O artigo 26º, nº1, do Regulamento (CE) n.º 1215/2012 (fora do domínio de situação de competência exclusiva de que trata o artigo 24º) estabelece em prioridade que é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça sem arguir a incompetência, caso em que se considera tacitamente aceite a respetiva jurisdição.
1. No âmbito da acção declarativa e processo comum que GULBENA–TÊXTEIS, S.A. moveu a LAINIÈRE DE PICARDIE BC, seguidos os demais trâmites, após a realização da audiência final, foi proferida sentença que culminou no seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, julgo: A. Parcialmente procedente o pedido formulado pela Autora,
a) Condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de 2.381.864,20 € (dois milhões, trezentos e oitenta e um mil, oitocentos e sessenta e quatro euros e vinte cêntimos), acrescida de juros, à taxa comercial, contados desde a data de vencimento de cada uma das facturas em dívida, até efectivo e integral pagamento;
b) Condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de 828.000,00 € (oitocentos e vinte e oito mil euros), acrescida de juros, à taxa comercial, contados desde a data da citação da Ré até efectivo e integral pagamento;
c) Condenando a Ré a pagar à Autora a quantia mensal de 231,00 € (duzentos e trinta e um euros), contada desde 12.06.2020 até efectiva recolha dos bens que lhe pertencem, acrescida de juros, à taxa comercial, contados desde a data da citação da Ré relativos aos valores vencidos até esta data, e contados desde cada um dos meses subsequentes relativamente a cada uma das quantias mensais seguintes à citação, ambos até efectivo e integral pagamento; d) Declarando o direito de retenção da Autora sobre a mercadoria correspondente às facturas n.º 322 de 16/06/2020 PROTECTION, 333 de 19/06/2020 PROTECTION e 366 de 22/06/2020 SANTÉ e sobre a matéria- prima entregue pela Ré ao abrigo do contrato, relativamente ao crédito no valor de 1.537.176,00 € (um milhão, quinhentos e trinta sete mil, cento e setenta e seis euros) e respectivos juros de mora, e ao crédito descrito na alínea c) do presente dispositivo.
B. Improcedente a parte restante do pedido formulado pela Autora, do qual se absolve a Ré. C. Improcedente o pedido reconvencional formulado pela Reconvinte, do qual se absolve a Reconvinda.»
2. Inconformada, a Ré interpôs recurso de revista excecional com o fundamento em contradição de jurisprudência, ao abrigo do disposto no artigo 672º, nº1, al) c do CPC, cujas conclusões se transcrevem no que ora releva:
«[…] «1.O acórdão recorrido, que veio confirmar na íntegra a sentença de 13.03.2023, incorre nos mesmos erros do Tribunal de 1.ª Instância: desconsidera o impacto que as máscaras defeituosas tiveram na confiança que a Lainière de Picardie depositava na Gulbena e no Grupo A..., e interpreta e aplica as regras da resolução contratual de forma manifestamente errada.
2. A posição adotada pelo Tribunal a quo é contrária à posição que este Supremo Tribunal de Justiça adotou, em caso idêntico, relativamente à mesmíssima questão, a saber: o direito (que nesse outro aresto foi expressamente reconhecido) de o dono da obra de resolver o contrato, por perda de confiança, em face do cumprimento defeituoso do contrato por parte do empreiteiro.
A interpretação e aplicação que o Tribunal a quo fez do regime previsto nos artigos 1220.º e seguintes do Código Civil no que que diz respeito ao direito à resolução, no âmbito de contrato de empreitada, decorrente de perda de confiança do dono da obra por cumprimento defeituoso pelo empreiteiro está em manifesta contradição com o acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, em 20 de janeiro de 2020, no processo n.º 18575/17.3T8LSB.L1.S1 (acima junto como Doc. n.º 1).
6. No caso em apreço, estava em causa contrato de empreitada celebrado entre duas entidades, tendo-se apurado que o empreiteiro cumpriu defeituosamente as suas obrigações, designadamente por ter executado obra com defeitos que a tornavam inadequada ao fim a que se destinava.
