CAUÇÃO
RECURSO
EFEITO SUSPENSIVO
CONDENAÇÃO ILÍQUIDA
TRÂNSITO EM JULGADO
VALIDADE E EFICÁCIA DA CAUÇÃO PRESTADA
Sumário

Sumário[1]:
I - A caução prestada para suspender o efeito do recurso (por fiança, garantia bancária e seguro caução), mantém-se até ao trânsito em julgado da decisão final proferida no último recurso interposto, só podendo ser liberada em caso de absolvição do pedido ou, tendo a parte sido condenada (mantendo-se – total ou parcialmente – a condenação), provando que cumpriu a obrigação no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado (artigo 650.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
II - A caução para fixar o efeito suspensivo a um recurso tem uma dupla função (que justifica a sua configuração como incidente autónomo, com valor próprio – artigo 304.º, n.º 2 -  e por apenso – artigo 915.º, n.º 1): a suspensão dos efeitos do recurso e a garantia do cumprimento da obrigação em que o devedor-recorrente foi condenado, seja na parte líquida, seja na parte ilíquida (quando exista).
III - Havendo na decisão transitada em julgado uma condenação ilíquida, a finalidade da caução permanece actual e vigente porque, quanto a ela, o direito continua a necessitar de ser acautelado, até ser fixado e concretizado no incidente de liquidação de sentença.
IV - O valor da caução prestada tem sempre como limite o pedido formulado nos autos (por ser esse o limite da condenação e liquidação), sendo que uma condenação no Supremo Tribunal de Justiça em termos distintos da 1.ª Instância e da  Relação, não deixa de ser proferida no âmbito do mesmo processo e delimitada pelo mesmo objecto e o mesmo pedido.
V – Com uma condenação final em termos genéricos (artigo 609.º, n.º 2) e não dependendo a liquidação da obrigação de simples cálculo aritmético, a sentença só constituirá título executivo após a liquidação no processo declarativo, não ficando ainda extinta a instância declarativa, pelo que se mantém válida e eficaz a caução prestada.
VI - Sendo proferida sentença de condenação genérica, o prazo a que se referem a parte final do n.º 3 e o n.º 4 do artigo 650.º, conta-se do trânsito em julgado da decisão final do incidente de liquidação da obrigação, que complementa aquela.

[1] Da responsabilidade do Relator, em conformidade com o n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa[1]
Relatório

S, S.G.P.S., S.A. e S, S.A. (Rés no processo principal, onde são Autores F e G) notificadas que foram da Sentença aí proferida (a 30 de Maio de 2016, julgando a acção parcialmente procedente), da qual interpuseram recurso de apelação, com reapreciação da prova gravada e requerendo a atribuição de efeito suspensivo ao recurso (porquanto a execução imediata da decisão lhes causaria grave prejuízo), vieram deduzir por apenso o presente incidente de prestação de caução, nos termos do disposto no artigo 647.º, n.º 4, do Código de Processo Civil.
Na acção principal foram prolatados os Acórdãos de:
- 27 de Novembro de 2018 (da Relação de Lisboa que confirmou a Sentença), que veio a ser revogado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 2019;
- 04 de Outubro de 2022 (da Relação de Lisboa, que conhecendo da matéria determinada pelo STJ reafirmou o Acórdão de 27 de Novembro de 2018), o qual, por sua vez, foi confirmado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2024) que revogou parcialmente o Acórdão e a Sentença.

