LIBERDADE CONDICIONAL
NÃO CONCESSÃO
Sumário

Considerando todas as circunstâncias, com assento nos factos provados, que dão nota de sérias, fundadas e profundas dúvidas quanto à possibilidade de se formular um juízo de prognose efectivamente positivo de que o recluso conduzirá, em liberdade, no futuro, a sua vida de forma responsável e afastado da prática de crimes, tal impede que se lance mão de um mecanismo — o da liberdade condicional aos dois terços da pena de prisão cumprida — cuja natureza tem carácter excepcional.
Assim, impõe-se concluir que o percurso prisional do recluso deverá ser consolidado por forma a reduzir os factores de risco e vulnerabilidade que ainda apresenta em grau considerável e que não permitem a assunção de um "risco prudente" – É imperioso reconhecer que persistem exigências de prevenção especial que impedem que se formule um juízo de prognose favorável quanto à conduta do recluso em liberdade.

Texto Integral

Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
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I – RELATÓRIO

i. O recluso AA interpôs recurso do despacho judicial de 30/06/2025, que não lhe concedeu a liberdade condicional por referência ao marco dos dois terços da pena que atualmente cumpre no Estabelecimento Prisional de ….

Peticiona a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine a concessão da liberdade condicional ao recorrente.

Apresentou motivação, extraindo as seguintes conclusões:

“1. O presente Recurso tem por objecto a referida Decisão na parte em que considera, como fundamento bastante para a não concessão da Liberdade Condicional do recorrente, a não verificação do requisito previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal.

2. Todos os demais requisitos necessários para a concessão da Liberdade Condicional mostram-se verificados no caso em mão.

3. O Recorrente desde sempre manteve a posição de que não praticou os factos que lhe foram imputados em sede de Acusação deduzida no Processo nº 160/20.4…, que correu os seus termos no Juízo Central Criminal de … e que vieram a permitir a sua condenação na pena única de 4 anos e 3 meses, que se encontra a cumprir, desde 2 de Setembro de 2022, no Estabelecimento Prisional de ….

4. Entende o Mmo Juiz a quo que o Recorrente revela total ausência de sentido autocritico quanto aos factos praticados, não se tendo verificado qualquer evolução positiva.

5. Não será pelo decurso do tempo que o Recorrente alterará a sua posição relativamente ao juízo que faz sobre os factos que lhe foram imputados e que levaram à sua condenação, pelo que a mesma se manterá à data em que cumprir na totalidade a pena que lhe foi aplicada, ou seja, o juízo que hoje faz será o mesmo que fará a 3 de Dezembro de 2026, mas tal não significa nem tal se pode afirmar, que venha a praticar novos crimes, com defende o Mmo Juiz a quo.

6. Não se poderá impor a qualquer arguido o reconhecimento e a confissão da prática de tal crime quando o mesmo está convicto que não o praticou e alegou em sua defesa os factos que constam dos autos.

7. A ocorrer tal imposição para a concessão do regime da Liberdade Condicional, tal constituiria uma clara violação dos direitos previstos e tutelados constitucionalmente, nomeadamente os consagrados nos artigos 13º, 20º, 26º/1 e 27ºda CRP, significando a mesma imposição que apenas beneficiará da Liberdade Condicional o arguido que reconheça e confesse a prática de um crime, mesmo quando convicto está que o não praticou .

8. Pelo facto de o arguido não confessar a prática do crime em causa, tal não significa que a “prisão não tem surtido em si qualquer efeito de ressocialização” como defende o Mmo Juiz a quo,

9. Com está demonstrado e plasmado nos autos o Recorrente tem boas perspectivas de

10. O Recorrente aceitou e inserção familiar e habitacional, pelo que se evidenciam sinais de normal vida social conformou-se com a pena que lhe foi aplicada, e que cumpre, mas tal não significa que (i) altere o seu juízo sobre os factos ocorridos, ou seja, a negação da prática do crime que lhe foi imputado e (ii) e que venha, caso beneficie do regime da Liberdade Condicional a assumir uma eventual conduta criminosa.

11. Mostra-se verificado no caso em mão o requisito invocado pelo Mmo Juiz a quo para recusar a concessão da sua Liberdade Condicional,

12. A Decisão objecto do presente Recurso violou o disposto no artigo 62 / al a) do CP e artigos 13º, 20º, 26º/1 e 27º da CRP..”.

ii. Admitido o recurso, o MP respondeu, pugnando pela respetiva improcedência e concluindo do seguinte modo:

“1.º

Verificados que estão os pressupostos formais, e tendo sido ultrapassado o cumprimento de dois terços da pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão pela prática de um crime de violência doméstica e de um crime de detenção de arma proibida, a concessão da liberdade condicional depende apenas da verificação do requisito material previsto no artigo 61.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, ou seja, que fundadamente seja de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes.

2.º

A decisão recorrida baseou-se nos elementos constantes dos autos, de cuja conjugação resulta a conclusão de que não é possível efetuar um juízo de prognose positivo de que o recorrente, uma vez em liberdade, adopte um comportamento conforme às regras penais e integrado na sociedade.

3.º

À formulação de tal juízo de prognose estão subjacentes fortes razões de prevenção especial, quer de ressocialização, quer de prevenção de reincidência, assentes essencialmente numa ausência de consciência crítica do recluso quanto à conduta criminal, assente, por sua vez, na negação dos factos pelos quais foi condenado.

4.º

O Mm.º Juiz tomou em consideração todos os aspectos positivos verificados no percurso prisional do recorrente, entre os quais o comportamento adequado (com registo de uma infracção disciplinar); todavia, não considerou tais aspetos suficientes para anular o juízo negativo decorrente da já mencionada ausência de consciência crítica.

5.º

O comportamento regular e cumpridor das regras institucionais, com o consequente benefício de medidas de flexibilização da pena não pode esgotar o conceito de evolução positiva da personalidade durante a execução da pena, porquanto esse comportamento é o que é suposto existir.