7. Mercê desse cumprimento defeituoso e da consequente perda de confiança no empreiteiro, o dono da obra resolveu o contrato. O empreiteiro, por seu lado, invocando a ilicitude da resolução, intentou ação declarativa de condenação em que peticionou a condenação do dono na obra no pagamento, entre outros, de indemnização pela desistência da empreitada.
8. A discussão que se seguiu incidiu sobre a licitude ou ilicitude da resolução do contrato de empreitada pelo dono da obra à luz do regime dos artigos 1220.º e seguintes do Código Civil, questão idêntica à que foi objeto de discussão e decisão nos presentes autos pelo Tribunal de 1.ª Instância e pelo Tribunal a quo.
9. No caso vertente, cabe recurso de revista, nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alínea C) do CPC, do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no âmbito do presente processo, porquanto: 1) o acórdão em causa confirma, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na primeira instancia; 2) está em contradição com outro já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação (capítulo do Código Civil que regula o contrato de empreitada) e sobre a mesma questão fundamental de direito (os direitos que assistem ao dono da obra numa situação de incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte do empreiteiro); 3) não foi proferido acórdão de uniformização de jurisprudência.[…] Os erros da Gulbena, nomeadamente a omissão da realização dos testes de lavagem, consubstanciam negligência tão grosseira que a Lainière de Picardie perdeu, em absoluto e justificadamente, a confiança na qualidade das máscaras fabricadas por aquela, o que, no contexto, mais a mais, de uma profunda crise sanitária, lhe conferia o direito de resolver o contrato, cessar as encomendas e não recolher mais mercadoria.
41. Sendo a resolução do contrato lícita, é evidente que tão pouco assiste à Gulbena qualquer direito a lucros cessantes.
42. Ao decidir como decidiu, confirmando a indemnização a favor da Gulbena, o Tribunal a quo cometeu mais um clamoroso erro de direito, violando o disposto nos artigos 798.º e 1229.º do Código Civil, e contrariou também, de forma flagrante, a jurisprudência deste Supremo Tribunal em casos semelhantes, espelhada no acórdão -fundamento.
43. O erro do Tribunal a quo é tanto mais grave – e dir-se-á até revoltante – quanto é certo de que, no acórdão recorrido, resulta igualmente confirmado que a responsabilidade pelo defeito das máscaras “Lainière Santé” recai sobre a Gulbena.
Condenar a Lainière de Picardie, parte não inadimplente que, em resultado da conduta culposa da Gulbena, sofreu avultadíssimos prejuízos, a pagar indemnização a esta última é verdadeiramente inusitado e só pode explicar-se por uma leitura chocantemente desatenta e superficial do caso. Por último, impõe-se igualmente a revogação do acórdão recorrido na parte em que condenou a Lainière de Picardie a pagar à Gulbena custos de armazenagem, já que, também aqui, resulta evidente a contradição entre o decidido no acórdão recorrido e o acórdão -fundamento, sendo notório que a posição do primeiro afronta as regras da empreitada e o direito geral das obrigações, por contraposição com a jurisprudência firmada pelo segundo, que se afigura consentânea com os referidos regimes legais.»
3. Neste passo da instância, a recorrente arguiu a excepção da incompetência absoluta dos tribunais portugueses para dirimir o presente litígio.
Alegou a existência de um pacto privativo de jurisdição que obrigaria as partes a recorrer exclusivamente ao tribunal francês de Amiens, no Departamento de Somme (cfr. ponto 21. do requerimento).
Para sustentar a sua validade, alegou que o pacto constituiria uma das condições gerais aceites pela aqui recorrida por intermédio do Senhor AA, que operaria como agente da Gulbena - Têxteis, S.A.
A Autora e recorrida insurgiu-se com veemência, pugnando pela improcedência da excepção e reclamando a condenação da Ré como litigante de má-fé.
A dedução do incidente potenciou a amplificação do processado com sucessivos requerimentos cruzados de resposta e contra - resposta, de leitura tortuosa, que extravasam manifestamente o exercício do contraditório.
4. Seguiu-se a decisão singular cujo teor se transcreve no relevante:
«[..]2.Seja como for, e na ordem lógica de apreciação das matérias submetidas a este tribunal, cumpre conhecer da excepção da incompetência absoluta, por alegada violação de pacto de jurisdição, que a Ré recorrente vem suscitar por via incidental.