Por decisão proferida nestes autos a 03 de Outubro de 2016, foi o incidente julgado procedente e foram as Requerentes notificadas a prestarem caução mediante apresentação de garantia bancária, por instituição financeira de referência nacional, que satisfaça o pagamento da quantia de €30.116.084,97, de forma incondicional e à primeira solicitação do Tribunal, válida e eficaz durante a pendência da acção principal e até 30 dias após o trânsito em julgado da decisão final que lhe ponha termo.
A 03 de Outubro de 2016 foi determinada a prestação de caução:
“S, S.G.P.S.,. e S, S.A., R.R. nos autos principais, nos quais são A.A., F e G,  notificados que foram da sentença aí proferida, da qual interpuseram recurso de apelação, com reapreciação da prova gravada e requerendo a atribuição de efeito suspensivo ao recurso, porquanto a execução imediata da decisão lhes causaria grave prejuízo, vieram agora deduzir por apenso o presente incidente de prestação de caução, nos termos do disposto no Art. 647º n.º 4 do C.P.C..
Invocam no essencial que a detenção pelos recorridos das ações representativas do capital social da recorrente S, e os direitos às mesmas inerentes, determinaria uma modificação no status quo da sociedade e seriam garantidamente fonte de instabilidade na sua normal atividade, porque altera a sua composição acionista e permitiria aos recorridos influir e perturbar a gestão da sociedade, permitindo a nomeação de F para o Conselho de Administração e o poder de impugnar decisões da Assembleia Geral e do Conselho de Administração, criando uma potencial situação de ingovernabilidade da S, com os consequentes prejuízos para as Recorrentes junto dos seus clientes, fornecedores, trabalhadores, banca e demais stakeholders, a quem a detenção do capital social, a composição da gestão e a certeza sobre as mesmas e sobre o rumo da companhia não são naturalmente indiferentes.
Acresceria que o negócio da S é extremamente volátil, sendo que a empresa necessita de fontes permanentes de financiamento e de valores de fundo de maneio extremamente elevados, existindo clientes, como a Mercadona em Espanha, que atribuem grande importância a quem são os seus fornecedores e quem os detém, não sendo toleradas situações de instabilidade acionista.
Por outro lado, o próprio recorrido F seria fonte de instabilidade, mudando com frequência de nacionalidade e residência, recorrendo a veículos societários com sedes em paraísos fiscais, havendo assim um fundado receio de que a imediata transmissão das ações signifique dissipação de património que pudesse dificilmente ser revertível.
Pretende assim que seja fixado o efeito suspensivo ao recurso através de caução equivalente ao valor das ações representativas de 7,2% e 6,63% do capital social da S, com dedução do valor a pagar ao recorrido a título de preço e do depósito do valor de €18.000,00 em que a S foi condenada.
Para o efeito, considerando as dificuldades em determinar o valor acionista, tal como ficou evidenciado no processo principal, deveria ter-se em conta o valor de €2.100.000,00, que foi o preço acordado a título de preço no “agreement” no que se refere à valorização da posição acionista de 6,63%, sendo que aplicando o mesmo critério aos 7,2% do capital social da S, chegaríamos ao valor proporcional de €2.280.543,00.
Atualizando esse valor pelos índices de preços ao consumidor, chegaríamos ao resultado de €5.501.086,67, a que acresceriam os mencionados €18.000,00.
Pretende assim oferecer caução para garantia do pagamento do valor de €5.600.000,00, mediante garantia bancária à primeira solicitação por ordem do tribunal.
Em conformidade, julgando válida e idónea a caução oferecida, concluíram que deveria ser fixado o efeito suspensivo ao recurso, tal como requerido.
Entretanto, vieram os Requerentes juntar várias cartas de interpelação que o Recorrido lhe fez na sequência da sentença recorrida e que os primeiros interpretam como revelando a situação de instabilidade que já está a ser pretendida criar.
Notificados os Requeridos vieram deduzir oposição, sustentando que não estão suficientemente concretizados os factos que serviriam de pressuposto à fixação do efeito suspensivo, por não estar evidenciado que a execução imediata da decisão recorrida cause prejuízo irreparável ou de difícil reparação.
Quanto ao valor da caução, puseram em causa o método de cálculo, evidenciando que ficou provado que de um relatório elaborado pelo Grupo Nutrinveste o valor acionista da S ascenderia em 31/10/2004 a €159.352.000,00. Pelo que, o valor acionista correspondente a 13,82% do capital da S seria de €19.938.371,60, a que deveriam acrescer juros de mora à taxa de 4% contados do incumprimento (18 de março de 2005) até à data do provável trânsito do acórdão final, que estimaram ocorrer dentro de 18 meses e que contabilizam em €10.151.635,56.
A caução deveria ainda compreender os €18.000,00, acrescidos de juros de mora contados de 20 de setembro de 2006 e até à data estimada do trânsito em julgado, o que daria €8.077,81.
Em conformidade sugerem que a caução deverá ser pelo valor de €30.116,084,97. Mas se assim se não entender, deveria ter-se em consideração as contas auditadas da S no final do ano de 2004 e a cláusula 5.ª n.º 1 do “Agreement”, e o valor da F deveria ser 8 x EBITDA – dívida estrutural, sendo o valor acionista correspondente a 13,83% de €18.015.330,72, ao qual se deduziria o preço de opção de compra de €2.100.000,00, mas a que acresceriam juros de mora desde a resolução do contrato em 29 de junho de 2005 até à data provável do trânsito em julgado do acórdão final, sendo assim o valor caucionado de €23.865.063,09.
Finalmente, invocam ainda haver imprecisão quanto aos termos da garantia pretendida prestar, o que impede a apreciação da idoneidade da caução.
Concluíram assim pelo indeferimento do efeito suspensivo ao recurso interposto pelos R.R., por não estarem preenchidos os requisitos, por o valor da caução ser insuficiente e haver omissão de dados essenciais à determinação da sua idoneidade. Mas, caso se entenda haver fundamento para o requerido, deveria o valor caucionado ser fixado em €30.116.084,97 ou, subsidiariamente, em €23.865.063,09.
Tudo visto, cumpre apreciar.
O presente incidente visa a fixação do efeito suspensivo ao recurso interposto pelas ora Requerentes no processo principal, mediante a prestação de caução, nos termos e para os efeitos dos Art.s 647º n.º 4 e 913º e ss “ex vi” Art. 915º, todos do C.P.C..
Nos termos do Art. 647º n.º 4 do C.P.C. o efeito suspensivo do recurso será fixado se tal for requerido pelo recorrente, desde que a execução da decisão lhe “cause prejuízo considerável” e ofereça a prestação de caução.
Os recorrentes logo requereram, com a interposição do recurso, a fixação do efeito suspensivo de forma fundamentada, tendo deduzido o incidente de prestação de caução, por apenso, como estabelece o Art. 915º n.º 1 do C.P.C..
No que se refere ao requisito do “prejuízo considerável”, temos de ter em consideração que o efeito da execução imediata da sentença recorrida é a entrada dos A.A. para a posição de acionista da S.
Efetivamente, a sentença determinou o seguinte:
«a) Condenamos a 1ª R., , a proceder à entrega de 83.664 ações, correspondentes a 7,2% do capital social da 2ª R., S, e a praticar todos os atos necessários de modo a proporcionar a esta, não só a sua titularidade, como também a respetiva posse e disponibilidade efetiva das referidas ações;
«b) Condenamos a mesma R., ao pagamento de uma indemnização pelos danos causados pela mora na entrega das ações, em montante a apurar em sede de execução de sentença;
«c) Condenamos a R. ao pagamento duma sanção pecuniária compulsória de €5.000,00, por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de entrega das ações, contados desde a data do trânsito em julgado da presente sentença até à entrega efetiva das ações;
«d) Condenamos a 1ª R., , a entregar ao 2º A., F, as ações correspondentes a 6,63% do capital social da 2ª R., S, bem como a praticar todos os atos necessários para fazer adquirir essas ações e para proporcionar ao A. a sua posse e disponibilidade efetiva, mediante o pagamento do preço por parte deste do preço de €2.100.000,00, por força do exercício do direito de opção de compra;
«e) Condenamos a 2ª R., S a pagar ao 2ºA., F, a quantia de €18.000,00, por força da compensação entre o crédito da R. no valor de €90.000,00 sobre o A. e os €108.000,00 que lhe eram devidos como retribuição variável por força de contrato de prestação de serviços de gestão, acrescida de juros moratórios à taxa legal supletiva de 4%, desde a data de citação da R., ocorrida em 20 de setembro de 2006, até integral pagamento;
«f) Julgamos absolver as R.R. do demais pedido (…)»
Para além do exposto, há que referir ainda que também está evidenciada, dos articulados e da matéria de facto provada na ação principal, a existência dum profundo litígio entre as partes e o manifesto desconforto que a execução da sentença irá causar para as R.R., sendo claro que se verifica uma incapacidade de entendimento entre os litigantes. O que significa que, independentemente de considerações relativas à imputação subjetiva de responsabilidades sobre esse estado das relações pessoais entre os intervenientes nestes negócios, é evidente que esta alteração societária decorrente da eventual execução imediata da sentença recorrida irá provocar muito certamente um novo conjunto de litígios que as R.R. pretendem para já evitar.
Somos particularmente sensíveis à questão da volatilidade do mercado em que a atividade industrial da S se insere, a qual foi muito evidenciada na produção da prova na ação principal, e bem assim a sensibilidade própria desse ramo de atividade, muito dependente da liquidez e do recurso ao crédito bancário.
Também a relação de confiança com os clientes, como a Mercadona, que é o cliente mais importante da S em Espanha, foi igualmente mencionado na produção de prova na ação principal.
Este conjunto de factos, já evidenciado na ação principal, julgamos ser mais que suficiente para nos fazer admitir que a entrada imediata dos A.A. no capital social da S é suscetível de afetar de forma relevante o equilíbrio societário, provocando prejuízos consideráveis, tendo em atenção a particular sensibilidade do mercado em que a R. se move e a conflitualidade latente entre as partes. Pelo que, entendemos justificado esse requisito necessário à fixação do efeito suspensivo.
Quanto ao valor da caução, ficou de facto evidenciada da prova produzida na ação principal a dificuldade de fixação do valor acionista da S, mas certamente não fará qualquer sentido partir do valor de €2.100.000,00 que serviu de base ao preço acordado no “Agreement”, pois esse valor foi estabelecido num contexto negocial e temporal muito próprios, que não corresponderiam necessariamente a um valor de mercado, refletindo antes as posições de força relativas de cada parte no momento concreto dessa negociação.
Á cautela, mesmo considerando as dificuldades de determinação do valor acionista da S, deve ter-se em conta o que indicado pelo próprio “Grupo Nutrinveste”, no mencionado “Plano Estratégico de 2005-2009”, junto de fls 258 a 501 dos autos principais.
Esse documento, apesar das finalidades comerciais para que foi produzido e mesmo não constituindo uma avaliação rigorosa e definitiva, reflete pelo menos a perceção que o próprio grupo titular dessa sociedade têm relativamente ao seu valor, não podendo aqui deixar de ser o tido em consideração, tendo em atenção o que foi peticionado a título subsidiário pelos A.A. e o que se pretende salvaguardar com a prestação da caução.
Nessa medida, os critérios de cálculo sugeridos na oposição a este propósito, que damos aqui por reproduzidos e que apontam para a necessidade de garantir um valor aproximado de €30.116.084,97, merecem o nosso acolhimento.
Finalmente, quanto à idoneidade da garantia pretendida prestar.
Os ora Requerentes manifestaram a sua intenção de prestar caução mediante “garantia bancária à primeira solicitação à ordem do tribunal”. Pode-se dizer que o fazem de forma pouco especificada, mas suficientemente precisa para percebermos o que é pretendido.
Do nosso ponto de vista o requerido é suficiente para satisfazer o critério da idoneidade, desde que a garantia seja prestada por instituição bancária nacional de referência e salvaguarde efetivamente o crédito em causa, como é vontade expressa pelos requerentes. Aliás, se não for assim, só restará aos requerentes não prestar a caução, nos termos que se julgam ser os pretendidos.
O efeito suspensivo do recurso apenas será fixado no momento em que for efetivamente prestada a caução pelo meio requerido.
Decisão:
Por todo o exposto, julgamos o presente incidente de prestação espontânea de caução parcialmente procedente, devendo os Requerentes, no prazo de 30 dias, prestarem caução mediante apresentação de garantia bancária, por instituição financeira de referência nacional, que satisfaça o pagamento da quantia de €30.116.084,97, de forma incondicional e à primeira solicitação do tribunal, válida e eficaz durante a pendência da ação principal e até 30 dias após o trânsito em julgado da decisão final que lhe ponha termo.
- As custas do incidente são a cargo dos requerentes e requeridos, fixando-se a taxa de justiça em 1 U.C. para cada um (Art. 539º n.º 1, conjugado com o Art. 527º do C.P.C., e Art. 7º n.º 4 e tabela II anexa ao R.C.P.).
- Registe e notifique”.

