princípio de que a reapreciação da prova em recurso não corresponde a um segundo julgamento, a uma segunda apreciação global das provas, como se não tivessem sido já objeto de pronúncia judicial. O duplo grau de jurisdição constitucionalmente garantido não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos sequenciais em tribunais diferentes, mas apenas a possibilidade de fiscalizar e controlar eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame das provas relevantes. A Relação não “julga outra vez”, limita-se a verificar se o tribunal recorrido “julgou bem”; não sobrepõe a sua convicção à convicção do tribunal recorrido, verifica apenas se a essa convicção tem apoio nas provas. Entender o contrário equivaleria a considerar que o legislador teria instituído um sistema ilógico, autorizando uma avaliação sucessiva das provas em dois momentos, mas com ferramentas diferentes, em que, incoerentemente, a decisão final caberia não à instância que avaliou com imediação toda a prova mas sim àquela que apenas a avaliou de forma mediata e parcelar e que, por isso, está menos apetrechada com os instrumentos necessários para reproduzir a verdade histórica do facto sujeito a julgamento.

Não podemos perder de vista, também, que o julgamento da matéria de facto está sujeito ao princípio da livre apreciação estabelecido no artigo 127º. Isso é válido tanto para o julgamento em primeira instância como para a verificação de eventuais erros de julgamento na Relação. Esse princípio coloca a generalidade das provas no mesmo patamar de importância e confere ao juiz uma margem de discricionariedade para as valorar, em vez de o sujeitar a um sistema de provas com importância tarifada e hierarquizada. Mas, como é evidente, discricionariedade não é arbítrio. O exame crítico da prova está vinculado a critérios objetivos jurídico-racionais e às regras da lógica, da ciência e da experiência comum. A fundamentação da decisão tem de explicitar o percurso intelectual desse exame crítico e do processo lógico-dedutivo que permitiu partir da prova (premissa) para o facto (conclusão), em que o juiz revela as razões porque acreditou numa certa reconstituição histórica plausível do facto e não noutra.

Por outro lado, há ainda a assinalar que a formação da convicção positiva sobre a veracidade do facto controvertido só é admissível de acordo com o princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção de inocência, se não existirem fatores de dúvida séria. O critério da dúvida razoável, como fator de análise e decisão da prova, limitador do princípio da livre apreciação, significa que a convicção sobre a veracidade do facto incriminatório só é admissível se não existir uma situação objetivamente intransponível de dúvida fundada e motivada na razão; isto é, uma dúvida que o tribunal tenha procurado remover e seja compreensível de acordo com uma avaliação racional e sensata.

Sendo assim, em conclusão, para que haja erro de julgamento da matéria de facto sindicável em sede de recurso, é preciso que se demonstre que a convicção a que o tribunal de primeira instância chegou sobre a veracidade de certo facto é errada, por se ter demonstrado um facto oposto, é implausível, por não ter sustentação nas provas de

acordo com as regras de avaliação, ou então que é duvidosa, por existem outras hipóteses alternativas de verdade factual igualmente plausíveis.

É, pois, o momento de verificar as objeções do recorrente quanto à matéria de facto provada à luz dos aludidos princípios.

Estão em causa os factos dos pontos 5 a 7 e 9 a 25 dos factos provados.

Começando pelo mais óbvio, há pontos na argumentação do recurso que não têm, salvo o devido respeito, sentido.

Diz-se a certo passo, para questionar a credibilidade do depoimento da vítima, que as crianças da sua idade não conseguem individualizar e discernir as lembranças que cada episódio traumático provoca no consciente e subconsciente e que, por isso, a sobreposição de emoções decorrente da circunstância de a vítima ter sofrido agressões sexuais três anos antes pode ter perturbado a sua capacidade de prestar declarações de forma isenta e livre de interferência de outros factos.