A natureza eminentemente pública das infrações às regras da competência absoluta constante dos artigos 96.º a 101.º do CPC, com destaque, no que aqui releva, à oportunidade da invocação.
A incompetência absoluta do tribunal constitui um pressuposto processual que visa a proteção de normas de ordem pública, como a boa administração da justiça e o acerto da decisão infração de regras de competência internacional, que justifica uma sanção mais enérgica, que reforça a garantia da observância das regras de competência absoluta .
Nesse particular, de acordo com o disposto nos artigos 96º al) a) e 97º, nº1 do CPC, a violação do pacto de jurisdição determina a incompetência absoluta do tribunal, que não sendo do conhecimento oficioso da violação, as partes têm o impulso da sua arguição até ao trânsito em julgado da decisão .
Admite-se, pois, que a arguição e declaração ocorra em fase de recurso, o que representa uma limitação ao princípio da preclusão ; e por outro, a admissibilidade de recurso com o fundamento da incompetência absoluta, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, conforme dispõe o artigo 629, nº2, al) a do CPC. Dito isto, a situação em apreciação.
Desde logo, a aceitação do pacto de jurisdição a que se faz alusão, consubstanciaria a violação de um princípio fundamental da agência, a atender à alegação da recorrente-AA, instado para manifestar a sua concordância relativamente às mencionadas condições gerais, responde "Eu não as li, mas sim. Podem avançar!" (ponto 14. —.
Ora, nos termos do art. 6.º do Decreto-Lei n.º 178/86, de 3 de julho (alt.), que estabelece o regime jurídico do contrato de agência, "no cumprimento da obrigação de promover a celebração de contratos, e em todas as demais, o agente deve proceder de boa fé, competindo-lhe zelar pelos interesses da outra parte e desenvolver as actividades adequadas à realização plena do fim contratual", algo que nesta situação terá sido claramente ignorado, com potenciais consequências em matéria de responsabilidade contratual perante o principal.
Para além de que o instituto da representação aparente, trazido ao debate pela recorrente em suporte dos seus argumentos, teria uma aplicabilidade limitada neste caso, já que perante o facto conhecido (assumido) pela recorrente de o Senhor AA ter conscientemente concordado com um conteúdo relevante que não leu, suscitar-se-ia a hipótese do abuso de representação (cfr. art. 269.º do CC) e da correspondente ineficácia do negócio (cfr. art. 268.º do mesmo diploma) .
De todo o modo, indica a recorrida que no caso do proc. n.º 597/21.1T8GMR, apreciado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga e remetido pela recorrida aos presentes autos, também a recorrente invocou nos mesmos moldes a exceção da incompetência absoluta, tendo o tribunal despachado “(…) que se o réu é demandado nos tribunais de um Estado -Membro e aí comparece a defender-se sem suscitar, como podia, a incompetência dos tribunais desse Estado, nenhum interesse existe em inutilizar o processado e obrigar à instauração de nova ação nos tribunais de outro Estado, exceto nas situações que justificam a fixação de uma competência exclusiva.”
O simples facto de o requerido comparecer em tribunal e não arguir a incompetência do tribunal onde a ação foi proposta, optando por apresentar somente a sua defesa quanto ao fundo da causa, determina que a competência fique atribuída também a este tribunal, o qual, nessa altura e por reunião desses dois fatores, adquire competência.
Pelo exposto, concluímos pela improcedência da exceção dilatória da incompetência internacional invocada pela Ré, sem necessidade de maior desenvolvimento argumentativo. Custas do incidente anómalo e extemporâneo apresentado pela Ré, que se fixa em 5 UC. 7.Voltando, como se começou, à aferição do fundamento da revista excepcional – contradição de julgados.
Importa, pois, ajuizar da invocada “oposição jurisprudencial” entre o acórdão da recorrido e o acórdão fundamento, tirado pelo STJ, cuja manifesta falta de fundamento implica a rejeição liminar.