A 07 de Novembro de 2016 foi julgada a caução válida e tempestivamente prestada.

A 18 de Março de 2025, vieram as Requerentes solicitar que se determine “a libertação da garantia bancária e, em consequência, ordenar a devolução às Rés do respectivo original, que será levantado em mão, por mandatário das Rés, junto da secretaria do Tribunal”, sustentando que, transitado em julgado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que colocou termo ao litígio, deixou de subsistir a “razão de ser que determinou a emissão e apresentação nos autos da aludida garantia bancária; sendo que, (…)Tampouco subsiste na ordem jurídica a Sentença cuja execução por via de tal atribuição de efeito suspensivo se sustou e que, recorde-se, condenava a Ré S – SGPS, S.A., inter alia, na entrega das acções representativas de 7,2% e 6,63%1 do capital social da Ré S, S.A., tendo as Rés sido absolvidas desses pedidos.”
Cumprido o contraditório, os Autores vieram dizer que:
- a prestação de uma garantia bancária, em conjunto com a verificação dos demais requisitos processuais, só permite suspender os efeitos de uma decisão condenatória porque a entidade bancária emitente garante o cumprimento da condenação, em nome e em substituição do devedor;
- o Acórdão do STJ de 10.12.2024 decidiu que a Ré S foi condenada no pagamento à Autora G:
i. Da quantia correspondente à diferença, para mais, entre o preço de 601.012,10 e o valor dos 7,2% das ações de capital social da S, S.A., a liquidar em execução;
ii. Dos juros moratórios calculados à taxa legal em vigor, desde a data da resolução do contrato (28.06.2005), até à data de efectivo pagamento;
- Tendo as partes “Garantidas” pela garantia bancária prestada sido condenadas por Acórdão já transitado em julgado, essa garantia só poderá ser libertada quando se comprove o cumprimento da condenação proferida.
Em consequência, peticionam os Autores que o Tribunal accione a referida garantia para pagamento da quantia €16.915.166 a título de capital e o montante de €27.675.107 a título de juros de mora vencidos até à data de 12.03.2025, o que perfaz a quantia total de €44.590.273.

