Com a cessação do internamento compulsivo não se torna supervenientemente inútil o recurso que haja sido interposto da sentença que confirmou aquela medida privativa da liberdade.
A decisão que declara prejudicado o recurso assenta numa interpretação do artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi do artigo 4.º do CPP, que é incompatível com os artigos 27º, nº 5, e 32º da Constituição da República Portuguesa e que, por isso, não pode acolher
I – RELATÓRIO
1. No âmbito de Processo Comum de Tratamento Involuntário pendente no Juízo Local Criminal de …, estando a Requerida AA sujeita a internamento compulsivo, e após realização de sessão conjunta, foi proferida sentença com o seguinte teor:
“SENTENÇA
Iniciaram-se os presentes autos com o internamento de urgência de AA.
O tribunal é o competente e o processo é o próprio.
Inexistem nulidades, questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.
Foi ordenada a realização de avaliação clínico psiquiátrica e teve lugar a sessão conjunta.
Cumpridas as formalidades legais impõe-se decidir.
Dos elementos clínicos constantes dos autos resulta demonstrado que a requerida sofre dum quadro psicótico descompensado, sem quaisquer condições nem garantias de adesão voluntária à terapêutica programada.
Ora, face aos elementos constantes dos autos, designadamente, o juízo técnico-científico inerente à avaliação clínico-psiquiátrica, somos de concluir que o requerido não possui sequer discernimento para avaliar o sentido e alcance do seu consentimento para aceitar o tratamento.
Do exposto resulta que padece de doença psiquiátrica grave criando, por força dela, um perigo para bens jurídicos de natureza pessoal e patrimonial e a isto acresce que a ausência de tratamento deteriora de forma acentuada o seu estado.
Conjugados todos estes elementos, conclui-se estarem reunidos os necessários requisitos de que depende o decretamento do tratamento involuntário que, por ser proporcional ao grau de perigo e aos bens jurídicos aqui em causa, se determina.
D.N. (dando baixa)
11.07.2025”.
2. Inconformada com tal decisão, a requerida AA interpôs recurso da mesma, em 14 de julho de 2025, arguindo a nulidade da decisão recorrida e peticionando que o processo seja “reenviado ao Tribunal que a elaborou, para que o mesmo refaça a Decisão, e nomeadamente para que, considerando que não existe nos autos prova de que o consentimento da Recorrente para o tratamento não seja válido e eficaz, nem de que a mesma não tenha discernimento para o prestar, declare a cessação do tratamento involuntário, por falecerem os motivos que levaram ao mesmo”.
O recurso foi admitido por despacho judicial proferido em 16 de julho de 2025.
Nesse mesmo dia 16 de julho, foi enviado aos autos pelo Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental da ULS … declaração subscrita por médica psiquiatra desse serviço no sentido da cessação dos pressupostos previstos no nº 1 do artigo 15º da Lei de Saúde Mental, acompanhada de relatório de nova avaliação clínico-psiquiátrica da utente AA e declaração de consentimento esclarecido em que a mesma aceita voluntariamente os tratamentos propostos.
3. Após promoção do Ministério Público lavrada nos autos, foi proferido em 17 de julho de 2025 despacho com o seguinte teor:
“Uma vez que deixaram de se verificar os pressupostos de internamento involuntário de AA previstos no artigo 15.º da LSM, determina-se o cessar do mesmo.
Consequentemente, fica prejudicado o recurso.”.
4. Mais uma vez inconformada, a Requerida veio interpor novo recurso, desta feita do segmento da decisão que considerou prejudicado o primeiro recurso, peticionando a revogação daquele segmento decisório, uma vez que para que seja possível à Recorrente efetivar a responsabilidade civil do Estado, é necessário que a mesma esgote primeiro todas as instâncias possíveis de recurso, pretendendo com o primeiro recurso ver reconhecido, para além do mais, que à data da prolação da sentença de 11 de Julho, não existia de facto fundamento para se dizer com absoluta certeza que a Recorrente não tinha, naquele momento, discernimento para aceitar o tratamento.
