CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FIANÇA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
ÂMBITO
Sumário

I – O facto de a fiança ser um negócio de risco, determina a necessidade de a declaração fidejussória ser interpretada de forma estrita, segundo o critério do carácter menos gravoso para o declarante (princípio “in dubio pro fideiussore”).
II – Na falta de previsão contratual específica, a extinção do contrato liberta o fiador do dever de garantir o cumprimento das obrigações do arrendatário, pelo que não pode ser-lhe exigido o pagamento da indemnização pelo atraso na restituição do locado.
III – Limitando-se a parte a assinar o contrato como fiador, não assumindo qualquer responsabilidade para além das obrigações resultantes do contrato, designadamente não constando do contrato uma cláusula no sentido de que a fiança abrangeria as obrigações emergentes do contrato “até à restituição do locado”, por aplicação do referido critério da interpretação restritiva, a fiança em causa abrangerá apenas a falta de pagamento das rendas até ao momento da extinção do contrato, já não abrangendo a indemnização devida pelo arrendatário em consequência do atraso na restituição do locado.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. Nos presentes autos de embargos de executado que V.A. deduziu contra L.S., foi proferida sentença a qual julgou os embargos totalmente improcedentes, determinando o prosseguimento da execução.
      
2. Inconformado, o embargante apelou desta decisão, concluindo:
A. Em 1 de Junho de 2006 foi celebrado entre a Exequente (Senhoria) e o 1.º Executado (Arrendatário), um contrato de arrendamento por tempo certo relativo à fracção autónoma identificada pela letra “VV”, correspondente ao prédio urbano destinado à habitação, sito …;
B. Nessa conformidade foi o arrendamento celebrado por um prazo de 5 (cinco) anos, tendo como termo inicial a data de 01JUN2006 e termo final 31MAI2011 (vide cláusula 3.ª);
C. A renda, paga adiantadamente até ao dia 8 de cada mês, com a antecedência de 30 dias àquele que disser respeito, por depósito bancário, foi ajustada em € 500,00 (quinhentos euros) mensais (cfr. cláusulas 4.ª e 5.ª;
D. O ora Recorrente, constituiu-se fiador do contrato de arrendamento, nos termos da cláusula 16.ª, tendo ficado estipulado como termos da fiança que “O presente contrato, tem como fiador do mesmo, o Sr. V.A., solteiro, …”;
E. Sendo que da leitura daquela cláusula (nem do respectivo contrato de arrendamento) não se alcança qualquer nomeadamente renúncia aos institutos do Benefício de  excussão prevista art.º 638.º do Cód. Civil, moldando aquela garantia com um conteúdo genérico;
F. O Exequente afirma (vide art.º 5.º do douto Requerimento Executivo), que o Arrendatário, aqui 1.º Executado, deixou de pagar as rendas em Fevereiro de 2010,tendo-o interpelado para o efeito, não logrou o Exequente obter sucesso.
G. Após um período superior a 3 (três) meses de não pagamento de renda, tornou-se inexigível à Senhorios, Exequentes, aqui recorridos, a manutenção do contrato de arrendamento, tendo procedido à respectiva resolução com o fundamento da falta de pagamento de rendas;
H. Tendo sido feita através de notificação judicial avulsa no processo com o n.º …, que correu termos no Juízo Cível …, tendo porduzido os seus efeitos em 20OUT2010, conforme certidão junta com o douto Requerimento Executivo, como doc. 5, que aqui se dá por  integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais, com a consequencia legal na imediata cessação do contrato de arrendamento, nos termos das disposições conjugadas previstas nos art.ºs 1084.º do Cód. Civil e do n.º 7 do art.º 9.º da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro;
I. À data de 20OUT2010, o valor das rendas vencidas e não pagas cifrava-se na quantia total de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), assistindo à  Senhoria, Exequente/embargada e ora recorrida o Direito à respectiva reclamação daquele valor;
J. Com efeito, naquela data (20OUT2010), constituiu-se a Senhoria, aqui Exequente, credora e, por consequência, o Arrendatário, aqui 1.º Executado, devedor, da quantia de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), referente a rendas vencidas e não pagas relativas ao contrato de arrendamento havido entre eles;
K. Ora, sendo uma forma de cessação do respectivo contrato de arrendamento a resolução contratual, in casu, teria como efeito imediato a desocupação do locado e a consequente entrega ao senhorio, conforme as disposições conjugadas previstas nos art.ºs 1079.º e 1081, n.º 1 do Cód. Civil, o que não veio a ocorrer por exclusiva responsabilidade do Arrendatário/Executado.