Contra esse pedido vieram as Requerentes pronunciar-se, reiterando o pedido de libertação da caução, uma vez que:
- a garantia foi prestada com o fundamento exclusivo de, na pendência dos recursos interpostos pelas Rés, obter o efeito suspensivo da Sentença proferida por este Tribunal de Primeira Instância, e que era de condenação da Ré S, SGPS, inter alia, na entrega à G das acções representativas de 7,2% e 6,63%1 do capital social da Ré S, S.A. e no pagamento de € 18.000,00 Autor F ();
- essa Sentença foi, em virtude da procedência quase integral desses recursos, revogada;
- há uma diferente condenação, que, como a própria G não deixa de reconhecer, é ilíquida e que sendo-o, não há a esta data qualquer obrigação incumprida, nem sobre a mesma existem juros vencidos (que sempre seriam a computar à taxa de juro legal de 4%, e não à taxa de juro comercial), nem esses (inexistentes) juros podem ser objecto de capitalização face à iliquidez da obrigação, como decorre da lei e que essa liquidação deve ser feita em incidente próprio, a correr termos perante o Tribunal, e sujeito ao devido contraditório.

O Tribunal de 1.ª Instância proferiu Decisão a 14 de Maio de 2025, no sentido de que, em “última instância, a 1ª Ré foi condenada a pagar à 1º A uma quantia “correspondente à diferença, para mais, entre o preço de 601.012,10 e o valor dos 7,2% das acções do capital social da 2ª Ré” a liquidar em execução de sentença, quantia essa a que acresceria “juros moratórios calculados à taxa lega em vigor, desde a data de resolução do contrato até data de efectivo pagamento”,  acrescentando que tal Acórdão transitou em julgado nos termos do disposto no artigo 628.º do Código de Processo Civil, mas não colocou termo à instância: “a condenação definitiva da Ré foi feita em termos genéricos, nos termos do disposto no art. 609º, nº2 do CPC, pelo que nos termos do disposto no art.704º “6 - Tendo havido condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, e não dependendo a liquidação da obrigação de simples cálculo aritmético, a sentença só constitui título executivo após a liquidação no processo declarativo, sem prejuízo da imediata exequibilidade da parte que seja líquida e do disposto no n.º 7 do artigo 716.º.”
Assim, nos termos do disposto no art.358º, nº2 do CPC, “O incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, e, caso seja admitido, a instância extinta considera-se renovada.” Isto quer dizer que, apesar de ter transitado em julgado, o Acórdão do STJ não é nem exequível só por si, nem colocou termo à instância, na medida em que, seguindo-se o incidente de liquidação, esta tem-se por renovada e prossegue. Prosseguindo, mantêm-se válida e eficaz a caução prestada, nos termos em que foi ordenado.
Não se verificam, por isso, os pressupostos enunciados para libertar a caução, muito menos para qualquer accionamento, indeferindo-se tanto o pedido das Requerentes (RR) como das AA, devendo a 1ª Autora deduzir, se assim o entender, o competente incidente de liquidação”.

É desta Decisão que vem pelas Requerentes/Rés interposto Recurso de Apelação, tendo apresentado Alegações, onde lavraram as seguintes Conclusões:
“1.ª Vem o presente recurso interposto do Despacho com a ref. CITIUS n.º 444911599, pelo qual foi rejeitado o pedido de libertação da garantia bancária prestada à ordem deste douto Tribunal no âmbito do presente apenso formulado no requerimento com ref. CITIUS n.º 51714437, de 18.03.2025, decisão com a qual não podem as Recorrentes conformar-se.
2.ª A garantia bancária em análise foi prestada, nos termos do disposto no artigo 647.º, n.º 4 do CPC, para obter o efeito suspensivo da Sentença com a ref. CITIUS n.º 353654183, de 30.05.2015 proferida por este Tribunal de Primeira Instância na pendência do recurso interposto pelas Rés, ora Recorrentes, dessa mesma decisão, cuja imediata execução lhes causaria grave prejuízo.
3.ª Por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2025, transitado em julgado a 27.02.2025, essa Sentença foi revogada, tendo absolvido as Recorrentes dos pedidos em que haviam sido condenadas na decisão da Primeira Instância.
4.ª O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça condenou a Recorrente S, SGPS, S.A. no pagamento de quantia ilíquida, a liquidar em execução de Sentença.
5.ª O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça extinguiu a instância (quer a de recurso, quer a principal) e pôs termo ao processo, em face do disposto no artigo 277.º, al. a) do CPC.
6.ª Contrariamente ao que resulta do Despacho a quo, a possibilidade de renovação da instância em virtude da dedução de incidente de liquidação não importa a manutenção da Garantia Bancária prestada, devendo esta ser libertada, com o trânsito em julgado da decisão final tal como decorre das condições estabelecidas na mesma.
7.ª A decisão da qual derivavam as obrigações garantidas pela Garantia Bancária não existe já na ordem jurídica, encontrando-se no seu lugar uma condenação inteiramente diferente.
8.ª A obrigação objecto da Garantia Bancária é, inequivocamente, a da aludida Sentença do Tribunal de Primeira Instância, que já não subsiste na ordem jurídica.
9.ª A (nova) obrigação decorrente do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça não se mostra garantida pela Garantia Bancária,
10.ª Nem pode a mesma ser estendida para a passar a garantir, em moldes que manifestamente extravasam o seu teor, literal e material.
11.ª Ainda que assim se não entendesse, sem conceder, sempre deveria haver lugar à redução da garantia bancária em questão, atento o manifesto excesso do seu montante relativamente àquelas que foram as obrigações garantidas aquando da sua prestação e o seu correlato com a (diferente) condenação que veio a final a ser proferida.
12.ª Se a Sentença tivesse sido originariamente genérica estaria vedado às Rés fazer uso do disposto no artigo 647.º, n.º 4 do CPC, por falta do pressuposto base de tal artigo: – que a execução da decisão lhe causasse prejuízo considerável – uma vez que, nos termos do preceituado no artigo 704.º, n.º 6 do CPC, a Sentença só constituiria título executivo após a liquidação no processo declarativo.
13.ª A manutenção – ilegal e injustificada – da vigência da Garantia Bancária em questão causa às Recorrentes manifesto prejuízo, sob a forma das comissões bancárias que a sua manutenção acarreta no montante de cerca de trezentos mil euros/ano.
14.ª Ao não libertar a Garantia Bancária, fez o douto Tribunal a quo errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 277.º, al. a), 378.º, n.º 2, 609.º, n.º 2, 647.º, n.º 4, 650.º, n.º 3 e 704.º, n.º 6 do CPC, e sufragou entendimento de tais normas em sentido desconforme com a Constituição da República Portuguesa, por violação do princípio da segurança jurídica, enquanto corolário do estado de direito democrático, ínsito no artigo 2.º da Lei Fundamental e, bem assim, do direito de propriedade consagrado no artigo 62.º do mesmo diploma.
15.ª Deve, em consequência de todo o exposto, a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a imediata libertação da Garantia Bancária prestada pelas Recorrentes.
Termos em que,
Deve ser dado integral provimento ao presente Recurso de Apelação, revogando-se o Despacho com a ref. CITIUS n.º 444911599, e substituindo-se o mesmo por outro que determine a imediata libertação da Garantia Bancária prestada pelas Recorrentes.
Assim decidindo farão Vossas Excelências JUSTIÇA!!”.

