Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ASPECTOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS
RETENÇÃO ILÍCITA DE CRIANÇA
FORMA DE PROCESSO
AUDIÇÃO DO MENOR
Sumário
I – Uma decisão judicial, como acto jurídico que é, está sujeita a interpretação, nos termos dos arts. 295.º, 236.º e 238.º do Código Civil. II – Tendo a acção tutelar comum a natureza de jurisdição voluntária (cfr. art. 12.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível), aplica-se-lhe o disposto no art. 987.º do Código de Processo Civil. III – A Convenção da Haia de 25/10/1980 reconhece à criança com maturidade suficiente o direito de ser ouvida, como sujeito de direitos, independente dos seus progenitores e com uma participação efectiva nas decisões importantes da sua vida, que incluem a relativa à sua residência.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO:
O Ministério Público, a pedido da Autoridade Central Portuguesa para a Convenção da Haia de 25/10/1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, veio intentar, em 3/12/2024, acção tutelar comum, contra E…, tendo em vista o regresso ao Brasil da criança G…, nascida em 1/10/2010, filha de F…. e da Requerida E…. Alega que, sob solicitação do pai, o qual accionou os mecanismos daquela Convenção, a criança, não obstante ter nascido em Portugal, deverá regressar ao Brasil, local onde se encontrava a residir desde 2022.
Em 18/12/2024, a Requerida juntou requerimento, declarando que mantinha inteiramente, em relação ao pedido de regresso, a posição que tomou junto da DGAJ. No procedimento que correu nesta entidade (junto com a petição inicial), a aqui Requerida defendeu ter a custódia da criança, negando que tenha ocorrido qualquer transferência ilícita da mesma para Portugal, já que a viagem foi autorizada pelo progenitor, sendo ainda certo que a Requerida foi vítima de um crime de violência doméstica perpetrado pelo ex-marido no Brasil.
Após diligência de audição do progenitor e da criança, que se apresentou espontaneamente no tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de dever ser determinado o regresso daquela ao Brasil.
Foi, então, proferida sentença, que concluiu com o seguinte dispositivo:
«Decisão
Face ao que precede e com os fundamentos expostos julgo verificados os pressupostos de aplicação do art. 12º da Convenção de Haia.
Por isso, e por não se vislumbrar que o superior interesse de G… seja com tanto prejudicado, determino o seu regresso ao Brasil, acompanhado de seu pai F….
Valor: €30 000,01.
Custas pela Requerida.
RN (sendo o pai através do endereço electrónico que indicou nos autos).
Demais d.n.
*
Resultou das declarações do jovem que a família materna tem programada uma viagem à Suíça entre 26 e 30 de Dezembro corrente. A fim de evitar delongas no cumprimento do agora decidido, determino a proibição do jovem G… sair de território português, salvo se para tanto tiver autorização escrita de ambos os progenitores ou em cumprimento da decisão agora proferida.
Proceda às habituais comunicações».
Não se conformando com tal decisão, dela apelou a mãe, tendo por este TRL, em 18/2/2025, sido proferido acórdão que, entendendo ter ocorrido violação do princípio do contraditório, por não ter sido ouvida, na diligência probatória realizada, a progenitora, concluiu com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, acorda-se em anular a sentença proferida em primeira instância, devendo ser praticados os actos necessários a garantir o respeito pelo princípio do contraditório, em conformidade com o supra explanado».
Após audição da progenitora, o Ministério Público manteve o seu anterior parecer, entendendo que deveria ser proferida decisão «que mantenha o regresso do G… ao Brasil».
De seguida, foi proferida sentença, que concluiu com o seguinte dispositivo:
«Face ao que precede e com os fundamentos expostos julgo verificados os pressupostos de aplicação do art. 12º da Convenção de Haia. Por isso, e por não se vislumbrar que o superior interesse de G… seja com tanto prejudicado, mantém-se a decisão que determinou o seu regresso ao Brasil, onde se encontra junto de seu pai, F….