L. Nesse sentido, vem a Senhoria, aqui Exequente e aqui Recorrida ipso facto, reclamar o acréscimo do valor de € 4.000,00 (quatro mil euros), acrescidos de juros no valor de € 174, 41 (cento e setenta e quatro euros e quarenta e um cêntimos), nos termos e para os efeitos previstos no art.º 1045.º do Cód. Civil, calculados, presume-se, desde a data em que se constituiu a obrigação de restituição do locado.
M. Por outro lado, tendo o Arrendatário, 1.º Executado, constituindo-se em mora desde Janeiro de 2011, data em que deveria ter restituído o imóvel, vem a Exequente, ora recorrida, reclamar, ainda, considerando a data da instauração dos presentes autos, e até àquela data, a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), nos termos das disposições conjugadas previstas nos art.ºs 1081.º a 1087.º do Cód. Civil, fazendo acrescer ao valor das rendas vencidas e não pagas à data da resolução do contrato (20OUT2010/€ 3.500,00 – três mil e quinhentos euros), a quantia de € 7.174,41 (sete mil cento e setenta e quatro euros e quarenta e um cêntimos).
N. Em Douta Sentença a Meritissima Juiz a quo prolata a sua decisão sopesando de que “Cingem-se estes embargos à questão de aferir a “extensão” da fiança prestada pelo embargante no contrato de arrendamento que subjaz ao pedido exequendo. Com efeito, entende o embargante que pelo facto de o contrato de arrendamento ter sido resolvido, por incumprimento do arrendatário, cessou a fiança, a qual, por isso, abrange apenas o pedido de rendas não pagas enquanto vigorou o contrato. Nos termos do disposto no artigo 651º do Código de Processo Civil, a extinção da obrigação principal extingue a fiança. A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor [artigo 634º do Código Civil]. A fiança é uma garantia pessoal típica, pela qual um terceiro (fiador) assegura com o seu património o cumprimento da obrigação do devedor, ficando pessoalmente obrigado perante o credor deste. A obrigação do fiador é acessória da obrigação do devedor principal [nº2 do artigo 627º do Código Civil], e, em princípio, também subsidiária, por gozar do benefício da excussão prévia (se a tal não renunciar).”;
O. Concluindo que “A pretensão do embargante não tem acolhimento legal, nem sustento contratual. Do contrato de arrendamento resulta que o embargante se constituiu fiador, sem qualquer limitação ou restrição. Cobrindo a fiança as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor, significa tal que, para além de cobrir o valor das rendas devidas e não pagas enquanto vigorou o contrato, cobre também os valores que sejam devidos pela não restituição do locado no prazo fixado para o efeito.”;
P. Salvo o devido respeito o acréscimo mencionado no artigo anterior não é exigível ao ora recorrente. Se não vejamos: EM 01JUN2006 foi celebrado um contrato de arrendamento por termo certo onde o 3.º Executado, ora Embargante e aqui recorrente, mediante a sua subscrição, se constitui Fiador, conforme cláusula 16.ª daquele
Q. E com o seguinte teor “O presente contrato, tem como fiador do mesmo, o Sr. V.A., solteiro, ...
R. Ora, com a assinatura do contrato de arrendamento em 01JUN2006, quiseram as partes que a Exequente, aí Primeiro Outorgante desse contrato de arrendamento ao aí Segundo Outorgante o gozo da fracção autónoma …-do prédio urbano destinado à habitação, sito … – vide cláusulas 1.ª e 2.ª; por um período de 5 (cinco) anos – vide cláusula 3.ª; com uma renda ajustada de € 500,00 (quinhentos euros mensais) – vide clausula 4.ª.
S. Por outro lado, quis a Exequente e o 3.º Executado, ora Embargante, que este se tivesse constituído fiador do Contrato de Arrendamento nos termos e para os efeitos da sua cláusula 16.ª.