Os Autores-Requeridos apresentaram Contra-Alegações, culminadas com as seguintes Conclusões:
“A - Com o presente Recurso pretendem as Rés que o Tribunal ad quem revogue o Despacho Recorrido, proferindo decisão que ordene a imediata libertação da garantia bancária sob apreço.
B. Sucede, porém, que o Recurso interposto pelas Rés está votado ao manifesto insucesso, devido à total falta de razão da fundamentação nele aduzida, não merecendo qualquer reparo ou censura a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
C. Contrariamente ao que as Rés alegam, a função da caução prestada pelas Rés não se esgota na produção de efeito suspensivo do recurso, assumindo a natureza de garantia especial das obrigações, destinada a assegurar o cumprimento da obrigação judicialmente reconhecida, mantendo-se válida e eficaz até que esta se mostre cumprida, nos termos do artigo 650.º, n.ºs 3 e 4 do CPC.
D. O Acórdão do STJ condenou a Ré S ao pagamento à Autora da quantia correspondente à diferença, para mais, entre o preço de EUR 601.012,10 e o valor dos 7,2% das ações do capital social da Ré S acrescida de juros moratórios calculados à taxa legal em vigor, desde a data da resolução do contrato (i.e., 28.06.2005) até à data de efetivo pagamento.
E. Trata-se, portanto, de uma sentença condenação genérica, cuja quantificação do quantum indemnizatório foi remetida para incidente de liquidação. Nestes casos, tem sido entendimento reiterado da jurisprudência que a caução se mantém válida e eficaz até ao trânsito em julgado da decisão final desse incidente. Só após essa decisão, e caso a parte devedora demonstre o cumprimento da obrigação no prazo legal, poderá a caução ser levantada; caso contrário, o montante será entregue à parte beneficiária. A instância considera-se renovada com a dedução do incidente de liquidação, que complementa a condenação proferida, nos termos do artigo 358.º, n.º 2, do CPC não se verificando, por isso, qualquer fundamento para o levantamento antecipado da garantia bancária.
F. Daqui se obtém que a mera prolação de uma sentença de condenação genérica, ainda que transitada em julgado, não determina, por si só, o levantamento da garantia bancária prestada. A libertação da caução antes de apurado e assegurado o cumprimento da obrigação comprometeria a sua função essencial e desvirtuaria a sua finalidade. Ao sustentarem o contrário, as Rés pretendem extrair de uma condenação genérica os efeitos próprios de uma absolvição, o que é manifestamente inadmissível.
G. Mais se refira que o prazo de caducidade mencionado nas condições da garantia bancária a que as Rés aludem nem sequer se iniciou (e muito menos terminou), porquanto ainda não foi proferida qualquer decisão final que ponha termo ao processo. Ainda se segue o incidente de liquidação, onde aí prosseguirá a instância, e onde, então, será proferida uma decisão final, suscetível de transitar em julgado.
H. Pelo que, andou bem o Tribunal a quo ao decidir no sentido de que a garantia bancária não caducou, mantendo-se válida e eficaz.
I. Acresce que, se a Ré S pretendia pôr termo à incerteza quanto à obrigação garantida em que foi condenada e agilizar o processo da sua quantificação, poderia ter tomado a iniciativa de requerer a liquidação do crédito. A sua inércia, portanto, não pode ser imputada à Autora nem servir de fundamento para afastar a manutenção da garantia.
J. Ademais, a obrigação de entrega das ações representativas que foi objeto de condenação na Sentença do Tribunal de 1.ª instância é o equivalente processual da obrigação de pagamento do valor das ações que foi objeto de condenação pelo Acórdão do STJ. Pelo que, contrariamente ao que as Rés pretendem fazer crer, obrigações garantidas pela garantia bancária não se extinguiram. A garantia bancária permanece válida e eficaz para efeitos de garantia do cumprimento da obrigação em que a Ré S foi condenada ao abrigo do Acórdão do STJ.
K. De referir ainda que é admissível a prestação de caução para obter o efeito suspensivo de recurso em caso de condenação em obrigação ilíquida, abrangendo a caução o cálculo provável da obrigação ilíquida a ser determinado em sede de diligências probatórias no âmbito do incidente de prestação de caução.
L. Os custos alegadamente suportados pelas Rés com comissões bancárias resultam de uma opção voluntária das Rés pela prestação de caução sob a forma de garantia bancária, não afetando a sua validade nem a sua função. Admitir o levantamento da caução com base nesses encargos comprometeria a sua eficácia enquanto instrumento de tutela. Acresce que as Rés não demonstraram, sequer, a existência, o montante ou exigibilidade dos custos invocados.
M. De salientar ainda que as Rés não logram cumprir o ónus de suscitação prévia e processualmente adequada de uma questão de constitucionalidade – artigos 280. °, n.°s 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa e 70.º, 72.º e 75.º-A da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional – uma vez que não questionaram a (in)constitucionalidade de uma norma ordinária, revelando qual o sentido ou critério normativo com o qual o preceito não pode ser aplicado sob pena de inconstitucionalidade, em termos gerais e abstratos, e destacados das especificidades da situação concreta dos autos, nem pediram a sua desaplicação. Nem tão pouco, a final, formulam qualquer pedido explicito (ou implícito) de declaração de inconstitucionalidade.
N. As Rés limitam-se a discordar da decisão do Tribunal a quo e a referir que a mesma não respeitou nem a lei ordinária nem a Constituição. Pelo que não tendo a questão de constitucionalidade sido suscitada de modo processualmente adequado não impende sobre o Tribunal ad quem o dever de sobre a mesma se pronunciar.
O. Sem prejuízo, sempre se diga que a interpretação feita pelo Tribunal a quo no Despacho Recorrido no sentido de que a caução prestada pelas Rés sob a forma de garantia bancária se mantém válida e eficaz encontra respaldo na letra e no espírito das disposições legais aplicáveis, bem como na jurisprudência e doutrina portuguesas, não logrando os normativos invocados pelas Rés impor ou justificar qualquer levantamento da mesma.
P. A manutenção da garantia bancária não viola os princípios da segurança jurídica nem do direito de propriedade invocados pelas Rés. Pelo contrário, decorre de normas legais claras, é respaldada por jurisprudência consolidada e assegura o equilíbrio entre credor e devedor. Trata-se de uma garantia voluntariamente prestada pelas Rés, emitida por instituição bancária por si escolhida, sendo qualquer ónus que daí resulte temporário, legalmente enquadrado, contratualmente assumido e proporcional à função que a caução visa cumprir.
Q. A alegação das Rés de que a garantia bancária deveria ser reduzida por excesso é uma questão nova, nunca antes suscitada pelas mesmas perante o Tribunal a quo, o que, como é entendimento jurisprudencial pacificamente assente, inviabiliza a apreciação da mesma em sede recursória pelo Tribunal ad quem.
R. Mesmo que assim não se entenda – o que não se aceita e por cautela de patrocínio se aduz – a pretensão de redução da garantia bancária carece de fundamento. A condenação da Ré S abrange não apenas o valor das ações, mas também juros moratórios vencidos ao longo de quase duas décadas, cujo montante já ultrapassa largamente o capital em dívida. O que significa que a garantia prestada cobre apenas parte da obrigação, não se justificando qualquer redução.
S. Acresce que as Rés nem sequer formularam um pedido efetivo de redução da garantia bancária, limitando-se a uma alegação vaga e sem efeito útil, que deve ser integralmente desconsiderada.
T. Em face do exposto, é por demais evidente o acerto da decisão do Tribunal a quo ao indeferir o levantamento da garantia bancária, falecendo in totum todas as conclusões e alegações das Rés a este propósito, em especial os §§ 3 a 66 das Alegações de Recurso e as 2.ª a 15.ª Conclusões das Alegações de Recurso, devendo, por conseguinte, o presente recurso ser julgado improcedente, confirmando-se o Despacho Recorrido.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão:
Deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, e, em consequência, deverá manter-se na íntegra o Despacho recorrido que indeferiu o pedido de libertação da garantia bancária”.