Nas suas alegações recursivas a ré LAINIÈRE DE PICARDIE BC, ora recorrente, Lanière de Picardie invoca em fundamento de admissibilidade da revista a contradição de julgados ; como acórdão fundamento o aresto do STJ de 21-01-2022 (que por lapso datou de 2020), proc. n.º 18575/17.3T8LSB.L1. S1 , com o seguinte sumário:
"I. — Em regra, o dono da obra terá o ónus de fixar um prazo adicional ou suplementar, de duração razoável, para que o empreiteiro elimine os defeitos da obra — e só desde que o empreiteiro não elimine os defeitos da obra dentro do prazo adicional ou suplementar fixado de acordo com o art. 808.º, n.º 1, do Código Civil, poderá resolver o contrato de empreitada. II. — Exceptuam-se os casos em que a eliminação dos defeitos se tenha tornado impossível, ou em que a eliminação dos defeitos se tenha tornado inútil, em que o empreiteiro declare que não eliminará os defeitos da obra ou em que, ainda que o empreiteiro nada declare, deva considerar-se que a continuação (subsistência) da relação contratual não é exigível ao dono da obra.
III. — Entre os casos em que a continuação (subsistência) da relação contratual não é exigível ao dono da obra estão aqueles em que há uma afectação irreversível da confiança do dono da obra na capacidade e na competência do empreiteiro para cumprir o contrato." Argumenta a recorrente estarem preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade -artigo 672.º, n.º 2, al. c) do CPC- ou seja, a contradição do acórdão recorrido com outro da Relação ou do Supremo, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
A contradição de julgados exige, de acordo com a densificação do Supremo Tribunal de
Justiça - (i) identidade da questão de direito sobre que incidiram os acórdãos em confronto, a qual tem pressuposta a identidade dos respetivos pressupostos de facto; (ii) oposição emergente de decisões expressas e não apenas implícitas; e, (iii) oposição com reflexos no sentido da decisão tomada.
7.1.Na sequência do que se deixou expresso em análise perfunctória, seguida da oportunidade adverbial de as partes se pronunciarem, confirma-se o juízo liminar de inexistência da alegada contradição com o alcance legalmente exigido.
A diferença que ressalta entre os arestos respeita ao diferente quadro factual que em concreto determina o juízo de avaliação do que entenda subsumir à alegada "afectação irreversível da confiança" entre as partes contratantes.
O acórdão fundamento trata da hipótese da resolução de uma empreitada, mobilizando na abordagem do problema o regime consagrado no Código Civil português, o que se verifica também, entre outros aspetos laterais, no juízo do acórdão recorrido, podendo assim dizer-se, no essencial, preenchidos os dois últimos pressupostos exigidos pelo legislador processual a este respeito.
A questão é que a contradição propriamente dita não se verifica, porquanto o acórdão fundamento, de 2022, com quadro casuístico diverso, tem o seu epicentro na resolução do contrato, legitimada por uma situação de perda de confiança que torna inexigível ao dono da obra a manutenção da relação contratual, mas uma perda de confiança, ou, como refere o sumário, uma "afectação irreversível da confiança do dono da obra na capacidade e na competência do empreiteiro para cumprir" (ponto III), que não decorre de uma falha seguida de correção possível e útil, como acontece no caso tratado no acórdão recorrido, mas de um "conjunto de não cumprimentos parciais [...][com] valor sintomático", como se lê no acórdão fundamento, ou de "sucessivos e gravosos incumprimentos", como igualmente aí se lê no excerto de um aresto invocado a propósito
Noutro caso, sobre venda de bem de consumo em desconformidade com o contrato, julgado em 2015 no Tribunal da Relação de Lisboa, fez-se referência à "sucessiva e expressiva verificação de anomalias [que podia, no caso,] ser encarada em si mesma como um facto autónomo radicado na repetição inaceitável das desconformidades do produto" (ponto II do respetivo sumário) . Uma "sucessão de múltiplas avarias num período inferior a dois anos", lê-se no acórdão do STJ que sobre aquele se pronunciou em sede de recurso.
O ponto está precisamente em saber qual a medida exigível para a referida "afectação irreversível da confiança" e a resposta só pode residir naquilo que resultar da ponderação do julgador sobre as circunstâncias do caso concreto, à luz do sentido do direito vigente.