T. Neste sentido, estamos na presença de um Contrato de Arrendamento que tem como objecto negocial o gozo de uma fracção autónoma (melhor identificada supra) mediante o pagamento de uma renda (idem), cumprindo-se, assim os requisitos previstos no art.º 280.º do Cód. Civil, tendo como garante das obrigações determinadas e determináveis daquele contrato, o 3.º Executado/Embargante e aqui Recorrente constituiu-se fiador da obrigação principal que ao Arrendatário e 1.º Executado coube durante a execução do respectivo contrato, podendo-lhe apenas ser exigido aquilo que no momento da respectiva resolução contratual poderia ser exigido ao devedor principal, tendo ora Embargante colocou o seu património à disposição da Exequente assim se obrigando pessoalmente (conforme ensina o Doutor Henrique Mesquita, in “ Estudos em memória do Prof. Doutor Castro Mendes”) para o caso de esta constituir- se credora do Arrendatário e aqui 1.º Executado.
U. Bem sabendo a Exequente ora Recorrida o Fiador/3.º Executado, ora Recorrente, e declarando que assim fosse, que este só seria responsável pelo pagamento da obrigação principal que ao Arrendatário impendia no momento da celebração do Contrato de Arrendamento – o pagamento da renda -, e àquela que seria, necessariamente, determinável no caso de incumprimento definitivo do contrato pelo Arrendatário, ou seja, o pagamento das rendas em atraso, existentes à data da respectiva resolução contratual.
V. Salvo o devido respeito, não se encontra expressa no Contrato de Arrendamento a declaração do Fiador, ora Recorrente, qualquer declaração quanto a estas obrigações futuras, nem se pode do texto daquele documento tal inferir-se;
X. Porquanto nada ficou estipulado – e se as partes o tivessem querido, assim o teriam, expressamente previsto no contrato-, quanto ao benefício de excussão prévia (não renunciado pelo fiador); aditamentos legais e suas renovações até à data efectiva da restituição do locado livre; condições de entrega do locado após a cessação do contrato por decurso do prazo ou eventual resolução do contrato por incumprimento definitivo subsistência da fiança à respectiva resolução, cálculo indemnizatório por atraso na do pagamento da renda e entrega do locado. Nada!
W. Consequentemente, quiseram as partes, expressamente, aquele clausulado e não outro, em que o ora Embargante constitui-se Fiador nos precisos termos em que “O presente contrato, tem como fiador do mesmo, o Sr. V.A. , solteiro, …
Y. Ou seja, de todo o objecto negocial determinado e determinável à data da celebração do Contrato de Arrendamento, maxime das respectivas rendas em atraso à data da respectiva resolução contratual.
Z. Neste sentido, vide o Douto Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 23JAN2001 em que “é nula por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em Direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que que o afiançado intervenha.”
AA. O clausulado contratual sobre a fiança prestada pelo Recorrente é genérica e tem, obrigatóriamente, que ser interpretada à luz da doutrina da interpretação do negócio juridico segundo disposto no art.º 236.º n.º 1 do Cód. Civil, hermeneuticamente conduzido no teor dos embargos e, salvo o devido respeito, ignorado pela Meritissima Juiz a quo. Vejamos,
AB. Manda este instituto que “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”;
AC. Sendo certo que o primeiro critério de interpretação está insíto no n.º 2 daquela disposição legal que expressa que “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.
AD. A vontade real da Declarante, ora Recorrida, quanto ao conteúdo da cláusula 16.ª, reitere-se, é generica,
AE. Podendo nela cabendo tudo o que pede em sede de requerimento executivo a ora Recorrida, bem como o que entende ter sido a formulação da sua vontade no momento em que se constituiu Fiador o ora Recorrente.
AF. Com efeito, da leitura do contrato de arrendamento observam-se cláusulas de prazo, renda, actualização sistemática da mesma e respectivas comunicações;
AG. Condições de uso do locado, obrigações de conservação do locado, obras e respectivas autorizações;
AH. Bem como obras a benefício do locado pelo senhorio, actualização de renda por obras de conservação e respectivos aditamnetos contratuais, transmissão do locado nos termos do art.º 85.º do RAU; disposição sobre a renovação do contrato prevista no art.º 100.º do RAU e declaração genérica sobre o estado de conservação do imóvel no momento da respectiva entrega;
AI. In casu de todas estas as obrigações contratuais a única que o Fiador/Recorrente garante perante a Credora/Recorrida é o pagamento das rendas e suas actualizações, porquanto assim quiseram as partes na sua declaração negocial.
