Para que se possa afirmar que alguém “infringiu” uma providência cautelar, é necessário que essa mesma providência cautelar contenha, na sua decisão, um comando claro e inequívoco dirigido ao agente, impondo-lhe uma obrigação de agir ou não agir de determinado modo.
Ocorrendo a falta de comunicação regular da ordem judicial subjacente à proavidência de arrolamento, não merece censura a decisão recorrida de não pronúncia.
I – RELATÓRIO
1. No Juízo de Instrução Criminal de Santarém, decorreu a fase de instrução do Processo nº 487/20.5T9ABT, requerida pela arguida AA, na sequência da acusação que contra a mesma foi deduzida pelo Ministério Público e acompanhada pelo assistente BB e na qual lhe foi imputada a prática de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, conjugado com o artigo 375.º do Código de Processo Civil.
2. Por decisão instrutória de 18 de fevereiro de 2025, foi decidido:
“Nestes termos e com os fundamentos expostos, não pronuncio, a arguida AA, pela prática do crime de desobediência qualificada, que lhe veio imputado na acusação pública.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal (1 UC) a imputar ao montante já pago com a constituição de assistente.
Notifique e, oportunamente, arquive.”.
3. Inconformado com tal decisão de não pronúncia, dela interpôs recurso o assistente BB, pedindo que seja revogado o despacho recorrido e substituído por decisão que pronuncie a arguida.
Extraiu o recorrente da sua motivação de recurso as seguintes conclusões:
“1) O Tribunal de Instrução Criminal decidiu pela não pronúncia da arguida com base na seguinte palete argumentativa: i) falta de indícios suficientes de que a arguida sabia que estava legalmente obrigada a indicar a localização dos bens durante a diligência de arrolamento; ii) ausência de uma ordem clara e inequívoca, sustentando que a decisão judicial não impôs expressamente à arguida o dever de revelar a localização dos bens; iii) princípio da legalidade penal (nulla poena sine lege), argumentando que a infração da providência cautelar só pode ser punida se houver um comando explícito e inequívoco; iv) natureza do arrolamento, defendendo que o artigo 406.º do CPC não estabelece um dever expresso de colaboração da parte requerida.
2) O tipo objetivo do ilícito previsto no art. 348.º, CP, pode ser decomposto em diversos elementos, dos quais, (i) a existência de uma ordem ou mandado legítimo; (ii) que seja comunicada ao destinatário pelas vias normais; (iii) que se funde em cominação legal ou em cominação expressa pela autoridade emitente; (iv) a adoção de uma conduta contrária à ordem.
3) O art. 375.º, CPC, determina que o não cumprimento de uma providência cautelar decretada judicialmente configura um crime de desobediência qualificada. Assim, quando um tribunal estabelece uma providência cautelar e o seu destinatário a infringe, este deve ser penalmente responsabilizado nos termos do artigo 348.º, 2, CP.
4) Nos presentes autos verifica-se por parte da arguida a prática de crime de desobediência qualificada, pois a arguida sabia que estava obrigada a indicar a localização dos bens, tendo sido notificada da providência cautelar e teve ciência da ordem judicial.
5) Além disso, a sua recusa em fornecer a informação impediu a realização do arrolamento constitui um claro incumprimento de uma ordem judicial legítima.
6) Acresce que a posterior indicação da localização dos bens não exclui a infração cometida, pois o crime de desobediência consuma-se com a omissão da conduta exigida no momento devido.
7) A decisão de arrolamento determinava a apreensão dos bens, e a arguida foi expressamente questionada pelo oficial de justiça sobre a localização.
8) A recusa em responder impossibilitou a concretização da diligência, sendo esta uma violação de um comando judicial válido.
9) O artigo 375.º do CPC prevê expressamente que a infração a uma providência cautelar constitui crime de desobediência qualificada, o que confere base legal para a responsabilização penal da arguida.
10) O crime de desobediência qualificada está expressamente previsto no artigo 375.º do CPC, pelo que não se verifica qualquer violação do princípio nulla poena sine lege.
11) A decisão judicial não precisa de explicitar a ameaça de sanção penal, uma vez que a infração já está tipificada na lei.
12) A arguida tinha conhecimento da ordem e a violou de forma intencional, preenchendo os elementos do tipo penal.
13) O artigo 406.º do CPC estabelece que o arrolamento pressupõe a descrição, avaliação e depósito dos bens, sendo essencial a colaboração do detentor.
14) O comportamento da arguida impediu a execução da providência cautelar, frustrando a finalidade do arrolamento.