Valor: €30 000,01.
Custas pela Requerida».
Não se conformando com esta decisão, dela apelou a requerida, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
«I - Não faz, salvo o devido respeito, o menor sentido que o Tribunal a quo decida manter uma decisão que havia sido anulada pelo Tribunal Superior, por douto Acórdão transitado em julgado. II - Ao ter decidido entregar o menor ao pai, o Tribunal a quo decidiu para lá do que foi pedido e decidiu para lá do que podia e devia decidir. III - Perante a anulação da douta sentença proferida em 20 de Dezembro de 2024, com a refª 441306399, e o regresso já concretizado do menor ao Brasil, acompanhado de seu pai, o Tribunal a quo decidiu manter a decisão anterior – limitando-se a referir que o menor se encontra no Brasil junto de seu pai. IV - Ora, o Tribunal a quo não se devia ter limitado a manter a decisão anterior, que foi anulada, e devia ter proferido uma nova decisão, não decretando o regresso do menor ao Brasil e, acima de tudo, não decretando a sua entrega ao pai. V - O Tribunal Superior não anulou a decisão anterior para que o Tribunal a quo se limitasse a manter o que estava decidido. VI - Com efeito, a douta sentença objecto do presente recurso, não se poderia ter limitado a manter a decisão anterior, que foi anulada – o que configura uma falta de cumprimento do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 18 de Fevereiro de 2025, com a refª 22696283. VII - Por outro lado, a saída do menor de território brasileiro para viajar para o exterior foi autorizada pelo pai. VIII - Portanto, a transferência do menor do Brasil para Portugal não foi ilícita e resultou de um acordo entre a requerida e ora recorrente, com quem o menor viajou, e o pai, que subscreveu a referida autorização. IX - Tendo o pai autorizado a saída do menor pelo prazo de dois anos, prazo ainda em vigor, é absolutamente evidente que, desde logo por este motivo, não existe qualquer retenção ilícita do menor em Portugal. X - Ainda que o pai contasse com o regresso do menor ao Brasil em Agosto de 2024, a ora recorrente, como progenitora guardiã do menor e com a autorização de viagem concedida pelo pai, tinha legitimidade para manter o menor em Portugal. XI - Inexistindo qualquer transferência ou retenção ilícitado menor, não tem aplicação e não pode ser invocada a Convenção. XII - O exercício das responsabilidades parentais sobre o menor G… encontra-se regulado, o que se comprova, desde logo, através do averbamento nº 1, de 21 de Junho de 2022, ao seu assento de nascimento. XIII - De acordo com o regime em vigor, o menor encontra-se entregue à guarda e cuidados da mãe. XIV - O Tribunal a quo alterou o regime de exercício das responsabilidades parentais sobre o menor que se encontra em vigor. XV - A decisão final foi tomada como se estivesse em causa alterar o regime de guarda do menor – mas não era, nem podia ser, esse o objecto dos autos. XVI - Não faz o menor sentido determinar a entrega do menor ao pai e sugerir que, depois, tem de ser pedida uma nova regulação ou alteração do regime em vigor. XVII - A alteração da regulação das responsabilidades parentais não pode ser decidida no âmbito de um processo tutelar comum. XVIII - Só há lugar a um processo tutelar comum se à providência cível em causa não corresponder nenhuma das formas de processo previstas no RGPTC – art. 67º, RGPTC. XIX - Ora, a alteração da regulação das responsabilidades parentais está prevista no art. 42º, RGPTC. XX - Ou seja, determinando-se no âmbito dos presentes autos uma entrega do menor ao pai, verifica-se um claríssimo erro na forma do processo. XXI - E, tendo essa alteração da regulação das responsabilidades parentais sido decretada sem os formalismos previstos no art. 42º, RGPTC, estamos perante uma nulidade, consubstanciada por um erro na forma do processo, o qual, na medida em que dele resulta uma diminuição das garantias da requerida e ora recorrente, impede que sejam aproveitados os actos já praticados – art. 193º, nº 1 e nº 2, CPC, aplicável ex vi art. 33º, nº 1, RGPTC. XXII - A douta sentença recorrida violou o disposto no art. 152º, nº 1, in fine, CPC, art. 67º, RGPTC, art. 1º, a), da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25 de Outubro de 1980, art. 371º, nº 1, CC e art. 193º, nº 1 e nº 2, CPC. Termos em que, e pelo mais que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser concedido pleno provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, reconhecendo-se a inexistência de qualquer transferência ou retenção ilícita do menor ou, se assim não for entendido (o que só por mera hipótese de raciocínio, e sem conceder, se admite), ordenando-se o regresso do menor ao Brasil, mas não acompanhado de seu pai – tudo, com as legais consequências e, assim, se fazendo J U S T I Ç A!».