No caso dos autos, no acórdão do Tribunal da Relação entendeu-se que o (único) vício sido sanado na sequência imediata da sua identificação, como aliás consta dos factos provados (e não alterados) n.os 49., 52. e 54., e a obrigação principal da autora seguido daí em diante sem defeito, pelo que julgou em consonância com o decidido em 1.ª instância, em cuja sentença se pode ler que "uma vez reparados os defeitos ou reduzido ao total da empreitada o valor da mercadoria defeituosa, não assiste à empreiteira direito à resolução do contrato".
E, sem curar neste momento de apreciar a bondade desta decisão, o que ressalta no confronto das duas decisões é como se disse, que a perda de confiança não poderá assentar numa ocasião isolada, ainda que com alguma gravidade (alguma, já que não pode afirmar-se, por não ter ficado provado, que as máscaras produzidas com defeito não fossem aptas a servir a finalidade de proteção a que estavam destinadas), particularmente, quando o sujeito responsável pela produção defeituosa atua com diligência razoável para eliminar o defeito e prosseguir com o cumprimento normal da obrigação que sobre ele impende.
A recorrente, na resposta que dá à notificação do art. 655.º do CPC, alega "incumprimentos sucessivos" (ponto 58.), no sentido de uma entrega de "sucessivos lotes de máscaras defeituosas" (ponto 59.) totalizando "aproximadamente 279.000 unidades" (ponto 62.).
Está provado, que 279 000 máscaras foram produzidas com defeito. Mas um mesmo defeito, ou um "mesmo erro" (ponto 66. da resposta da recorrente à notificação), de cuja denúncia a recorrida teve conhecimento apenas depois da produção e entrega daquelas unidades, corrigindo-o em seguida, conforme resulta dos factos provados.
Pelo que, a situação factual dos autos continua a evidenciar, neste ponto fulcral, diversa da situação que foi julgada no acórdão fundamento, em que se aprecia a suscetibilidade de configuração de causa de resolução, não de um cumprimento defeituoso que deve ter-se por unitário como o dos autos, mas de várias falhas parciais com o aludido "valor sintomático".
7.2.Doravante não ocorre divergência na interpretação dos preceitos legais ou do sentido decisório que corresponda à alegada contradição de julgados.
Em conformidade, dada a manifesta inexistência da invocada contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, visto o disposto nos artigos 652º, nº1, al) b ex vi 679º e 672, nº2, al) c do CPC, não se admite a revista.
8.A autora recorrida GULBENA – TÊXTEIS, S.A. veio, por sua vez, requerer a condenação da recorrente como litigante de má-fé, alegando em síntese que a atuação da recorrente neste domínio viola o dever de cooperação e tem apenas o propósito de entorpecer a marcha do processo.
A recorrente refuta em toda a linha a imputação da recorrida e, entende que em momento algum litigou de má-fé.
Analisando.
De acordo com o n.º 1 do artigo 542.º do CPC, «tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir». Segundo o n.º 2 do mesmo artigo, «diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão»
É conhecida a distinção entre má-fé material (ou substancial) e má-fé instrumental.
Seguindo ALBERTO DOS REIS o critério de distinção : «não pode ser senão este: o dolo substancial diz respeito ao fundo da causa, ou melhor, à relação jurídica material ou de direito substantivo; o dolo instrumental diz respeito à relação jurídica processual. No 1.º caso, o litigante usa de dolo ou má fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça. (...). No 2.º caso, a parte procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transação injusta» ”.
A verificação da figura da litigância de má-fé, como resulta do regime aplicável, conduz à aplicação de sanção processual, tendo por finalidade, de acordo com as circunstâncias, alcançar a cooperação dos particulares com os serviços judiciais, impor aos litigantes uma conduta que não prejudique a acção da justiça ou ainda assegurar o respeito pelos Tribunais.
8.1. No caso está em evidência o comportamento processual da Ré ao arguir a excepção da incompetência absoluta em fase de revista e já após a apresentação das suas alegações.
Cumprido que se mostra já o contraditório pela recorrente, no circunstancialismo sobre descrito, e os elementos adquiridos nos autos sobre a matéria, não podemos deixar de significar que a actuação da Ré não é conforme com as melhores e leais práticas de litigância.