15) Permitir que o destinatário da ordem ignore o seu dever de colaboração tornaria ineficazes as medidas judiciais, abrindo um precedente grave para a autoridade dos tribunais.
16) A arguida deliberadamente recusou-se a colaborar e apenas revelou a localização dos bens muito tempo depois, quando o objetivo da diligência já não podia ser alcançado.
17) A sua afirmação de que os bens estavam "à frente do nariz dele" e "bem guardados" demonstra que tinha capacidade de cumprir a ordem e, conscientemente, não o fez.
18) O crime de desobediência qualificada não exige que a ordem seja reiterada para se consumar, bastando a recusa inicial.
19) O Tribunal a quo deveria ter decidido pelo despacho de pronúncia. Ao proferir despacho de não pronúncia violou o Tribunal recorrido, smo, o disposto nos arts. 348.º, CP, e 375.º, CPC.”.
4. O recurso foi admitido, por ser tempestivo e legal.
5. Cumprido o contraditório, foi apresentada resposta ao recurso pela arguida AA, pugnando pela improcedência do recurso, tendo a mesma formulado as seguintes conclusões:
“1 – Insurge-se o assistente contra o douto Despacho proferido, entendendo que o mesmo faz uma interpretação errada do disposto nos artigos 348.º do Código Penal e 375.º do Código de Processo Civil;
2 – Pois para o assistente, o “crime de desobediência qualificada está expressamente previsto no artigo 375.º do CPC, pelo que não se verifica qualquer violação do princípio nulla poena sine lege.”
3 – Mais, “A decisão judicial não precisa de explicitar a ameaça de sanção penal, uma vez que a infração já está tipificada na lei.”, pois “A arguida tinha conhecimento da ordem e a violou de forma intencional, preenchendo os elementos do tipo penal.”
4 – Não obstante o douto entendimento do assistente, o Despacho recorrido não erra na aplicação do direito e aplica-o, no presente caso, e como não poderia deixar de o ser, em respeito do princípio nulla poena sine lege.
5 – Porquanto, o crime de desobediência qualificada, cominação prevista no artigo 375.º do CPC, implica o conhecimento prévio do conteúdo sentença que decretou a providência cautelar, ou a cominação legal da sua violação, sob pena de se violar o princípio nulla poena sine lege.
6 – Ora, e como resulta do facto indiciado 4, a decisão que decretou a providência cautelar é datada de 10.12.2019, e em referência à mesma, que consta, entre o mais, no documento n.º 2 anexo ao requerimento apresentado pela arguida nos autos aos 04.04.2023, a providência ter sido decretada sem audição prévia da aqui arguida.
7 – Pelo que a arguida só seria citada da providência, após a realização das diligências de arrolamento.
8 – E como não resultou provado, que “Tenha sido comunicado à arguida que estava legalmente obrigada a responder à pergunta que lhe foi feita pelo Sr. Escrivão de Direito.”;
9 – Logicamente, também não podia ser dado como provado, que “Que a arguida tenha agido consciente de que a sua conduta era criminalmente legalmente punida.”
10 – Até porque como tem entendido a jurisprudência, “Todavia, para que se verifique a prática do referido crime desobediência ao cumprimento de uma sentença proferida em procedimento cautelar, é necessário, entre o mais, a notificação/comunicação que possibilite ao agente/destinatário tomar conhecimento e ficar elucidado sobre o conteúdo integral da ordem, que no caso é uma decisão judicial;” – negrito e sublinhado nosso (Ac. TRE, datado de 29.11.2016, com o n.º de processo 1627/09.0TAFAR.E2 e disponível online.)
11 – Motivo pelo qual, não pode merecer qualquer censura, a douta decisão de não pronúncia.”.