O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O tribunal de primeira instância admitiu o recurso e pronunciou-se no sentido de a sentença recorrida não enfermar de nulidade, já que «foi produzida e analisada a prova (…) e foi proferida nova decisão. Apenas se utilizou a expressão “mantém-se” como reflexo de um processo intelectual no termo do qual a signatária das duas decisões concluiu no mesmo sentido quanto ao pedido formulado, apesar da nova prova analisada».
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635.º n.º4 e 639.º n.º1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões formuladas pela recorrente nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3.º n.º3 e 5.º n.º3 do Código de Processo Civil). Note-se que «as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa». E, por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, «Recursos em Processo Civil», Almedina, 2022 – 7.ª ed., págs. 134 a 142].
Nessa conformidade, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- a existência de erro na forma de processo;
- a nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia;
- o mérito da decisão recorrida, quanto à procedência do pedido formulado pelo Ministério Público de regresso da criança ao Brasil (existência, ou não, de retenção ilícita da criança) e quanto à determinação de que tal regresso seja acompanhado pelo progenitor.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A decisão sob recurso considerou provados os seguintes factos:
«1. G… nasceu a 1 de Dezembro de 20101, filho de E…, de nacionalidade Portuguesa, e de F….
2.Viveu em Portugal com os pais até 2022.
3.Em data não concretamente apurada do ano de 2022, a criança e os pais foram residir no Brasil.
4.O G… frequentava a escola no Brasil e ali tinha amigos e família.
5.O pai de G... autorizou a mãe da criança a viajar com a mesma de férias a Portugal de 26 de Junho de 2024 a 17 de Agosto de 2024.
6.A mãe de G..., ao chegar a Portugal disse ao filho que não voltariam ao Brasil, passando a viver em Portugal.
7.O pai de G... não autorizou e não concordou nem concorda com a mudança de residência do filho.
8.A requerida foi notificada nos termos da al. c) do art. 7º da Convenção da Haia para se pronunciar acerca do pedido de regresso voluntário do filho menor para o Brasil, opondo-se a essa entrega.
9.G... pretendia voltar ao Brasil, para ali viver com o pai.
10. G... viajou para o Brasil na companhia do pai».
O tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:
«1. A requerida foi vítima de violência doméstica no Brasil, tendo o pai do filho levantado dinheiro das contas dela sem autorização, tendo-a ameaçado e invadido a sua farmácia.
2.Apesar de se terem divorciado e regulado o exercício das responsabilidades parentais do filho, os pais de G... continuaram a viver juntos na companhia daquele.
3.Os pais do G..., após o divórcio, mantiveram relação de amizade, tendo decidido participar num negócio juntos.
4.O pai do G... no Brasil vivia na casa da Requerida por não ter casa.
5.O pai de G... autorizou a deslocação da residência da criança para Portugal.
6.O G... ficou desapontado com os comportamentos do pai descritos em 1).