A ré e aqui recorrente Lanière de Picardie BC, inconformada com as decisões desfavoráveis da 1.ª instância e da Relação, onde se apreciaram os contornos e vicissitudes da relação contratual estabelecida entre as partes, sem que em algum momento tenha sido arguida a exceção da incompetência absoluta (incompetência esta que decorreria de cláusula fixada nas condições gerais que articulavam o programa contratual escrutinado e que a recorrente, incrivelmente, diz ter perdido de vista até este momento), veio interpor recurso de revista excecional, direito seu, mas de efeito inadmissível pelas razões expostas, ao ser notificada sobre a apreciação preliminar da admissibilidade do recurso, surpreende, inovando e invoca a exceção da incompetência absoluta dos tribunais portugueses para conhecer do litígio.
Isto depois de permanecer a litigar por vários anos em torno de um contrato cujas condições gerais — como se disse, fundamento da referida arguição — diz ter descoberto só agora, contrariando, no mínimo, as mais elementares regras da experiência.
Ora, perante a sujeição à apreciação do tribunal desta questão, que não podia deixar de saber ser infundada, protelou o andamento regular da instância recursiva, procurando, quiçá delongar a execução do julgado pela recorrida.
É, pois, manifesto que, agiu com a negligência grave, ao deduzir pretensão que sabia não ter fundamento em face do desenvolvimento decisório da matéria em fase anterior e feito uso reprovável do processo – artigo 542.º a) e d) do CPC.
A sua actuação justifica, por isso, a condenação no pagamento da multa que se entende por ajustada de 10 UC - artigo 27.º, nº3, do Regulamento das Custas Processuais.
8.2.No que concerne ao pedido de indemnização deduzido pela recorrida, não se antolha, contudo, fundamento de danos que não existiriam se não tivesse existido a litigância de má-fé da comparte, pelo que improcede a pretensão compensatória da autora. »
5.A Ré recorrente, notificada da decisão da relatora veio apresentar reclamação nos termos do artigo 652.º, n.º 3 do CPC.
Pretende que em Conferência seja proferido acórdão no sentido favorável à sua pretensão, ou subsidiariamente, através do reenvio prejudicial para o TJUE sobre a correta interpretação do artigo 26.º, n.º1 do Regulamento (UE) n.º1215/2012; subsidiariamente, declarada a nulidade da decisão da não admissão da revista e, a revogação da condenação em litigância de má-fé.
A Autora em resposta pugnou pela improcedência da reclamação e reiterou o pedido de dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente.
II. Fundamentação
A. Os factos e incidências processuais a apreciar estão elencados no relatório B. Do mérito da reclamação
As questões a apreciar pelo Colectivo são as seguintes : i. se é de proceder a excepção da incompetência absoluta do tribunal, alegada a existência de pacto privativo de jurisdição ; ii. se a revista excecional interposta do acórdão da Relação é admissível ; iii. se a Ré não litigou ao arrepio dos princípios da cooperação e lealdade; iv. se no caso é de dispensar o pagamento da taxa de justiça remanescente.
Analisadas as peças em recurso, a par da argumentário da reclamação, não se identifica motivo para alterar a decisão singular, cujo sentido e fundamentação se acompanha.
1. Quanto à excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses por alegada violação do pacto de jurisdição, valem aqui os fundamentos da pronúncia singular para a improcedência.
Haverá ainda a sublinhar outra e precípua razão de natureza processual que obsta ao conhecimento da excepção no âmbito desta instância recursiva.
A acção em juízo move-se em torno da responsabilidade contratual (área comercial) e os litigantes são ambos sujeitos económicos sediados no espaço da União Europeia.
O artigo 26º, nº1, do Regulamento (CE) n.º 1215/2012 (fora do domínio de situação de competência exclusiva de que trata o artigo 24º) estabelece em prioridade que é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça sem arguir a incompetência, caso em que se considera tacitamente aceite a respetiva jurisdição1.