É claro que este argumento não procede. No acórdão está motivado de forma clara, compreensível, lógica e convincente porque se deu crédito aos depoimentos da vítima e porque as conclusões a que o tribunal chegou são totalmente verosímeis e apoiadas nas regras da experiência. Não há a mínima possibilidade de a vítima ter confundido os abusos sexuais cometidos pelo recorrente com outros que possa ter sofrido em momento anterior. Até porque, como se explica no acórdão, aquilo que a vítima disse é o que bate certo com os outros elementos de prova corroborantes que o tribunal analisou. Como dissemos atrás, o tribunal recorrido está em melhor posição para fazer a avaliação do valor dos depoimentos orais, dado que foram prestados na sua presença e teve possibilidade de apreender diretamente as manifestações gestuais ou faciais que normalmente acompanham a oralidade e não ficam registadas na gravação áudio.

Não há o mínimo fundamento para dizer que o depoimento da vítima não merece credibilidade e que não dá suficiente sustentação aos factos provados.

O mesmo sucede a propósito do que se diz no recurso sobre a credibilidade dos depoimentos das testemunhas CC e HH (respetivamente, sobrinha e filha do recorrente). Essas testemunhas disseram que o recorrente já lhes tinha feito o mesmo, isto é, que também tinha abusado delas no passado. A partir daí, questiona-se no recurso porque não agiram atempadamente para impedir que o recorrente fizesse mais uma vítima. Embora isso não seja dito de forma expressa, esta interrogação visa, afinal, lançar dúvidas sobre a credibilidade dos seus depoimentos.

Bom, este argumento não procede. As testemunhas em causa terão sido abusadas em crianças. Se fizeram mal ou bem em não ter dito nada, não sabemos. Há múltiplas possibilidades de dinâmicas familiares, algumas até desviadas do que é correto fazer, que, em tese, podem levar uma vítima de abuso sexual a omitir o relato do facto aos adultos que as rodeiam. Como há múltiplos casos em que a pessoa adulta que sabe disso a não desenvolve as ações preventivas e repressivas que a situação imporia. Mas, evidentemente, daí não resulta que uma testemunha que tenha sido abusada não deponha com verdade. O acórdão é claríssimo na indicação das razões que sustentam a convicção positiva sobre os factos provados com apoio, também, nos depoimentos destas testemunhas.

No que se refere ao depoimento da testemunha GG, irmão da vítima, que morava igualmente com a avó (a coarguida absolvida) e o tio (o arguido condenado), afirma-se no recurso que este disse em julgamento que a queixa sobre os abusos sexuais deste processo pode ter sido uma vingança da mãe da vítima, por a sua mãe (a coarguida absolvida) ter querido que dois netos (a vítima e o irmão GG) saíssem lá de casa.

Porém, a fundamentação do acórdão afasta por completo qualquer dúvida sobre a prova dos factos relativos à culpabilidade do recorrente. Numa família em que as relações são – tudo indica – complexas e problemáticas e em que os comportamentos não correspondem – tudo o indica, outra vez – aos padrões médios, o facto de a mãe da vítima poder saber ou desconfiar que a filha era abusada sexualmente (como já teria sabido no …) e não querer afastá-la da casa do agressor, ou até de ter ficado zangada por a mãe querer afastar de lá dois dos seus filhos (sabe-se lá que efeito teria na sua vida pessoal passar a ter de cuidar deles), e o facto de a vítima, com 9 anos de idade, poder manifestar vontade de ficar com a avó, ainda que na mesma casa do agressor, tudo isso é relevante no plano moral de atribuição de responsabilidades à família, mas não é certamente para, a partir daí, se negarem as agressões sexuais que ficaram plenamente provadas.

Assim, concluindo esta parte, temos como incontroverso que as dúvidas invocadas no recurso a propósito dos depoimentos acabados de referir não demonstram, de todo em todo, que tivesse havido erro de julgamento da matéria de facto. As provas referidas pelo recorrente, com a leitura que devem ter e não com a sua, obviamente, não demonstram que a decisão de dar os factos como provados esteja errada, por se terem demonstrados factos contrários, que seja implausível, por não ter sustentação nas provas, ou que seja duvidosa, por haver alguma hipótese alternativa à acusação com algum grau de implausibilidade.