6. Também o Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pelo assistente, pugnando pela sua improcedência. Extraiu as seguintes conclusões:
“1. O recurso interposto pelo recorrente reporta-se à decisão instrutória de não pronúncia da arguida, AA pelos factos e ilícito constantes do requerimento de abertura de instrução apresentado por esta e tem por objeto saber se os indícios recolhidos (em inquérito e instrução) são suficientes para pronunciar aquela pela prática de um crime de desobediência, p.p. pelo artº 348º, nº 1, al. a) e 2 do Código Penal;
2. Mais do que uma questão de suficiência ou insuficiência de indícios, parece-nos que a questão a decidir é muito mais de direito do que de factos, pois o que está em causa é saber se, ao não indicar a localização dos bens objeto do arrolamento, a arguida “infringiu a providência decretada.”;
3. Devemos dizer que, se num primeiro momento tenhamos pugnado por um despacho de pronúncia, a verdade é que, após estudo mais aprofundado, concluímos que a conduta da arguida é atípica, não consubstanciando a prática do sobredito ilícito;
4. Com efeito, a conduta ilícita prevista no artº 375º do CPCivil deve traduzir-se em “infringir” a providência decretada;
5. Secundando o recorrente na sua extensa dissertação sobre a figura do procedimento cautelar de arrolamento, diremos que o arrolamento consiste na descrição e avaliação dos bens a arrolar, que será lavrado em auto;
6. Tal como refere Lebre de Freitas in Código de Processo Civil anotado Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, p. 167 e sgts, “O arrolamento, a cuja realização se aplicam subsidiariamente as disposições respeitantes à penhora, desdobra-se em três operações sucessivas, que ficam a constar de auto elaborado pelo funcionário judicial e assinado por ele, pelo depositário e pelo possuidor ou detentor (substituído, se não puder ou não quiser assinar, por duas testemunhas).” e consistem em descrever, avaliar e depositar os bens arrolados;
7. Como procedimento cautelar, o arrolamento pode ser instaurado como preliminar ou incidente da ação de divórcio, ou separação judicial de pessoas e bens e pode ser decretado sem prévia audição do requerido, caso em que este será notificado da decisão após a realização da diligência;
8. Conforme refere Lebre de Freitas, in ob cit. P. 64 e segts “O fim do preceito é impedir que o requerido, não acatando a providência, crie uma situação que impossibilite a futura execução específica da sentença que contra ele venha a ser proferida e estes casos devem, por isso, ser tidos como abrangidos pela garantia penal.”;
9. No caso do arrolamento, o decretamento da providência implica a apreensão dos bens e a sua entrega a um depositário, sendo que, tal como refere o autor cit., “a medida de tipo executivo integra a própria realização da providência e tem lugar nos autos do respetivo procedimento.”;
10. No que tange ao crime de desobediência, previsto no art. 348º do CPenal, tal ilícito é pressupõe, ao nível do tipo objetivo, como seus elementos constitutivos:
- A ordem ou mandado;
- Legalidade substancial e formal dessa ordem ou mandado;
- Competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão e;
- Regularidade da sua transmissão ao destinatário (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal anotado pág. 1089);
11. Ao nível do tipo subjetivo, o ilícito em análise apenas é punível a título de dolo, ou seja, o tipo mostra-se preenchido logo que alguém incumpre, consciente e voluntariamente, uma ordem ou mandato legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.”;
12. Ora, no caso dos autos, o arrolamento foi decretado sem audição previa da arguida (requerida no procedimento cautelar), e, no dia da realização da providência de arrolamento e antes de ser citada da decisão, foi a mesma questionada sobre a localização de alguns bens constantes da lista de bens a arrolar (os quais não foram encontrados no local indicado pelo requerente);
13. E Face à não indicação do local, o funcionário limitou-se a fazer constar do auto de arrolamento tal incidente, não tendo, nomeadamente, cominado a arguida com o crime de desobediência caso persistisse na recusa de indicação da localização dos bens;
14. Ora, “infringir a providência decretada” há de traduzir-se numa ação ou omissão de impossibilite a futura execução específica da sentença, ou seja, o agente terá de ocultar, alienar ou destruir o bem arrolado;
15. Mas, para que se pudesse considerar a recusa da arguida criminalmente relevante, seria necessário que a mesma tivesse tido conhecimento prévio de tal decisão que decretou o arrolamento;
16. Com efeito não se pode desobedecer voluntária e conscientemente a uma ordem ou mandado que ainda não foi transmitido ao destinatário;
17. Na falta de tal comunicação (citação) da decisão de arrolamento, impunha-se que o funcionário que procedia à diligência tivesse cominado a arguida com o crime de desobediência face à recusa desta em indicar o local onde os bens poderiam ser encontrados, o que não sucedeu;
18. Em síntese, para além da falta de notificação da decisão que decretou a providência (caso em que seria desnecessária qualquer cominação feita por funcionário), não foi a arguida expressamente cominada com o crime de desobediência quando questionada sobre a localização de alguns dos bens a arrolar;
19. Com efeito, pese embora, no caso dos autos, exista uma ordem ou mandado (decisão de decretamento da providência) formal e substancialmente legal, emitida por entidade competente, aquando da recusa, tal decisão ainda não havia sido transmitida ao destinatário uma vez que a arguida apenas foi citada de tal decisão após a realização da diligência de arrolamento;
20. Assim, para que a recusa ao pedido de indicação do local dos bens a arrolar pudesse (em tese) ser penalmente sancionada com o crime de desobediência seria necessário que o funcionário tivesse cominado tal comportamento com o crime de desobediência (independentemente de saber se o funcionário teria legitimidade para tal uma vez que no caso nem sequer se coloca tal questão);
21. Por tudo o exposto, impõe-se concluir inexistirem, nos autos, indícios suficientes da prática de factos suscetíveis de configurarem a prática do crime de desobediência, p.p. pelo artº 348º do CPPenal, pelo que bem andou o Mmo Juiz do Tribunal “ a quo” ao proferir despacho de não pronúncia.”.
7. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
*
II – QUESTÕES A DECIDIR.
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a decisão de não pronúncia proferida nos autos –, as questões a examinar e decidir prendem-se com: a suficiência dos indícios para pronunciar a arguida pelos factos e ilícito constante da acusação deduzida.
*
III – TRANSCRIÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA.
Da decisão recorrida consta o seguinte:
“Decisão Instrutória
I – Síntese da tramitação processual:
Findo o inquérito, o MºPº deduziu acusação contra a arguida AA, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, conjugado com o artigo 375.º do Código de Processo Civil.
Aí se alega em síntese que, nos autos de arrolamento com o n.º 77/19.5T8PSR-D, apensos ao processo de divórcio em que são partes a arguida e BB, por despacho de 10-12-2019, decidiu-se julgar procedente “…o procedimento cautelar de arrolamento requerido por BB, como incidente de ação de divórcio, e consequentemente, decretado o arrolamento dos bens identificados na relação junta como Documento 1 do Requerimento Inicial”, sendo que tais bens incluíam “(máquinas e alfaias agrícolas) alegadamente adquiridos de 2014 a 2016, no âmbito de execução do projeto agrícola e das atividades dele resultantes, bens esses que se encontram alegadamente na Quinta …, ….”.
Na sequência da diligência de arrolamento, ocorrida em 27-02-2020, não foram localizadas as máquinas supra referidas e o Escrivão Adjunto CC, que presidia à diligência, questionou a arguida sobre a localização das máquinas e demais alfaias agrícolas indicadas no requerimento inicial, a fim de dar cumprimento ao arrolamento.
A arguida, não indicou o local concreto onde tais máquinas se encontravam, apesar de as ter na sua posse e saber o local onde se encontravam, negando-se a faze-lo de imediato e naquele dia, apesar de a isso se encontrar obrigada.
O que impediu o Sr. Escrivão Adjunto de, naquele dia, realizar o arrolamento, tendo a arguida agido de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a ordem que lhe foi dirigida era legítima e regularmente comunicada por funcionário competente e que portanto lhe devia obediência, sabendo pois que a sua conduta era proibida e punida por lei.
O requerente do arrolamento, BB, constituiu-se assistente e deduziu acusação por adesão à acusação pública.
*
Inconformada, a arguida requereu a abertura da instrução, alegando em síntese que:
- As máquinas referidas na acusação haviam sido adquiridas pela arguida para um projeto de “Jovem Agricultora”;
- A arguida tinha receio do extravio dessas máquinas pelo seu ex-marido, e portanto removeu-os da localidade de …;
- O arrolamento em causa foi requerido pelo arguido apenas para que o requerente – ex-marido da arguida – pudesse entrar na nova residência da mesma e obter provas da sua nova relação;
- Aquando da diligência em causa a arguida tinha várias queimaduras e estava em convalescença, não tendo capacidade para defender o seu património;
- Tendo afirmado que logo que fosse notificada para indicar o local onde estavam tais bens o faria de imediato, o que fez no dia 06-01-2021.
- Pelo que não desrespeitou a decisão do tribunal.
Requer o seu interrogatório, bem como a audição de uma testemunha, e junta documentos (com o RAI e no decurso da instrução).
No decurso do seu interrogatório, a arguida, para além do mais, referiu que recusou informar do paradeiro das máquinas na diligência em causa, na sequência de conselho do seu Advogado (que era também seu defensor nos autos), o que determinou a substituição do seu defensor, por potencial conflito de interesses.
*
Produzida a prova requerida, teve lugar debate instrutório, com observância das legais formalidades.
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Não há nulidades ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da instrução.
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II – Da fase processual da instrução; critérios de decisão:
A presente fase processual visa, nos termos do artigo 286º, n.º 1 Código de Processo Penal “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter a causa ou não a julgamento.”