7. O G... em Portugal tem saudades do Brasil e no Brasil tem saudades de Portugal».
x
Por se tratar de matéria provada por documentos2, que releva para a decisão, nos termos do art. 662.º do Código de Processo Civil, acrescentam-se os seguintes factos provados:
«11. As responsabilidades parentais relativas a G... foram reguladas por decisão de 21 de Junho de 2022, proferida pela Conservatória do Registo Civil de Lisboa, que homologou acordo entre os progenitores, do qual, além do mais, constam as seguintes cláusulas: 12. O progenitor de G..., em 26/6/2024, subscreveu o seguinte documento: ».
QUESTÕES PRÉVIAS Do erro na forma de processo
Pretende a recorrente que existe erro na forma de processo, porquanto, na decisão, o tribunal de primeira instância alterou a regulação do exercício das responsabilidades parentais, sem que tenha seguido a forma processual prevista nos arts. 34.º e ss. do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
Tratando-se, embora, de uma questão que não foi conhecida em primeira instância, a mesma é de conhecimento oficioso (cfr. arts. 196.º e 200.º n.º2 do Código de Processo Civil), pelo que nada obsta a que seja apreciada em sede de recurso.
Como já se referiu no acórdão anteriormente proferido nos autos, a propósito da decisão de 1.ª instância que veio a ser anulada, mas cujo raciocínio é totalmente aplicável à decisão sub judice, não ocorreu qualquer erro na forma de processo.
Com efeito:
«A idoneidade da forma de processo afere-se de acordo com o pedido (efeito jurídico pretendido) e respectiva causa de pedir, na configuração que lhes é dada pelo autor / requerente, confrontando-se o fim concreto para que o processo foi empregado (a pretensão do autor / requerente e seus fundamentos) com o fim abstracto para que, segundo a lei, o processo foi estabelecido (cfr. Ac. STJ de 25-3-82, BMJ 315). Se o pedido formulado pelo autor / requerente corresponde ao pedido para que o processo foi instituído, o processo empregado está certo (cfr. Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, vol. III, anotação aos arts. 469.º e 470.º). É que da relação jurídica em que se apoia o pedido brotam múltiplos poderes de distinta natureza substantiva, a que podem corresponder tipos e formas diferentes de tutela processual, consoante a situação de crise que se suscite entre as pessoas. E é a partir da providência jurisdicional requerida pelo autor, para tutela da sua situação, que o juiz deve, em princípio, avaliar da propriedade do meio processual por ele escolhido (cfr. Antunes Varela, RLJ n.º3701, págs. 245-246).
No caso dos autos, o Ministério Público intentou acção tutelar comum, pedindo o regresso de uma criança ao país da sua residência, alegando que a permanência dessa criança em Portugal é ilícita.
Atentos o pedido e a causa de pedir, parece-nos claro que à tutela pretendida pelo Ministério Público não é adequado nenhum dos processos especiais previstos nos arts. 34.º a 66.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, pelo que é forçoso concluir que a forma própria é a que foi seguida: a da acção tutelar comum, prevista no art. 67.º, do mesmo diploma.
Com efeito, como refere a Prof. Anabela Susana de Sousa Gonçalves3, “olhando para o Regime Geral do Processo Tutelar Cível, que estabelece o regime processual aplicável à regulação do exercício das responsabilidades parentais e questões conexas, verificamos que não existe uma forma especial de processo tutelar cível para as ações de regresso e, por isso, os tribunais têm usado a providência tutelar cível comum, prevista no art. 67.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, que permite que o tribunal possa ordenar livremente as diligências que repute necessárias antes de proferir a decisão final. Isto dá uma maior discricionariedade ao juiz na condução do processo, permitindo-lhe dar ao processo uma maior celeridade (…)”.
Não existiu, pois, atenta a configuração dada pelo requerente à acção, qualquer erro na forma de processo».
