I. A parte absolvida da instância por acórdão da Relação quando a sentença recorrida a tinha absolvido do pedido pode interpor recurso de revista do acórdão, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 631.º e no n.º 1, do art.º 671.º, do C. P. Civil.
II. O conhecimento oficioso da exceção da ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo e a consequente absolvição da instância da R/apelada pelo Tribunal da Relação decorrem do disposto no art.º 578.º, do C. P. Civil, e não violam o princípio dispositivo consagrado, entre outros, no n.º 1 do art.º 3.º e no n.º 1, do art.º 5.º, ambos do C. P. Civil.
Citada, contestou a R dizendo, além do mais, que pelo menos a partir de 1995, DD passou a estar integrado na vida da sociedade e a comparticipar na respetiva direção, que este tem a maioria do capital da sociedade e pedindo a improcedência da ação.
Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, julgando a ação improcedente e absolvendo a R o pedido.
Inconformados com essa decisão, os RR dela interpuseram recurso de apelação, pedindo a alteração da sentença em matéria de facto e a revogação da sentença e substituição por outra que declare que são os únicos acionistas da sociedade S..., S.A.., ou, assim não se entendendo, que a decisão recorrida seja substituída por outra que declare que os AA são titulares de 20,32% e 0,49% do capital social da sociedade S..., S.A.., respetivamente.
A) Vem o presente recurso de revista interposto sobre o acórdão proferido pelo tribunal “a quo” que, em conferência, manteve a decisão singular anteriormente proferida, decidindo revogar a decisão recorrida e abstendo-se de conhecer do pedido, ao abrigo do disposto nos artigos 30º, 33º, al. d) do nº1 do artigo 278º, nºs 1 e 2 do artigo 576º, al. e) do artigo 577º e artigo 578º, em absolver a Ré da instância, por se verificar a exceção dilatória da ilegitimidade, dada a preterição do litisconsórcio necessário passivo não suscetível, já nesta fase, de sanação ao abrigo do nº 2 do artigo 6º, al. a) do nº 2 do artigo 590º e, ainda, nº 3 do artigo 278º, todos do Código de Processo Civil.
B) A decisão singular anteriormente proferida ao acórdão recorrido que, em conferência, a confirmou, ao conhecer, em sede de recurso de apelação, da legitimidade das partes, entendendo que a situação dos autos configura uma situação de litisconsórcio necessário natural passivo, e, consequentemente, verificar a ilegitimidade enquanto exceção dilatória de conhecimento oficioso, importando a absolvição da Ré da instância nos termos legais, conheceu de uma questão nova, que não fora suscitada ou apreciada anteriormente nos autos, constituindo, por isso, uma verdadeira decisão surpresa.
C) Isto mesmo se retira da decisão singular em causa, quando nela expressamente se afirma, a página 26, o seguinte:
“Atendendo ao disposto nas disposições conjugadas dos artigos 33º, 278º, nº 1, al. d), 576º, nº 2, 577º al. e) e 578º do Código de Processo Civil, a ilegitimidade constitui uma exceção dilatória de conhecimento oficioso.
A questão que importa analisar é a de saber se ainda é possível ser conhecida, nesta fase de recurso, posto que se trata de questão nova que não foi suscitada ou apreciada em 1ª instância.” (sublinhado nosso).
D) Ora, dispõe o nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil que: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” (realces nossos).
E) A mencionada disposição legal consagra o princípio do contraditório na vertente proibitiva da decisão surpresa, mesmo que sobre questões de direito que sejam de conhecimento oficioso.
F) Desta forma, a decisão singular em causa, ao não ter convidado as partes a pronunciarem-se previamente sobre a uma questão nova de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, relativa à exceção dilatória da ilegitimidade, dada a preterição do litisconsórcio necessário passivo, violou manifestamente o princípio do contraditório plasmado no artigo 3º, nº 3 do Código de Processo Civil, consubstanciando-se numa decisão surpresa, legalmente proibida, e, por isso, nula de acordo com o previsto no artigo 195º, nº 1 do mesmo Código, o que expressamente foi arguido na reclamação para a conferência.