6.º

Sem a construção crítica acerca da conduta criminosa – pretensão do artigo 61.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal – exteriorizada através de uma postura e discurso estruturados e consistentes, não é possível concluirmos que, através da prisão, o recluso alcançou a preparação para a vida e meio livre afastado do mundo do crime e integrado na sociedade.

7.º

A relação do recluso com o crime cometido é um dos fatores de extrema importância na apreciação dos pressupostos da concessão da liberdade condicional – e, consequentemente, na ponderação do risco de recidiva criminal – tal qual decorre da exigência plasmada no artigo173.º, n.º 1, alíneaa) do C.E.P.M.P.L. quanto aos elementos que devem constar do relatório dos serviços prisionais.

8.º

Não sendo imprescindível, é inegável que em situações como a dos autos, em que não podemos afastar a repetibilidade dos factos, o arrependimento é importante elemento inibidor da prática do crime, sendo que este (arrependimento) supõe a assunção dos factos e da sua censurabilidade.

9.º

Se o recluso nunca se pronunciou sobre o crime de violência doméstica, em termos de autorresponsabilização, temos de concluir pela existência de sério indicador do grau deficitário da capacidade autocrítica do recluso, o que faz temer pela sua capacidade de reinserção social, em liberdade, e pela capacidade de afastamento do crime, circunstancialismo que anula tudo o que mais que de positivo ocorreu no percurso prisional do recluso.

10.º

Por outro lado, a douta decisão recorrida tomou em consideração, como não poderia deixar de ser, que o facto de o recorrente não ter gozado licenças de saída jurisdicionais, impediu a progressividade na execução da pena.

11.º

O regime da liberdade condicional, em face dos pressupostos de que depende, tem caráter excepcional e, quando apreciados os pressupostos por referência ao cumprimento de dois terços da pena, apenas deverá ter lugar nos casos em que seja patente que o condenado está apto a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.

12.º

O Tribunal a quo fez uma correcta e adequada interpretação e aplicação do Direito, não se mostrando violado qualquer um dos preceitos legais invocados pelo recorrente, nomeadamente o disposto no artigo 61.º, n.º 2, alínea a)do Código Penal, pelo que o recurso interposto deve ser julgado improcedente e a douta decisão recorrida mantida nos seus precisos termos”.

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iii. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.

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II – QUESTÕES A DECIDIR.

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada – a decisão que não lhe concedeu a liberdade condicional por reporte ao marco dos 2/3 das penas –, a questão a examinar e decidir é a de saber se a decisão recorrida merece censura por, contrariamente ao ali decidido, estarem preenchidos todos os pressupostos para que seja concedida ao recorrente a liberdade condicional, nesta fase do cumprimento da pena.

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III – TRANSCRIÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA.

i. A decisão recorrida tem o seguinte teor:

“I – Relatório

O presente processo de liberdade condicional diz respeito ao recluso AA, com demais sinais nos autos, actualmente preso no Estabelecimento Prisional de ….

Para efeitos de apreciação da concessão da liberdade condicional por referência aos dois terços da pena que o recluso cumpre, foram juntos aos autos os relatórios a que alude o art. 173º, nº 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (de ora em diante designado apenas por CEPMPL).

O conselho técnico reuniu, prestando os seus membros os esclarecimentos que lhes foram solicitados e emitindo, por maioria (com voto de qualidade da Sr.ª Directora do EP), parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional (art. 175º, nºs 1 e 2, do CEPMPL) – cfr. fls. 85.

Procedeu-se à audição do recluso, nos termos estabelecidos no art. 176º do CEPMPL, sendo que aquele consentiu na aplicação da liberdade condicional. Em sede de audição o recluso não ofereceu quaisquer provas – cfr. fls. 86.

Cumprido o disposto no art. 177º, nº 1, do CEPMPL, o Ministério Público emitiu parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional – cfr. fls. 89-89v.

*

O Tribunal é absolutamente competente.

O processo é o próprio.

Não existem nulidades insanáveis, nem questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer, pelo que nada obsta à apreciação do mérito da causa (a eventual concessão da liberdade condicional).

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II – Fundamentação

II – A) Dos Factos

O tribunal considera provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:

1. Quanto às circunstâncias do caso:

1.1. O recluso AA cumpre à ordem do processo comum colectivo nº 160/20.4…, do Juízo Central Criminal de … (Juiz …) do Tribunal Judicial da Comarca de …, a pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão, pela prática de 1 (um) crime de violência doméstica (com aplicação da pena prevista para o crime de violação na forma tentada) e 1 (um) crime de detenção de arma proibida;

1.2. O referido crime de violência doméstica relaciona-se, em síntese, com a seguinte factualidade: o recluso e a ofendida casaram um com o outro no dia 9 de Agosto de 1980, quando a última tinha 18 anos de idade, tendo dois filhos desse relacionamento; desde 1981, por diversas vezes, o recluso agrediu a ofendida física e verbalmente, designadamente na presença dos filhos; também por diversas vezes ameaçou que a matava, designadamente com a exibição de armas de fogo; em determinada ocasião do ano de 2015 obrigou a ofendida, contra a sua vontade, a manter consigo relações sexuais de cópula completa; no ano de 2020, em duas ocasiões distintas, tentou obrigar a ofendida a manter relações sexuais consigo, contra a sua vontade, o que não conseguiu; na última ocasião em que o recluso fez tentativa de tal natureza (31 de Agosto de 2020), a ofendida acabou por sair de casa, à qual não regressou;

1.3. O referido crime de detenção de arma proibida relaciona-se, em síntese, com a seguinte factualidade: no dia 23 de Novembro de 2020, o recluso tinha no interior da sua residência quatro facas de abertura automática;

1.4. A pena referida no ponto 1.1. dos factos provados foi liquidada nos seguintes termos:

- Início – 3 de Setembro de 2022;

- Metade (1/2) – 18 de Outubro de 2024;