Continuando ainda no óbvio, invoca-se no recurso que a circunstância de a vítima ter sido abusada anteriormente e de o tribunal ter dado crédito a esse facto devia ter levado a considerar não provados os factos dos pontos 5 a 7 e 9 a 21.

Esses factos impugnados respeitam às agressões sexuais cometidas pelo arguido em maio de 2016 (5 a 7), e depois em quatro ocasiões distintas, todas em 2016, entre o início do ano letivo e o Natal (9 a 11, 12 e 13, 14 e 15 e 16 e 17) e, grosso modo, ao dolo e à culpa (factos 18 a 21). É por demais evidente que a possibilidade de a vítima ter sido objeto de outros abusos, três anos antes, em nada influi na convicção que o tribunal formou a propósito destes. Da motivação para dar estes factos como provados, transcrita acima, resulta, em síntese, que o tribunal, apesar de o arguido ter negado, não acreditou nele e deu antes crédito ao que foi declarado pela vítima, porque o considerou credível, adequado às regras da experiência e corroborado em aspetos importantes pelos depoimentos das testemunhas que ali identificou, resumindo mesmo aspetos mais relevantes desses depoimentos para fundamentar as suas conclusões. Estamos na presença de uma motivação completa, clara e convincente. Dela é possível retirar o essencial das razões que levaram o tribunal a concluir pela veracidade dos factos imputados na acusação. Factos esses que são, de resto, plausíveis e adequados ao que a experiência comum ensina ser normal em contextos de abuso sexual sobre menores.

E o que invoca o recorrente para contrariar a convicção do tribunal? Que a vítima tinha sido abusada antes! E daí? – perguntamos nós. Isso não põe minimamente em causa a possibilidade de ter sido abusada três anos depois, noutro país, por outra pessoa.

Finalmente, diz-se no recurso que a mesma circunstância de a vítima ter sofrido abusos anteriormente não permite que sejam dados como provados os factos dos pontos 22 a 25, em que se descrevem as consequências causadas pelos atos praticados pelo arguido.

Uma vez mais sem razão. Esses factos foram dados como provados com base no relatório pericial, que os descreve de maneira fundamentada, e nos depoimentos, quer da vítima quer dos seus familiares, que verificaram as alterações de comportamento e as relataram ao tribunal. Por outro lado, se bem se reparar, desses factos resulta que o tribunal deu como provado que as sequelas dos abusos foram consequência direta e necessária das condutas do arguido e não que foram sua consequência exclusiva (sublinhados nossos). Ou seja, na sua literalidade, os factos provados nem sequer afastam a possibilidade de a vítima ter sofrido sequelas idênticas em resultado dos abusos sexuais anteriores. O que importa, afinal, é que, tendo-se provado as agressões sexuais a que se referem os factos dos pontos 5 a 21, as sequelas provadas nos pontos 22 a 25 têm suporte mais que suficiente nas provas a que o tribunal atendeu e nas regras da lógica e da experiência comum. Nada tem de estranho que uma criança abusada sexualmente daquela maneira sofra aquelas consequências.

Tendo em conta a análise que acabámos de fazer, de reavaliação das provas, à luz da convicção que o tribunal delas retirou e dos argumentos apresentados no recurso, torna-se evidente que não há erro de julgamento e que o recurso é nesta parte improcedente.

3.3. A qualificação jurídica dos factos

Defende-se no recurso, conclusivamente, sem qualquer fundamentação, que a qualificação jurídica dos factos deve levar à condenação apenas por um crime de abuso sexual de crianças agravado e por um crime de coação sexual agravado.

Sem a mínima razão. Os factos não podem subsumir-se à figura do crime continuado, uma vez que o artigo 30º nº 3 do CP expressa e inequivocamente o impede. Tratando-se de crimes praticados contra bens jurídicos eminentemente pessoais, como é o caso do abuso e coação sexual, o número de crimes determina-se pelo número de tipos efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que forem cometidos. A realização plúrima desses tipos, ainda que se encontrem verificados os pressupostos do nº 2 do artigo 30º, não consente a unificação jurídica num único crime continuado.