AJ. O que nos reconduz à aplicação da doutrina do disposto n.º art.º 236.º n.º 1 do Cod. Civil onde “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
AK. Onde, necessariamente, a interpretação do conteúdo da fiança, sendo esta de teor genérico como supra se observou;
AL. Terá de ser feita em sentido estrito e, tendencialmente, mais favorável à pretenção do Fiador, ora Recorrente.
AM. O Fiador, ora Recorrente formulou a sua vontade negocial com a “sapata” do teor contratual que não implica mais do que a garantia para o pagamento das rendas em caso de imcuprimento do arrendatário que prestou perante o credor
AN. Devendo ser feita na “interpretação estrita das declarações de assunção de risco, com a correlativa tendencial aplicação dos critérios in dubio pro fideiussione e in dubio pro fideiussore” vide Douto Acordão TRP 07DEC2023.
AO. Como ensina o Prof. Januário Gomes referindo que «Na dúvida sobre o sentido da declaração, não será directamente relevante o critério subsidiário do art. 237 CC - “dicotomizado” entre os negócios gratuitos e os onerosos - mas, antes, o critério do carácter menos gravoso para o declarante.
AP. “Assim resulta, natural e razoavelmente, do facto de a fiança ser um negócio de risco, donde decorre que deve ser o credor, beneficiário da garantia, a curar no sentido de a declaração “cobrir”, inequivocamente, todas as situações que pretende ver resguardadas”.
AQ. No mesmo sentido afirma também o Prof. Menezes Cordeiro, Tratado, X, Dtº das Obrigações, Garantias, 2015, pg. 460, com expresso apoio no Prof. Vaz Serra, Fiança e Figuras Análogas, Bol.71/72 , “A regra está, como visto, em que a dúvida sobre o sentido da declaração deve ser resolvida interpretativamente pela solução mais favorável para o fiador e, designadamente, o que dê menor âmbito à fiança, cabendo ao credor solicitar que, no termo de fiança, tudo fique bem esclarecido.
AR. No caso sub judice a ora Recorrida exigiu uma garantia genérica;
AS. Porém não curou de cobrir os termos e a extenção do funcionamento da fiança moldando apenas a responsabilidade pelo pagamento das rendas vencidas e não pagas pelos Arrendatários/Executados (efectivamente devidas tendo sido do conhecimento do ora Recorrente no momento da citação do Requerimento Executivo no valor de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros), o que, efectivamente era no momento da resolução contratual).
AT. Tivesse a Exequente, ora Recorrida pretendido moldar a garantia exigida de outro modo, tê-lo-ia feito cuidando de a estender com o imediata e expressa previsão contratual da renúncia ao benefício de excussão;
AU. Bem como a danos emergentes do incumprimento ou mora na entrega do locado, optando por o não fazer no momento em que a exigiu.
AV. Ao invés, optou por um conteúdo genérico, bem sabendo, podendo e devendo esclarecer o Garante, ora Recorrente, do conteúdo e alcance do da garantia que lhe estava a exigir.
AX. A Meritíssima Juiz a quo desconsiderou a proposta vazada nos respectivos embargos, pugnando, apenas pelo acolhimento do conteúdo genérico da fiança, ignorando que lhe caberia, ipso facto, fazer a devida a interpretação do contrato de arrendamento, daí extraindo necessáriamente que a dúvida sobre a vontade real (da recorrida exigindo-a e do recorrente aceitando-a) quanto à extensão da fiança.
AY. No entanto, fê-lo ao arrepio do critério objectivo da interpretação do respectivo negócio enfraquecendo, o ponto de vista do declaratário, in casu, ora Recorrente.