- Dois terços (2/3) – 3 de Julho de 2025;

- Termo – 3 de Dezembro de 2026;

2. Quanto à vida anterior do recluso:

2.1. O recluso, nascido a … de 1956 (actualmente conta com 68 anos de idade), é natural de …, aldeia do concelho de …, onde decorreram a sua infância e adolescência;

2.2. O seu agregado familiar de origem, que se dedicava, essencialmente, à agricultura de subsistência, era composto pelos pais e pela irmã;

2.3. No contexto de limitações económicas familiares, o recluso abandonou o sistema de ensino após completar o 4.º ano de escolaridade, tendo passado a colaborar na actividade de subsistência familiar, realizando tarefas agrícolas para terceiras pessoas;

2.4. Manteve esta ocupação até ao cumprimento do serviço militar obrigatório durante 16 meses;

2.5. Na perspectiva de vir a obter melhores condições de vida/subsistência, candidatou-se aos quadros da PSP, onde veio a desenrolar-se o seu percurso laboral: inicialmente trabalhou numa esquadra e esteve alguns anos no corpo de intervenção; posteriormente, exerceu funções de motorista e, nos anos que antecederam a reforma, trabalhou no arquivo de armas/explosivos, percurso decrescente em termos da exigência e responsabilidade associadas às funções que assumiu;

2.6. Até à sua reclusão manteve relação amorosa apenas com a ofendida, sua conterrânea, com quem iniciou namoro antes de cumprir o serviço militar e com quem casou em Agosto de 1980;

2.7. Da união nasceram dois filhos comuns, nascidos em 1982 e 1990, respectivamente;

2.8. Aquando da sua condenação em 1ª instância (Fevereiro de 2022), o divórcio do casal já tinha sido realizado, estando por concretizar a partilha dos bens comuns (o que se mantém, sendo fonte de conflito – em contexto judicial ficou decidido que a habitação familiar seria vendida);

2.9. À data da sua condenação em 1ª instância, o recluso já se encontrava reformado, auferindo uma pensão de reforma no valor de € 900 mensais, que se revelava insuficiente para custear as suas necessidades (atendendo, nomeadamente, a que assumia um encargo mensal de € 400 com a habitação);

2.10. Ocupava então o seu tempo com actividades lúdicas, concretamente televisão e tarefas domésticas, manifestando insatisfação por ter de assumir a execução destas;

2.11. Estava sujeito à proibição de contactos com a ofendida, fiscalizada por vigilância electrónica desde 29 de Novembro de 2020, vivendo com o filho mais velho (no processo referido no ponto 1.1. dos factos provados foi também condenado na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida pelo período de 5 anos);

2.12. Afirmava não ser o progenitor do filho mais novo, afirmando-se convicto, embora sem deter provas objectivas, de que a gravidez ocorreu no âmbito de uma das várias relações de infidelidade conjugal que imputava à ofendida, a partir do momento em que a mesma iniciou actividade laboral como técnica de vendas porta a porta;

2.13. No processo da condenação resultou ainda provado o seguinte: «o arguido detém significativas dificuldades de aceitação/integração de pontos de vista distintos do seu, défices de gestão de emoções, de autocontrolo e de comunicação interpessoal, características que, potencialmente, tenderão a originar reacções não assertivas da sua parte em situações percepcionadas como de divergência/conflito relacional. As suas narrativas revelam uma atribuição causal externalizada (particularmente na abordagem da relação conjugal com …) e a presença de crenças estereotipadas sobre a conjugalidade/papéis de género e sobre o fenómeno da violência doméstica e respectivas vítimas»;

2.14. Para além das condenações referidas no ponto 1.1. dos factos provados, o recluso não regista qualquer outra condenação;

2.15. Encontra-se preso pela primeira vez, datando a sua reclusão de quando tinha 65 anos de idade;

3. Quanto à personalidade do recluso e evolução daquela durante a execução da pena:

3.1. À semelhança do que se verificou em sede de julgamento no processo mencionado no ponto 1.1. dos factos provados, o recluso nega a prática do crime de violência doméstica, explicitando que «dizem que cometeu esse crime sobre a sua ex-mulher, mas nunca fez nada. Tem as suas mãos bem limpas. Segundo o que sabe agora, a sua ex-mulher toda a sua vida o traiu e como queria sair de casa, inventou isto, tendo arranjado meia dúzia de testemunhas, sendo que ela também já tinha sido testemunha nos processos dessas pessoas. Nunca falhou em casa com nada e como … sempre teve um comportamento exemplar (saiu quando se reformou, em Janeiro de 2020). A relação tornou-se conflituosa desde que se reformou. Pensa que isso terá sido assim porque o próprio a estorvava por estar em casa»;

3.2. Menciona ainda que «foi também condenado a pagar uma indemnização de € 10.000,00 à sua ex-mulher. Ainda não pagou nada, mas também ainda ninguém lhe pediu nada»;

3.3. Acrescenta que «foi também condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, pois tinha dentro de uma caixinha três facas de ponta-e-mola»;

3.4. No Estabelecimento Prisional (EP) regista 1 (uma) infracção punida disciplinarmente, praticada no dia 30 de Setembro de 2022;

3.5. Intramuros não frequentou qualquer formação escolar ou profissional, nem demonstrou interesse em desempenhar actividade laboral, o que justifica com a circunstância de já se encontrar reformado, não querendo tirar o trabalho a quem precisa;

3.6. Não frequentou qualquer programa psicoeducativo;

3.7. Não beneficiou de licenças de saída jurisdicional (LSJ);

3.8. Permanece colocado em regime comum desde o início da reclusão;

4. Situação económico-social e familiar:

4.1. Uma vez em liberdade, o recluso pretende ir viver com o seu filho mais velho para a habitação referida no ponto 2.8. dos factos provados, sita em …, …;

4.2. Entretanto, iniciou uma relação de namoro, pretendendo futuramente residir com tal companheira;

5. Perspectivas laborais/educativas:

5.1. Uma vez em liberdade, o recluso continuará a beneficiar da sua pensão de reforma, actualmente no montante aproximado de € 1000.