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Questões a Decidir
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na Petição Inicial, como refere, Abrantes Geraldes[2]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu, e na decorrência das Conclusões das Recorrentes, importará verificar se o Tribunal a quo decidiu bem ao recusar a imediata libertação da garantia bancária prestada nos autos.
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Fundamentação de Facto
Os factos a considerar são os que constam do Relatório.
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Fundamentação de Direito
O presente recurso insere-se na saga em que as partes têm envolvido este processo e que, tudo indica, vai continuar.
A caução para obter o efeito suspensivo do recurso interposto pelas Rés foi admitida e julgada válida.
O recurso foi julgado e a decisão parcialmente alterada (com o trânsito em julgado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2024).
As Rés, ora Recorrentes manifestaram o entendimento de que se deveria determinar “a libertação da garantia bancária e, em consequência, ordenar a devolução às Rés do respectivo original, que será levantado em mão, por mandatário das Rés, junto da secretaria do Tribunal”.
Foi sobre este Requerimento que o Tribunal a quo se pronunciou, decidindo que “Não se verificam, por isso, os pressupostos enunciados para libertar a caução, muito menos para qualquer accionamento, indeferindo-se tanto o pedido das Requerentes (RR) como das AA, devendo a 1ª Autora deduzir, se assim o entender, o competente incidente de liquidação”. 