AW. Não se trata da precepção subjectiva do ora Recorrente quanto à extensão da fiança mas sim o ponto de vista de que um declaratário normal colocado na posição de um declaratário real depreendiria objectivamente do conteúdo e alcance da cláusula 16.ª supra mencionada inserida no fundo contratual em análise, à luz das regras da experiência comum
AZ. Necessáriamente e objectivamente duvidoso que aceitasse o alcance pretendido pela ora Recorrida, cabendo-lhe pagar rendas que não as decorrentes da execução do contrato ou consequências da mora na entrega do locado.
Terminou pedindo a revogação da sentença, substituindo-a por outra que condene o ora Recorrente ao pagamento à ora Recorrida, em singelo, da quantia de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros) relativos a rendas vencidas e não pagas Arrendatários/Executados, à data de 20OUT2010.
3 - A apelada contra-alegou concluindo:
A. O Recorrente nas suas alegações de recurso insurge-se contra a decisão recorrida, na medida em que considera que pelo facto de o contrato de arrendamento ter sido resolvido, por incumprimento do arrendatário, cessou a fiança, a qual, por isso, abrange apenas o pedido de rendas não pagas enquanto vigorou o contrato.
B. A pretensão do Recorrente não tem acolhimento legal, nem sustento contratual.
C. Do contrato de arrendamento resulta que o Recorrente se constituiu fiador, sem qualquer limitação ou restrição. Cobrindo a fiança as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor, significa tal que, para além de cobrir o valor das rendas devidas e não pagas enquanto vigorou o contrato, cobre também os valores que sejam devidos pela não restituição do locado no prazo fixado para o efeito.
D. No caso dos autos, não está em causa obrigações não previstas pela fiança que foi prestada no contrato de arrendamento com a Exequente/Recorrida.
E. Neste quadro, o Recorrente não pode deixar de ser também responsável pelo pagamento de todas essas quantias correspondentes às rendas indemnizatórias vencidas até à efetiva entrega do imóvel, pois que tais quantias são decorrentes do incumprimento do próprio contrato de arrendamento.
F. A decisão do Tribunal a quo deve assim ser confirmada por este Venerando Tribunal.
        
II – Questões a decidir
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do Cod. Proc. Civil, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.  
No caso dos autos, atento o teor das conclusões, a principal questão a decidir prende-se em saber qual o âmbito da fiança prestada pelo embargante, designadamente se o mesmo pode ser responsabilizado pelos montantes devidos pelo arrendatário após a cessação do contrato
*
III – Fundamentação de Facto:
(transcrição da decisão recorrida)
I. Relatório Embargante o V.S e Embargado o L.S.
Objeto do litígio Pedido • Extinção da execução Causa de pedir Sustenta o embargante que não é exigível o montante que exceda o valor das rendas devidas e não pagas, tendo cessado, com a comunicação da resolução do contrato de arrendamento, todos os efeitos deste.
Foi admitida a oposição à execução – despacho de 17/01/2024.
 A exequente contestou. Foi realizada audiência prévia – ata de 09/07/2024: Apreciada a regularidade da instância. Fixado o objeto do litígio, com dispensa dos temas da prova. Apreciados os requerimentos probatórios. Dispensada a realização de audiência final (prova estritamente documental). 
Questões a decidir (Objeto do Litígio): Objeto da fiança prestada – inexigibilidade do montante que exceda a quantia de € 3.500,00 
II. Fundamentação de facto e de direito
Factos provados:
A. A Exequente é dona e legítima proprietária da fração autónoma identificada pela Letra … do prédio urbano destinado a habitação, sito na …., na freguesia de Povoa de Santa Iria, Concelho de Vila Franca de Xira, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o n.º …, e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo n.º ….
B. Por contrato de arrendamento datado de 01/06/2006, a exequente deu de arrendamento a N.S. a fração identificada em A.
C. Nos termos do referido contrato, ficou acordado o pagamento pelo executado de uma renda mensal correspondente à contrapartida do gozo da fração, no montante de € 500,00, com vencimento no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitasse, com prazo de pagamento até dia 8 (oito) dias a contar da data do seu vencimento, mediante depósito em conta bancária indicada para o efeito.
D. Nos termos do mesmo contrato, o aqui embargante assumiu a posição de fiador do arrendatário.
E. O executado não efetuou o pagamento das rendas vencidas desde o mês de fevereiro de 2010, quer na data do respetivo vencimento, quer em momento posterior, tendo a exequente em finais do mês de maio de 2010 remetido ao executado carta registada de interpelação para pagamento do montante das rendas, naquela data, em dívida.