Se o tribunal poderia, ou não, ter determinado / mantido o regresso da criança ao Brasil, acompanhada do progenitor, tal constitui antes uma questão de mérito, que nada tem a ver com a questão (adjectiva, aferida pela petição inicial) da idoneidade da forma de processo. Da nulidade da sentença, por excesso de pronúncia
Pretende a recorrente que a decisão recorrida é nula, uma vez que manteve a decisão anterior de regresso da criança ao Brasil, quando o que foi decidido pelo acórdão deste TRL de 18/2/2025 foi a anulação da decisão anterior, tendo ali sido ordenada a prolação de nova decisão, após novas diligências probatórias.
Conforme resulta do art. 608.º n.º2 do Código de Processo Civil, o juiz deve conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. Assim, o juiz, na sentença, terá de resolver todas as questões que as partes suscitem ou que sejam de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Em consonância, nos termos do art. 615.º n.º1 d), do mesmo diploma, a sentença é nula quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
As questões a resolver «reportam-se aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição das partes, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e excepções, não se reconduzindo à argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim às concretas controvérsias centrais a dirimir». Já «a qualificação jurídica dos factos é de conhecimento oficioso (art. 5.º n.º3 do Código de Processo Civil), mas esse poder não pode deixar de ser conjugado com outras limitações, designadamente aquelas que obstam a que seja modificado o objecto do processo (integrado tanto pelo pedido como pela causa de pedir) ou as que fazem depender um determinado efeito da sua invocação pelo interessado4».
No caso dos autos, tendo sido pedido o regresso de uma criança ao país da sua residência, mediante alegação de que a sua permanência em Portugal é ilícita, e tendo o Tribunal da Relação anulado a decisão anteriormente proferida, determinando que fosse ouvida a progenitora da criança, cabia ao tribunal a quo proceder à audição determinada e, após, proferir nova decisão, na qual apreciasse a licitude / ilicitude daquela permanência e concluísse pelo regresso, ou não, da criança, ao país de residência.
Foi, precisamente, o que fez o tribunal recorrido, que efectivamente ouviu a progenitora e, após, elaborou nova decisão, fazendo constar os factos provados e não provados, apreciando criticamente as provas produzidas (incluindo as declarações da progenitora), considerando que a permanência da criança em Portugal resulta de uma decisão que a requerida não podia tomar unilateralmente e concluindo pelo regresso da mesma criança ao Brasil, por se encontrarem preenchidos os pressupostos da aplicação do art. 12.º da Convenção da Haia de 25/10/1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
Claro que o tribunal a quo também referiu que se mantém «a decisão antes tomada» (…) «que determinou o seu regresso ao Brasil, onde se encontra junto de seu pai, F…», sendo certo que o que lhe cumpria era, efectivamente, proferir uma nova decisão - e não manter, ou não, a anterior, porquanto esta foi anulada pelo TRL.
No entanto, é sabido que uma decisão judicial, como acto jurídico que é, está sujeita a interpretação, nos termos dos arts. 295.º, 236.º e 238.º do Código Civil5.
É assim que, de acordo com aquele art. 236º, «a declaração (…) vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele», mas, «sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida». Por seu turno, prevê o art. 238.º, do mesmo diploma, que «nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso».
No caso dos autos, é claro que não é possível determinar a existência de uma vontade real comum entre declarante e declaratário, pelo que a decisão valerá com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do destinatário dessa decisão, poderia deduzir do seu teor, desde que tal sentido tenha um mínimo de correspondência no texto do documento.
Assim, necessário se torna proceder à interpretação, dentro dos parâmetros definidos pelas disposições legais citadas, no sentido de apurar o sentido que desse acto processual seria apreendido por um declaratário normal, isto é, um declaratário medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do texto da decisão, conjugado com os fundamentos desta e com as ocorrências processuais relevantes. A “normalidade” do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto, mas também na diligência para recolher todos os elementos que coadjuvam a declaração6.