Não ignoramos que alguma jurisprudência, mesmo depois da alteração do artigo 30º do CP e da introdução do seu nº 3 pela Lei 40/2010, admitiu a figura do chamado “crime de trato sucessivo” nos crimes sexuais, considerando a existência de uma unidade de resolução criminosa e uma conexão temporal entre os atos. Na verdade, para sermos mais exatos, tratou-se em muitos casos, certamente por razões de justiça material do caso concreto, ou para contornar a impossibilidade de individualizar com exatidão no tempo e no espaço o número de atos típicos, de encontrar uma formulação teórica alternativa à figura do crime continuado que escapasse à proibição intencionalmente querida pelo legislador quando procedeu à referida alteração.

Não concordamos com uma tal solução, ademais quando os atos em causa estão perfeitamente individualizados no espaço e no tempo.

Como se assinala no artigo “Crime de trato sucessivo?” (Helena Moniz, Abril de 2018, Julgar Online, em www.julgar.pt):

«ter-se-á que provar tantos atos quantos for possível, e apenas punir por estes; com a certeza de que não se tratando de um crime de múltiplos atos, ou de um crime continuado, não vale a regra de que o caso julgado abrange todos os atos realizados no período tempo do “crime continuado impróprio” / “crime de trato sucessivo” julgado e pelo qual foi condenado. Assim sendo, o agente deverá ser punido por tantos crimes quantos os atos levados a cabo e provados, em concurso efetivo de crimes.»

«unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade. Na verdade, ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime atento os tipos legais de crimes previstos na nossa legislação. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas pode decorrer da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade e, portanto, uma interpretação inconstitucional. Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura»

Improcede assim a pretensão de alteração da qualificação jurídica dos crimes, sem necessidade de mais fundamentação, dado não haver no recurso argumentação que o justifique.

3.4. A pena

Defende-se no recurso, igualmente de maneira conclusiva, a redução das penas. Esse pedido foi feito no pressuposto de que os crimes seriam unificados, pelo que de certo modo fica prejudicada essa possibilidade.

De toda a maneira, cabe ainda assinalar que as duas circunstâncias alegadas como razões para a redução das penas – o arguido estar desempregado por doença e ser cuidador da mãe – já foram consideradas no acórdão recorrido. Elas não têm mais peso atenuativo do que aquele que já lhes foi dado.

Basta ver os fatores a que o tribunal atendeu para fixar as penas parcelares:

«No que tange ao crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo art. 171.º, 1, do Código Penal:

- o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução dos factos e as consequências da sua conduta, sendo de sopesar que o arguido atuou sobre uma criança com, então, 9 anos de idade, à qual teve acesso facilitado, nessa data, no interior da sua residência, por estar de visita à avó II, acabada de chegar do …; sopesar-se-á igualmente a concreta natureza dos atos sexuais de relevo praticados pelo arguido sobre BB, envolvendo o toque sobre o peito, seguido de toque sobre a vagina e beijo sobre os lábios, traduzindo-se já em comportamentos com grande potencial invasivo do sentimento de pudor da ofendida e do comprometimento da sua liberdade e autodeterminação sexual e do seu são desenvolvimento na vertente sexual;

- a culpa, que se manifestou sempre na sua forma mais gravosa, de dolo direto;

- os sentimentos manifestados pelo arguido e a motivação para a prática do crime, que no caso mais não foram do que a satisfação da sua lascívia, com indiferença pelo livre desenvolvimento da personalidade de BB do ponto de vista sexual;

- a conduta posterior aos factos: o arguido não assumiu o cometimento dos atos que empreendeu, crendo-se não ter interiorizado ainda, devidamente, o mal das suas condutas;

No que concerne a cada um dos 3 crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, 1 e 2, e 177.º, 1, b), ambos do Código Penal:

- o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução dos factos e as consequências da sua conduta, sendo de sopesar que o arguido atuou sobre uma criança com, então, idades compreendidas entre 9 e 12 anos; sopesar-se-á igualmente a concreta natureza dos atos praticados pelo arguido, que, em todas as ocasiões, introduziu um dedo na vagina de BB (sendo que, numa das situações, igualmente colocou os seus lábios sobre esse órgão sexual da menor);