Com interesse para a decisão, inexistem factos não provados.

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II – B) Motivação

II – B – 1) Motivação Fáctica

Para prova dos factos supra descritos o tribunal atendeu aos elementos a que de seguida se fará referência, analisados de forma objectiva e criteriosa, nunca esquecendo que os relatórios e pareceres das diversas entidades que têm intervenção no processo de liberdade condicional (com especial relevância para a equipa dos serviços de tratamento penitenciário da DGRSP, a equipa dos serviços de reinserção social da DGRSP e o conselho técnico) não são vinculativos, constituindo apenas informação auxiliar do juiz (neste sentido veja-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de Outubro de 2009 e de 7 de Julho de 2016, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2010 e de 31 de Outubro de 2012 e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Julho de 2011 e de 26 de Outubro de 2011, todos in www.dgsi.pt, respectivamente Proc. 8027/06.2TXLSB-A.L1-3, Proc. 2006/10.2TXPRT-C.P1, Proc. 3536/10.1TXPRT-H.P1, Proc. 1797/10.5TXCBR-D.C1 e Proc. 165/11.6TXCBR-A.C1).

Assim, tal informação é livremente apreciada pelo julgador, devendo naturalmente ser conjugada com as impressões retiradas da reunião do conselho técnico e da audição do recluso, o que, na feliz expressão do referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2010, «habilita o tribunal a fazer uma avaliação global orientada pelos princípios jurídicos que regem esta matéria».

Feitas estas notas prévias, a convicção do tribunal fundou-se na referida análise conjugada, global e crítica dos seguintes elementos:

- Certidão da decisão condenatória, da liquidação da pena e da respectiva homologação – fls. 5 a 18v (e demais elementos que constam do processo electrónico);

- Certificado de registo criminal do recluso – fls. 66v a 67v;

- Relatório da equipa dos serviços de tratamento penitenciário da DGRSP – fls. 71v a 74;

- Relatório da equipa dos serviços de reinserção social da DGRSP – fls. 79 a 81v;

- Ficha biográfica do recluso – fls. 74v a 77;

- Acta da reunião do conselho técnico (fls. 85) e esclarecimentos aí prestados;

- Auto de audição do recluso – fls. 86.

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II – B – 2) Motivação de Direito

Dispõe o nº 1 do art. 40º do Cód. Penal que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», acrescentando o nº 1 do art. 42º do mesmo diploma que «a execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes» (em termos essencialmente idênticos, veja-se o disposto no art. 2º, nº 1, do CEPMPL).

Tendo em consideração tais finalidades, o legislador do Código Penal de 1982 consignou no ponto 9 do preâmbulo do Dec.-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, que «definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a libertação condicional serve, na política do Código, um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão» (a este propósito, veja-se igualmente o ponto II.3. do anexo à Recomendação Rec(2003)22 do Conselho da Europa, adoptado pelo Comité de Ministros a 24 de Setembro de 2003 – documento disponível no sítio electrónico do Conselho da Europa).

A liberdade condicional tem assim uma «finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização» (neste sentido, vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, p. 528), sendo que do ponto de vista da sua natureza jurídica é hoje em dia inequívoco que constitui um incidente ou medida de execução da pena de prisão (a este propósito, veja-se JOAQUIM BOAVIDA, A Flexibilização da Prisão, Almedina, 2018, p. 124-125, bem como o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Julho de 2016 e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 9 de Junho de 2010 e de 27 de Setembro de 2017, todos in www.dgsi.pt, respectivamente Proc. 824/13.9TXLSB-J.L1-3, Proc. 435/05.2TXCBR-A.C1 e Proc. 386/16.1TXCBR-E.C1).

O instituto da liberdade condicional encontra-se preceituado, quanto aos seus pressupostos e duração, no art. 61º do Cód. Penal, que dispõe do seguinte modo:

«1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.

2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:

a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e

b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.

3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.

4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.

5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena».

O art. 61º do Cód. Penal consagra assim duas modalidades de liberdade condicional: a liberdade condicional facultativa, que opera “ope judicis”; a liberdade condicional obrigatória, que opera “ope legis”, pois deverá ser concedida logo que o condenado tenha cumprido cinco sextos da pena de prisão superior a seis anos ou da soma das penas a cumprir sucessivamente que exceda seis anos (cfr. art. 61º, nº 4 e 63º, nº 3, ambos do Cód. Penal).

De acordo com o disposto nos arts. 61º, nº 2, do Cód. Penal, são três os pressupostos formais de concessão da liberdade condicional:

1 – Que o condenado tenha cumprido no mínimo 6 meses de prisão;

2 – Que se encontre exaurida pelo menos metade da pena;

3 – Que o condenado consinta em ser libertado condicionalmente (requisito que também é exigido nos casos da referida liberdade condicional obrigatória).

Por outro lado, constituem requisitos materiais (ou substanciais) da concessão da liberdade condicional:

A) Que fundadamente seja de esperar, «atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer novos crimes» (o legislador seguiu a sugestão de FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 539, quanto a deverem ser aqui tomados em consideração todos os elementos necessários ao prognóstico efectuado para decretar a suspensão da execução de pena de prisão);

B) «A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social» (este requisito deixa de se mostrar necessário logo que sejam atingidos os dois terços da pena, como é o caso dos autos, conforme resulta expressamente do disposto no nº 3 do preceito em causa).

Relativamente a estes requisitos, resulta claro que o primeiro se prende com uma finalidade de prevenção especial (mais concretamente prevenção especial positiva), visando o segundo satisfazer exigências de prevenção geral (neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Direito Prisional Português e Europeu, Coimbra Editora, 2006 p. 356; em idêntico sentido, ANTÓNIO LATAS, Intervenção Jurisdicional na Execução das Reacções Criminais Privativas da Liberdade – Aspectos Práticos, Direito e Justiça, Vol. Especial, 2004, p. 223 e 224, nota 32).