Ora, há, desde logo, que atentar na circunstância de que o tribunal de 1.ª instância procedeu à diligência probatória determinada pelo TRL, além de que voltou a ouvir o Ministério Público após realizada aquela diligência e elaborou uma nova decisão, com novos factos provados e não provados, diversos dos que constavam da decisão anterior (anulada). Portanto, o que um declaratário normal poderia razoavelmente entender do texto da decisão em análise, conjugado com as circunstâncias processuais salientadas, é o de que o tribunal, ao referir que mantinha a decisão anterior, se expressou mal, pretendendo dizer que os factos provados e as normas citadas justificam o regresso da criança ao Brasil, acompanhada do seu progenitor.
Nessa medida, não existe excesso de pronúncia.
Por outro lado, embora no requerimento inicial apenas se tenha pedido o regresso da criança ao Brasil, a circunstância de ter sido determinado, além do peticionado regresso, que o mesmo seja acompanhado pelo progenitor, também não configura qualquer excesso de pronúncia.
É que o presente processo tem a natureza de jurisdição voluntária (cfr. art. 12.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível). Assim sendo, aplica-se-lhe o disposto no art. 987.º do Código de Processo Civil, de acordo com o qual «nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna».
Quer isto dizer que, no âmbito de um processo de jurisdição voluntária – como são os presentes autos –, o juiz não está vinculado às questões expressamente suscitadas e, portanto, nada impedia o tribunal a quo de proferir decisão no sentido de, entendendo que tal questão era adequada e oportuna do ponto de vista dos interesses da criança, proferir decisão complementar no sentido de o regresso ser acompanhado pelo progenitor.
Improcedem, assim, as conclusões de recurso, na vertente em que imputam à decisão recorrida o vício de nulidade.
MÉRITO DA DECISÃO RECORRIDA
Pela presente acção pretendia-se o regresso, ao Brasil, da criança G..., fundando-se tal pedido na alegada deslocação daquela criança do seu domicílio habitual, no Brasil, para Portugal, permanecendo o mesmo neste país por acção da mãe, mas contra a vontade do pai.
A este respeito rege a Convenção da Haia de 25/10/1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, aprovada pelo Decreto do Governo n.º33/83 de 11-5, na qual são partes Portugal e o Brasil7.
Com efeito, prevê o art. 1.º, daquela Convenção, que a mesma tem por objecto:
«a) Assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente;
b) Fazer respeitar de maneira efectiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante».
Nestes autos, o progenitor pretende, apenas, fazer regressar a criança ao Brasil, por, alegadamente, se encontrar indevidamente retida em Portugal, e já não fazer respeitar quaisquer direitos de custódia ou de visita [que, deste modo, não há aqui que ponderar], pelo que estamos perante um caso susceptível de ser enquadrado na supra transcrita alínea a). Importa, assim, determinar se ocorre aquela retenção ilícita.
De acordo com os arts. 3.º, 4.º e 5.º, da mesma Convenção:
«Artigo 3.º
A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando:
a) Tenha sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e
b) Este direito estiver a ser exercido de maneira efectiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido.
O direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado.
Artigo 4.º
A Convenção aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia ou de visita. A aplicação da Convenção cessa quando a criança atingir a idade de 16 anos.
Artigo 5.º
Nos termos da presente Convenção:
a) O «direito de custódia» inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência;
b) O «direito de visita» compreende o direito de levar uma criança, por um período limitado de tempo, para um lugar diferente daquele onde ela habitualmente reside».
Ora, conforme resulta dos factos provados, desde 2022, o G... e os seus pais residiam no Brasil, onde a criança frequentava a escola e onde tinha os seus amigos e família.
Entretanto, o progenitor autorizou a mãe a viajar com o G... a Portugal, de férias, entre 26/6/2024 e 17/8/2024.
Porém, ao chegar a Portugal, a progenitora disse que não voltariam ao Brasil, passando a viver em Portugal, com o que o progenitor não concorda.
