REFORMA DE ACÓRDÃO
RECLAMAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DE CONVENÇÃO COLECTIVA DE TRABALHO
CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO
NULIDADE DE CLÁUSULA
VIOLAÇÃO DE LEI
NORMA IMPERATIVA
Sumário


I. Se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma, sem necessidade de mais indagações.
II. Para decidir qual deveria ser a qualificação a atribuir às Autoras na sequência do facto ilícito de que foram vítimas, o Tribunal não podia deixar de interpretar o acordo de empresa e as cláusulas respeitantes à categoria e à carreira.
III. Se no decurso desse labor interpretativo o Tribunal chegar à conclusão de que cláusulas do referido acordo de empresa são nulas, não está impedido de afirmar essa nulidade e de dela retirar as devidas conclusões, pela existência no Código do Processo de Trabalho de uma ação de anulação e interpretação de cláusulas de convenções coletivas de trabalho, tanto mais que a nulidade é de conhecimento oficioso.
IV. Interpretadas as cláusulas da convenção e apurado o seu sentido que flui diretamente da sua letra concluindo que as mesmas violam norma legal imperativa que consagra o princípio da igualdade entre contratados a termo e contratados sem termo, a ora Reclamante foi alertada para a possibilidade da declaração de nulidade de tais cláusulas, com as consequências legais que não podia ignorar e que efetivamente não ignorou, pelo que não existe qualquer violação do seu direito de defesa.
V. A interpretação de um acordo de empresa português e das consequências da violação por este de uma norma legal imperativa nacional não justificam qualquer reenvio prejudicial, pelo que não houve nesta sede qualquer omissão de pronúncia.
VI. A autonomia negocial coletiva, constitucionalmente consagrada, não é ilimitada e não pode pôr em causa princípios fundamentais e normas legais imperativas.

Texto Integral


Processo n.º 8882/20.3T8LSB.L1.S1

Acordam em Conferência no Pleno da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

TAP – Transportes Aéreos Portugueses, S.A. veio arguir e requerer a nulidade e a reforma do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência proferido a 11.12.2024, ao abrigo do disposto nos artigos 613.º n.º 2, 615.º n.º 1 e n.º 4, 616.º n.º 2, 666.º e 685.º do Código de Processo Civil ex vi artigo 77.º do Código de Processo do Trabalho.

As Autoras, AA e Outras, vieram exercer o seu contraditório. Vieram, ainda, pedir que a Ré e Reclamante fosse condenada como litigante de má fé nos termos do artigo 547.º n.º 2 do Código de Processo Civil e “condenada ao pagamento de multa nunca inferior a 100UC e ao pagamento de indemnização às AA pelos gastos por estas incorridos, que não são ainda determináveis ao dia de hoje”.

A Reclamante respondeu.

Começando a análise pelo pedido de reforma do Acórdão este funda-se na alegada existência de “erro grosseiro, evidente e incontroverso” (n.º 207 da Reclamação) que decorreria da “aplicação claramente incorreta dos cânones hermenêuticos previstos no artigo 9.º do CC” (n.º 211), já que o AUJ recorreu exclusivamente ao elemento literal e “é pacífico e inequívoco que o intérprete-aplicador tem um dever de esgotar todos os critérios interpretativos que estejam ao seu alcance, mesmo que o elemento literal aparentemente pareça apontar num único sentido” (n.º 218 da Reclamação).

Respondendo dir-se-á que, como ensina BAPTISTA MACHADO, o texto é o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe uma função negativa, a de “eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio ou pelo menos uma correspondência ou ressonância nas palavras da lei”, mas também uma função positiva, que é, desde logo a seguinte: “se o texto comporta apenas um sentido, é esse o sentido da norma”. É precisamente o que sucede aqui com a “CAB 0 (contratos a termo”): resulta do teor literal da norma, sem necessidade de mais indagações, que se trata de uma categoria para contratados a termo1.