G) Ao invés de o acórdão recorrido ter julgado procedente, como devia, a invocada nulidade da decisão singular em causa, entendeu que se mostrava sanada a alegada omissão do cumprimento do contraditório através da prévia prolação de um despacho, em 06-05-2025, notificando agora as partes para querendo “exercerem o contraditório acerca da exceção de ilegitimidade constatada na decisão singular proferida”, como mero expediente processual, na tentativa de ultrapassar aquela questão.
H) De acordo com o disposto nos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em face das conclusões do recorrente, pelo que, para além do dever de apresentar a sua alegação, impende sobre o recorrente o ónus de nela concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – ónus de formular conclusões (artigo 63 9º, nº 1 do Código de Processo Civil), sob pena de rejeição ou indeferimento do recurso (artigo 641º, nº 2, al. b) do Código de Processo Civil).
I) No caso dos presentes autos, os recorrentes, em momento algum da sua alegação e conclusões, invocaram ou suscitaram a questão da legitimidade das partes, em particular a ilegitimidade da Ré, por eventual preterição de litisconsórcio necessário natural passivo.
J) Isto, para além de durante toda a marcha do processo em 1ª instância, não terem igualmente invocado essa questão e/ou suscitado o competente incidente de intervenção de terceiros (novas partes) com vista à modificação subjetiva da instância, nos termos dos artigos 261º e 316º e seguintes do Código de Processo Civil, nem tal questão ter sido suscitada oficiosamente pelo tribunal, nos termos dos artigos 6º, nº 2 e 590º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil.
L) Sendo que, quanto aos poderes de cognição do Juiz previstos no artigo 608º, nº 2 do Código de Processo Civil, no que respeita ao conhecimento oficioso de questões não submetidas pelas partes à sua apreciação, os mesmos encontram-se limitados à fase da sentença, não sendo aquela norma legal aplicável à fase de recurso em 2ª instância, segundo o disposto no artigo 666º, nº 1 à contrário, do mesmo Código.
M) Entendimento contrário constitui, com todo o respeito por diferente e superior opinião, uma violação clara do princípio do dispositivo (artigos 3º, nº 1 e 5º, nº 1 do Código de Processo Civil), sob pena de o Juiz se estar a substituir ao papel a desempenhar pelos mandatários judiciais das partes no processo.
N) Pelo que, parece curial concluir pela ilicitude do conhecimento da questão nova sobre a legitimidade das partes constante da decisão recorrida, com todas as consequências legais para o conhecimento e julgamento do recurso de apelação interposto.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. certa e muito doutamente sempre suprirão, deve o presente recurso de revista ser admitido, e, por conseguinte, ser revogada a decisão recorrida, com todas as consequências legais.
A) Os factos.
A. 1. A sentença julgou provados os seguintes factos:
1- Os Autores, durante os anos 80 do século XX, adquiriram, em momentos diferentes, três lotes de terreno destinados a construção urbana, sem qualquer edificação, sitos em ..., na freguesia da ..., concelho de ..., distrito de Faro, com vista à construção de uma unidade hoteleira (artº 1º da p.i.).
2- Após tais aquisições, o Autor desenvolveu nos aludidos imóveis um projeto de licenciamento, no âmbito do qual erigiu um edifício, por fases, que destinou à exploração hoteleira, sob a insígnia Hotel/Aparthotel D.. ......., atividade que foi iniciada, em nome individual, no final dos anos 80 e que assim se manteve até ao final do ano de 2005 (artº 2º da p.i.).
3- Os Autores começaram a ter problemas com o Fundo de Turismo (atualmente Turismo de Portugal) começaram, em princípios dos anos 90, por incumprimento no reembolso do capital mutuado (para a construção do hotel) e pagamento de juros a esta entidade, pelo que foi solicitado pelo Autor AA ao seu único filho, DD, que aceitasse que a exploração daquela unidade hoteleira passasse para o nome individual deste, tendo-lhe sido arrendado o imóvel onde funcionava o hotel, em 1995 (artºs 3º e 6º da contestação).
