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ARRENDAMENTO
FALTA DE RESIDÊNCIA PERMANENTE
TRANSITORIEDADE
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I – A hipótese de força maior ou de doença ou a de utilização por um familiar, como causas de licitude do não uso do locado, pelo arrendatário, e por mais de um ano (artigo 1072º, nº 2, alíneas a) e c), do Código Civil), sustentam-se num carisma passageiro ou temporário desse não uso, e supõem como crível ou provável a situação da retoma dessa efectiva utilização.
II – É ao inquilino, em arrendamento habitacional, que carrega o ónus de provar que o seu não uso do arrendado, como residência habitual, por mais de um ano, está envolvido desse parâmetro de transitoriedade, e da creditação, ou probabilidade oportuna, da retoma do uso.
III – Se, em acção de despejo, o senhorio prova a falta de residência habitual do inquilino e este não convence, com a solidez adequada, que, em contexto de força maior, doença ou utilização por familiar, é provável e crível que venha a retomar o seu uso efectivo do locado, a dúvida desaproveita-lhe (artigos 1083º, nº 2, alínea d), última parte, 342º, nº 2, e 346º, do Código Civil; e artigo 414º do Código de Processo Civil); e a acção não pode deixar de proceder.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. J--- e A--- suscitaram acção declarativa contra M---, a pedirem que se decrete a resolução do arrendamento referente ao 3.º andar esquerdo do prédio ---, em Lisboa, e o despejo do mesmo, com a condenação da ré a restituir-lhes esse andar, livre e devoluto (12.7.2021).
Em síntese; afirmaram a sua propriedade sobre o andar e a posição de inquilina habitacional da ré; que, contudo, e ao menos desde 2010, não o utiliza como residência permanente, nele tendo deixado de ter a sua vida social e doméstica organizada; e vivendo agora num lar.
2. A ré contestou. Os autores sabem há mais um ano que a ré não utiliza o locado e nada fizerem; opera, por isso, a caducidade do direito à resolução. Por outro lado; ré e filha vivem juntas, em economia comum, no arrendado, desde 1965; em 2009, a ré sofreu um AVC e foi internada por dois meses; regressou a casa, mas necessitava de cuidados especiais. O locado padecia de degradação; em prejuízo da habitabilidade da ré, que se viu obrigada a recorrer aos cuidados de uma instituição. É impossível o regresso a casa por falta de condições. Por diversas vezes, a ré tem vindo a manifestar o desejo de voltar, e coloca a hipótese de regressar; mas com as condições do imóvel sente-se insegura. Continua a servir-se do locado em épocas festivas. Além disso, a filha, com quem sempre residiu em economia comum, permaneceu ininterruptamente na casa; onde ainda reside. Apesar de a ré não estar a usar o locado, a filha continua a usá-lo e a residir nele; continuando a ré a servir-se dele e a considerá-lo como seu.
Em síntese; a acção deve julgar-se improcedente e a ré absolvida do pedido.
3. Os autores responderam. E para dizerem que a não residência da ré é um facto continuado ou duradouro; impeditivo, pois, da caducidade (artigo 1085º, nº 3, do Código Civil).
4. A instância seguiu; com uma ou outra vicissitude.
O despacho saneador não conheceu da excepção peremptória da caducidade.
Da mesma questão não conheceu a sentença final.
Que, ainda assim, julgou procedente a (outra) excepção peremptória, da licitude do não uso do locado pela arrendatária; e, por esse motivo, concluiu que a acção não tinha viabilidade, absolvendo a ré do pedido formulado.
5. Inconformaram-se os autores; e recorreram.
Organizaram assim as conclusões da alegação:
i. Não podem os recorrentes conformar-se com a sentença que julgou improcedente a presente acção, absolvendo a Ré do pedido.
ii. O tribunal a quo entendeu que a ré logrou demonstrar a matéria de excepção por si invocada – ou seja, que cumpriu o “o ónus da prova da doença e da sua reversibilidade, da transitoriedade do impedimento de habitar o locado e da intenção, real e séria, de voltar a residir no mesmo”.
iii. Tal decisão cai em nulidade.
iv. O tribunal a quo fundamenta a sua decisão em variada doutrina e jurisprudência que versam sobre a obrigação legal de uso efectivo do locado e a necessidade de o arrendatário demonstrar a transitoriedade e a reversibilidade do impedimento de habitar o locado.
v. O tribunal a quo conclui que à arrendatária cabia demonstrar:
a. A situação de doença em que se encontra;
b. A reversibilidade da doença;
c. A transitoriedade do impedimento de habitar o locado;
d. A intenção, real e séria, de voltar a residir no locado.
vi. No entanto, inexplicavelmente, conclui que “a aqui ré não tem para além da difícil acessibilidade do prédio sem elevador e o locado ser no 3º andar, qualquer outro impedimento que a impossibilite de voltar a casa”.
vii. Existe aqui uma incompatibilidade entre os fundamentos da decisão, que cai em nulidade.
viii. Há características do locado que são imutáveis: o locado situa-se – e vai sempre situar-se – num terceiro andar, num prédio lisboeta sem elevador.
ix. Se essas características são o único impedimento da ré para regressar a casa, então é cristalino concluir que a ré nunca voltará a residir o locado de forma permanente.
x. É facto provado que a ré tem, actualmente, 86 (oitenta e seis) anos de idade.
xi. É facto provado que a Ré depende de terceiros nas actividades da vida diária.
xii. É facto provado que há mais de 10 (dez) anos a ré deixou de residir no locado de forma permanente e habitual.
xiii. Visitas ocasionais em períodos festivos não constituem uma residência fixa, permanente e habitual.
xiv. Deveria o tribunal a quo ter dado como provado que “Pelo menos desde 2010 que a ré não utiliza o locado para sua habitação permanente, não toma as suas refeições no locado, não dorme no locado e não recebe amigos e família no locado”.
xv. O que a ré confessa na sua contestação.
xvi. A ré teria de demonstrar é que a sua situação de saúde é reversível e que voltaria a residir no locado – o que não fez.
xvii. O tribunal a quo conclui que a ré não reside no locado porque o prédio não tem elevador e o apartamento corresponde a um terceiro andar.
xviii. A ré tem uma prótese da anca esquerda, o que limita a sua mobilidade, principalmente no que respeita a subir e descer os lanços de escada que permitem o acesso ao locado.
xix. A situação de saúde da ré é irreversível – a ré continuará a ter uma prótese da anca esquerda.
xx. O que a impede de regressar definitivamente ao locado – que nunca deixará de ser um apartamento sito num terceiro andar de um prédio sem elevador.
xxi. Da leitura da sentença, resulta uma total oposição entre os fundamentos e a decisão proferida: posto que elencou o ónus da prova que recai sobre a arrendatária, o tribunal a quo acaba por concluir que a ré só não regressa ao locado por questões de acessibilidade – como se, em algum momento do futuro, pudesse ser possível o seu regresso permanente ao locado.
xxii. Pelo que se impõe a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que dê como provado que “Pelo menos desde 2010 que a ré não utiliza o locado para sua habitação permanente, não toma as suas refeições no locado, não dorme no locado e não recebe amigos e família no locado”, concluindo pela procedência da acção e a condenação da recorrida nos moldes peticionados.
6. Não houve resposta.
7. O objecto do recurso (o tema aí decidendo) é circunscrito pelas conclusões da alegação (artigo 635º, nº 4, do Código de Processo Civil).
Na hipótese, são os seguintes os assuntos primordiais a apreciar:
(1.º). saber se a sentença padece de nulidade;
(2.º). saber se está provado que, ao menos, desde o ano de 2010 a ré não utiliza o locado como sua habitação permanente;
(3.º). Saber se a ré conseguiu provar a licitude do seu não uso.
II – Fundamentos
1. A sentença recorrida organizou assim os factos provados:
a. Os autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na --- Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número --- e inscrito na matriz predial sob o artigo ---.
b. No momento da aquisição do imóvel, os autores tomaram conhecimento que o terceiro andar esquerdo se encontrava arrendado à ré com um contrato bastante antigo.
c. A renda estipulada entre as partes foi de €130,00 posteriormente actualizada para €223,13.
Pelo menos desde 2010 que a Ré não utiliza o locado para sua habitação permanente, não toma as suas refeições no locado, não dorme no locado e não recebe amigos e família no locado
(sic) (!)
d. Em data não concretamente apurada os autores tomaram conhecimento que a ré encontra-se a residir no Lar “---” e deixou de ter, no locado, a sua vida social e doméstica organizada.
e. No dia 14 de Outubro de 2019, por correio registado com aviso de recepção, os autores, enviaram à ré uma missiva a solicitar o agendamento de uma reunião.
f. A referida missiva foi recepcionada pela filha da ré que se encontra a habitar no imóvel.
g. Apesar da recepção da missiva nem a ré nem a filha se pronunciaram em relação ao respectivo teor.
h. Bem sabem os autores que ré e filha sempre viveram juntas, em economia comum, desde Abril de 1965, há mais de 56 anos, habitando no arrendado, nunca deixando de aí residir permanentemente.
i. Em Outubro 2009 a ré sofreu um AVC que lhe causou graves sequelas, obrigando-a a internamento hospitalar durante mais de dois meses, devido ao facto de ter sido submetida a cirurgia por ter partido o colo do fémur e o braço direito.
j. Após “alta” hospitalar a ré regressou a casa, mas necessitava de cuidados especiais encontrava-se acamada e muito débil.
l. A ré tem voltado ao locado em épocas festivas, que continua a considerar a sua casa.
m. A filha única da ré com quem sempre residiu em economia comum, permaneceu sempre ininterruptamente e durante mais de 56 anos no arrendado, onde ainda reside, situação que é do conhecimento dos autores.
n. Ré e filha sempre dependeram inteiramente uma da outra, quer economicamente quer afectivamente e é à filha que cabe proporcionar, vestuário, medicamentos, momentos de lazer e tudo o mais, que a ré necessita.
o. Esta situação familiar da ré é conhecida dos autores e vizinhança há dezenas de anos.
p. Os fornecimentos de energia, água, telefone e outros continuaram a ser pagos pela filha da ré que sempre ajudou muito a mãe, ora ré.
q. Apesar da ré não estar a usar o locado continuadamente, a filha continua a usá-lo e a residir nele.
r. O imóvel encontra-se registado a favor dos autores desde 30-1-2002.
s. A ré tem actualmente 86 anos de idade.
t. É dependente das actividades da vida diária e há mais de 10 anos que tem prótese da anca esquerda (relatório medico de 10-4-2024).
u. O prédio em causa não tem elevador e o locado situa-se no 3ºandar esq.
2. E enunciou assim os factos não provados:
« Da PI:
Pelo menos desde 2010 que a Ré não utiliza o locado para sua habitação permanente, não toma as suas refeições no locado, não dorme no locado e não recebe amigos e família no locado.
... com o objectivo de resolver o contrato de arrendamento através do mútuo consentimento pelo não uso do locado.
Da Contestação:
A filha da R. comunicou aos AA. o estado degradado em que o locado se encontrava e da necessidade da realização de obras que permitissem acessibilidade, conforto e bem-estar à mãe.
A casa padece de várias infiltrações e encontra-se em estado muito danificado, causando grande angústia e sofrimento à R.
Os tectos encontram-se em estado precário de conservação, ameaçam ruir em consequência de humidade, pondo em perigo a sua integridade física.
A filha da Ré, solicitou ainda autorização para fazer obras na casa de banho, colocando um poliban que permitiria à Ré cuidar da sua higiene pessoal.
Tais obras seriam pagas pela Ré e pela filha, mas mesmo assim não foram autorizadas.
Por diversas vezes a R. tem vindo a manifestar vontade e desejo de voltar para casa e coloca a hipótese de regressar, mas dada as condições do imóvel sente-se muito insegura continuando a aguardar a realização das obras.
…como sendo o Natal, Páscoa, aniversários bem como alguns fins de semana e período de férias. »
3. O mérito jurídico do recurso.
3.1. A questão da nulidade da sentença.
Na óptica dos apelantes, a sentença final padece de uma total oposição entre os fundamentos e a decisão; ao mesmo tempo que afirma que a apelada cumpriu o ónus de mostrar uma doença reversível, a transitoriedade do não uso do locado e a intenção séria de regressar, diz também que a apelada tem como único impedimento que a impossibilita a voltar a casa o da difícil acessibilidade.
A nulidade da sentença constitui um vício de forma que para o que aqui importa se traduz em os fundamentos estarem em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil).
Para a sua verificação importa que entre fundamentos e decisão ocorra uma relação de excludência; ou, então, que haja equívoco ou ensombramento tal no julgado que o torne objectivamente imperceptível.
Não é manifestamente o caso da sentença apelada.
Ainda que nem sempre imaculada, do ponto de vista formal, o que, em bom rigor, a sentença faz, na hipótese, é operar uma interpretação da realidade consistente na associação do estado pessoal (actual) da inquilina com as circunstâncias objectivas do andar arrendado; para concluir estar nessa associação a causa impeditiva de aquela voltar a usar a casa como residência habitual; e para daí intuir (se bem ou mal – é outro assunto) que está preenchida a excepção da licitude do não uso.
Em qualquer dos casos, não há oposição (excludência); nem o julgamento está afectado de alguma incompreensibilidade geradora da sua invalidação.
3.2. A prova da falta de residência permanente da apelada.
Para os apelantes deve ser dado como provado que:
« Pelo menos desde 2010 (…) a ré não utiliza o locado para sua habitação permanente, não toma as suas refeições no locado, não dorme no locado e não recebe amigos e família no locado »
A sentença final não prima por perfeição (ao menos formal), neste particular.
Ainda que numa leitura integrada permita compreender o desenho da realidade a que procede, o certo é que, e como acima indicado, associa o facto aqui visado ao elenco dos provados (entre as alíneas c. e d.) e, ao mesmo tempo, enumera-o no grupo dos não provados (dos obtidos da petição inicial).
O facto foi obtido do alegado nos artigos 4º a 7º da petição.
A seu pretexto, disse-se na contestação, além do mais, que os autores conhecem a não utilização do locado (artigo 3º) e que « apesar da R. não estar a usar o locado » ela continua « a servir-se dele [“em épocas festivas” (veja-se o artigo 16º)] e a considerá-lo como seu » (artigo 22º); para lá de, sem margem de dúvida, se assumir que « continua a ser impossível à Ré regressar a casa » (artigo 14º).
Este confronto, de petição e contestação, é bastante para poder dizer que aquele facto está seguramente provado por acordo – senão mesmo por confissão –; e só por isso também se compreendendo a invocação, pela apelada, da excepção da licitude do não uso (artigo 574º, nº 2, início, do Cód. Proc. Civ.).
E, assim (plenamente) provado, transportando-o para o leque dos factos inábeis e subtraídos a outro qualquer juízo probatório (artigo 607º, nº 5, segunda parte, do Cód. Proc. Civ.).
Mostrando assim, neste particular, merecer acolhimento a óptica dos apelantes.
Ou seja; e, em síntese; ao invés do apontado na sentença final, e clarificando-a agora, a factualidade em causa (importada dos artigos 4º a 7º da petição inicial) está provada, por modo tabelar (legal); e, como tal, deve ser equacionada juridicamente.
3.3. A excepção da licitude do não uso do andar arrendado.
3.3.1. É este o assunto que constitui o eixo de mérito substantivo do recurso.
O quadro normativo convocado resulta primordialmente dos artigos 1072º e 1083º do Código Civil, com a sua redacção actual (artigo 12º, nº 2, do Cód. Civil).
O inquilino deve residir (ter o seu centro de vida) efectivamente na casa arrendada com destino a habitação, não podendo deixar de lhe dar esse uso por mais de um ano (nº 1, do artigo 1072º).
Se isso acontecer – o não uso do locado por mais de um ano – pode o senhorio accionar um direito potestativo a colocar fim ao contrato, por resolução, com base no seu incumprimento pelo locatário; considerando-se que esse não uso assim concebido envolve gravidade bastante capaz de tornar inexigível àquele a persistência do arrendamento (nº 2, alínea d), segmento inicial, do artigo 1083º).
Acontecem, porém, excepções a este regime; estas traduzidas em situações que tornam lícito o não uso da casa pelo arrendatário (nº 2, alínea d), segmento final, do artigo 1083º). Interessam-nos, em particular, duas. Em 1.º, que não uso tenha causa caso de força maior ou doença (nº 2, alínea a), do artigo 1072º). Em 2.º, que o uso persista por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano (nº 2, alínea d), do artigo 1072º).
Complementa esta última situação, o artigo 1093º do código; que nos esclarece que, nos arrendamentos para habitação, podem residir no prédio, além do arrendatário, todos os que vivam com ele em economia comum (nº 1, alínea a)), como tal se considerando designadamente os seus parentes de linha recta (nº 2).
Em matéria de distribuição do ónus de prova; ao senhorio caberá mostrar que operam as condições de não uso há mais de um ano, afinal a causa de pedir bastante ao efeito jurídico visado na acção de despejo; ao inquilino caberá excepcionar, e provar com consistência suficiente, que ocorrem os factos hábeis a enquadrar que só não habita a casa, ora por força maior ou doença, ora pela manutenção do uso de um seu parente de linha recta que já o faz há mais de um ano.
Na certeza de que, a dúvida sobre a realidade de algum dos factos assim enunciados terá de ser resolvida (decidida) contra a parte a quem esse facto (ainda duvidoso) aproveite (artigo 346º do Cód. Civ.; artigo 414º do Cód. Proc. Civ.).
A aparente simplicidade do que acaba de se deixar expresso choca muitas das vezes com a convulsão própria das realidades da vida.
E, para situações de fronteira, nem sempre é evidente a justeza da opção.
A jurisprudência faz eco desta dificuldade. E busca a justa composição do caso concreto; nela se encontrando, para hipótese próximas, de não uso (justificado por velhice e debilidade do inquilino, algumas das vezes associada à residência efectiva de descendentes), nuns casos o argumentário conducente ao preenchimento da excepção pelo arrendatário, e à frustração do despejo (p. ex.; Acórdão da Relação de Lisboa de 30 de Abril de 2013, proc.º nº 1719/10.3YXLSB.L1-7), noutros a justificação de um não uso não devidamente sustentado por aquele, com a consequente resolução e o despejo (p. ex.; Acórdão da Relação de Lisboa de 26 de Abril de 2022, proc.º nº 509/20.0T8ALM.L1-7).
Seja como for; e de alguma consistência é em qualquer caso a interpretação das duas excepções ao não uso, aqui visadas, segundo a qual, quer a força maior ou doença, quer a utilização efectiva do familiar, não poderem ser compatíveis com um não uso perene, ou que se creia definitivo, do real inquilino; havendo de estar reunida a convicção de que, de acordo com uma previsibilidade (probabilidade) razoável, seja de esperar uma projecção de regresso por ele ao uso. Não sendo, portanto, as duas excepções compatíveis com a previsibilidade de um (fatal) não regresso (entre outros; os Acórdãos da Relação de Lisboa de 8 de Outubro de 2009, proc.º nº 1957/08.9TBSXL.L1-2, e de 7 de Julho de 2022, proc.º nº 11516/19.5T8LSB.L1-2; ou da Relação do Porto de 10 de Outubro de 2011, proc.º nº 720/09.4TBGDM.P1 e de 15 de Outubro de 2013, proc.º nº 1317/09.4TBVNG.P1).
Voltando a lembrar que, tratando-se de matéria exceptiva, é ao inquilino que compete, à margem de qualquer dúvida, convencer dessa probabilidade ou projecção (artigo 342º, nº 2, do Código Civil); ou, dito de outra maneira, que ocorrem as circunstâncias capazes a fazer crer que a não habitação permanente (o não uso) é, de uma forma expectável, reversível, com a virtualidade concebível, perceptível, de, por ser assim passageira e temporária, vir a poder ser retomada com oportunidade pelo inquilino efectivo. A este, portanto, desaproveitando a incerteza e o impasse.
3.3.2. No caso concreto, a sentença final concluiu assim, além do mais:
« (…) ficou demonstrado que a aqui ré apenas e tão só por razões de doença dificultados pela idade avançada – está com 86 anos – e pelo facto do prédio não possuir elevador e ter dificuldades de locomoção, permanece na instituição para onde foi após AVC e fractura do colo do fémur, voltando ao locado de vez em quando. »
E adiante:
« [a arrendatária] É idosa, está com 86 anos, mas não se encontra acamada, deslocou-se ao tribunal na data da audiência de julgamento, e nas festividades ao longo do ano, está com a sua filha no locado, que lá permanece, de forma ininterrupta a viver, sendo também visitada por esta na instituição, para onde foi atenta a falta de acessibilidade do locado, não tendo afastado até ao momento a vontade de voltar para sua casa, embora necessite do apoio de terceiros. »
A prova feita permite concluir que a apelada não vem usando o locado como sua residência, habitual e permanente (o seu centro de vida). É o que resulta das alíneas d) e q), segmento inicial, dos factos provados; e, de uma forma impressiva, ainda, do acordo das partes, a que acima se fez referência.
Ademais disso; a casa de repouso onde a apelada vive fez chegar ao processo uma declaração onde atesta que aquela se encontra a residir no lar, desde 10 de Março de 2010 (documento junto em 3.12.2021); ou seja, há quase uma dúzia de anos (!).
O curso do tempo, superior a uma década, é sintoma seguro de perenidade; com a virtude de arredar uma condição de transitoriedade (crível de superação) da não utilização em termos de residência, habitual e permanente.
Acresce a isto que se não provou que a apelada tenha vindo a manifestar vontade e desejo de voltar a casa ou que coloque a hipótese de regressar; como resulta do facto não provado, na sentença, dos obtidos da contestação.
Ou seja; a conclusão da sentença de que a apelada « [não afastou] até ao momento a vontade de voltar para a sua casa » aparenta-se precipitada, e pouco fundada; o agregado dos factos não o permite intuir, objectivamente, e com solidez bastante.
Provou-se – é certo – que a apelada tem voltado ao locado em épocas festivas (alínea l) dos factos provados).
Mas voltar ao locado « de vez em quando », como verbaliza a sentença, não basta para densificar o uso acomodado e corrente do inquilino em contrato de arrendamento habitacional.
A verdade é que o centro de vida da apelada já não radica no arrendado.
E nem a justificação das várias circunstâncias, obtidas também da contestação, de degradação da casa e carência de obras, para esse não uso, logrou convencer; como resulta, aqui também, do enunciado não provado da sentença final recorrida.
Em suma; em face das condicionantes físicas do espaço (sem elevador e situado no 3.º andar esquerdo; facto provado da alínea u)) e perante as apuradas circunstâncias pessoais, e próprias, da inquilina (tem 86 anos; é dependente; tem prótese da anca esquerda; factos provados das alíneas s) e t)), na falta de outra prova, não é possível chegar ao indício de uma probabilidade de regresso, que seja crível a partir de algum outro sinal, prenúncio ou circunstância.
Exactamente são aquelas condicionantes da casa que são susceptíveis de mostrar que o locado, outrora a residência habitual da apelada, já não satisfazem aquele que é agora o seu interesse como inquilina, já se não adequam àquele espaço como sua habitação permanente.
É certo que se prova a economia comum da apelada com a filha, as duas conviventes de há muitos anos no locado; e que a segunda mantém nele a sua residência habitual (factos provados das alíneas h), m) a p) e q), q), segmento final).
Mas a filha não é inquilina; é apenas um familiar, com direito especial.
Mas cuja faculdade cede logo que se demonstre a quebra contratual com a real arrendatária.
Na hipótese concreta, não se sinaliza indício de uma crível perspectiva de retoma de residência habitual da inquilina; sustento do contrato de arrendamento.
E, por isso, nem a excepção da alínea a), nem a da alínea c), do artigo 1072º, nº 2, do Código Civil, se podem ter por verificadas.
A dúvida, neste particular, desaproveita à apelada arrendatária.
Com o que, na falta de excepção, tendo os apelantes mostrado o não uso por mais de um ano, procedema acção e a apelação.
Conclusão a que, por fim, não obsta também o conhecimento de há mais de um ano, gerador da caducidade arguida na contestação – e que o tribunal a quo omitiu no seu julgado –; em face do notório carisma de facto continuado ou duradouro, que é próprio da situação de não uso (artigo 1085º, nº 3, do Código Civil).
III – Decisão
Por via do exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogar a sentença da 1.ª instância e, por consequência, em:
(1.º). declarar resolvido o contrato de arrendamento referente à casa do 3.º andar esquerdo, do edifício da ---, em Lisboa;
(2.º). decretar o respectivo despejo, condenando a inquina (apelada) a entregar aos senhorios (apelantes) a referida casa.
As custas da acção e da apelação são encargo da apelada, porquanto vencida em ambas (artigo 607º, nº 6, do Cód. Proc. Civil).
Lisboa, 4 de Novembro de 2025 Luís Filipe Brites Lameiras Luís Filipe Pires de Sousa Carlos Oliveira