Não se deve, por conseguinte, recorrer aos outros cânones hermenêuticos para, no limite, ter o escrito como não escrito.

Improcede, pois, o pedido de reforma.

O Acórdão objeto da presente Reclamação começa por definir assim o seu objeto:

“A questão que se discute no presente recurso é a de determinar as consequências da conversão de contratos a termo em contratos por tempo indeterminado por força da invocação pelo empregador de uma motivação que não era justificação suficiente, da perspetiva legal, para a aposição de um termo resolutivo ao contrato de trabalho. Sendo ilícita a contratação a termo, os trabalhadores têm direito a que seja reposta a situação em que estariam se desde o início da relação contratual tivesse sido assumido que a sua relação contratual era por tempo indeterminado. A este propósito importa, desde logo, determinar qual teria sido a sua qualificação em termos de categoria, a qual, de resto, nos termos da contratação coletiva aplicável, está associada a uma certa retribuição.”

E é precisamente a esta questão que se dá a resposta:

“Concedida a revista, condenando-se a Ré a integrar as Autoras nos seus postos de trabalho como tendo sido admitidas desde o início da respetiva relação contratual com a categoria CAB 1, processando-se a partir daí a evolução na categoria em conformidade com o Acordo de Empresa e condenando-se igualmente a TAP a pagar às Autoras todas as diferenças salariais devidas quer a título de salário base, quer de ajudas de custo, verificadas em virtude da sua errada integração nas categorias de CAB Início e CAB 0, ao invés da categoria de CAB 1, a contar desde o início dos seus respetivos contratos de trabalho, montantes que deverão ser calculados pelas instâncias, sem prejuízo da eventual necessidade de um incidente de liquidação”.

Como se vê, o Tribunal não se alheou da resposta à questão que lhe foi colocada, como pretende a Reclamante (n.º 169 da Reclamação; cfr. também o n.º 20: “O Tribunal demitiu-se (…) do seu dever de resolver o conflito jurisprudencial que lhe foi trazido pelas Partes, proferindo uma decisão distinta da concreta questão que lhe foi submetida”) e respondeu-lhe expressamente decidindo que as Autoras devem ser tratadas (inclusive para efeitos retributivos) como tendo sido admitidas desde o inicio da respetiva relação contratual na categoria CAB 1.

Para decidir qual deveria ser a qualificação a atribuir às Autoras na sequência do facto ilícito de que foram vítimas, o Tribunal não podia deixar de interpretar o acordo de empresa e as cláusulas respeitantes à categoria e à carreira, tal como tinham feito as instâncias quer no Acórdão recorrido, quer no Acórdão fundamento. E não estaria, decerto, impedido de o fazer por estar prevista no Código de Processo de Trabalho uma ação de anulação e interpretação de cláusulas de convenções coletivas de trabalho (artigos 183.º e seguintes do CPT). Aliás, ao exercer o contraditório que foi aberto, para evitar decisões surpresa a respeito da (então eventual) decisão sobre a nulidade das cláusulas da convenção coletiva, a ora Reclamante afirma expressamente que “constitui o objeto principal do presente processo a interpretação das Cláusulas 4.ª e 5.ª do Regulamento da Carreira Profissional de Tripulante de Cabina (“RCPTC”), anexo ao Acordo de Empresa celebrado entre a TAP e o SNPVAC, publicado na 1.ª Série do Boletim do Trabalho e do Emprego (“BTE”) n.º 8 de 28.02.2006 (“AE”)” (n.º 1 da resposta).

Ora, caso o labor interpretativo do Tribunal conduza, como conduziu, à verificação de que uma cláusula da convenção viola norma legal imperativa não está o Tribunal impedido de declarar a nulidade dessa mesma cláusula, tanto mais que a nulidade é de conhecimento oficioso para os Tribunais.