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Regressando ao caso concreto e subsumindo os factos ao direito, é isento de dúvidas que se mostram preenchidos os pressupostos formais da liberdade condicional, pois o recluso:

- Já cumpriu pelo menos 6 meses de prisão;

- Já cumpriu metade da pena;

- Aceitou ser libertado condicionalmente.

No que diz respeito aos requisitos de natureza material, estando em causa nos autos a apreciação da liberdade condicional por referência aos dois terços da pena, apenas se mostra necessário o preenchimento da primeira das exigências a que supra fizemos referência em A), ou seja, a relacionada com as razões de prevenção especial de socialização.

No que tange ao primeiro daqueles requisitos materiais, a lei impõe que para que seja concedida a liberdade condicional o juiz do Tribunal de Execução das Penas faça um juízo de prognose favorável de que uma vez em liberdade o condenado venha a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, sendo que entendemos que em caso de dúvida sobre tal capacidade, a liberdade condicional não deve ser concedida [com efeito, conforme refere JOAQUIM BOAVIDA a propósito do princípio “in dubio pro reo”, «na fase da execução da pena de prisão e da consequente apreciação da liberdade condicional esse princípio não tem aplicação (…) Portanto, em caso de dúvida séria, que não possa ser ultrapassada, sobre o carácter favorável da prognose, o juízo deve ser desfavorável e a liberdade condicional negada (ob. cit., p. 137); no mesmo sentido, veja-se FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 540, bem como o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11 de Outubro de 2017, in www.dgsi.pt, Proc. 744/13.7PXPRT-K.C1].

Tal juízo de prognose terá de se revelar através da análise dos seguintes aspectos, conforme previsto na alínea a) do nº 2 do art. 61º do Cód. Penal:

- As circunstâncias do caso. Relaciona-se este segmento com a valoração do(s) crime(s) cometido(s), seja quanto à sua natureza e gravidade, seja ainda quanto às circunstâncias várias que estiveram na base da determinação da medida da pena, nos termos do art. 71º do Cód. Penal, sem que tal constitua qualquer violação do princípio “ne bis in idem” (neste sentido, veja-se o já referido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2010, in www.dgsi.pt, Proc. 2006/10.2TXPRT-C.P1).

Na situação concreta, de entre os dois crimes pelos quais o recluso cumpre pena, o crime de violência doméstica é valorado de forma especialmente negativa, pois corresponde a ilícito criminal que na maior parte das situações contende de forma muito séria com a dignidade da pessoa ofendida, o que no caso em apreço também se verificou, conforme resulta da análise da decisão condenatória;

- A vida anterior do agente. Este item relaciona-se com uma multiplicidade de factores, desde logo de natureza familiar, social e económica, mas também atinentes a eventuais problemáticas aditivas do recluso, bem como à existência ou não de antecedentes criminais, sendo também especialmente importante aferir se o recluso já anteriormente cumpriu penas de prisão ou se o faz pela primeira vez. Conforme refere JOAQUIM BOAVIDA de modo assaz pertinente, em matéria de liberdade condicional o elemento respeitante à vida anterior do condenado «é sobretudo relevante para operar a contraposição entre o homem que o recluso era antes da prática do crime e o homem que revela agora ser depois de executada parte substancial da pena» (ob. cit., p. 139-140).

No caso dos autos, verifica-se que o recluso não regista antecedentes penitenciários, nem tão pouco antecedentes criminais.

Relevam também as suas supra-referidas de condições de crescimento e de desenvolvimento, bem como, de modo premente, a sua situação sociofamiliar à época da prática dos factos;

- A personalidade do agente e a evolução daquela durante a execução da pena. Quanto a este aspecto, «é relevante apurar a personalidade manifestada pelo recluso na prática do crime, quais os seus traços, sintomas e exteriorizações», sendo que «não é indiferente se o crime é uma decorrência da personalidade impulsiva e agressiva do recluso ou se resultou apenas da conjugação de circunstâncias irrepetíveis ou da mera imaturidade do agente» (JOAQUIM BOAVIDA, ob. cit., p. 139-140).

No caso dos autos, julgamos que os crimes pelos quais o recluso cumpre pena resultam essencialmente do já referido enquadramento familiar à época da prática dos factos, associado ainda a uma personalidade violenta e a uma visão estereotipada da relação conjugal e do papel da mulher nessa relação.

Estabelecida no essencial a personalidade do recluso, vejamos então se se verificou uma evolução positiva desta durante a execução da pena, o que deve ser perceptível através de algo que transcenda a esfera meramente interna psíquica do recluso, ou seja, através de padrões comportamentais temporalmente persistentes que indiciem um adequado processo de preparação para a vida em meio livre.

Desde logo, cumpre referir que «não é, em rigor e nos termos legais, requisito de concessão da liberdade condicional (…) que o condenado revele arrependimento e interiorize a sua culpa. Tal é, seguramente, uma meta desejável à luz das finalidades da pena, mas que supõe uma mudança interior que não pode, obviamente, ser imposta (…) A ausência de arrependimento pode ser sinal do perigo de cometimento de novos crimes, mas não necessariamente. Se as circunstâncias em que ocorreu o crime são especialíssimas e de improvável repetição, não poderá dizer-se que a ausência de arrependimento significa perigo de cometimento de novos crimes. E também não pode dizer-se que um recluso que não revele arrependimento, ou não assuma mesmo a prática dos factos que levaram à sua condenação (em julgamento ou durante a execução da pena) não poderá nunca beneficiar de liberdade condicional antes de atingir cinco sextos da pena» (assim, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Dezembro de 2012, podendo encontrar-se no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Julho de 2016, ambos in www.dgsi.pt, respectivamente Proc. 1796/10.7TXCBR-H.P1 e Proc. 824/13.9TXLSB-J-L1-3).