Por seu turno, o artigo 25º contempla a faculdade de as partes por acordo estabelecerem/ fixarem a competência de um tribunal de um Estado membro distinto do «domicílio» das partes (ou mesmo que as partes não residam ou tenham sede na União Europeia) para conhecerem os litígios emergentes de determinada relação jurídica, rectius, pacto atributivo de jurisdição, que prevalece sobre as regras de direito interno, nomeadamente os artigos 59º e 94º do CPC2.
Intentada no tribunal português a presente acção, cuja relação jurídica assume contornos transnacionais plurilocalizada3,decorre no funcionamento da norma adjectiva estabelecida no artigo 97º, nº1, do CPC, não se afigurar, em abstracto, de excluir a arguição da excepção da incompetência internacional por alegada violação de pacto de jurisdição, enquanto não houver trânsito em julgado da sentença, conforme consta da decisão em reclamação4.
Decorre ainda do artigo 37º, 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LSOJ) que compete à lei de processo fixar os factores de que depende a atribuição da competência internacional dos tribunais judiciais portugueses, e prevê também o artigo 38.º, nº1, que a aferição da competência internacional é efetuada com base nos factos alegados na petição inicial, pressuposto processual que se determina atendendo a como o autor configura o pedido e a causa de pedir; salvo os casos especialmente previstos na lei.
Aceitando-se, pois, que a alegação do pacto de jurisdição possa ocorrer em momento processual ulterior à propositura da acção, inclusive na fase de recurso, a definição da correspetiva base factual da matéria da excepção será da competência exclusiva das instâncias.
Daí ser de concluir, que a arguição da incompetência internacional no decurso da instância recursiva perante o Supremo, tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito ( com as ressalvas de excepção) está na dependência da matéria de facto correspondente provada nas instâncias - artigo 682º, nº1, do CPC.
A Ré afirma que as partes convencionaram atribuir aos tribunais franceses a resolução dos eventuais litígios por pacto de jurisdição, suportando-se em matéria de facto que alega ex novo nesta instância, e a qual não se encontra provada e também não obteve o consenso da Autora recorrida; ou seja, estamos perante um pressuposto processual - da competência dos tribunais portugueses - cujo âmbito e alcance factual se mostra controvertido.
Nos factos provados não se configura nenhum de onde resulte a existência de um pacto de jurisdição que atribua a competência aos tribunais franceses, além do alegado desconhecimento pela recorrente dos documentos e elementos que sempre exigiria actvidade probatória inconciliável com as atribuições do Supremo.
Pelo que, não tendo a Ré oportunamente arguido a alegada violação do pacto de jurisdição dos tribunais franceses, de acordo com o preceituado no artigo 26º do Regulamento 1215/2012, resultou a consolidação da competência internacional dos tribunais portugueses para a apreciação do mérito do litígio.
Por fim, não se deparou este tribunal com qualquer questão interpretativa a esclarecer sobre as normas do Regulamento (CE) n.º artigo 267.º, nº1, al) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
2. Quanto à rejeição liminar da revista excecional por manifesta ausência da alegada contradição de jurisprudência.
Corrobora-se que a análise comparativa do acórdão recorrido e o acórdão fundamento evidencia a manifesta ausência da contradição jurisprudencial eficaz para admissão da revista excecional; e assim sendo, cabendo ao relator a apreciação inicial do cumprimento dos ónus de alegação e motivação do fundamento invocado, a sua omissão ou deficiência implica, a rejeição liminar da revista tal como estatuído no artigo 672º, nº2, in fine al) c ex vi artigo 652º, nº1, al) b) e h) ex vi artigo 679º , todos do CPC.
3. Sobre a litigância da má-fé da Ré, resultado da censura do comportamento processual – alegando que somente agora tomou conta do pacto de jurisdição, não podendo ignorar que os referidos “Termos e Condições Gerais de venda”, que correspondem a um documento por si negociado e portanto do seu conhecimento, foram também por si juntas na acção que intentou contra a Autora ( e outros) no Tribunal de Comércio de Paris, e que por sua vez estão juntas nos autos com a réplica da Autora( a fls. 965v a 967 )desde 13.01.2021.