O facto de a lei prever uma ação para que qualquer interessado obter por exemplo a anulação de uma cláusula de uma convenção, não afasta que um Tribunal possa declarar a nulidade de uma cláusula quando tal é instrumental para decidir da questão que lhe foi colocada, a saber qual a categoria a atribuir às Autoras. Não houve, pois, nesta matéria, qualquer excesso de pronuncia pelo Tribunal, contrariamente ao que se pretende na Reclamação.

O Tribunal chegou à conclusão de que “da letra das cláusulas decorre, sem margem para dúvidas, que as categorias CAB início e CAB 0 foram concebidas para contratados a termo e determinam a sua evolução salarial”. Trata-se de uma interpretação, não havendo que confundir o plano do direito e o plano dos factos.

Não colhe, por isso mesmo, o argumento esgrimido na Reclamação de que o Tribunal teria aditado um novo facto à matéria provada em contradição com a matéria de facto provada nas instâncias (n.º 147 da Reclamação). E isto porque o Tribunal da Relação deu como não provado ser prática da Recorrida integrar todos os trabalhadores contratados por tempo indeterminado na categoria CAB-1 (n.º 145 da Reclamação).

Em primeiro lugar, sublinhe-se que de um facto não provado não pode inferir-se o oposto. Mas, e sobretudo, afirma-se no Acórdão recorrido:

“Devendo a parte normativa da convenção coletiva ser interpretada recorrendo aos mesmos critérios hermenêuticos a que se lança mão para interpretar a lei, a letra da cláusula assume uma importância determinante, como ponto de partida e limite da interpretação, carecendo, em princípio, de relevância o modo como a cláusula foi interpretada pelas partes da convenção coletiva (ao contrário do que sucederia na interpretação de um contrato em que se pode atender ao modo como o contrato foi executado)”.

Ou seja, ao interpretar as cláusulas como criando categorias para contratados a termo não se está a fazer qualquer asserção no domínio dos factos provados e não se está a afirmar o facto de que só contratados a termo tenham integrado estas categorias.

As cláusulas 4.º n.º 3 – ao referir-se a “[o]s tripulantes de cabina contratados a termo (CAB início e CAB 0) – e 5.ª n.º 1 (“CAB início a CAB 0 (contratados a termo)” foram criadas, concebidas para contratados a termo e tal conclusão não é afastada mesmo que porventura alguns contratados sem termo tenham sido contratados com esta categoria. E sublinhe-se que não está em jogo qualquer “assunção factual sobre a motivação das partes” (n.º 151), mas apenas um modo de exprimir que tais categorias eram categorias para contratados a termo, pelo que não há aqui nem qualquer excesso de pronúncia, nem violação do juízo de facto operado pelas instâncias.

A Reclamante invoca também uma nulidade por omissão de pronúncia que resultaria deste Tribunal não ter procedido a um reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça.

Como se pode ler, por exemplo, no parágrafo 33 do Acórdão do Tribunal de Justiça proferido a 6 de outubro de 2021, no processo C-561/19, Consorzio Italian Management, Catanis Multiservizi SpA contra Rete Ferroviaria Italiana SpA, “segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso jurisdicional de direito interno só pode ser isento desta obrigação quando tenha constatado que a questão suscitada não é pertinente ou que a disposição do direito da União em causa foi já objeto de interpretação por parte do Tribunal de Justiça ou que a correta interpretação do direito da União se impõe com tal evidência que não dá lugar a nenhuma dúvida razoável”.

Por seu turno, no parágrafo 41 do Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça a 9 de setembro de 2015, processo C-160/14, BB e o., contra Estado Português pode ler-se que “a simples existência de decisões contraditórias proferidas por outros órgãos jurisdicionais nacionais não pode constituir um elemento determinante, suscetível de impor a obrigação enunciada no artigo 267.°, terceiro parágrafo, TFUE”, acrescentando-se no parágrafo 42 “o órgão jurisdicional de última instância pode entender, não obstante uma interpretação determinada de uma disposição do direito da União efetuada por órgãos jurisdicionais inferiores, que a interpretação que se propõe dar à referida disposição, diferente da que foi feita por aqueles órgãos jurisdicionais, se impõe sem dar lugar a qualquer dúvida razoável”. Como é sabido, não era o caso na situação concreta decidida por este Acórdão já que as dúvidas jurisprudenciais incidiam sobre um conceito de direito europeu – a transmissão de unidade económica – altamente controverso, não apenas na jurisprudência nacional, mas também na jurisprudência de outros Estados Membros.