- a culpa, que se manifestou sempre na sua forma mais gravosa, de dolo direto;

- os sentimentos manifestados pelo arguido e a motivação para a prática do crime, que no caso mais não foram do que a satisfação da sua lascívia, com indiferença pelo livre desenvolvimento da personalidade de BB do ponto de vista sexual;

- a conduta posterior aos factos: o arguido não assumiu o cometimento dos atos que empreendeu, crendo-se não ter interiorizado ainda, devidamente, o mal das suas condutas;

No que tange a cada um dos 2 crimes coação sexual agravados, p. e p. pelos arts. 163.º, 1, e 177.º, 1, b), 7 e 8, ambos do Código Penal:

- o grau de ilicitude dos factos, o modo de execução dos factos e as consequências da sua conduta, sendo de sopesar que o arguido atuou sobre uma criança com, então, idades compreendidas entre 9 e 12 anos e que era sua sobrinha, sendo totalmente indiferente aos laços familiares e à inerente sensação de confiança que os mesmos eram suscetíveis de gerar na menor, antes se aproveitando deles e da vantagem que lhe ofereciam; sopesar-se-á igualmente a concreta natureza dos atos praticados pelo arguido, que, em todas as ocasiões, usou a sua força física – que não terá sido exacerbada, pese embora haja resultado suficiente – para constranger a menor BB a tocá-lo no pénis;

- a culpa, que se manifestou sempre na sua forma mais gravosa, de dolo direto;

- os sentimentos manifestados pelo arguido e a motivação para a prática do crime, que no caso mais não foram do que a satisfação da sua lascívia, com indiferença pelo livre desenvolvimento da personalidade de BB do ponto de vista sexual;

- a conduta posterior aos factos: o arguido não assumiu o cometimento dos atos que empreendeu, crendo-se não ter interiorizado ainda, devidamente, o mal das suas condutas;

Em qualquer caso, importa, ainda, sopesar:

- a conduta anterior aos factos: tem carácter atenuativo a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais registados; e,

- as condições pessoais do arguido e a sua personalidade: AA nasceu no dia … de 1966, em …, no seio de uma família numerosa, na qual foi o segundo de uma fratria de 6 elementos; o progenitor do arguido era alcoólico e protagonizava episódios de violência doméstica para com o cônjuge, II, e para com os filhos, tendo AA adquirido também hábitos de consumo de bebidas alcoólicas em excesso junto do pai, com quem trabalhava desde a adolescência; com efeito, quando o arguido contava 12 anos de idade, a família deslocou-se para o …, fixando-se no concelho de …; nessa altura, AA, que apenas concluiu o 1.º ciclo do ensino básico, abandonou a escola e começou a trabalhar com o pai, como carpinteiro, numa oficina; posteriormente, o progenitor do arguido abriu o seu próprio negócio de carpintaria e AA trabalhou com ele durante vários anos, praticamente até aquele se reformar; a partir dessa altura, o percurso laboral do arguido tornou-se mais instável, com períodos de desemprego. No entanto, AA manteve-se inscrito no IEFP e frequentou algumas ações de formação dessa entidade; AA está desempregado desde há 8 anos, situação à qual não são alheios os vários problemas de saúde de que padece, principalmente, ao nível ósseo; o enquadramento económico atual não regista alterações relativamente a 2019, mantendo-se bastante precário, assente apenas na pensão de sobrevivência de II e no Rendimento Social de Inserção de que o arguido beneficia, ascendente, em maio de 2023, a 530,00€ mensais; para além de dois relacionamentos afetivos que manteve no passado, durante os quais viveu em união de facto, AA viveu sempre integrado na família de origem; o arguido descreve tais relacionamentos como globalmente positivos, tendo resultado do primeiro deles uma filha, HH, nascida em … de 1992, com quem mantém contacto regular, mas não próximo; à data dos factos a situação residencial de AA era idêntica à atual. Reside há 20 anos na morada referida no ponto 3. dos factos julgados demonstrados, uma casa térrea com terreno, detentora de suficientes condições de habitabilidade, pertença da família, em zona de tipo rural, na periferia de …, sem problemáticas sociais associadas; o arguido pernoita em anexo independente; AA mantém um relacionamento afetivo e de entreajuda bastante consistente com a mãe, nascida em … de 1940, assumindo o papel de cuidador daquela, que já apresenta algumas limitações no quotidiano, decorrentes da idade, na continuidade do que já tinha desempenhado com o pai, falecido em 2015; a mãe do arguido, em contrapartida, adota uma postura excessivamente protetora e desculpabilizante relativamente a AA; o arguido já efetuou tratamento à dependência alcoólica em regime ambulatório, mas sem sucesso; o seu percurso vivencial encontra-se associado ao consumo abusivo de álcool, com condicionalismos vários aos vários níveis da sua vida, familiar, laboral e social, o que AA não reconhece, porém; na rede de convivialidades do arguido não se identificam ligações pró-criminais; no que se refere ao seu processo de desenvolvimento, não obstante os constrangimentos revelados na abordagem das questões da sexualidade, AA descreveu-o, perante os serviços de reinserção social, como normal e ajustado, não identificando, em si próprio, problemas a este nível, nomeadamente, atração sexual por menores ou procura de estímulos desajustados; perante os serviços de reinserção social, AA encara a sua situação jurídico-penal com confiança no sistema de justiça penal, denotando respeito pelo mesmo e aceitando a sua intervenção; o arguido adotou um discurso pobre e defensivo, tendo revelado uma perceção difusa do bem jurídico em causa nesta tipologia de crime; o presente processo não teve, aparentemente, impacto significativo aos vários níveis da vida do arguido, tendo a família manifestado o seu suporte ao mesmo.

Neste quadro, é sensível a culpa do arguido e prementes as exigências de prevenção geral e especial, dados os reflexos comunitários deste tipo de crimes, geradores de elevada repulsa na nossa sociedade, ademais, quando praticados sobre menores com tão tenra idade como a da ofendida BB.»

A ainda para justificar a pena única:

«Os factos assumem gravidade relevante e tiveram lugar ao longo de um período de pouco mais de 3 anos.

Apesar de não registar averbamentos no seu Certificado do Registo Criminal e de beneficiar de apoio familiar, o arguido, atualmente com 58 anos, não desempenha qualquer atividade que traga proveito à comunidade em que se insere, devotando os seus dias ao ócio e à ingestão de bebidas alcoólicas, passando a maior parte do tempo sob o efeito das mesmas.

Evidencia o arguido uma muitíssimo escassa interiorização do mal das condutas que empreendeu, as quais não admitiu, na medida em que, exercendo o seu direito ao silêncio, não se pronunciou sobre os factos que lhe vinham imputados. Não revelou, assim, arrependimento perante o Tribunal, nem qualquer empatia pela menor, sua sobrinha, que vitimou no interior da residência então comum, adotando deste modo um posicionamento que faz duvidar, por completo, de que haja percecionado a extensão dos danos que condutas como as que empreendeu sobre BB determinam.»

Tendo em conta os objetivos de prevenção fixados no artigo 40º do CP, a limitação da pena pela medida da culpa, e ainda os critérios do artigo 71º do CP, nem as penas fixadas se mostram desajustada por excesso nem as alegações de recurso nos apresentam argumentação que justifique mais análise.

Pede-se também no recurso a redução proporcional das penas acessórias.

Não se indicando um único fundamento para tal pretensão, não temos de a conhecer por manifesta improcedência.

3.5. A indemnização

O recorrente pediu a redução da indemnização arbitrada à vítima.

Não se encontrando esse pedido fundamentado, é manifestamente improcedente.

4. Decisão

Pelo exposto, acordamos em negar provimento ao recurso e em confirmar o acórdão recorrido.

Fixa-se a TJ em 5 UC a cargo do recorrente.

Évora, 14 de outubro de 2025

Manuel Soares

Carla Oliveira

Jorge Antunes