4- Desta forma, DD, em 1995, abriu atividade como empresário em nome individual nas Finanças para poder efetuar a exploração daquela unidade hoteleira, tendo passado igualmente a descontar para a Segurança Social (artºs 4º e 6º da contestação).5- Posteriormente, em 1998, o Sr. DD verificou que tendo passado a descontar para a Caixa Geral de Aposentações, via Caixa Geral de Depósitos, então a sua entidade empregadora, não seria necessário continuar a descontar também para a Segurança Social como empresário em nome individual, pelo que interrompeu a feitura desses descontos (artº 5º da contestação).
6- Desde os anos de 2001/2002, que DD começou a tratar dos e-mails relacionados com a atividade comercial daquela unidade hoteleira, por inabilidade do Autor AA para lidar com as novas tecnologias informáticas, nomeadamente a receber e a responder aos pedidos de informações, de preços, de grupos, reservas de Tour Operator, cancelamentos, alterações, troca de cartões, pedidos diversos, passando a tomar conta de todos os tipos de contratos envolvendo a negociação com as plataformas online Booking, Expedia, Hotelbeds, Airbnb, Homeaway, Odisseias, Hostelbooker's, Abreu, TPVBooking, Edigeo, entre outras; assim como com a criação da página do Hotel no T.O. (Tour Operator), fotos, conteúdos, descrições, mapas, preços, tipos de quartos, num trabalho, que apesar de feito à distância, lhe ocupava a totalidade do seu tempo disponível, fora da Caixa Geral de Depósitos (artº 12º da contestação).
7- No ano de 2005, o autor decidiu constituir uma sociedade por quotas em nome da qual viria a ser explorada a atividade hoteleira e para nome de quem se transmitiram os direitos de propriedade sobre os imóveis referidos em 1 destes factos provados e construções neles existentes (artºs 3º e 4º da p.i.).
8- No dia 22 de novembro de 2005, foi constituída a sociedade com a firma
S...., Lda. (cujo código de acesso à certidão permanente é ..32-..54-..61), cuja maioria do capital social (€ 3.750,00), ficou registada em nome de DD e do autor AA, que registou em seu nome uma participação minoritária, no valor de € 1.250,00 (artºs 4º da p.i. e 8º da contestação).
9- Tendo a exploração em nome individual de DD cessado apenas quando foi constituída a sociedade comercial ora denominada S..., S.A.., anteriormente S...., Lda., mediante a celebração entre ambos de um contrato de trespasse do referido hotel (artº 7º da contestação).
10- A gerência da sociedade ficou a pertencer ao autor AA (artºs 5º e 6º da p.i.).
11- Nessa altura, DD não praticava qualquer ato societário por sua própria iniciativa (artº 7º da p.i.).
12- DD tinha, à data, uma carreira bancária na Caixa ..., tendo estabelecido a sua vida familiar e profissional em Lisboa (...), mas deslocava-se ao Algarve para ver a família e indagava sobre a gestão da sociedade (artº 11º da contestação).
13- Em 2011, o A. decidiu transformar a sociedade numa Sociedade Anónima, pelo que, em 4 de abril de 2011, no seguimento de uma deliberação social tomada em 27 de fevereiro de 2011, foi registado um aumento do capital social da sociedade S...., Lda e, para tanto, foi indicado nessa transformação que teria havido suprimentos prestados pelo Sr. DD, a que se juntavam suprimentos prestados pelos autores (num valor correspondente a uma participação que viria a ser minoritária), sendo aumentado o capital da sociedade de € 5.000,00 para € 60.300,00, contando ainda com três novas entradas, de € 100 cada uma, de EE e FF, ao tempo mulher de DD, de modo a que a sociedade passasse a ser constituída por 5 acionistas, que viriam a compor o Conselho de Administração (artºs 8º e 9º da p.i. e 31º da contestação).