E no caso vertente?

Interpretadas as cláusulas da convenção e apurado o seu sentido que flui diretamente da sua letra há que concluir que as mesmas violam norma legal imperativa que consagra o princípio da igualdade entre contratados a termo e contratados sem termo.

Tal norma representa a transposição de um princípio do direito europeu que o Tribunal de Justiça teve já ocasião de afirmar que é um princípio fundamental da ordem jurídica europeia, princípio que não deve ser interpretado restritivamente, não se justificando a sua violação por esta ter sido realizada por uma convenção coletiva. Estas conclusões são pacíficas ao nível do direito europeu, não se vislumbrando a seu propósito qualquer necessidade de um reenvio.

Acresce que a controvérsia na jurisprudência nacional a que a Reclamante faz referência não respeita ao direito europeu, mas à interpretação da convenção coletiva e às consequências da ilicitude do termo invocado pelo empregador na contratação a termo com a consequente conversão ope legis dos contratos a termo em contratos sem termo.

Não faria decerto qualquer sentido fazer um reenvio prejudicial sobre a interpretação das convenções coletivas em Portugal ou sobre as consequências no nosso direito interno da violação de uma norma legal imperativa por uma convenção coletiva.

E é disso que se trata aqui: as Diretivas, segundo o entendimento dominante e tradicional, não têm aplicação direta e imediata nas relações entre particulares, sendo necessária a sua transposição pelos Estados Membros acompanhada de medidas eficazes de reação à sua violação.

No nosso ordenamento, no caso dos autos, temos uma cláusula de um acordo de empresa que viola uma norma legal imperativa. Já segundo as regras do direito civil tal cláusula seria nula – por força do princípio da conservação dos negócios jurídicos e porque não há quaisquer indícios de que as partes da convenção não a desejassem celebrar sem a referida cláusula manter-se-ia o restante clausulado.

Em direito do trabalho a solução é similar, sendo que no caso de a cláusula representar uma discriminação a lei vai mesmo mais longe, como se dirá infra.

Em suma, e como se pode ler por exemplo no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido no processo n.º 1560/11.6TVLSB.L1.S1-A de 11-05-2017 (Relator Conselheiro Pinto de Almeida), publicado no Diário da República, I.ª Série, de 06-07-2017, pp. 3400-3411, “[a]s cláusulas dessas convenções [as convenções coletivas]que contrariem normas imperativas são nulas, por contrárias à lei, nos termos do art. 280º do CC; sendo nulas, essas cláusulas não vinculam trabalhadores e empregadoras abrangidos por elas, não produzindo efeitos”.

É, pois, desnecessário, fazer qualquer reenvio ao Tribunal de Justiça e não se verifica qualquer omissão de pronúncia.

Sublinhe-se, também, que se torna desnecessário lançar mão do princípio da interpretação conforme. Em todo o caso, tendo em atenção que o princípio da igualdade de tratamento dos contratados a termo é um princípio fundamental do direito da União, tal conduziria a que se justificasse uma interpretação que conduzisse a uma sanção particularmente eficaz como sucede, precisamente, com a nulidade da cláusula da convenção coletiva violadora de tal princípio.

A Reclamante invoca, igualmente, a prolação de uma decisão surpresa (números 173 e seguintes da Reclamação), afirmando que “o conteúdo do despacho de 15.10.2024 não permitia (…) às Partes antever o real e efetivo alcance do que viria a ser mais tarde considerado no Acórdão, condicionando, deste modo, o seu exercício ao contraditório, pois em nenhum momento foi explicitamente indicado que o Tribunal iria, em sede de decisão final proferir Acórdão no sentido de desconsiderar as categorias CAB início e CAB 0 do plano de carreira” (n.º 178), o que acarretaria, igualmente, a nulidade do Acórdão à luz do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC.

O teor do despacho mencionado era o seguinte:

“Para garantir o contraditório e evitar “decisões surpresa” dá-se às Partes a possibilidade de no prazo de dez dias se pronunciarem sobre a seguinte questão:

A cláusula 5.º do Regulamento da carreira profissional de tripulante de cabina em anexo ao AE entre a TAP-Air Portugal, S. A., e o SNPVAC Sind. Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil, publicado no BTE n.º 8, de 28.06.2006, no segmento em que se refere a CAB início a CAB 0 para contratados a termo parece violar o artigo 4.º n.º 1 do Acordo-Quadro CES, UNICE e CEEP relativo a contratos de trabalho a termo que faz parte integrante da Diretiva 1999/70/CE.

O princípio de que os contratados a termo não devem, só por esse facto, ser tratados de modo menos favorável que os contratados sem termo constitui, segundo a jurisprudência do TJUE um princípio de direito social da União que não pode ser interpretado de modo restritivo (ver entre outros, Acórdão do TJUE proferido no processo C-677/16, n.º 41), sendo que a mera previsão em convenção coletiva da diferença de tratamento não é razão objetiva para essa diferença (n.º 56). A ser exata esta asserção a referida cláusula seria nula neste segmento.

Notifique-se às Partes.

15 de outubro de 2024”.

Antes de mais, sublinhe-se que qualquer jurista português conhece, ou deve conhecer, as potenciais consequências de uma declaração de nulidade.

Mas da leitura da resposta da Reclamante ao abrigo do contraditório que foi aberto pelo referido despacho, verifica-se que a Reclamante não só não foi prejudicada no seu direito de defesa, como efetivamente o exerceu, compreendendo perfeitamente o que podia estar em jogo.

Assim, pode ler-se na resposta que:

“A ser declarada a nulidade – o que não se concede e que apenas por cautela de patrocínio se equaciona – a mesma apenas poderá reportar-se ao segmento “contratados a termo”, acolhida no n.º 3 da Cláusula 5.ª do RCTPC, anexo ao AE de 2006” (n.º 17) e “[q]ualquer extensão do âmbito da nulidade, que extravase e, por absurdo, pretenda associar um tal vício à previsão dos escalões CAB-Início e CAB-0 acarretaria inevitavelmente a nulidade de toda a Cláusula e conduziria a resultados absurdos, contrários à autonomia negocial coletiva e injustamente penosos, porquanto esta jamais teria sido concluída sem a previsão de tais níveis salariais, ficando, por conseguinte, comprometida toda a sua coerência, consistência e unidade” (n.º 18).

Aliás, no douto Parecer do IDT junto aos autos pela Reclamante – e cuja junção se admitiu, apesar da oposição das Autoras, por estar ainda em causa o direito de defesa e o contraditório, e cujo conteúdo presumimos que a Reclamante conhece –, discute-se precisamente as consequências da nulidade, defendendo que “uma eventual nulidade parcial da norma não pode passar, pura e simplesmente, pela declaração de nulidade da cláusula 5.ª n.º 1, na sua globalidade ou na parte em que fala dos escalões CAB início e CAB 0, passando a existir, apenas, níveis e escalões salariais que se iniciam no escalão CAB 1, com supressão dos escalões CAB início e CAB 0” (n.º 53 do Parecer).

Ou seja, o que não se poderia prever face ao despacho, assim comprometendo o exercício do direito de defesa, foi expressamente previsto, tendo a Reclamante exercido na plenitude o seu contraditório.

A Reclamante invoca, depois, a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 136.º do Código do Trabalho de 2003 e do artigo 146.º, n.º 1 do Código do Trabalho de 2009 como legitimação para a modificação do sentido fundamental da Cláusula 5.ª n.º 1 do RCPTC anexo ao AE (cfr. números 189 e ss. da Reclamação). O Tribunal teria criado uma nova cláusula do AE onde passariam a existir oito categorias em vez das dez previstas, “iniciando-se o plano de carreira na categoria CAB 1” (número 190). Tal seria “inconstitucional, por violação do princípio constitucional da proporcionalidade, da autonomia negocial coletiva e do direito fundamental da Recorrida á livre iniciativa económica, consagrados nos artigos 18.º, 56.º n.º 3 e 61.º n.º 1 da Constituição” (número 205 da Reclamação).

No caso dos autos, temos uma cláusula de um acordo de empresa que viola uma norma legal imperativa. Já segundo as regras do direito civil tal cláusula seria nula e por força do princípio da conservação dos negócios jurídicos e porque não há quaisquer indícios de que as partes da convenção não a desejassem celebrar sem a referida cláusula manter-se-ia o restante clausulado. Recorde-se, aliás, que o nosso Código do Trabalho de 2009 vai substancialmente mais longe: no artigo 26.º prevê-se expressamente a substituição ope legis de disposição do IRCT contrário ao princípio da igualdade e da não discriminação por outra que não opere essa discriminação, solução legal que não se aplica apenas à igualdade de género, mas também a outros fatores de discriminação (artigo 26.º, n.º 3).

A autonomia negocial coletiva, constitucionalmente consagrada, não é ilimitada e não pode pôr em causa princípios fundamentais e normas legais imperativas.

Acresce que – o que a Reclamante nunca tem em consideração – que a atuação da Reclamante não consubstanciou, como pretende, o exercício da livre iniciativa económica nos limites da lei (números 201 a 203).

Com efeito, toda a questão em discussão no presente recurso surgiu na sequência da contratação a termo ilícita por falta de motivo justificador considerado bastante pela lei – o que não vemos como é que tal conduta possa ser qualificada de exercício da livre iniciativa económica nos termos da lei… – sendo que os trabalhadores têm direito a que seja reposta a situação em que estariam se desde o início da relação contratual tivesse sido assumido que a sua relação contratual era por tempo indeterminado. E também não se vislumbra em que é que a introdução no acordo de empresa de uma cláusula discriminatória dos contratados a termo corresponde ao “livre exercício da iniciativa económica nos termos da lei”.

Conclui-se, destarte, que o Acórdão objeto da presente Reclamação não padece de qualquer nulidade.

Na sua resposta as Autoras sublinham, certeiramente, que uma Reclamação não é um novo recurso e não se afigura o meio processualmente adequado e tempestivo para invocar questões de constitucionalidade que se traduziriam não em nulidades, mas em erros de julgamento.

Pedem, ainda, a condenação da Reclamante como litigante de má fé, invocando, desde logo, que a presente Reclamação é um expediente dilatório. Embora se deva reconhecer que um dos argumentos esgrimidos na Reclamação não é eticamente correto – a saber, a alegada “decisão surpresa” que teria prejudicado o exercício do direito de defesa e o contraditório quando é possível verificar que a Reclamante compreendeu perfeitamente o sentido da questão que lhe era colocada e exerceu plenamente o contraditório – não há elementos que permitam concluir que a Reclamante agiu dolosamente ou com negligência grosseira, pelo que não há que condenar a Reclamante como litigante de má fé.

Decisão: Acorda-se em indeferir o pedido de reforma e a reclamação.

Indefere-se, igualmente, o pedido de condenação da Reclamante como litigante de má fé.

Custas pela Reclamante.

Remeta-se certidão para publicação na 1.ª Série do Diário da República (artigo 687.º, n.º 5 do Código do Processo Civil).

Lisboa, 12 de março de 2025

Júlio Manuel Vieira Gomes (Relator)

Domingos José de Morais

José Eduardo Sapateiro

Albertina Pereira

Mário Belo Morgado

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1. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 13.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, p. 182.↩︎