F. A carta foi devolvida ao remetente com a indicação de objeto não reclamado.
G. Em momento posterior, a Exequente remeteu carta registada de interpelação ao embargante, na qualidade de fiador, com vista à regularização da situação de incumprimento em que o Executado incorrera, para o efeito, solicitando o pagamento do montante, naquela data, em dívida.
H. A carta foi, igualmente, devolvida ao remetente com a indicação de objeto não reclamado.
I. A ora Exequente procedeu à resolução do contrato de arrendamento com tal fundamento, através da notificação judicial avulsa no Processo n.º ...Juízo Cível do Tribunal ...
J. A qual foi efetivada pela Agente de Execução em 20/10/2010.
K. Através da qual comunicou ao arrendatário a resolução do contrato de arrendamento celebrado em 01/06/2006, com fundamento na mora no pagamento da renda, bem como o montante de € 3.500,00, naquela data, tendo requerido a desocupação imediata do locado e a sua entrega à senhoria, livre de pessoas e bens, no estado em que o recebeu, com a realização de todas as reparações que se mostrem necessárias à reposição da situação existente no locado.
L. O arrendatário não pagou o montante referido em K nem restituiu o locado. M. À data da resolução contratual, encontrava-se em dívida o montante de € 3.500,00 a título de rendas vencidas e não pagas.
N. A exequente requer, além do pagamento da quantia referida em M:
O pagamento do valor de € 4.000,00, referente às rendas indemnizatórias posteriores à extinção do contrato até à restituição do imóvel
O pagamento dos juros de mora à taxa legal em vigor, no valor de € 174,41
O pagamento do montante da renda que se encontrava estipulada, elevada para o dobro, até ao momento da entrega efetiva do locado, no valor de € 2.000,00 devido a título de indemnização moratória, com referência ao período compreendido entre fevereiro a maio de 2011
O. A Exequente, por carta registada datada de 06/05/2011, comunicou ao arrendatário e mulher o montante global em dívida, solicitando a sua regularização.
P. Tendo, na mesma circunstância, remetido carta registada datada de 06/05/2011 ao embargante.  
Factos não provados: Nada mais se provou.  
Fundamentação de facto
Os factos provados estão documentados (documentos que acompanham o requerimento executivo) e não foram impugnados pelo embargante.
Direito
Cingem-se estes embargos à questão de aferir a “extensão” da fiança prestada pelo embargante no contrato de arrendamento que subjaz ao pedido exequendo. Com efeito, entende o embargante que pelo facto de o contrato de arrendamento ter sido resolvido, por incumprimento do arrendatário, cessou a fiança, a qual, por isso, abrange apenas o pedido de rendas não pagas enquanto vigorou o contrato.
Nos termos do disposto no artigo 651º do Código de Processo Civil, a extinção da obrigação principal extingue a fiança. A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor [artigo 634º do Código Civil]. A fiança é uma garantia pessoal típica, pela qual um terceiro (fiador) assegura com o seu património o cumprimento da obrigação do devedor, ficando pessoalmente obrigado perante o credor deste. A obrigação do fiador é acessória da obrigação do devedor principal [nº2 do artigo 627º do Código Civil], e, em princípio, também subsidiária, por gozar do benefício da excussão prévia (se a tal não renunciar).
A pretensão do embargante não tem acolhimento legal, nem sustento contratual.
Do contrato de arrendamento resulta que o embargante se constituiu fiador, sem qualquer limitação ou restrição. Cobrindo a fiança as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor, significa tal que, para além de cobrir o valor das rendas devidas e não pagas enquanto vigorou o contrato, cobre também os valores que sejam devidos pela não restituição do locado no prazo fixado para o efeito. Improcedem, assim os presentes embargos.
III. Dispositivo
Pelo exposto, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, julgo improcedentes os presentes embargos e, consequentemente, julgo improcedentes os presentes embargos e, consequentemente determino a prossecução da execução.