14- A sociedade passou, então, a ser uma Sociedade Anónima, com 12.060 ações de valor nominal de € 5,00 cada, ao portador, as quais foram atribuídas da seguinte forma:
- DD titular de 9.550 ações, representativas de 79,19% do capital social;
- AA titular de 2.450 ações, representativas de 20,32% do capital social;
- BB titular de 60 ações, representativas de 0,49% do capital social (artºs 10º da p.i. 14e º da contestação).
15- Esta composição e atribuição dos títulos das ações representativos do capital social da sociedade S..., S.A.. manteve-se, pelo menos, até 29 de março de 2019, constando das Atas da Assembleia Geral da mesma realizadas nos anos de 2014, 2015, 2016, 2017, 2018 até 29 de março de 2019, assinadas incluindo pelos aqui Autores (artº 15º da contestação).
16- A gestão da sociedade continuou a ser exercida pelo autor AA, Presidente do Conselho de Administração nos anos de 2011/2013, passando DD a possuir a qualidade de vice-presidente do Conselho de Administração, cargo que não exerceu sem ser com instruções do autor, embora a sociedade se pudesse legalmente vincular pela assinatura de qualquer um deles, conjunta ou isoladamente (artºs 11º da p.i. e 16º da contestação).
17- Relativamente aos mandatos subsequentes, nos anos 2014/2016 e 2017/2019, DD assumiu o cargo de Presidente do Conselho de Administração e o Autor AA assumiu o cargo de Vice-Presidente do Conselho de Administração (artº 17º da contestação).
18- No início do ano de 2017, em resultado da situação de saúde do autor AA (que, na sequência de uma doença vascular agravada pela Diabetes, foi forçado a amputar dois dedos do pé direito, o que lhe limitou a mobilidade) e uma vez que aquele já não conseguia relacionar-se cordialmente com os clientes e colaboradores, entrando em confrontos com os mesmos, DD passou a acompanhar permanentemente a gestão da empresa, deixando de residir na ... (Cascais) e passando a habitar em Lagos (artºs 12º da p.i. e 20º da contestação).
19- A partir de março de 2017, DD deixou o seu emprego na Caixa ..., em ..., rescindindo o seu contrato de trabalho por mútuo acordo, tendo-se mudado definitivamente para o Algarve, a tempo inteiro, para poder passar a gerir, por completo, a sociedade S..., S.A.., passando a descontar de novo, como administrador daquela, para a Segurança Social (artº 21º da contestação).
20- Desta forma, DD passou a intervir no dia-a-dia da empresa (artº 13º da p.i.).
21- Já a partir do início de 2011 DD tratava das questões que se relacionassem com tudo o que fosse tratado por meios eletrónicos, nomeadamente, negociar contratos da sociedade S..., S.A.. com fornecedores (tais como da prestação dos serviços de comunicações e do fornecimento de energia), quem tratava do mapa de reservas (mapa diário que indicava a posição do Hotel, em termos de quartos disponíveis), quem passou a assegurar o tratamento de reclamações de clientes, quem efetuava os pagamentos de salários, impostos, serviços, fornecedores, comissões, entre outros, utilizando para isso o homebanking da sociedade, que tinha duas contas em dois bancos: Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e Banco Português de Investimento (artº 19º da contestação).
22- Entretanto, com a publicação da Lei n.º 15/2017, de 3 de maio, que veio alterar os Códigos das Sociedades Comerciais e dos Valores Mobiliários, por passar a ser proibida a emissão de valores mobiliários ao portador (incluindo ações ao portador) a partir de 4 de maio de 2017, os autores decidiram converter as suas ações em ações nominativas e, em conjunto com DD, decidiram alterar a composição do Conselho de Administração da sociedade, passando a ter apenas um Administrador Único, cargo que ficou entregue a DD, passando DD a ser o Administrador Único da sociedade S..., S.A.. desde 29 de março de 2019, mediante deliberação social tomada nessa data e registada a 6 de abril de 2019, cargo que mantém até à presente data (artºs 14º e 15º da p.i. e 18º da contestação).
23- E foi também decidido titular em nome da ré a totalidade das ações da sociedade (artºs 17º e 18º da p.i.).