De qualquer modo, quanto a este aspecto, conforme resulta dos pontos 3.1. a 3.3. dos factos provados, verifica-se total ausência de sentido autocrítico por parte do recluso quanto aos factos praticados.

De resto, desde que foi julgado não se verificou qualquer evolução positiva quanto à postura do recluso, verificando-se assim que a prisão não tem surtido em si qualquer efeito de ressocialização.

A este propósito, recordemos o que consta da motivação de facto do acórdão proferido em 1ª instância no processo da condenação por referência às declarações do recluso, aí arguido: «assumiu uma postura defensiva/agressiva, por vezes no limiar do desrespeito pelo tribunal, revelando claramente dificuldade de aceitação/integração de pontos de vista distintos do seu, dificuldade de gestão das emoções, de autocontrolo e de comunicação interpessoal. Todo o seu discurso é marcado pela vitimização, raiva e ressentimento dirigido à ofendida (…), imputando-lhe, de forma obstinada, infidelidade conjugal e atribuindo-lhe toda a culpa e responsabilidade no desfecho do casamento e, consequentemente no contexto factual objecto da acusação, revelando a presença de crenças estereotipadas sobre a conjugalidade/papéis de género».

Ora, esse continua a ser o seu posicionamento, havendo que concluir no sentido de que tal ausência de sentido autocrítico por parte do recluso constitui sério factor de risco de recidiva criminal.

Com efeito, cumpre referir que nos crimes de violência doméstica a taxa de reincidência é elevada, pelo que a circunstância daquele demonstrar gritante inconsciência quanto ao seu mau-agir constitui motivo de especial preocupação.

O comportamento prisional do recluso, constituindo também factor de avaliação da eventual evolução positiva da personalidade, não é no entanto decisivo, «sob pena de se estar a atribuir à liberdade condicional uma natureza – a de uma medida de clemência ou de recompensa por boa conduta – que ela não tem» (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30 de Outubro de 2013, podendo ver-se no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8 de Janeiro de 2013, ambos in www.dgsi.pt, respectivamente Proc. 939/11.8TXPRT-H.P1 e Proc. 1541/11.0TXLSB-E.E1).

Regressando ao caso concreto, verifica-se que o recluso mantém comportamento essencialmente correcto (apenas regista uma infracção disciplinar), o que lhe é favorável.

A ausência de desenvolvimento de actividade escolar, formativa ou laboral mostra-se pouco relevante, face à sua idade e situação de reformado (contudo, seria aconselhável que frequentasse programa psicoeducativo vocacionado para a problemática da violência doméstica).

Por outro lado, ainda não iniciou o gozo de medidas de flexibilização da pena, o que no caso de condenado por crimes de violência doméstica mostra-se sempre importante, designadamente para avaliar o seu comportamento em relação às vítimas (e não nos esqueçamos que o recluso se encontra também condenado numa pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, cujo período se encontra em vigência).

Deste modo, apesar das suas boas perspectivas de inserção familiar e habitacional quando em liberdade, a análise conjunta de todos os factores referidos leva-nos a concluir não ser possível fazer juízo positivo quanto à evolução da personalidade do recluso e quanto à sua futura capacidade para manter comportamento social responsável e isento da prática de crimes (maxime da mesma natureza).

Assim, não se encontra preenchido o requisito a que alude a alínea a) do nº 2 do art. 61º do Cód. Penal.

Logo, há que concluir no sentido de não se encontrarem reunidos os requisitos necessários para que seja concedida a liberdade condicional.

***

III – Decisão

Pelo exposto, não concedo a liberdade condicional ao recluso AA.

*

Determino a renovação da instância dentro de um ano, i.e., por referência a 30 de Junho de 2026 – art. 180º, nº 1, do CEPMPL.

Assim, até 90 dias antes de atingida a referida data:

a) Solicite os relatórios a que aludem as alíneas a) e b) do nº 1 do art. 173º do CEPMPL, fixando-se o prazo de 30 dias para a sua elaboração (juntamente com tais elementos deverá também ser enviada cópia actualizada da ficha biográfica do recluso);

b) Junte CRC actualizado do recluso.

Pelo menos 90 dias antes de atingida a referida data, notifique o recluso para, em 10 dias, querendo, requerer o que tiver por conveniente – art. 173º, nº 1, alínea c), do CEPML.

Instruídos os autos e decorrido o prazo supra, abra vista ao Ministério Público para os mesmos efeitos.

*

Registe.

*

Notifique.

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Comunique ao EP e à DGRSP.”.

*

IV – FUNDAMENTAÇÃO.

Debrucemo-nos, então, sobre o mérito da decisão para encontrarmos resposta à questão a decidir – a de saber se estão preenchidos todos os pressupostos para que seja concedida ao recorrente a liberdade condicional, nesta fase do cumprimento da pena.

Partindo-se sempre do pressuposto formal da existência de consentimento por parte do condenado (cfr. n° 1, do artigo 61°, do Código Penal), o legislador optou nos n°s 2, 3 e 4 do artigo 61º do Código Penal, não só por uma diferenciação temporal dos pressupostos formais, situando-os em metade (1/2) e dois terços (2/3) da pena de prisão cumprida para a liberdade condicional facultativa e em cinco sextos (5/6) de pena de prisão superior a 6 anos, para aquela de carácter obrigatório ou automático, mas também por uma diferenciação material dos seus pressupostos.

Assim, quando está em causa a concessão da liberdade condicional respeitante ao cumprimento de metade da pena de prisão, acentuam-se por um lado razões de prevenção especial, seja negativa, de que o condenado não cometa novos crimes, seja positiva, de reinserção social, e de prevenção geral, compatibilidade da liberdade com a defesa da ordem e paz social —cfr. alíneas a) e b) do n° 2, do mencionado artigo 61°.

Quando está em causa a concessão da liberdade condicional respeitante ao cumprimento de dois terços da pena de prisão, a lei não confere a mesma relevância à prevenção geral. Passa-se a acentuar razões de prevenção especial, seja negativa, de que o condenado não voltará a delinquir, seja positiva, conducente à sua reinserção social.