O critério determinante de tal decisão extrai-se do artigo 283º, n.º 1, do mesmo código, norma que estabelece que a decisão de deduzir acusação é tomada se dos autos resultarem indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente.
O n.º 2 do citado artigo determina então que os indícios se consideram suficientes “sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.”
Deve então a decisão instrutória ser determinada pelos mesmos critérios que, nos termos da lei, determinam a decisão de acusar ou arquivar os autos, fazendo o julgador um juízo de prognose face à prova constante dos autos de inquérito e aos seus efeitos em audiência de julgamento, ponderando juntamente com esta, a prova que foi produzida no âmbito da instrução, para determinar quais as probabilidades de um eventual julgamento resultar na aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
*
III – Dos factos:
III.1 – Factos indiciados:
Compulsados os autos, julgo suficientemente indiciados os seguintes factos com relevo para a decisão:
1. AA foi casada com BB.
2. No Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Competência Genérica de … – Juiz …, correu termos o processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge com o n.º 77/19.5….
3. Apenso a tais autos, correu termos a providência cautelar de arrolamento dos bens comuns do casal com o número 77/19.5…-D.
4. No referido apenso, por decisão proferida a 10/12/2019, foi “julgado procedente, por suficiente indiciado, o procedimento cautelar de arrolamento requerido por BB, como incidente de ação de divórcio, e consequentemente, decretado o arrolamento dos bens identificados na relação junta como Documento 1 do Requerimento Inicial”.
5. De tal lista, fazia parte dos bens a arrolar as “(máquinas e alfaias agrícolas) alegadamente adquiridos de 2014 a 2016, no âmbito de execução do projeto agrícola e das atividades dele resultantes, bens esses que se encontram alegadamente na Quinta …, …”.
6. A diligência de arrolamento, ou seja, de descrição, avaliação e depósito de bens ou nomeação de fiel depositário, foi realizada no dia 27/02/2020, tendo inicialmente o Senhor Escrivão Adjunto CC, com a cédula …, juntamente com o requerente, o mandatário da arguida e os agentes da PSP designados para acompanharem a diligência, se deslocado à Quinta …, em …, local onde, segundo os autos, se encontravam os bens a arrolar, para cumprimento da diligência determinada.
7. Contudo, naquele local não foram localizadas quaisquer bens mencionados no requerimento de arrolamento, designadamente as máquinas e alfaias agrícolas.
8. Posteriormente, no mesmo dia e no âmbito da mesma diligência, deslocaram-se, todos eles, à Rua …, em …, para realização das diligências de arrolamento de outros bens identificados no requerimento inicial.
9. Em tal local já se encontrava presente a arguida.
10. No final de tal diligência, o Senhor Escrivão Adjunto, questionou a arguida sobre a localização das máquinas e demais alfaias agrícolas indicadas no requerimento inicial, por forma a dar cumprimento ao determinado no despacho que determinou o arrolamento, contudo, a arguida não indicou o local concreto onde tais máquinas se encontravam, apesar de as ter na sua posse e saber o local onde se encontravam, negando-se a fazê-lo de imediato e naquele dia, antes afirmando que “só se irá pronunciar nos autos”, tendo também dito que tais bens “estão à frente do nariz dele” e “estão bem guardados”.
11. Face à falta de colaboração da arguida, não foi possível ao Senhor Escrivão Adjunto, no dia 27//02/2020, realizar o arrolamento, ou seja, de descrever, avaliar e de indicar o seu de fiel depositário, quanto a tais máquinas.
12. A arguida agiu de forma livre, deliberada e voluntariamente.
*
III.2 – Factos não indiciados:
Não se indiciaram outros factos relevantes para a decisão, nomeadamente que:
a) Tenha sido comunicado à arguida que estava legalmente obrigada a responder à pergunta que lhe foi feita pelo Sr. Escrivão de Direito.
b) Que a arguida tenha agido consciente de que a sua conduta era criminalmente legalmente punida.
Não se espondeu a matéria conclusiva, de direito, meramente instrumental ou irrelevante para a instrução.
*
III.3 – Análise crítica da prova:
O tribunal respondeu à matéria de facto nos moldes supra consignados tendo em conta a globalidade da prova produzida, analisada à luz das regras da experiência comum.
Os factos indiciados resultam dos documentos juntos aos autos, nomeadamente do teor da decisão de fls. 8 a 12 e do auto de arrolamento de fls. 14 a 16.
A testemunha ouvida em instrução, o escrivão adjunto CC, não logrou recordar-se de nada mais de relevante para além do que consta do auto de arrolamento, quanto a essa diligência.