Em suma, impendendo sob as partes o dever de pautar a sua atuação processual por regras de conduta conformes à boa-fé, a Ré omitiu gravemente o dever de colaboração, invocando meios processuais cujo ausência de fundamento de facto não podia ignorar, protelando a marcha regular do processo e procrastinando o trânsito de julgado da decisão; justifica-se, por conseguinte, à sua condenação no pagamento da multa cominada.
4. Dispõe o n. º2 do artigo 529.º do CPC “a taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente e é fixado em função do valor e complexidade da causa, nos termos do Regulamento das Custas Processuais.”
De acordo com o artigo 6º, n.º 7, do Regulamento das Custas Judiciais, nas causas com valor superior a € 275.000 o juiz pode dispensar, total ou parcialmente, o pagamento do remanescente da taxa de justiça sempre que, atendendo às circunstâncias do caso, designadamente, à complexidade da causa e à conduta processual das partes, entenda que tal dispensa é adequada.
Conforme o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º1/2022,proferido em 10.10.2021 (Proc. 1118.16.3T8VRL-B.G1.S1-A), o pedido de dispensa do remanescente da taxa de justiça pode ser efectuado até ao trânsito em julgado da decisão, e vem sendo decidido, de modo reiterado, que na circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça conhecer do mérito do recurso, tem também competência para dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça quanto às instâncias5.
Na aferição da proporcionalidade da taxa de justiça, em conformidade com o artigo 6.º, n.º 7, do RCP, atende-se, entre outras, à complexidade da causa e à conduta processual das partes.
O processo revela as dificuldades expectáveis em litígios que envolvem empresas de vulto e relações contratuais complexas; os articulados, os factos apurados, e a documentação são de particular extensão, os temas de facto apresentam especificidade técnica e as questões de direito assumem alguma complexidade e a solução procedimental muito demorada; o comportamento processual da Autora ao longo do processo não desmerece os princípios da boa-fé, lealdade e da cooperação.
À acção foi fixado o valor de Euros 14.323.114.91.
Além dos montantes já satisfeitos, a Autora teria ainda a pagar de taxa de justiça remanescente, no cômputo da 1ªe 2ªinstâncias e Supremo, valor não inferior a cerca de Euros 250.000,00.
Na ponderação de todos os factores condicionantes da fixação da taxa de justiça, patente o grau elevado de complexidade da causa, a alocação inerente de recursos que mobilizou em cada uma das instâncias e no Supremo Tribunal, justifica-se a intervenção correctiva; dispensando a Autora do pagamento de 75% do remanescente da taxa de justiça devida em todas as instâncias.
III. Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a reclamação. As custas são a cargo da Ré reclamante.
Lisboa, 23.10.2025
Isabel Salgado (relatora)
Emídio Francisco dos Santos
Fernando de Oliveira Baptista
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1. Regulamento comunitário relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, (com as alterações decorrentes do Regulamento(UE) n.º 542/2014, de 15/05 e do Regulamento(UE) n.º 281/2015, de 25/02) e que veio substituir o Regulamento (CE) n.º 44/2001; o qual tem prioridade sobre as disposições do CPC.
2. No caso, o contrato corresponde a um quadro jurídico plurilocalizado, de natureza transnacional; observe-se que o legislador europeu explicou (no considerando 20 do preâmbulo do Regulamento n.º 1215/2012) que esta regra de conflitos de leis respeita tão só à “validade substantiva” do pacto de jurisdição. O conceito de invalidade substancial do art. 25.º do Regulamento n.º 1215/2012 deve interpretar-se em termos de não abranger a invalidade por violação das regras de competência interna e, designadamente, das regras de competência interna dos arts. 94.º, 95.º e 104.º do Código de Processo Civil- cfr. ACSTJ de 12.10.2023, proc 1558/22.9T8PNF.P1.S1., relator -Fernando Batista , membro do Colectivo, in www.dgsi.pt.
3. De acordo com o artigo 59.º do CPC que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.
4. Note-se que o artigo 25º do citado Regulamento 1215/2012 apenas tem por objecto a regulação dos requisitos de validade, formal e substancial, dos pactos de jurisdição celebrados entre as partes.
5 Cfr.inter alia, o Acórdão da Formação de 28.10.2022, proc. nº 537/19.8T8VNF-B.G1.S1 in www.dgsi.pt