Por isso, no momento de apreciação da liberdade condicional quando o condenado já cumpriu dois terços da pena, deve entender-se que esse cumprimento parcial satisfaz plenamente as razões de prevenção geral, ficando a liberdade condicional, quando facultativa, apenas dependente do cumprimento das exigências de prevenção especial.

Para o efeito deverá ter-se em atenção as repercussões que o cumprimento da pena está a ter na personalidade do condenado e que podem vir a revelar-se na sua vida futura. "Assim, para além da vontade subjectiva do condenado, o que releva é (...) a «capacidade objectiva de readaptação», de modo que as expectativas de reinserção sejam manifestamente superiores aos riscos que a comunidade deverá suportar com a antecipação da sua restituição à liberdade."1.

Importa ainda acentuar-se que o regime de liberdade condicional em face dos pressupostos de que depende, excepcionando evidentemente a obrigatória aos cinco sextos da pena, se o condenado nisso consentir, tem carácter excecional.

Na verdade, quando a apreciação se faz por reporte aos marcos do meio da pena e dos dois terços da pena, a liberdade condicional é a exceção.

Bem se compreende que assim seja porque a pena já é fixada tendo em consideração as molduras legais cabíveis aos crimes em função da sua gravidade e cujo

quantum concreto é determinado tendo em consideração as exigências concretas de prevenção. Por isso, a concessão de liberdade condicional deverá apenas ter lugar nas situações excepcionais em que se revele patentemente que o condenado está apto a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes (a que acresce, no caso da concessão por reporte a metade da pena, o requisito de que a defesa da ordem e da paz pública não sejam postas em causa.

O preceituado no artigo 61°, n° 2, do Código Penal exige que se efectue um prognóstico individualizado e favorável de reinserção social, assente, essencialmente, na probabilidade séria de que o condenado em liberdade adopte um comportamento socialmente responsável, sob o ponto de vista criminal.

Importa, pois, aferir os índices de ressocialização revelados pelo condenado no caso concreto – para isso devem ponderar-se as circunstâncias concretas do caso, designadamente a conduta do recluso, anterior e posterior à sua condenação, bem como a sua própria personalidade, designadamente a sua evolução ao longo do cumprimento da respetiva pena de prisão no sentido de interiorizar o desvalor da sua conduta, e cuja exteriorização seja patente e se revele pelo menos num discurso dotado de coerência e que se apresente como manifestamente sentido, decorrente de um sentimento aprofundado de consciência do mal do crime.

Essa é a primeira condição necessária, indispensável e incontornável para a conclusão da possibilidade de ressocialização, com a adopção de comportamento socialmente responsável.

Não esqueçamos que a integração social não só não se esgota no plano familiar, social e laboral, como significa, antes de mais, aceitação dos valores penalmente protegidos e determinação do comportamento segundo tais valores o que só é possível depois de assumido integralmente e sem quaisquer reservas ou pretextos o mal do crime.

Porque assim é, não obstante o esforço argumentativo do recorrente, nenhuma crítica merece a decisão recorrida ao constatar a inviabilidade de se estabelecer, neste momento, um prognóstico positivo de ressocialização com adoção de comportamento normativo.

Em primeiro lugar, assim sucede atenta a personalidade manifestada pelo condenado aquando do cometimento dos crimes (personalidade à qual deve atender-se em face do disposto no art. 61.º, n.º 2, do CP, que determina expressamente a relevância das circunstâncias do caso, da vida anterior do agente e da sua personalidade). Tratando-se de um indivíduo sem limitações cognitivas, a prática dos factos não pode deixar de revelar uma personalidade com dificuldade em respeitar princípios e valores conformes com a vida em sociedade e que denota manifesto desprezo pela situação da vítima, bem como uma conceção estereotipada da relação conjugal e do papel da mulher nessa relação.

Considerou o Tribunal a quo a gravidade dos factos que importaram a aplicação ao recluso das penas de prisão e o que eles revelam da sua personalidade [Atente-se que o condenado cumpre pena por dois crimes, designadamente o de violência doméstica, por factos que denotam um comportamento agressivo, impulsivo e profundamente ofensivo da dignidade da mulher].

Por outro lado, ponderou o Tribunal a quo a inviabilidade de se concluir pela existência e consolidação do juízo de autocensura e da interiorização do desvalor das suas condutas delituosas:

“(…) conforme resulta dos pontos 3.1. a 3.3. dos factos provados, verifica-se total ausência de sentido autocrítico por parte do recluso quanto aos factos praticados.

De resto, desde que foi julgado não se verificou qualquer evolução positiva quanto à postura do recluso, verificando-se assim que a prisão não tem surtido em si qualquer efeito de ressocialização.

A este propósito, recordemos o que consta da motivação de facto do acórdão proferido em 1ª instância no processo da condenação por referência às declarações do recluso, aí arguido: «assumiu uma postura defensiva/agressiva, por vezes no limiar do desrespeito pelo tribunal, revelando claramente dificuldade de aceitação/integração de pontos de vista distintos do seu, dificuldade de gestão das emoções, de autocontrolo e de comunicação interpessoal. Todo o seu discurso é marcado pela vitimização, raiva e ressentimento dirigido à ofendida (…), imputando-lhe, de forma obstinada, infidelidade conjugal e atribuindo-lhe toda a culpa e responsabilidade no desfecho do casamento e, consequentemente no contexto factual objecto da acusação, revelando a presença de crenças estereotipadas sobre a conjugalidade/papéis de género».

Ora, esse continua a ser o seu posicionamento, havendo que concluir no sentido de que tal ausência de sentido autocrítico por parte do recluso constitui sério factor de risco de recidiva criminal.

Com efeito, cumpre referir que nos crimes de violência doméstica a taxa de reincidência é elevada, pelo que a circunstância daquele demonstrar gritante inconsciência quanto ao seu mau-agir constitui motivo de especial preocupação.” (destacados nossos).