Importa começar por convocar o n.º 3 do artigo 650.º do Código de Processo Civil, no qual se determina que “Se a caução tiver sido prestada por fiança, garantia bancária ou seguro-caução, a mesma mantém-se até ao trânsito em julgado da decisão final proferida no último recurso interposto, só podendo ser libertada em caso de absolvição do pedido ou, tendo a parte sido condenada, provando que cumpriu a obrigação no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado”.
Convém aqui recordar que, como assinalam Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa, toda a “tramitação do incidente de prestação de caução, como condição de atribuição de efeito suspensivo ao recurso ou alternativa à execução provisória da decisão, está orientada no sentido de garantir que a decisão seja proferida e efectivada com celeridade,[3] o que é expressamente acautelado pela urgência prevista no art. 915.º, n.º 2”[4]. Deste modo, acrescentam, a “caução prestada por terceiro a favor do recorrente (v.g. garantia bancária, fiança, seguro-caução) perdura até que seja efectivamente cumprida a obrigação garantida”[5], sublinhando  que, sendo “mantida, no todo ou em parte, a condenação, a entidade caucionante apenas poderá ser liberada se o devedor demonstrar, no prazo de 30 dias, o cumprimento da obrigação”[6].
O mesmo entendimento individual assume Abrantes Geraldes, quando escreve que sendo “mantida no todo ou em parte a condenação, a entidade caucionante apenas poderá ser liberada da sua responsabilidade se acaso  o devedor demonstrar, no prazo de 30 dias, o cumprimento total da obrigação”[7].
Ora, nada disso se passa no caso dos autos, lavrando as Rés-Recorrentes em vários equívocos dos quais não parecem querer sair: é que a caução, não servia apenas para dar efeito suspensivo ao recurso, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 2024 (transitado em julgado), não é um Acórdão absolutório, mas simplesmente um Acórdão que alterou e revogou parcialmente o Acórdão antes prolatado pela Relação de Lisboa, não colocando fim à instância, por a condenação implicar o recurso ao incidente de liquidação.
Efectivamente e como se escreve no Acórdão da Relação do Porto de 27 de Fevereiro de 2018 (Processo n.º 150/07.2TBCBR-D.C1-Fonte Ramos), a “função da caução não se esgota na suspensão dos efeitos do recurso, destinando-se a garantir o cumprimento, por parte do apelante/devedor, da obrigação em que foi condenado - tanto a parte líquida, como a parte ilíquida”, o que, necessariamente, faz “concluir que a sua finalidade permanece actual (não se esgotou) e que o direito que ela visa acautelar no que se refere à parte ilíquida ainda não se mostra acautelado, se (…) falta ainda fixar/concretizar o restante objecto da condenação no respectivo incidente de liquidação de sentença".
É, aliás, por ter esta dupla função, que se justifica que a prestação de caução para fixação de efeito suspensivo ao recurso (artigo 647.º, n.º 4) esteja configurada como um verdadeiro incidente, com valor próprio (artigo 304.º, n.º 2) e seja processado por apenso (artigo 915.º, n.º 1), “se necessário com a extração de traslado, como dispõe o n.º 2, do art.º 650.º, do C. P. Civil, devendo separar-se a prestação de caução (no apenso) da fixação de efeito ao recurso (no processo principal” (Acórdão da Relação de Lisboa de 24 de Fevereiro de 2022 – Processo n.º 515/14.3TBLRA-B.L1-2-Orlando Nascimento).

Por outro lado, as Rés-Recorrentes não atentam em que o valor da caução que prestaram tem sempre o limite do pedido formulado nos autos (“por ser esse o limite da condenação e liquidação”, como bem se refere no aludido Acórdão da Relação de Lisboa de 24 de Fevereiro de 2022), pelo que  não faz sentido procurar dizer que a condenação do Supremo é distinta da 1.ª Instância, uma vez que se trata de uma condenação no âmbito do mesmo processo, submetida e delimitada pelo mesmo objecto e o mesmo pedido: o que a caução garante, no limite, é a condenação da 1.ª Instância.
O que parece perturbar as Rés Recorrentes é que a condenação que deriva do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça tenha uma parte ilíquida, que vai implicar a existência de um incidente de liquidação.
Mas trata-se de uma perturbação infundada.
Como bem se refere na Decisão ora sob recurso, a “condenação definitiva da Ré foi feita em termos genéricos, nos termos do disposto no art. 609º, nº2 do CPC, pelo que nos termos do disposto no art.704º “6 - Tendo havido condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, e não dependendo a liquidação da obrigação de simples cálculo aritmético, a sentença só constitui título executivo após a liquidação no processo declarativo, sem prejuízo da imediata exequibilidade da parte que seja líquida e do disposto no n.º 7 do artigo 716.º.”
Assim, nos termos do disposto no art.358º, nº2 do CPC, “O incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, e, caso seja admitido, a instância extinta considera-se renovada.”
 Isto quer dizer que, apesar de ter transitado em julgado, o Acórdão do STJ não é nem exequível só por si, nem colocou termo à instância, na medida em que, seguindo-se o incidente de liquidação, esta tem-se por renovada e prossegue. Prosseguindo, mantêm-se válida e eficaz a caução prestada, nos termos em que foi ordenado”.
E nada há a objectar a esta conclusão, valendo a pena lembrar que o Supremo Tribunal de Justiça, a propósito de normas similares em processo laboral, decidiu que o “montante da caução que a parte vencida tem a faculdade de prestar, nos termos do art. 79.º, n.º 1 do Código de Processo de Trabalho de 1981, para obter o efeito suspensivo do recurso de apelação, deve corresponder ao quantitativo provável do crédito, abrangendo, quer a parte líquida, quer a parte ilíquida da condenação” (Acórdão de 13 de Setembro de 2006 – Processo n.º 05S1053-Sousa Grandão)[8], o que nos leva ao (mais recente), Acórdão da Relação de Lisboa de 16 de Março de 2016 (Processo n.º 14820/14.5T8LSB-A.L1-4-Paula Santos), no qual – expressamente de decide que a “caução prestada para efeitos do disposto no artigo 83º nº2 do CPT – quando o recorrente pretende obter o efeito suspensivo do recurso – destina-se a garantir o direito de crédito do recorrido, já reconhecido na sentença, pelo que deve ser idónea em termos qualitativos – na forma como é prestada – e quantitativos – em quantum que garanta efectivamente o crédito”, se acrescenta que o “montante da caução é o da importância em que o recorrente foi condenado (cfr. art. 83º nº2 do CPT)” e se conclui que, este “montante abrange, quer a parte líquida quer a parte ilíquida da condenação, mantendo inteira actualidade a jurisprudência do Acórdão de Uniformização 6/2006 de 24 de Outubro).