Extraiu a Recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
“I - A Lei de Saúde Mental estipula, no seu artº. 37º., que nos casos omissos se aplica, com as devidas adaptações, o disposto no Código de Processo Penal;
- II - A presente situação, de um recurso interposto ( e admitido ) de uma Decisão de manutenção do internamento involuntário, ser declarado supervenientemente inútil, por entretanto ter chegado aos autos o consentimento da Internanda para o tratamento psiquiátrico,
- III - Não se encontra prevista prevista na Lei de Saúde Mental, pelo que, nos termos do referido artº. 37º., será de se lhe aplicar o regime do Código de Processo Penal;
- IV - E, por sua vez, o artº. 4º. do Código de Processo Penal remete-nos para o regime processual civil, mais concretamente neste caso para o artº. 277º. e) do C.P.C., que estipula precisamente, tal como é referido no Douto Despacho a quo, que a instância se extingue por inutilidade superveniente da lide;
- V - Ora, o Tribunal Constitucional proferiu o Acórdão nº. 277/2022, de 26/04, o qual muito resumidamente diz que julga inconstitucional a norma do artº. 277º. e) do C.P.C., aplicável ex vi do artº. 4º. do C.P.P., quando interpretada no sentido de considerar supervenientemente inútil o recurso de decisão que aplicou medidas de coacção não privativas da liberdade, por força da sua extinção temporal ou revogação na pendência do recurso;
- VI - No nosso modesto entender, muito embora não se trate neste caso de medida de coacção, a situação é em tudo idêntica, bem como as razões aduzidas naquele Douto Acórdão para que não se possa declarar a inutilidade superveniente da lide;
- VII - Assim, quer porque o recurso já havia sido admitido, quer porque se mantém o interesse na Decisão do mesmo, quer porque, muito respeitosamente embora, se considera o Douto Despacho recorrido, além do mais, inconstitucional, por violação do disposto no Acórdão supra invocado,
- VIII - Deve, salvo sempre melhor opinião de Vossas Excelências, ser o recurso admitido,
5. Este novo recurso foi admitido, por despacho proferido em 25 de julho de 2025, com o seguinte teor:
“Por intermédio da ref.ª … de 24-07-2025 veio AA interpor recurso do despacho prolatado em 17-07-2025, que tem o seguinte teor:
«Uma vez que deixaram de se verificar os pressupostos de internamento involuntário de AA previstos no artigo 15.º da LSM, determina-se o cessar do mesmo.
Consequentemente, fica prejudicado o recurso».
Ora, nos termos do artigo 35.º, n.º 1, da Lei de Saúde Mental, «[d]a decisão tomada nos termos dos artigos 23.º e 25.º, do n.º 4 do artigo 27.º, do n.º 2 do artigo 32.º, e do n.º 3 do artigo 33.º cabe recurso para o Tribunal da Relação competente». Do n.º 2 do mesmo preceito decorre, por seu turno, que têm «legitimidade para recorrer: a) A pessoa cujo tratamento involuntário foi decretado ou confirmado, por si ou em conjunto com a pessoa de confiança; b) O defensor ou mandatário constituído; c) Quem tiver legitimidade para requerer o internamento involuntário nos termos do artigo 16.º».
Do nosso ponto de vista, tal regra de legitimidade não afasta a alusiva ao interesse em agir, aqui aplicável por via das disposições conjugadas dos artigos 37.º da Lei de Saúde Mental e 401.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, dispondo este último que «[n]ão pode recorrer quem não tiver interesse em agir».
Como enfatiza o Sr. Conselheiro Pereira Madeira (Código de Processo Penal Comentado, AA.VV, Almedina, 2014, p. 1283), está em causa, «por esta via, assegurar a ligação do recorrente ao objecto do processo por forma a permitir que o desfecho do litígio satisfaça um interesse concreto assente ou relacionado directamente com o concreto objecto da causa».
Neste conspecto, e salvo o devido respeito por entendimento diverso, estamos em crer que o internado e o defensor apenas terão interesse em agir no âmbito de recurso de decisão que ordene ou mantenha o internamento (neste mesmo sentido, e ainda que a propósito do diploma anterior à Lei n.º 35/2023, de 21/07, vide António João Latas e Fernando Vieira, Notas e Comentários à Lei de Saúde Mental, Coimbra Editora, 2004, p. 182).
Tal não sucede no presente caso na parte em que o recurso incide sobre a decisão de cessação do internamento involuntário.
Questão diversa prende-se, do nosso ponto de vista, com o decidido no que toca a ficar prejudicado o recurso anteriormente admitido por despacho prolatado em 16-07-2025.
Nessa parte o mecanismo processual que se nos antolha adequado para reagir é, não a reclamação prevista no artigo 405.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, mas efectivamente o recurso (neste sentido veja-se a decisão singular proferida Tribunal da Relação de Évora em 27-02-2006 e disponível, em texto integral, em www.dgsi.pt).
Assim, por ser tempestivo, na aludida parte legalmente admissível e tendo a recorrente legitimidade para o efeito, ao abrigo do disposto nos artigos 35.º, n.º 2, alínea b), e 37.º da Lei de Saúde Mental, e 399.º, 400.º, n.º 1 a contrario, 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, alínea a), 408.º, a contrario, 411.º, n.º 1, alínea a), e 414.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, admito o recurso interposto por AA através da ref.ª … de 24-07-2025, recurso que sobe imediatamente, nos próprios autos, e tem efeito meramente devolutivo.
Notifique o Ministério Público nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 411.º, n.º 6, e 413.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal.”
5. Cumprido o disposto no artigo 411.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, veio o Ministério Público apresentar resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Formulou as seguintes conclusões:
“I. AA não se conformando com a decisão (datada de 17.07.2025, com a referência …) que decidiu:
«Uma vez que deixaram de se verificar os pressupostos de internamento involuntário de AA previstos no artigo 15.º da LSM, determina-se o cessar do mesmo.
Consequentemente, fica prejudicado o recurso»,
Veio dela interpor recurso.
II. Salvo o devido respeito, entendemos que não assiste razão à recorrente.
III. O presente Processo iniciou-se com a decisão de Confirmação Judicial do Internamento de Urgência da aqui Recorrente, em 14 de maio de 2025.
IV. No dia 30.06.2025 realizou-se a sessão conjunta, ocasião em que a Mma Juiz questionou a ora recorrente «A senhora terá consciência que se tem de sujeitar a tratamento, não é isso?», tendo a ora recorrendo dito «sim, sim, com certeza» (cfr. gravação do dia 30.06.2025 do CITIUS MEDIA STUDIO, minuto 00:35 a 00:50 minutos).
V. Em momento algum (daquela sessão conjunta) a ora recorrente manifestou que aceitava o tratamento, apenas tendo transmitido que tinha consciência que se tinha se sujeitar a tratamento.
VI. Por sentença proferida em 11.07.2025 foi determinada a manutenção do tratamento involuntário.
VII. Em 14 de Julho de 2025 foi interposto recurso da Sentença atrás referida, pedindo-se que «o Processo ser reenviado ao Tribunal que a elaborou, para que o mesmo refaça a Decisão, e nomeadamente para que, considerando que não existe nos autos prova de que o consentimento da Recorrente para o tratamento não seja válido e eficaz, nem de que a mesma não tenha discernimento para o prestar, declare a cessação do tratamento involuntário, por falecerem os motivos que levaram ao mesmo» (ref.ª … de 14.07.2025).
VIII. Tal recurso foi admitido através do despacho com a Refª. …, de 16 de julho de 2025.
IX. Ora, posteriormente, com a ref.ª … de 16.07.2025, foi junto aos autos Relatório de Avaliação Clínico Psiquiátrica (datado de 15.07.2025) concluindo que «AA, padece de doença mental grave (Perturbação Esquizoafetiva), em relação à última avaliação clinico-psiquiátrica evidencia melhoria clinica, encontrando-se a sintomatologia psicótica esbatida e o humor a tender para a eutimia. Apresenta insight parcial para a situação clínica, aceitando a terapêutica proposta. Assim somos da opinião que já não estão reunidos os pressupostos para tratamento involuntário».
X. Naquela referência foi ainda junta declaração da utente em que refere «foi-me dispensada e compreendo a necessidade de manter tratamento psiquiátrico, a que acedo voluntariamente, consciente da minha situação de doença e riscos dai inerentes. Foram-me explicados e compreendi os Direitos e Deveres do Utente constantes dos artigos 7 e 8º da Lei de Saúde Mental (Lei n.º 35/2023 de 21 de julho)».
XI. Assim, atenta a informação segundo a qual a ora recorrente não se recusava ao tratamento, impunha-se que o tribunal apreciasse a questão, o que fez.
XII. Na verdade, verificando que deixou de se verificar o pressuposto do internamento involuntário previsto no artigo 15º, nº 1, al: b), da Lei de Saúde Mental, o Ministério Público promoveu se declarasse cessado o internamento involuntário da internanda e se ordenasse o arquivamento dos autos (nos termos do artigo 26º da mesma Lei) (ref.ª 100420557 de 16.07.2025).
XIII. E, por despacho com a referência … foi decidido «Uma vez que deixaram de se verificar os pressupostos de internamento involuntário de AA previstos no artigo 15.º da LSM, determina-se o cessar do mesmo.
Consequentemente, fica prejudicado o recurso» (sublinhado nosso).
XIV. Ora, o recurso a que o despacho com a referência … alude é o recurso (de 14.07.2025) da sentença de 11.07.2025, que determinou «o tratamento involuntário».
XV. Atentos os novos elementos juntos aos autos, com a ref.ª … de 16.07.2025, ocorreram circunstâncias que impunham o cessamento do tratamento involuntário.
XVI. Assim, ao determinar o cessamento do tratamento involuntário, tornou-se inútil o prosseguimento dos autos (ou in casu do recurso).
XVII. A instância extingue-se, entre outras situações, por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide (artigo 277°, al. e) do CPC.
XVIII. «I - A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objeto do processo. II - A lide torna-se inútil se ocorre um facto, ou uma situação, posterior à sua instauração que implique a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por falta de efeito.» (in: www.dgsi.pt; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, 19/06/2024, Relatora SUSANA BARRETO).
XIX. A ora recorrente interpôs recurso, em 14.07.2025 (ref.ª … de 14.07.2025) visando que se declarasse «a a cessação do tratamento involuntário, por falecerem os motivos que levaram ao mesmo».
XX. Ora, o fim pretendido pela recorrente (com o recurso de 14.07.2025) foi alcançado na pendência dos autos.
XXI. Assim, no caso vertente, a inutilidade do recurso verificou-se com a decisão de cessação do tratamento involuntário.
XXII. Assim, o Despacho com a ref.ª …, de 17 de Julho, não é nulo, não existindo violação dos artigos 613º. nº. 1, 615º. nº. 1 d) e nº. 4 e 617º. nº. 1 do C.P.C.
XXIII. Por todo o exposto, considera o Ministério Público que se deve manter a decisão recorrida, termos em que, sendo negado provimento ao Recurso interposto pelo Recorrente farão V.ªs Ex.ªs JUSTIÇA!!”
6. Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer no sentido da improcedência do recurso, exprimindo concordância com a resposta apresentada pelo Ministério Público junto da primeira instância.
7. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II – QUESTÕES A DECIDIR.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – o segmento decisório que considerou prejudicado o primeiro recurso interposto e admitido –, a questão a examinar e decidir prende-se unicamente com a inutilidade superveniente do recurso interposto da sentença que manteve o tratamento compulsivo.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO.
O artigo 27.º da Constituição da República Portuguesa estabelece, sob a epígrafe “Direito à liberdade e à segurança” (os destacados são nossos):
1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.
2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
3. Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
a) Detenção em flagrante delito;
b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;
c) Prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;
d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;
e) Sujeição de um menor a medidas de protecção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;
f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;
g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;
h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.
4. Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.
5. A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.
Nos presentes autos, a Requerida AA foi sujeita a medida de internamento compulsivo, confirmada e mantida por autoridade judicial competente, tendo interposto recurso da sentença proferida nos autos que, com data de 11 de julho de 2025, decretou a manutenção da medida imposta.
Posteriormente a tal sentença recorrida, foi proferida decisão que considerou que se deixaram de se verificar os pressupostos de internamento involuntário de AA, previstos no artigo 15.º da LSM, e determinou o cessar do mesmo. Sucede que nesta mesma e última decisão, o Tribunal recorrido considerou prejudicado o recurso que fora interposto pela Requerida e já fora admitido nos autos.
É contra este segmento decisório que se insurge a ora Recorrente.
A questão que importa apreciar é a de saber se com a cessação do internamento compulsivo se tornou supervenientemente inútil o recurso que a Requerida interpusera da sentença que confirmou aquela medida privativa da liberdade.
Só na vertente da inutilidade superveniente se pode enquadrar aquilo que o despacho recorrido, sem grande rigor técnico, referiu ao declarar que considerava “prejudicado o recurso”.
Na falta de disposição expressa sobre essa questão na Lei de Saúde Mental (Lei nº 35/2023, de 21 de julho, doravante LSM), deverá ter-se em conta que o artigo 37.º da LSM, sob a epígrafe “Legislação subsidiária”, estabelece que “Nos casos omissos aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal” e que, por seu turno, o CPP (no seu artigo 4º) nos remete para o que se estabelece no ordenamento processual civil (artigo 277º, al. e, do CPC).
Os preceitos indicados têm a seguinte redação:
- Artigo 4.º do Código de Processo Penal (Integração de lacunas): “Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.”.
- Artigo 277.º do Código de Processo Civil (Causas de extinção da instância):
“A instância extingue-se com:
(…)
e) A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide”.
Em paralelo com tais normativos, importa ter presente o disposto no artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (doravante, RRCEE), aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro:
Artigo 13.º
Responsabilidade por erro judiciário
1 – Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto.
2 – O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
É vasta a jurisprudência do Tribunal Constitucional acerca da questão da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de considerar supervenientemente inútil o recurso de decisão que aplicou medida de coação privativas de liberdade, por força de desenvolvimentos posteriores no processo.
Logo no Acórdão n.º 90/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., págs. 267 e seguintes), e em alguns outros que se lhe seguiram (cfr. Acórdãos n.ºs 339/87, 137/92, 144/93 e 116/96, os dois últimos disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), firmou o Tribunal Constitucional o entendimento de que, em casos de detenção ou prisão preventiva, mantém interesse o recurso de constitucionalidade interposto da decisão que ordena a privação da liberdade, ainda que no subsequente desenrolar do processo se venha a confirmar ou modificar essa medida de privação de liberdade. Como se escreveu nesse acórdão, “existindo o direito fundamental a pedir uma indemnização contra o Estado em caso de prisão ilegal (art. 27º, n.º 5, da Constituição), se o Tribunal Constitucional viesse a abster-se de conhecer do recurso, por considerar este inútil, estaria afinal a precludir o exercício pelo recorrente [...] do direito que lhe é reconhecido por aquele preceito constitucional”.
Outro exemplo dessa jurisprudência pode ser encontrado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2003 - ali decidiu-se julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma segundo a qual em caso de manutenção superveniente da prisão preventiva por nova decisão do juiz de instrução antes de decorrido o prazo a que se refere o artigo 213.º, n.º 1, do CPP, na pendência de recurso da primeira decisão, se torna inútil o conhecimento deste recurso. Para além do mais, ponderou o Tribunal Constitucional que a utilidade no conhecimento do recurso interposto do despacho que aplicou a prisão preventiva, ainda que ele tenha sido confirmado por despacho subsequente, pode constatar-se quando se está perante a invocação do direito a uma indemnização que pode advir da ilegalidade ou do erróneo julgamento dos pressupostos da aplicação da medida de coação pelo primeiro despacho (artigo 225.º do Código de Processo Penal).
Por outro lado, o Tribunal Constitucional já teve o ensejo de se pronunciar sobre o artigo 13º, nº 2, do RRCEE supratranscrito, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
No Acórdão do TC nº 363/2015, podem colher-se as seguintes razões: “[…] «[S]endo a função jurisdicional e as decisões em que ela se exprime o que são, então não há de poder atribuir-se qualquer relevo a um alegado ‘erro’ judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o ‘erro’ (o puro ‘erro’) só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto. É, pois, desde logo e fundamentalmente, uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo n.º 2 do artigo 13.º – e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos diretamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta.» (v. idem, ibidem, pp. 163-164) A doutrina sufragada por este Tribunal desde o mencionado Acórdão n.º 90/84 destaca, assim, e de acordo com este entendimento, o ilogismo institucional – “no fundo, a subversão do princípio da divisão dos poderes, enquanto também aplicável à organização da ordem judiciária” – que representaria uma solução que prescindisse de um requisito como aquele que vem estatuído no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP: uma decisão judicial transitada em julgado não deve poder vir a ser posteriormente «desautorizada» – isto é, em concreto afastada ou desconsiderada –, mesmo que só incidentalmente e para efeitos de verificação de erro de julgamento relevante em sede de responsabilidade civil por «facto» da função jurisdicional, por outro tribunal “porventura até de diferente espécie ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior” (cfr. Cardoso da Costa, ‘Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado…’, cit., p. 164). (…) 13. Analisando agora a solução prevista no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, importa começar por recordar o amplo espaço de conformação legislativa quanto à definição do âmbito e dos pressupostos da responsabilidade do Estado reconhecido pelo artigo 22.º da Constituição (cfr. supra o n.º 8). Em especial, no que se refere à responsabilidade do Estado por erro judiciário, esta interfere, pelas razões já mencionadas, com a própria configuração e modo de funcionamento do sistema judiciário, tal como prefigurados na Constituição (cfr. supra os n.os 9, 10 e 12), ampliando desse modo ainda mais o campo de intervenção do legislador ordinário. Assim, para além da previsão genérica do direito à reparação pelos ilícitos cometidos pelos titulares dos órgãos do estado e demais entidades públicas, que, justamente por ser geral, também deve abranger os juízes e os ilícitos que estes eventualmente cometam no exercício das respetivas funções, não é possível a partir do citado preceito constitucional determinar com mais exatidão os contornos do direito à indemnização fundada em erro judiciário. Certo é que a mencionada solução legal não exclui em absoluto tal direito, limitando-se a estabelecer que o erro judiciário relevante seja previamente reconhecido pela jurisdição competente, o mesmo é dizer, que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação (ou, porventura, de uma revisão oficiosa). Ao fazê-lo, o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não está a interferir com qualquer âmbito de proteção constitucionalmente pré-definido (muito menos a invadi-lo). E, por isso mesmo, também não se pode dizer que essa norma revista a natureza de uma lei harmonizadora destinada a resolver um qualquer conflito de bens jurídicos fundamentais ou de uma lei restritiva de um direito fundamental (sobre estas categorias e as consequências jurídicas que a elas vão associadas na dogmática dos direitos fundamentais, v., por todos, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 216-217 e, quanto às leis restritivas, p. 277 e ss., e quanto às leis harmonizadoras, p. 298 e ss.). Em rigor, a norma do artigo 13.º, n.º 2, RCEEP concorre, juntamente com a do n.º 1 do mesmo artigo, para a configuração do conteúdo do direito de indemnização emergente da responsabilidade do Estado por erro judiciário do Estado. É, nessa exata medida, uma lei conformadora ou constitutiva: “não restringe o conteúdo do direito ou da garantia, porque é a ela própria que cabe determiná-lo, para além do conteúdo mínimo do direito ou do núcleo essencial da garantia, que decorrem da Constituição” (cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 213). Na verdade, o direito à indemnização por erro judiciário civil foi fixado, na parte respeitante à determinação de quem é o juiz competente para realizar a apreciação da decisão judicial danosa, legislativamente pelo artigo 13.º, n.º 2, em causa (cfr. Vieira de Andrade, ibidem, que, na nota 63, refere como exemplo de direitos e faculdades cujo conteúdo é juridicamente construído pelo legislador, entre outros, os direitos às indemnizações previstas nos artigos 27.º, n.º 5, e 29.º, n.º 6, da Constituição – isto é: as indemnizações por erro judiciário penal). Como explica Vieira de Andrade, ‘apesar do poder legislativo de configuração, ao juiz cabe ainda verificar o respeito pelo conteúdo essencial do direito (que será em regra o seu conteúdo mínimo) […], avaliado segundo um critério de evidência’ (v. o Autor cit., ob. cit., p. 214). Ora, como referido, a norma do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não elimina o direito à indemnização por erro judiciário, limitando-se a acomodar no regime respetivo, as exigências correspondentes à estrutura e ao modo de funcionamento do sistema judiciário constitucionalmente consagrado. Inexiste, por conseguinte, qualquer evidência de desrespeito pelo conteúdo essencial do referido direito. Se à partida, e de modo constitucionalmente legítimo, o direito à indemnização em causa é delimitado negativamente em função da possibilidade legal de reapreciação judicial pelo tribunal competente antes do trânsito em julgado da decisão tida como danosa, também não se coloca qualquer problema de acesso ao direito. Este último, enquanto direito-garantia, pressupõe um direito material, que, no caso, inexiste. Finalmente, as referidas exigências orgânico-funcionais relacionadas com o sistema judiciário explicam satisfatoriamente a solução legal, afastando a ideia de que a mesma seja arbitrária. […]”
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional apreciou a questão da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de considerar supervenientemente inútil o recurso de decisão que aplicou medidas de coação não privativas de liberdade, por força da sua extinção temporal ou revogação na pendência do recurso, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa1.
E voltou a reafirmar a jurisprudência a que fizemos alusão.
Tendo em conta a natureza da medida restritiva da liberdade que está em causa nos presentes autos e seguindo de perto a jurisprudência do Tribunal Constitucional, podemos assentar no seguinte:
- a hipótese dos presentes autos, tal como a que foi apreciada no Acórdão do TC n.º 71/2005, justifica que a utilidade do recurso à luz da Constituição se alcance por via do disposto no artigo 27.º, n.º 5, da Constituição, precisamente porque está em causa uma privação da liberdade;
- o artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE (cuja conformidade à Constituição o Tribunal aceitou no Acórdão n.º 363/2015) prevê que o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente;
- a jurisprudência constitucional mostra abertura para a consideração de “[…] outros efeitos – ainda que ‘residuais’ – que devam ter-se por juridicamente relevantes” (Acórdão n.º 71/2005) em que possa alicerçar-se a utilidade do recurso, designadamente se esses efeitos condicionarem o exercício de direitos previstos na Constituição. Nesses casos, a utilidade do recurso é garantida, ainda, pelo disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Por tudo isto, não pode acolher-se o entendimento subjacente ao despacho recorrido, pois não está prejudicada a utilidade da apreciação do recurso que a Requerida AA interpôs da sentença datada de 11 de julho de 2025.
Cabe concluir como fez o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 277/2022:
“De todo o modo, e sem prejuízo da discussão sobre a correta qualificação deste requisito, o certo é que o direito à reparação dos danos decorrentes de erro judiciário é necessariamente mediado pela condição prevista no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE.
À luz do exposto, admitindo que a interpretação restritiva do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE propugnada pela decisão recorrida2 e pelo Ministério Público assenta em argumentos razoáveis – não cabendo, todavia, ao Tribunal Constitucional resolver essa questão –, a verdade é que a sua adoção pelos tribunais aos quais cabe apreciar a pretensão indemnizatória (que não estão, evidentemente, vinculados pela interpretação do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE afirmada pelo tribunal penal que julga inútil o recurso) está longe de ser certa: ela não resulta de lei expressa, não corresponde a qualquer corrente jurisprudencial consolidada (e, pelo contrário, há até sinais adversos, no sentido de obstar à verificação da condição quando não há conhecimento do mérito do recurso – v., por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06/12/2016, proferido no processo n.º 2746/16.2T8PRT.P1, disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/8006/), nem se pode, sequer, extrair como consequência necessária da generalidade das críticas doutrinárias dirigidas àquela norma.
Vale o exposto por dizer que existe um risco – que nada tem de desprezável – de a decisão de declaração da inutilidade do recurso levar à supressão da viabilidade da ação indemnizatória contra o Estado. E a questão tem de ser colocada precisamente nestes termos – ou seja, em termos de risco –, pois (insiste-se) nem o Tribunal Constitucional tem competência, nesta sede, para fixar a interpretação do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE que os outros tribunais devem aplicar, nem tal interpretação se revela, na específica hipótese em apreço, segura. É uma tese interpretativa, que os tribunais da pretensão indemnizatória poderão ou não acolher.
Colocada a questão nesses termos, cumpre, então, questionar: a quem deve ser alocado o risco – um risco que é, nem mais nem menos, de violação de um direito (ou, pelo menos, um princípio) de reparação de danos pelo Estado consagrado no artigo 22.º da Constituição – de o tribunal que aprecia a pretensão indemnizatória não aceitar a interpretação restritiva do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE e, consequentemente, negar essa mesma pretensão com esse fundamento?
A resposta só pode ser uma: esse risco nunca pode onerar o arguido.
Não pode, desde logo, porque uma compreensão exigente do direito ao recurso não pode coexistir com a probabilidade de o respetivo sacrifício interferir com pretensões conexas com acolhimento constitucional. Como vimos (item 2.2., supra), a jurisprudência constitucional mostra abertura para a consideração de “[…] outros efeitos – ainda que ‘residuais’ – que devam ter-se por juridicamente relevantes” (Acórdão n.º 71/2005) em que possa alicerçar-se a utilidade do recurso, designadamente se esses efeitos condicionarem o exercício de direitos previstos na Constituição. Mas também, e nesta sequência, porque a distribuição do risco é grosseiramente desigual: do lado dos tribunais, o risco é o de proferir uma decisão inútil; do lado do arguido, o risco é o de ver suprimido o direito à reparação dos danos e violado o disposto no artigo 22.º da Constituição.
Trata-se, enfim, de um risco não permitido de lesão (irreversível) de um direito, risco cujo afastamento é, ainda, exigido enquanto afirmação e tutela do próprio direito à reparação dos danos por atividade do Estado. Por outras palavras, o artigo 22.º da Constituição não consente um risco sério de ocorrer, em sinal contrário à lei fundamental (e regressando ao Acórdão n.º 236/2004), a supressão da “[…] principal função do instituto da responsabilidade civil – a função reparadora – que especialmente garante aos particulares o ressarcir de danos causados por atos praticados pelos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do estado e das entidades pública”.