Resulta, ainda, dos factos provados que as responsabilidades parentais relativas ao G... se encontram reguladas no sentido de as mesmas deverem ser exercidas, em comum, por ambos os progenitores, cabendo, no entanto, o seu exercício à mãe quanto aos actos da vida corrente.
Atentos estes factos, não restam dúvidas de que a retenção do G... em Portugal, para além da data de 17/8/2024, é ilícita, já que a permanência e estabelecimento de residência noutro país não constitui um acto da vida corrente, tratando-se de assunto de particular importância, que cabe no exercício conjunto das responsabilidades parentais8 e que, portanto, careceria de acordo de ambos os progenitores – o qual não foi obtido, já que o progenitor não concorda com a mudança em causa, apenas tendo autorizado a realização de uma viagem por um período de tempo limitado e não uma mudança de residência.
Não colhe o argumento da recorrente de que o progenitor subscreveu o documento a que alude o ponto 12 dos factos provados. É que tal documento diz respeito a uma autorização de viagem, com um prazo máximo de validade, mas sem que, por um lado, implique que a viagem dure por todo esse prazo e, sobretudo, sem que constitua autorização para a mudança de residência que a recorrente decidiu e concretizou unilateralmente (cfr. factos provados n.º6 e 7).
Assim sendo, e tendo em consideração que a criança em causa nos autos tem idade inferior a 16 anos, há que chamar à colação o disposto no art. 12.º, da mesma Convenção da Haia, de acordo com o qual «quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.
A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente.
Quando a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tiver razões para crer que a criança tenha sido levada para um outro Estado, pode então suspender o processo ou rejeitar o pedido para o regresso da criança».
Na situação sub judice, tendo-se a retenção ilícita iniciado em 18/8/2024, os presentes autos deram entrada em Juízo em 3/12/2024, ou seja, menos de um ano depois, pelo que se encontram preenchidos os requisitos de que depende o regresso imediato da criança ao Brasil.
Por outro lado, embora tenha, em primeira instância, invocado factos excepcionais tendentes a impedir o regresso - a sua sujeição a violência doméstica -, tais factos não se provaram e a requerida não colocou tal questão em sede de recurso, pelo que não há aqui que a apreciar, não sendo caso de aplicação do disposto no art. 13.º da mesma Convenção da Haia de 25/10/1980.
Também não se provou (ao contrário do que alegava a progenitora) que o G... tenha ficado desapontado com os comportamentos do pai, ou sequer que «em Portugal tem saudades do Brasil e no Brasil tem saudades de Portugal».
De resto, não se provou que o progenitor (a quem incumbe, conjuntamente com a progenitora, o exercício das responsabilidades parentais) tenha consentido na alteração de residência ou concordado posteriormente com a retenção, nem que exista qualquer risco para o superior interesse do G... – este, tendo catorze anos (portanto, uma idade em que as crianças têm normalmente maturidade para saberem onde se situam as suas figuras afectivas e os seus locais de referência), pretende residir no Brasil, nada permitindo concluir que no país da sua residência habitual esteja, de qualquer forma, colocado em perigo o seu pleno e salutar desenvolvimento físico, psíquico e social. Aliás, a própria Convenção de Haia de 1980, «ao estatuir sobre o direito da criança a ser ouvida e a que a sua opinião seja considerada, (…) reconhece a criança como sujeito de direitos e participante activa numa decisão tão importante para seu futuro, como é o local da sua residência9». Ou seja, a criança com maturidade suficiente é vista como um sujeito de direitos independente dos seus progenitores e com uma participação efectiva nas decisões importantes da sua vida, que incluem a relativa à sua residência. Assim, não existe razão para não atender à opinião livremente manifestada pelo G... nos presentes autos.
Pelo exposto, justifica-se a procedência do pedido de regresso do G... ao Brasil, nada havendo a censurar à decisão recorrida, que deve manter-se, nessa vertente.