 
(…)
IV – Fundamentação de Direito
a) Iniciando a apreciação do recurso, recorde-se que a principal questão que importa resolver prende-se com o âmbito da fiança prestada pelo embargante, pretendendo o embargante/recorrente que não pode ser responsabilizado pelos montantes devidos pelo arrendatário após a cessação do contrato (que terá ocorrido em 20-10-2010 – cfr. factos provados I e J);  defende assim que a extinção da obrigação principal acarreta a extinção da fiança, nos termos da norma do art.º 651.º Cod. Civil.
b) Como se lê no Ac. do S.T.J., de 15-09-2022, proc. n.º 8520/20.4T8PRT-B.P2.S1, a fiança (arts 627.º a 654.º Cod. Civil) constitui uma garantia pessoal das obrigações, pela qual um terceiro assegura com o seu património uma obrigação alheia, ficando assim pessoalmente obrigado perante o credor, caracterizando-se, na parte que agora importa, pela sua acessoriedade; incide essa característica sobre a natureza da obrigação do principal devedor, no sentido de ser a obrigação do fiador acessória da obrigação do principal devedor – art.º 627.º n.º2 Cod. Civil.
Assim, a fiança não pode exceder a dívida principal, nem ser contraída em condições mais onerosas, ficando sujeita a redução quando tal venha a acontecer – art.º 631.º Cod. Civil.
Por outro lado, por imperativo legal, a extinção da obrigação principal acarreta a extinção da fiança – art.º 651.º Cod. Civil.
Continuando a seguir o mesmo Ac. do S.T.J., nele se cita Januário Gomes, Estudos de Direito das Garantias, I, pg. 23, cit. in Ac. R.P. 31/3/07 Col. I/166 (rel. Marques Pereira), “o regime da fiança leva a que se fale dela como um negócio de risco”. Trata-se de encontrar um compromisso entre segurança do credor e a defesa do fiador. Esclarece aliás aquele citado autor (Assunção Fidejussória de Dívida, 2000, pgs. 744 e 745) que o problema da interpretação da declaração do garante é um problema mais geral de interpretação da declaração negocial, resolvido, em potência, pelo disposto no art.º 236.ºss. Cod. Civil.
Destacando a especificidade do negócio jurídico fiança, deve ela ter consequências específicas a nível da interpretação da declaração do fiador. Assim, o facto de a fiança ser um negócio de risco, determina a necessidade de a declaração fidejussória dever ser interpretada de forma estrita. “Na dúvida sobre o sentido da declaração, não será directamente relevante o critério subsidiário do art.º 237.º CCiv - “dicotomizado” entre os negócios gratuitos e os onerosos - mas, antes, o critério do carácter menos gravoso para o declarante. Assim resulta, natural e razoavelmente, do facto de a fiança ser um negócio de risco, donde decorre que deve ser o credor, beneficiário da garantia, a curar no sentido de a declaração “cobrir”, inequivocamente, todas as situações que pretende ver resguardadas.” (…)
Uma vez firmado que a garantia em causa é uma fiança, as dúvidas (internas) que poderão surgir na interpretação da declaração deverão, de acordo com o mesmo critério, ser resolvidas por estoutro princípio: in dubio pro fideiussore. As dúvidas que possam surgir, neste particular - não dúvidas subjectivas, mas, antes, dúvidas com suporte objectivo, após a interpretação da declaração nos termos legais (art.º 236.º nºs 1 e 2 CCiv) - podem dizer respeito a qualquer aspecto da vinculação fidejussória, desde o tempo de vinculação, ao âmbito da responsabilidade, passando pelo sentido de qualquer cláusula acessória”.
Também no sentido de que a dúvida sobre o sentido da declaração deve ser resolvida, interpretativamente, pela solução mais favorável para o fiador, optando-se assim por aquela que atribua menor âmbito à fiança (recaindo sobre o credor o ónus de solicitar que, no termo de fiança, tudo fique bem esclarecido), cita-se Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil  X, Direito das Obrigações, Garantias, 2015, pg. 460, com expresso apoio em Vaz Serra, Fiança e Figuras Análogas, BMJ 71/72.
       
c) Volvendo ao caso concreto, o que está em causa no processo, é discernir o alcance da declaração prestada pelo Embargante na cláusula 16ª do contrato que assume o seguinte teor: “O presente contrato, tem como fiador do mesmo, o Sr. V.S., solteiro, …”. 