Se esse risco não pode ser alocado ao arguido, por via da afirmação da inutilidade do recurso, o reverso necessário desta conclusão é que o recurso terá de assegurar, também, esta utilidade secundária (ou “residual”, nas palavras do Acórdão n.º 71/2005), sob pena de violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição. Contra esta conclusão não vale o argumento de que não é certa a revogação da decisão recorrida – ela nunca é certa até que o recurso seja apreciado”.
Aqui chegados, impõe-se concluir pela procedência do recurso, devendo entender-se que a decisão que declarou prejudicado o recurso assentou numa interpretação do artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi do artigo 4.º do CPP, que é incompatível com os artigos 27º, nº 5, e 32º da Constituição da República Portuguesa e que, por isso, não pode acolher-se.
Impõe-se revogar o segmento decisório que julgou prejudicado o recurso interposto pela Requerida da sentença proferida em 11 de julho de 2025 e determinar que o mesmo seja substituído por despacho que determine o ulterior processamento desse recurso (com todas as cautelas necessárias à observância do princípio do contraditório, tendo em conta que a decisão ora revogada foi proferida enquanto decorria prazo para apresentação de resposta ao recurso que, obviamente, deverá reiniciar-se).
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IV. DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pela Requerida AA do despacho proferido em 17 de julho de 2025 e, em consequência, em:
i. revogar o segmento decisório que declarou prejudicado o recurso interposto pela Requerida da sentença proferida em 11 de julho de 2025, já admitido por despacho de 16 de julho de 2025;
ii. determinar que o mesmo seja substituído por despacho que determine o ulterior processamento desse recurso.
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Sem custas.
D.N.
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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).
Évora, 14 de outubro de 2025
Jorge Antunes (Relator)
J. F. Moreira das Neves (1º Adjunto)
Carla Francisco (2ª Adjunta)
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1 Cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 277/2022, acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220277.html
2 A interpretação restritiva a que se alude pode ser acedida no relatório do Ac. TC nº 277/2022 e corresponde ao seguinte entendimento: “Argumentam os reclamantes com o artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007 de 31 de dezembro, Lei que consagra o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas. Dispõe esse artigo 13.º, n.º 2, o seguinte: “O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”. À primeira vista parece que esta norma vem trazer apoio à pretensão dos reclamantes. Mas há uma petição de princípio no argumento. Na normalidade das situações, os recursos findam com uma decisão de mérito. No caso, seria a revogação ou a confirmação da decisão recorrida. E o legislador legisla para a normalidade das situações. Parece-nos ser razoavelmente de pressupor que o legislador da Lei 67/2007 não ponderou a hipótese de o recurso se extinguir por inutilidade superveniente, e, muito menos, quis extinguir esse instituto processual. E, como já explicámos, com a decisão de revogação da ‘decisão danosa’ pelo mesmo Tribunal que a tinha aplicado a inutilidade superveniente ocorreu, automaticamente. A partir daí, esta Relação já nunca iria revogar a decisão danosa, pela incontornável razão que ela já não existia, já tinha sido revogada. Repetindo o que já dissemos, iria apenas emitir uma opinião, aliás, como veremos, não vinculativa. Assim, a norma que os reclamantes citam necessita de uma interpretação restritiva, por ser óbvio que o direito dos arguidos a intentar uma ação de indemnização contra o Estado por danos decorrentes da função jurisdicional não pode ficar limitado pelo facto de a decisão ‘danosa’ ter sido revogada pela instância competente ainda antes de o Tribunal de recurso ter apreciado o mérito do recurso. Salvo melhor opinião, a teleologia da norma supracitada parece ser a de exigir um mínimo de seriedade e sustentação às pretensões indemnizatórias contra o Estado pelo exercício da função jurisdicional. Ou seja, arguido que não recorre de uma decisão e posteriormente vem pretender pedir uma indemnização alegando que a mesma é errada, ilegal ou inconstitucional e lhe causou danos, fica impedido, e bem, de o fazer. Mas se o arguido interpôs recurso da putativa decisão danosa, mas viu este extinguir-se por inutilidade superveniente, nada impede a instauração da ação de indemnização contra o Estado.