A arguida referiu em síntese que no dia dos autos estava combalida devido a lesões anteriores (queimaduras) das quais estava em convalescença (o que de resto resulta dos documentos juntos em sede de instrução) mas não se indiciou, nem se indicia à luz das regras da experiência comum, que tais lesões tivessem tipo qualquer influência relevante no estado mental da arguida de modo a excluir qualquer ilicitude ou culpa.
Mais referiu que quando recusou indicar o local onde se encontravam as máquinas a arrolar, dizendo que se iria pronunciar nos autos, o fez a conselho do seu advogado, mas não há outros indícios deste facto sendo que esse advogado (que foi o seu primeiro defensor nestes autos) nem tão pouco indicou tal factualidade no requerimento de abertura de instrução.
De resto, e de acordo com o auto de arrolamento, a arguida não se limitou a dizer que se iria pronunciar nos autos, tendo também dito que tais bens “estão à frente do nariz dele” e “estão bem guardados”, o que indicia uma atitude de irreverência e até contumácia, não compatível com o mero acatar das orientações de um advogado.
No entanto, devemos notar que não obstante ter sido perguntado à arguida pela localização dos bens em causa, não temos qualquer indício que lhe tenha sido dada qualquer ordem para responder à pergunta, ou comunicação de que a mesma era legalmente compelida a responder e quais as consequências dessa falta de resposta, pois tal não consta do referido auto de arrolamento.
Pelo exposto, não podemos concluir que a ofendida soubesse que estava legalmente obrigada a responder à pergunta que lhe foi feita pelo Sr. Escrivão, nem que tal omissão fosse legalmente punível.
*
IV – O direito:
Vem imputada à arguida a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, conjugado com o artigo 375.º do Código de Processo Civil.
O artigo 348º, do Código Penal estatui que “1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.”.
O artigo 375º, do CPP estatui que “Incorre na pena do crime de desobediência qualificada todo aquele que infrinja a providência cautelar decretada, sem prejuízo das medidas adequadas à sua execução coerciva.”.
Devemos, pois, deter-nos na interpretação do que significa “infringir uma providência cautelar”, sendo que na interpretação desta norma não podemos ignorar os princípios basilares do direito penal, nomeadamente o princípio nulla poena sine lege, que exige que as condutas criminalmente puníveis estejam definidas por lei anterior à sua prática (cfr. artigos 29º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigo 1º, n.º 1, do Código Penal).
Este princípio visa garantir uma aplicação justa e não arbitrária do direito penal, garantindo que só podem ser criminalmente punidas as condutas concretas que tenham sido previamente definidas como crime, de modo a que quem pratique um ato criminalmente punível tenha a possibilidade de saber de antemão a punibilidade da sua conduta.
Isto implica que para que se possa afirmar que alguém “infringiu” uma providência cautelar, é necessário que essa mesma providência cautelar contenha, na sua decisão, um comando claro e inequívoco dirigido ao agente, impondo-lhe uma obrigação de agir ou não agir de determinado modo.
Tal manifestamente não sucede com a decisão de arrolamento em causa nestes autos.
Tal decisão determina o arrolamento de determinados bens. O procedimento concreto de arrolamento é definido no artigo 406º, do CPC, que estatui que:
“1 - O arrolamento consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens.
2 - É lavrado auto em que se descrevem os bens, em verbas numeradas, como em inventário, se declara o valor fixado pelo louvado e se certifica a entrega ao depositário ou o diverso destino que tiveram; o auto menciona ainda todas as ocorrências com interesse e é assinado pelo funcionário que o lavre, pelo depositário e pelo possuidor dos bens, se assistir, devendo intervir duas testemunhas quando não for assinado por este último.
3 - Ao ato do arrolamento assiste o possuidor ou detentor dos bens, sempre que esteja no local ou seja possível chamá-lo e queira assistir; pode este interessado fazer-se representar por mandatário judicial.
4 - O arrolamento de documentos faz-se em termos semelhantes, mas sem necessidade de avaliação.
5 - São aplicáveis ao arrolamento as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrarie o estabelecido nesta secção ou a diversa natureza das providências.”.
Ora a realização do arrolamento propriamente dito não cabe ao requerido, mas sim ao funcionário dela incumbido.
O requerido, quando for o possuidor dos bens, tem apenas o direito de assistir ao arrolamento “sempre que esteja no local ou seja possível chamá-lo e queira assistir”. Ou seja, este nem tão pouco é compelido a assistir à diligência e a mesma pode ser realizada à sua revelia.