Nos termos do art.º 236.º n.º1 do Cod. Civil – “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
No caso, ao menos expressamente, o recorrente não assumiu qualquer responsabilidade para além das obrigações resultantes do contrato; e as cláusulas expressas no contrato resumem-se, essencialmente, ao prazo (5 anos, com início em 1-6-2006 (cláusula 3ª); à renda de 500,00 € (cláusula 4ª), ao momento do pagamento da renda, e à forma de atualização.
Nem sequer se faz qualquer referência – como ocorre frequentemente nos contratos de arrendamento – que a fiança se mantém “até à restituição do locado”.
Nesse sentido, e considerando o critério da interpretação restritiva acima defendido, poderá dizer-se que a fiança em causa abrange apenas a obrigação de pagamento das rendas (ou seja, a responsabilização do fiador pelo seu não pagamento); recorde-se o que acima se escreveu no sentido de  recair sobre o credor o especial cuidado de solicitar que, no termo de fiança, tudo fique bem esclarecido, de forma a evitar alguma dúvida na sua interpretação, a qual se resolverá a favor do fiador.
Daqui resulta que o recorrente, enquanto fiador, é responsável pelo pagamento da quantia de € 3.500,00, em dívida até Setembro de 2010, a título de rendas vencidas e não pagas pelo arrendatário ao senhorio, o que aliás o aqui recorrente aceita.
c) Mas tendo a aqui recorrida declarado resolvido o contrato em Outubro de 2010,  será que pode continuar a responsabilizar o fiador relativo às quantias devidas, agora  a título de indemnização nos termos do art.º 1045º do Cod. Civil?
Quanto a esta questão escreve Gravato Morais (Novo Regime do Arrendamento Comercial, Coimbra 2011, p. 328 e ss.) que na falta de previsão contratual específica, a extinção do contrato liberta o fiador do dever de garantir o cumprimento das obrigações do arrendatário, pelo que não pode ser-lhe exigido o pagamento da indemnização pelo atraso na restituição do locado (citado por Ana Afonso, in Cod. Civil da UCP, p. 431).
No mesmo sentido, o já citado Ac. do S.T.J.; partindo  - como vimos - do princípio que o sentido da declaração deve ser resolvido (interpretativamente) pela solução mais favorável ao fiador  (ou seja, a que atribua menor âmbito à fiança), escreve que “a obrigação dos fiadores pressupôs sempre que o arrendamento não estivesse findo, pelo que não abrangeu a indemnização devida pela arrendatária, pelo atraso na restituição do locado – indemnização que é epígrafe do próprio art.º 1045.º Cod. Civil (e designadamente a indemnização a que se reporta o nº1 do normativo, única que se encontra em causa na revista).Diferentemente se passariam as coisas acaso se estipulasse a fiança das obrigações emergentes do contrato, seus aditamentos e prorrogações, “até à restituição do locado”, como no caso observado, ainda que não a propósito do art.º 1045.º do CCiv, no Ac.S.T.J. 17/6/98 Col.II/115 (rel. Fernando Fabião).
d) No caso, repete-se, o aqui recorrente limita-se a assinar o contrato como fiador, não assumindo qualquer responsabilidade para além das obrigações resultantes do contrato, sendo que as cláusulas expressas no contrato resumem-se ao prazo, à renda de 500,00 €, ao momento do pagamento da renda, à sua atualização, e à forma de proceder a essa atualização.
Assim, aplicando o referido critério da interpretação restritiva, poderá dizer-se que a fiança em causa abrange apenas a falta de pagamento das rendas até ao momento da extinção do contrato, ou seja, os referidos 3.500,00 €, e não já a indemnização pela não restituição do locado, relativamente à qual o contrato em causa (e a declaração de fiança nele prestada) é completamente omisso.

V – Dispositivo
Face ao exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, e em consequência absolver o embargante do pagamento de qualquer outra quantia que não os 3.500,00 € relativos às rendas vencidas, quantia essa acrescida de juros de mora desde a citação no processo executivo.
Custas pela embargada na vertente de custas de parte.

Lisboa, 4 de Novembro de 2025
João Novais
Micaela Sousa
Alexandra de Castro Rocha