Assim sendo e neste contexto, só podemos concordar com o decidido no Acórdão da Relação de Lisboa de 09 de Outubro de 2024 (Processo n.º 1661/20.0T8CSC.L2-4-Alda Martins), quando conclui que deve “entender-se que, sendo proferida sentença de condenação genérica, o prazo a que se referem a parte final do n.º 3 e o n.º 4 do art. 650.º do CPC se conta do trânsito em julgado da decisão final do incidente de liquidação da obrigação, que complementa aquela”.
Como atrás dissemos, com a Decisão final do Supremo Tribunal de Justiça, a instância não terminou, o processo não terminou, nem se extinguiu e prosseguirá em sede de incidente de liquidação (que qualquer das partes pode deduzir), mantendo-se a caução vigente[9].
É isto, aliás, que resulta de forma cristalina, do teor do clausulado na caução:
“GARANTIA BANCÁRIA NRº 00125-02-2033719
BENEFICIÁRIO: MERITÍSSIMO SENHOR JUIZ TITULAR DO PROCESSO Nº 6354/05.5TVLSB, 1º SECÇÃO CÍVEL DA INSTÂNCIA CENTRAL DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LISBOA - J5
O BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A. (…), adiante designado abreviadamente por "Banco", presta, pelo presente documento, a pedido da sociedade S, SGPS, (…) e em nome das sociedades S, SGPS, (…) e S, S.A., (…) adiante designadas abreviadamente por "Garantidas", garantia bancária, incondicional e à primeira solicitação, à ordem do Meritíssimo Senhor Juiz titular do Processo nº 6354/05.5TVLSB, 1ª Secção Cível da Instância Central do Tribunal da Comarca de Lisboa - J5, adiante designado abreviadamente por "Beneficiário", no até ao montante máximo de EUR 30.116.084,97 (TRINTA MILHÕES CENTO E DEZASSEIS MIL OITENTA E QUATRO EUROS E NOVENTA E SETE CÊNTIMOS), de acordo com os seguintes termos e condições:
“l. A presente garantia bancária é emitida a título de prestação de caução para atribuição de efeito suspensivo da sentença proferida no Processo nº 6354/05.5TVLSB, que corre atualmente os seus termos no Tribunal da Comarca de Lisboa, Instância Central, 1º Secção Cível - J5, nos quais são Autores F e G, e Rés as Garantidas (doravante abreviadamente designado por "Processo nº 6354/05.5TVLSB"), até ao trânsito em julgado da decisão que lhe ponha termo.
2. O Beneficiário poderá acionar a presente garantia bancária mediante comunicação escrita dirigida ao Banco, com cópia para as Garantidas, por meio de carta registada com aviso de receção, na qual se deve incluir a discriminação dos montantes cujo pagamento é solicitado.
3. O Banco obriga-se a entregar ao Beneficiário os montantes que por este lhe sejam reclamados, até ao montante máximo de EUR 30.116.084,97 (TRINTA MILHÕES CENTO E DEZASSEIS MIL OITENTA E QUATRO EUROS E NOVENTA E SETE CÊNTIMOS), pagamento esse que deverá ser feito pelo Banco no prazo máximo de 8 (oito) dias úteis contados a partir da receção da comunicação acima referida.
4. A presente garantia manter-se-á válida e eficaz durante a pendência do Processo nº 6354/05.5TVLSB e caducará automaticamente, e sem necessidade de qualquer ato ou iniciativa das Garantidas, do Beneficiário e/ou do Banco, no nonagésimo primeiro dia após o trânsito em julgado da decisão final que lhe ponha termo.
5. A presente garantia bancária encontra-se sujeita à Lei Portuguesa”.
Tem o seu objecto definido (1.), tem o seu limite fixado (3.), e tem a sua validade linearmente afirmada (4. - “durante a pendência do processo”).
Ora, o processo, ainda não terminou.
Assim sendo, só pode confirmar-se a decisão recorrida, com a consequente improcedência do Recurso.

DECISÃO
Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a apelação apresentada e, em consequência, confirmar a Decisão recorrida
*
Custas do Recurso a cargo das Recorrentes.
Notifique e, oportunamente, remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º do Código de Processo Civil).
***
Lisboa, 04 de Novembro de 2025
Edgar Taborda Lopes
Paulo Ramos de Faria
Micaela Sousa[10]
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[1] Por opção do Relator, o Acórdão utilizará a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1945 (respeitando nas citações a grafia utilizada pelos/as citados/as).
A jurisprudência citada no presente Acórdão, salvo indicação expressa noutro sentido, está acessível em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/.
[2] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[3] Sublinhado e carregado nossos.
[4] Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2.ª edição , Almedina, 2020, páginas 812-813.
[5] Abrantes Geraldes-Paulo Pimenta-Luís Filipe Pires de Sousa, Código…, cit., página 813.
[6] Ob., loc. cit..
[7] Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., página 284.
[8] Que corresponde ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 6/2006, de 24 de Outubro.
[9] Sendo que, como assinala o Acórdão da Relação do Porto 18 de Janeiro de 2010 (Processo n.º 667/09.4TVPRT-B.P1-Anabela Luna de Carvalho), “o trânsito em julgado da sentença cujo recurso teve efeito suspensivo em virtude de caução prestada, não há que recorrer previamente a um processo executivo para se obter o pagamento do condenado/devedor através da dita caução, bastando notificar o garante para colocar o dinheiro à ordem do Tribunal”.
[10] Assinatura digital, cujo certificado está visível no canto superior esquerdo da primeira página (artigos 132.º, n.º 2 e 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 19.º, n.ºs 1 e 2, e 20.º, alínea b), da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto)