RECURSO DE REVISTA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
FACTOS PROVADOS
FACTOS NÃO PROVADOS
MATÉRIA DE FACTO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
NOVA APRECIAÇÃO
DESCONHECIMENTO
ALTERAÇÃO
SEGMENTO DECISÓRIO
Sumário


A alteração do sentido decisório acolhido por este Supremo assentou na reavaliação da dinâmica do acidente que resulta da matéria de facto fixada, não sendo possível extrair juízo seguro sobre a(s) causas do acidente de viação.

Texto Integral

Acordam em Conferência os Juízes na 2ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

1. Notificado do acórdão proferido em 03.07.2025, veio a Ré Caravela apesentar reclamação com o amparo do disposto “ nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615.º, nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 616.º, no artigo 679.º, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 666.º, nos n.º 1, 2 e 3 do artigo 684.º, e no artigo 685.º, do CPC”, pedindo que seja declarada a nulidade do assim decidido, substituindo-se por acórdão que, tal como na segunda instância, absolveu a Ré recorrida.

Do requerimento, destaca-se em utilidade:

“ [..] De entre outras coisas, esse Venerando Supremo Tribunal de Justiça, neste Acórdão, altera todo o sentido probatório e toda a livre convicção formada(a)s, anteriormente, pelo Tribunal da Relação de Lisboa (Tribunal “a quo”). Não só, por exemplo, na questão da alcoolémia (do condutor do motociclo), como, também e ainda, na (sua) velocidade, e na falta de sinalização da manobra de ultrapassagem. Ou seja, no Acórdão ora reclamado mete-se em causa, repete-se, a matéria de facto provada, a prova e a livre convicção do julgador. Alterando-se, assim e dessa forma, o nexo de causalidade fixado, nas 2 (duas) anteriores Instâncias, para se decidir sobre 1 (uma) nova responsabilidade (divisão) na produção do acidente de viação objecto desta Acção declarativa de condenação, sob a forma…Em 1.º (primeiro) lugar, porque o Acórdão reclamado violou o disposto, o previsto e o estatuído no n.º 3 do artigo 674.º e no artigo 682.º do Código de Processo Civil (quanto à factualidade dada como provada e não provada pelas Instâncias anteriores, aos meios de prova, ali, produzidos e valorados, pelas mesmas, e à formação da livre convicção do julgador).Em 2.º (segundo) lugar, porque o Acórdão reclamado violou o disposto, o previsto e o estatuído na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil (já que não se pronunciou e decidiu sobre questão, cuja apreciação, pela relevância jurídica, seria, claramente, necessária para melhor aplicação do Direito).

Em suma, o Acórdão recorrido faz, apenas e tão só, 1 (um) novo julgamento da matéria de facto e, a partir daí, faz 1 (um) novo enquadramento jurídico….. Que, legalmente, estava impedido de o fazer, e cuja finalidade deste Recurso de Revista Excepcional não era essa (era outra)[..].”


*


Os Autores pugnaram na resposta pela improcedência da reclamação.

2. Em apreciação.

A Ré não se conforma com a revogação do acórdão da Relação, afirmando que o Supremo Tribunal empreendeu, para lá das suas competências, à alteração da matéria de facto e da convicção probatória vinda das instâncias sobre a culpa na produção do acidente estradal em juízo, em violação do disposto no artigo 674º, nº4 do CPC e extrapolando a matéria objecto da revista excecional tal como foi admitida.

Estabelece o artigo 616.º, n.º 2, al. a) do CPC, que, não cabendo recurso da decisão, é lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; significando que a oportunidade da sua aplicação pressupõe que se conclua que o tribunal cometeu um erro grosseiro, ostensivo que evidencia uma solução jurídica manifestamente ilegal1.

No caso, a reclamante insurge-se contra o acórdão, ao concluir -se que a realidade factual apurada não habilitava, a um tempo, a estabelecer a culpa exclusiva do condutor do motociclo, como decidiram as instâncias e, a outro, a atribuir a qualquer dos intervenientes a responsabilidade delitual pela ocorrência.

A motivação que determinou a alteração do sentido decisório acolhido por este Supremo, cremos, encontra-se explanada no aresto, e reside, apenas na avaliação autónoma da matéria de facto apurada sobre a dinâmica do acidente, que não coincidiu com a seguida pelo tribunal a quo e que ditou o diferente desfecho e solução jurídica do litígio.