24- Assim, através das deliberações sociais tomadas na Assembleia Geral da sociedade S..., S.A.. realizada, em 29 de março de 2019, foi deliberada a conversão das ações da sociedade, ao portador, em títulos nominativos titulados pela Ré CC, primeira mulher do Autor AA e mãe do único filho deste, DD, conforme consta da ata número vinte e dois e do novo Contrato de Sociedade (artº 26º da contestação).
25- E a sociedade passou a vincular-se com a assinatura do administrador único, DD (artº 27º da contestação).
26- Na sequência desta assembleia, a sociedade viu o seu contrato de sociedade ser atualizado, ficando a totalidade das participações sociais em nome de uma pessoa em quem os AA. pensavam poder confiar e que não tivesse problemas com eventuais credores (artº 21º da p.i.).
27- Até esta altura, nunca a ré havia tido qualquer relação com a sociedade ou sequer com os bens imóveis onde esta desenvolvia a sua atividade (artº 19º da p.i.).
28- A ré CC vem mencionada na ata de Assembleia Geral da sociedade S..., S.A.. realizada, em 29 de março de 2019, na qualidade de acionista única, titular da totalidade das ações ao portador da sociedade, cujos títulos ali consta que exibiu (artºs 20º da p.i. e 28º da contestação).
29- A Ré tem vindo a ser mencionada como interveniente, na sua qualidade de acionista única da sociedade, em diversas assembleias gerais desta, designadamente as realizadas, em 30 de novembro de 2020 (artº 30º da contestação).
30- A qualidade da Ré como tendo passado a ser acionista única da sociedade S..., S.A.. foi ainda feita constar do Registo Central do Beneficiário Efetivo da sociedade, cuja declaração foi submetida, em 18 de abril de 2019, pelo Advogado Dr. GG, ilustre mandatário judicial dos Autores nestes autos (artº 29º da contestação).
31- A ré continuou a nunca praticar qualquer ato referente à sociedade, nada tendo a ver com a sociedade ou com qualquer intervenção no âmbito da sua atividade (artº 22º da p.i.).
32- Entretanto, DD, passou a administrar a empresa exclusivamente de acordo com as suas ideias e afastou completamente os autores de toda a operação da sociedade (artºs 25º e 26º da p.i.).
33- DD cancelou o acesso dos autores às contas bancárias tituladas pela sociedade, incluindo aos cartões multibanco da sociedade (artº 27º da p.i.).
34- Por outro lado, DD cessou a principal atividade da empresa (exploração hoteleira), encerrando o hotel/aparthotel e colocando à venda todo o património societário (artºs 28º e 29º da p.i.).
35- DD enviou os trabalhadores da sociedade para casa, cessando os respetivos contratos, modificou a propriedade horizontal dos prédios de que a sociedade era proprietária que, assim, passaram a ser constituídos por frações autónomas, as quais decidiu deixar de explorar turisticamente e que vendeu, para além de que vendeu as moradias e lotes de terreno pertença da sociedade e alterou a sede da sociedade, passando-a para o concelho de Lagos, para a morada da sua habitação (artº 29º da p.i.).
36- Os autores enviaram a DD e à ré, previamente à instauração da presente ação as comunicações que se encontram juntas, respetivamente, como documentos nºs 3 e 4 com a p.i., tendo obtido a resposta que consta dos documentos juntos com a p.i. com os nºs 5 e 6 (artº 48º da p.i.).
37- Em novembro de 2018, a sociedade S..., S.A.. tomou conhecimento através do então advogado daquela, Dr. HH, e posteriormente mediante a afixação de Edital de Venda emanado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Execução de Silves, que o imóvel onde estava instalado o Hotel D.. ....... iria ser vendido mediante propostas em carta fechada, para pagamento das dívidas contraídas pelos Autores junto Instituto de Turismo de Portugal (artº 22º da contestação).