E, quanto à circunstância de ter sido determinado o regresso acompanhado pelo progenitor, também nada existe a apontar.
Com efeito, o que se determinou foi, apenas, o acompanhamento do regresso e não qualquer alteração à guarda do menor / regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais, que permaneceu intocado.
Simplesmente, tratando-se de uma criança de 14 anos que deverá empreender uma viagem transatlântica de várias horas, e não sendo viável (nem sendo esse o objecto destes autos), como é evidente, obrigar a sua mãe a regressar ao Brasil, a protecção da sua integridade física e psíquica aconselha inequivocamente a que tal viagem seja feita na companhia do progenitor que pretende o regresso (cfr. o já citado art. 987.º do Código de Processo Civil).
Deve, pois, ser mantida a decisão do tribunal de primeira instância [tendo em conta a interpretação que dela fizemos, assinalada supra].
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida que determinou o regresso de G..., sendo esse regresso acompanhado do seu progenitor.
Custas pela recorrente - arts. 527.º do Código de Processo Civil e 6.º n.º2, com referência à Tabela I-B, do Regulamento das Custas Processuais.
Lisboa, 04-11-2025,
Alexandra de Castro Rocha
Ana Rodrigues da Silva
José Capacete
_______________________________________________________
1. Na decisão recorrida refere-se «2020», mas trata-se de lapso manifesto, que aqui se corrige, já que da certidão de nascimento do G…, junta a fls. 57 da petição inicial, consta o dia 1/12/2010 como a data do seu nascimento.
2. Cfr., quanto ao n.º11, as certidões juntas como fls. 50 a 54, 56 a 58, 60 e 61 da petição inicial e, quanto ao n.º12, o documento junto como fls. 39 da petição inicial.
3. In DIZER O DIREITO: O PAPEL DOS TRIBUNAIS NO SÉCULO XXI, Breve análise do rapto internacional de crianças na jurisprudência portuguesa, págs. 46-47, estudo disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/75292/1/6.%20Breve%20an%C3%A1lise%20do%20rapto%20internacional%20de%20crian%C3%A7as.pdf
4. Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol I, 3ª ed.,pág. 782.
5. Cfr., entre outros, Ac. STJ de 1/7/2021, proc. 726/15, disponível em http://www.dgsi.pt.
6. Cfr. Henrich Hörster, Teoria Geral do Direito Civil, ano lectivo 1990/1991, polic., UCP/Porto, págs. 631 e ss..
7. Ao contrário do que consta da decisão recorrida e do que pretende o recorrente, não há aqui que equacionar a aplicação do Regulamento (CE) nº2201/2003 de 27-11, atendendo a que o Brasil não é Estado-membro da UE. Por outro lado, de acordo com o art. 34º da Convenção da Haia de 25/10/1980, nas matérias às quais esta se aplica, a mesma prevalece sobre a Convenção de 5 de Outubro de 1961 relativa à Competência das Autoridades e à Lei Aplicável em Matéria de Protecção de Menores, pelo que não há igualmente que equacionar a aplicação desta última.
8. «As denominadas questões de particular importância para a vida do filho deverão estar relacionadas com questões existenciais graves, que pertençam ao núcleo essencial dos direitos do filho, as questões centrais e fundamentais para o seu desenvolvimento, segurança, saúde, educação e formação, todos os actos que se relacionem com o seu futuro, a avaliar em concreto e em função das suas circunstâncias. São questões de particular importância, nomeadamente, (…) a saída do menor para o estrangeiro» - cfr. Tomé d’Almeida Ramião, Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado e Comentado, 4.ª ed., págs. 190-191.
9. Cfr. Nathália Monte Adelino, A Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de 1980 e a protecção do direito da criança a ser ouvida em Portugal, Universidade do Minho, Janeiro de 2019, págs. 55 a 57, estudo disponível em: https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/64041/1/Nath%c3%a1lia%2bMonte%2bAdelino.pdf