De igual modo, nem esta norma nem a decisão que decretou o arrolamento contêm qualquer comando claro e inequívoco dirigido à requerida (ora arguida) que a force a revelar a localização dos bens a arrolar, de modo a que a mesma possa ser penalmente responsável caso omita essa conduta.
Pelo exposto, entendo que a omissão imputada e indiciada à arguida não é conduta típica deste tipo legal de crime, pelo que se impõe a sua não pronúncia.
(…)”.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO.
A instrução, de acordo com o preceituado no nº 1 do art. 286º do Código de Processo Penal, “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” e a sua direcção compete a um juiz de instrução (nº 1 do art. 288º do mesmo código). E “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia” (art. 308º 1 do CPP).
Por outro lado, define o nº 2 do artigo 283º do mesmo código, que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
A questão de saber quando é que os indícios são suficientes e, nomeadamente, o que deve ser entendido por “possibilidade razoável” de futura condenação, dividiu a doutrina e a jurisprudência. Todavia, a posição atualmente maioritária, e que tem mais apoio na letra da lei, é a denominada “teoria da probabilidade dominante”. De acordo com esta tese, os indícios são suficientes para acusar ou pronunciar alguém sempre que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição. Neste sentido diz Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I, 1984, p. 133) que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição” – cfr. ainda, e por todos, o Acórdão do STJ de 8.10.2008, no Proc. 07P031, onde se refere que “possibilidade razoável” é a que se baseia num juízo de probabilidade, “uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha”; e o Acórdão do STJ de 16.06.2005, no Proc. 05P1938, que defende que “aquela ‘possibilidade razoável’ de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Pelo que os indícios serão suficientes sempre que, por via deles, o juiz de instrução chegue a um juízo de prognose em que a condenação do arguido é mais provável do que a absolvição, caso em que deve proferir despacho de pronúncia.
Analisemos o caso dos autos.
A decisão recorrida assentou na insuficiência de indícios de que a arguida infringiu a providência cautelar, baseando-se na circunstância de a medida judicial ter sido tomada sem audiência prévia da Requerida e não ter sido dado prévio conhecimento à arguida que:
a) estava legalmente obrigada a responder à pergunta que lhe foi feita pelo Sr. Escrivão de Direito.
b) que a omissão de indicação da localização dos bens era criminalmente punida por lei.
O recorrente afirma que dos autos resultam indícios suficientes de que o “comportamento da arguida demonstra uma clara intencionalidade de omissão, pois foi questionada diretamente sobre o paradeiro das máquinas e recusou-se a fornecer a informação, apesar de ter pleno conhecimento da localização. Além disso, não apresentou qualquer justificativa plausível para a recusa, além de alegar receio de extravio, o que não é fundamento para desobedecer a uma ordem judicial.”.
Sucede que não é isso que resulta dos autos.
Como bem sublinha o Ministério Público na sua resposta ao recurso:
“(…) no caso dos autos, o arrolamento foi decretado sem audição previa da arguida (requerida no procedimento cautelar), e, no dia da realização da providência foi a mesma questionada sobre a localização de alguns bens constantes da lista de bens a arrolar (os quais não foram encontrados no local indicado pelo requerente).
Face à não indicação do local, o funcionário limitou-se a fazer constar do auto de arrolamento tal incidente, não tendo, nomeadamente, cominado a arguida com o crime de desobediência caso persistisse na recusa de indicação da localização dos bens.
Atente-se que a ora arguida apenas teve conhecimento da decisão judicial que decretou a providência após o decretamento do arrolamento após a realização da respetiva diligência, tal como resulta da parte final do auto de arrolamento junto aos autos” (destacados nossos).
Por serem esses os indícios que resultam dos autos, não poderia dar-se como suficientemente indiciado que a arguida agiu com conhecimento da decisão de decretamento da providência cautelar e com consciência de que estava legalmente obrigada a responder à pergunta que lhe foi feita pelo Sr. Escrivão de Direito e que a omissão de indicação da localização dos bens era criminalmente punida por lei.
Não se mostra suficientemente indiciado o conhecimento prévio da decisão judicial de decretamento do arrolamento.
Por isso é acertado o entendimento de que não se mostra suficientemente indiciada a desobediência. Como escreveu o Ministério Público na resposta ao recurso: “Com efeito não se pode desobedecer voluntária e conscientemente a uma ordem ou mandado que ainda não foi transmitido ao destinatário.