Adquirido que o fim da revista excecional transcende a resolução do litígio entre as partes, visando salvaguardar a estabilidade do sistema jurídico globalmente considerado e a normalidade do processo de aplicação do Direito, parece incontornável que na correcta acepção da unidade do recurso de revista, apesar das duas vias, o tema decisório é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo ambos recursos ordinários conforme estabelece o artigo 627.º, n.º 2, do CPC.

Em outro ângulo, podendo objetar-se que a culpa assinalada em matéria de facto é da competência das instâncias, o seu apuramento em abstracto, na falta de outro critério, afere-se "pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso" (artigo 487º, n.º 2, do Código Civil) mobiliza a interpretação da norma, e, portanto, tarefa do Supremo enquanto questão de direito.

No apartado do objecto do recurso consta a este propósito no acórdão:

“ [..] Os recorrentes sustentam que o acidente não ocorreu por culpa exclusiva do condutor do motociclo, imputando responsabilidade por facto ilícito (culpa concorrente) ou pelo risco ao condutor da viatura segurada e, no limite, reclama a tutela das vítimas vulneráveis. Na medida em que a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (art. 487.º, n.º 2, do CC), o que constitui matéria de direito, o Supremo deve tomar conhecimento na revista.

Situando-se a apreciação do mérito do direito no âmbito da responsabilidade civil, implicará a reavaliação da matéria de facto na dupla vertente da causalidade do acidente e da causalidade dos danos [..]. E, mais adiante o enunciado das questões a decidir … A culpa dos intervenientes na produção do acidente; concorrência; a responsabilide pelo risco; A imputação pelos riscos inerentes à circulação do veículo; interpretação actualista do artigo 505º do CC; a doutrina e jurisprudência; A culpa exclusiva / culpa reduzida do lesado na relevância causal do acidente e a exoneração/contribuição da responsabilidade pelo risco do proprietário/detentor do veículo; A “vítima vulnerável” enquanto risco na circulação rodoviária; a jurisprudência do TJUE. [..] ( matéria cuja apreciação resultou prejudicada conforme também se explicitou)“[..] resultando a imputação do dano no âmbito da responsabilidade objectiva e firmada no risco, fica prejudicada a apreciação das questões suscitadas a jusante, qual seja concorrência entre a culpa do lesado e os riscos próprios do veículo para a produção do sinistro. Essa problemática não é já chamada à solução do caso em juízo. “

A solução jurídica assentou na síntese extraída a final que se transcreve : “ De acordo com os factos assentes, não é possível extrair juízo seguro sobre a(s) causas do acidente de viação;

Não se infere da matéria fundamento para a imputação de culpa na sua produção a qualquer dos intervenientes; ou que nas circunstâncias concretas pudesse(m) evitar ou minorar as consequências do sinistro;

Resultando da colisão dos veículos a morte do condutor da motorizada, não fica liberado o proprietário da outra viatura da obrigação de indemnizar os danos no âmbito da responsabilidade pelo risco inerente à circulação de veículos, prevista no artigo 505º do Código Civil; Nas circunstâncias apuradas fica comprometida a destrinça na medida de contribuição do risco de cada um dos condutores para o evento danoso, valendo a regra da repartição igual.”

Solução jurídica sobre a qual, não cabe mais a este tribunal pronunciar-se, esgotado o seu poder jurisdicional, como dispõe o artigo 616º, nº2, a) a ex vi 685º do CPC, tendo o acórdão se pronunciado em consonância com o objecto do recurso e no uso dos poderes cognitivos em matéria de direito.

3. Pelo exposto, julgam-se improcedentes as nulidades e a reforma do acórdão.

Custas a cargo do reclamante, fixando em 3UC a taxa de justiça.

Lisboa, 23.10.2025

Isabel Salgado (relator)

Maria da Graça Trigo

Emídio Francisco dos Santos

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1. Cfr. inter alia os Ac.STJ de 28.1.2021, proc. nº 214/17.4T8MNC.G1.S1 de 18.2.2021, proc. nº 709/12.6TVLSB.L1.S1, de 2.10.2025,17803/15.4T8LSB.L3. S1, in www.dgsi.pt.