38- A sociedade S..., S.A.., para tentar salvar a propriedade e a exploração da referida unidade hoteleira, apresentou no âmbito da referida execução uma proposta de aquisição daquele imóvel pelo valor de € 1.020.000,00 (um milhão e vinte mil euros), a qual veio a ser aceite e concretizada mediante título de transmissão passado em 14 de maio de 2019 (artº 23º da contestação).
39- Com vista a lograr conseguir a aquisição do referido imóvel, a sociedade S..., S.A.. teve de solicitar um financiamento bancário junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, no aludido montante de € 1.020.000,00 (um milhão e vinte mil euros), o qual veio a ser concedido e formalizado em 24 de abril de 2019 (artº 24º da contestação).
40- Porém, para poder realizar a escritura de mútuo com hipoteca e fiança com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Algarve, a sociedade S..., S.A.., para além de ter previamente de regularizar a situação da conversão das suas ações ao portador em ações nominativas, decorrente de imposição legal (Lei nº 15/2017, de 3 de maio e Decreto-Lei nº 123/2017, de 25 de setembro), teve ainda, e por exigência daquela instituição de crédito, de retirar o então executado e ora Autor AA da administração daquela sociedade, de forma a mitigar qualquer risco de eventual conflito de interesses na realização da operação de financiamento em causa tendo em consideração a finalidade da mesma (artº 25º da contestação).
41- A sociedade S..., S.A.., em março de 2019, apresentava dificuldades de tesouraria, fruto de uma dívida financeira contraída durante a gestão levada a cabo pelo Autor AA (no valor total de 2 milhões de euros), a que se somou uma Pandemia em 2020 com a paralisação do setor hoteleiro e a necessidade de contração de novos empréstimos para obter liquidez (artº 35º da contestação).
42- No final do ano 2021, caso não se tivesse dado início à venda do património da sociedade S..., S.A.. (lotes e moradias que circundavam o Hotel e o próprio Hotel), só a dívida bancária daquela sociedade atingiria os 2,1 milhões de euros, sendo que a sociedade, só em dívida bancária, pagava mais de 80.000 € anualmente, ou seja, trabalhava durante um ano inteiro para ir pagando juros e efetuar pequenas amortizações de capital, mas não lograva pagar a totalidade das dívidas (artºs 37º e 38º da contestação).
43- A venda do ativo da sociedade S..., S.A.. permitiu que esta liquidasse todo o passivo bancário existente, extinguisse os postos de trabalho de todos os trabalhadores efetivos da empresa pagando-lhes os vencimentos devidos, pagasse todas as restantes dívidas a fornecedores e ainda mantivesse um total de saldos bancários positivos, à data da contestação, de € 1.575.873 (artº 39º da contestação).
44- Nesta data, a sociedade S..., S.A.. tem a sua situação regularizada perante a Autoridade Fiscal e perante a Segurança Social, não existindo qualquer dívida a estas entidades públicas, contrariamente ao tempo em que a gestão era feita pelo Autor AA (artº 40º da contestação).
45- Em 2022, as contas da sociedade S..., S.A.. foram, pela primeira vez, certificadas sem reservas pela fiscalização a cargo da SROC (as contas tinham sido certificadas com reservas desde o seu início), reportando-se a uma situação retroativa aos anos de 2016 em diante até 2021(artº 41º da contestação).
46- Os atos de alienação de bens do ativo da sociedade por parte do administrador único DD encontram-se registados na contabilidade desta, tendo o produto desses atos, bem como as despesas a eles inerentes, integrado as contas da sociedade (artº 44º da contestação).
47- O cancelamento de acesso dos Autores às contas bancárias da sociedade S..., S.A.. deveu-se ao facto de, só no período de um ano, o Autor AA, atuando como se nada de grave se passasse na situação financeira da empresa, ter procedido ao levantamento de mais de € 40.000, isto para além de ter as despesas com os serviços de alarme da casa, com os serviços de televisão/net/voz, com os 2 telemóveis, com a aquisição de automóveis novos, incluindo seguros, portagens e impostos, todas pagas pela sociedade e ainda ser o Sr. DD quem paga a renda da casa onde os Autores habitam, não obstante estes terem uma reforma que ronda € 1.600 mensais (artº 36º da contestação).