Na falta de tal comunicação (citação) da decisão de arrolamento, impunha-se que o funcionário que procedia à diligência tivesse cominado a arguida com o crime de desobediência face à recusa desta em indicar o local onde os bens poderiam ser encontrados.
Em síntese, para além da falta de notificação da decisão que decretou a providência (caso em que seria desnecessária qualquer cominação feita por funcionário), não foi a arguida expressamente cominada com o crime de desobediência.”.
Ao caso dos presentes autos aplicam-se as considerações que foram tecidas no douto Acórdão da Relação de Évora de 29 de novembro de 20161:
“Estamos perante uma eventual desobediência ao cumprimento de uma sentença proferida em procedimento cautelar (…). Por essa razão, não se estando perante uma desobediência funcional, como já afirmado, admite-se que ao efectuar a sua comunicação, não terá que advertir-se os destinatários da mesma de que a desobediência à ordem constitui a prática de crime, pois que, essa cominação é necessária, apenas, quando se trata da aludida desobediência funcional.
Contudo, apesar dessa advertência não ser necessária, é obrigatória a notificação/comunicação que possibilite ao agente/destinatário tomar conhecimento e ficar elucidado sobre o conteúdo integral da ordem, que no caso “sub judice” é uma decisão judicial.
Como já referido, um dos requisitos objectivos do crime de desobediência é o de “os destinatários têm que ter conhecimento da ordem ou mandado a que ficam sujeitos, pelo que se exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido. Com a cominação prévia e expressa por parte da autoridade já o destinatário sabe que, se não cumprir, pratica o crime de desobediência.
(…)
O tribunal “a quo” entende que não é necessária a comunicação da ordem (sentença) bastando que o arguido tenha dela conhecimento.
Temos outro entendimento.
Face à matéria fáctica assente, (…), é inquestionável que nenhum dos arguidos/recorrentes foi notificado da decisão judicial, o que permite concluir que o preenchimento desse elemento objectivo, desse tipo de delito criminal - Regularidade da sua transmissão ao destinatário - não se mostra preenchido.
Efectivamente, a falta da comunicação do conteúdo integral da sentença, não permite, afirmar, com rigor, que o destinatário da ordem nela ínsita, teve conhecimento integral dessa matéria.
Por essa razão, processual, mas que não podemos descurar, entendemos acertado o afirmado na motivação de recurso “(…) o destinatário até pode ter conhecimento da existência de uma sentença, mas tal situação não assegura o conhecimento integral e completo do teor e conteúdo dessa sentença, o que é absolutamente decisivo para avaliar a eventual desconformidade do comportamento do agente, não relativamente à sentença, mas ao concreto e exacto conhecimento que o mesmo agente tem do seu conteúdo.
Ora, tal desiderato só é possível de atingir através da comunicação do teor da sentença ao agente destinatário da ordem que a mesma encerra. Daí que o tipo do crime em análise faça parte especificamente a comunicação regular da ordem.
E por comunicação regular deve entender-se aquela que contenha pelo menos a forma suficiente donde se possa alcançar, com segurança, que o destinatário dessa comunicação apreendeu todo o conteúdo da ordem emanada (sentença).
(…) no caso vertente não se verificou a comunicação integral e completa (nem incompleta) aos arguidos do teor da ordem em causa (sentença cautelar) pelo que não se mostra preenchido o tipo legal do crime de desobediência imputados aos arguidos, precisamente porque a ordem em causa não lhes foi notificada (…) nem de qualquer outra forma regular lhes foi comunicada.
(…)
Concluindo, tal como supra afirmado, por falta de um dos elemento objectivos (falta de comunicação regular da ordem emanada judicial) não se mostram preenchidos todos os elementos do tipo legal dos crimes de desobediência qualificada imputados aos arguidos/recorrentes.”.
No caso dos nossos autos, também ocorre a falta de comunicação regular da ordem judicial subjacente à providência de arrolamento. E por ser assim, não merece censura a decisão recorrida que se deverá manter. Improcede, pois, o recurso.
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V. DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente BB e, em consequência, em confirmar a douta decisão recorrida nos seus precisos termos.
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Tributação.
Condena-se o assistente no pagamento da taxa de justiça fixada em 3 (três) UC.
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D.N.
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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).
Évora, 14 de outubro de 2025
Jorge Antunes (Relator)
Edgar Gouveia Valente (1º Adjunto)
Manuel Ramos Soares (2º Adjunto)
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1 Cfr. Ac. do TRE de 29.11.2016 – Relatora: Maria Isabel Duarte – acessível em: https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/50eab5cfd06da6188025809d00417e64?OpenDocument