No seu recurso, o recluso anuncia a este Tribunal da Relação que não irá mudar o seu posicionamento – “O Recorrente desde sempre manteve a posição de que não praticou os factos que lhe foram imputados em sede de Acusação (…) e que vieram a permitir a sua condenação (…) Não será pelo decurso do tempo que o Recorrente alterará a sua posição relativamente ao juízo que faz sobre os factos que lhe foram imputados (…) pelo que a mesma se manterá à data em que cumprir na totalidade a pena que lhe foi aplicada, ou seja, o juízo que hoje faz será o mesmo que fará a 3 de Dezembro de 2026 (…) Não se poderá impor a qualquer arguido o reconhecimento e a confissão da prática de tal crime quando o mesmo está convicto que não o praticou e alegou em sua defesa os factos que constam dos autos”.

Confunde-se o recluso recorrente quando se insurge contra a decisão com o argumento de que não se lhe poderá impor a obrigação de confessar a prática do crime.

Jamais, ao longo de todo o procedimento de que foi alvo, houve qualquer tentativa de o forçar a confessar.

Diz o recorrente que não irá mudar o seu posicionamento. Não sabemos se assim será.

O que o recorrente não pode pretender é que os Tribunais deixem de retirar das circunstâncias do caso as devidas ilações.

Na decisão recorrida citou-se largamente a decisão condenatória, no que se reporta ao posicionamento do arguido perante o caso e perante o Tribunal. Útil será, igualmente, relembrar o conteúdo do douto Acórdão da Relação de Lisboa que apreciou o recurso interposto pelo arguido daquela decisão condenatória e onde não faltam referências quanto à robustez do juízo probatório emitido pelo Tribunal da condenação e à personalidade revelada pelo ora recorrente.

O recluso continua a manter o posicionamento que assumiu desde o início do processo, baseado na completa negação do crime de violência doméstica e na alegação de que tudo não passou de uma cabala organizada pela sua ex-mulher.

Esse posicionamento, de imaculada inocência e de afirmação de um comportamento sempre correto, é mantido mesmo perante o depoimento do filho “BB, filho mais velho do arguido e da ofendida, que vive com o pai e claramente está do lado dele no conflito e já nem visita a mãe, não deixou de confirmar que assistiu, ao longo dos anos, a inúmeras discussões dos seus pais, chegando a acordar a meio da noite com os gritos deles e que chegou a colocar-se entre os dois para tentar acalmar os ânimos”.

E mantido é tal posicionamento do recluso, quando no processo da condenação se deu como provado que «o arguido detém significativas dificuldades de aceitação/integração de pontos de vista distintos do seu, défices de gestão de emoções, de autocontrolo e de comunicação interpessoal, características que, potencialmente, tenderão a originar reacções não assertivas da sua parte em situações percepcionadas como de divergência/conflito relacional. As suas narrativas revelam uma atribuição causal externalizada (particularmente na abordagem da relação conjugal com CC) e a presença de crenças estereotipadas sobre a conjugalidade/papéis de género e sobre o fenómeno da violência doméstica e respectivas vítimas. Rejeita liminarmente a posição de arguido neste processo, discorda da generalidade da acusação proferida, critica a intervenção policial e judicial de que foi alvo nos autos e considerar totalmente infundada a posição de ofendida de CC, tendo tecido críticas veementes ao seu desempenho conjugal; neste contexto o arguido apresentou e expressou significativa exaltação e sentimentos de injustiça e vitimização pessoal», circunstancialismo esse que levou o Tribunal da Relação de Lisboa a considerar que daí “resulta o ilícito global agora em apreciação não ser (…) determinado por alguma propensão ou tendência criminosa, mas radica fortemente na sua personalidade como formada se mostra”.

Não poderia o Tribunal a quo deixar de ponderar a insuficiente avaliação que o Recorrente persiste em fazer da sua conduta. Fê-lo por considerar que ainda não se verificam elementos para se concluir pela aquisição e consolidação do necessário juízo de autocensura.

Todas as circunstâncias consideradas, com assento nos factos provados, dão nota de sérias, fundadas e profundas dúvidas quanto à possibilidade de se formular um juízo de prognose efectivamente positivo de que o recluso conduzirá, em liberdade, no futuro, a sua vida de forma responsável e afastado da prática de crimes, impedindo que se lance mão de um mecanismo — o da liberdade condicional aos dois terços da pena de prisão cumprida — cuja natureza, como supra se referiu, tem carácter excepcional.

Assim, afigura-se-nos que o expendido a este propósito na decisão recorrida não merece qualquer censura e impõe que se conclua, como ali, que o percurso prisional do recluso deverá ser consolidado por forma a reduzir os factores de risco e vulnerabilidade que ainda apresenta em grau considerável e que não permitem a assunção de um "risco prudente" – É imperioso reconhecer que persistem exigências de prevenção especial que impedem que se formule um juízo de prognose favorável quanto à conduta do recluso em liberdade, razão pela qual se mostra plenamente justificada a decisão recorrida.

Nestes termos, sem necessidade de mais considerandos, por despiciendos, concluímos que a decisão recorrida não merece qualquer reparo e, em consequência, o recurso interposto pelo recluso não pode deixar de ser julgado improcedente.

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V. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em jugar improcedente o recurso interposto pelo recluso AA e, em consequência, em confirmar a douta decisão recorrida nos seus precisos termos.

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Tributação.

Condena-se o recluso no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.

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D.N.

*

O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 14 de outubro de 2025

Jorge Antunes (Relator)

Mafalda Sequinho dos Santos (1ª Adjunta)

Carla Oliveira (2ª Adjunta)

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1 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04.07.2012 – Relator: Desembargador Joaquim Gomes - decisão proferida no processo n° 1751/10.7TXPRT-H.P1, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7a5e107991e3067980257a4400397469?OpenDocum