i) A distribuição, em 2005, do capital social da sociedade comercial ora denominada S..., S.A.., anteriormente S...., Lda., deveu-se à vontade e proposta manifestada pelo Autor AA ao seu filho DD, como forma de o manter interessado na atividade comercial da mesma e de o património familiar continuar a pertencer maioritariamente nas mãos dos seus descendentes, evitando que o controlo daquela sociedade passasse para a alçada dos herdeiros da Autora BB, segunda mulher do Autor AA, em caso de falecimento deste (artº 9º da contestação).
ii) Nunca em situação alguma foi falado ou sugerido que DD seria um mero “testa de ferro” do pai, o Autor AA, papel que aquele jamais teria aceite desempenhar (artº 10º da contestação).
iii) Era pretensão dos autores, em 2017, recorrer novamente a DD para, formalmente, titular a totalidade das ações da sociedade, contudo este encontrava-se em processo de divórcio e receou que essa situação tivesse repercussões na subsequente partilha, caso passasse a integrar, mesmo de forma simulada, tal ativo (artº 16º da p.i.).
iv) Os comportamentos de DD consubstanciam um impedimento ao regular e normal funcionamento da sociedade que, sem rendimentos da exploração hoteleira, se vê seguramente impossibilitada de honrar os seus compromissos assumidos perante terceiros, correndo o risco de incumprir as suas obrigações com entidades bancárias, com a Autoridade Tributária, Segurança Social e trabalhadores, criando uma relação de absoluta dependência da venda de ativos (artº 31º da p.i.).
“Todos os artigos não mencionados acima não contêm quaisquer factos, mas apenas apreciações conclusivas, opiniões e/ou considerações sobre o aspeto jurídico da causa, sem cabimento no julgamento da matéria de facto.
Referimo-nos aos artigos 23º, 24º, 32º a 47º, 49º e 50º da p.i. e 1º, 2º, 31º a 34º, 42º, 43º e 45º da contestação.”.
O conhecimento deste Supremo Tribunal, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto da revista, é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2, 639.º 1 e 2, do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso), observando, em especial, o estabelecido nos art.ºs 682.º a 684.º, do C. P. Civil.
Atenta a conformação da revista, as questões submetidas ao conhecimento deste Tribunal consistem em saber se a) atento o disposto no art.º 641.º, n.º 2, al. a), do C. P. Civil, tendo a R/Recorrente sido absolvida da instância, não tem legitimidade/interesse em agir para recorrer do acórdão, não podendo a revista ser admitida, b) se o acórdão recorrido não podia conhecer da exceção da ilegitimidade tendo incorrido em violação do princípio do dispositivo consagrado nos art.ºs 3.º, n.º 1 e 5.º, n.º 1, do C. P. Civil.
Conhecendo.
1) A admissibilidade/inadmissibilidade da revista, se atento o disposto no art.º 641.º, n.º 2, al. a), do C. P. Civil, tendo a R/Recorrente sido absolvida da instância, não tem legitimidade/interesse em agir para recorrer do acórdão, não podendo a revista ser admitida.
Pretendem os Recorridos, em substância, que tendo a R/apelada sido absolvida da instância a mesma não tem legitimidade para recorrer do acórdão que proferiu essa absolvição mas, na delimitação desta questão, importa também referir, desde já, que a sentença objeto da apelação julgou a ação improcedente, absolvendo a R/apelada do pedido.
Vejamos, pois.
Como dispõe o n.º 1, do art.º 631.º, do C. P. Civil, “…os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido”.
Ora a Recorrente, sendo parte principal na causa, não ficou vencida uma vez que o acórdão recorrido a absolveu da instância, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, que jugou insuscetível de sanação, assim pondo fim a esta ação.
Dispõe o n.º 1, o art.º 671.º, do C. P. Civil que “Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.
Sobre o alcance desta norma, expendem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, que “…para a delimitação da revista, é de considerar o efeito processual que emana do acórdão recorrido”1.
O efeito processual que para a Recorrente decorre do acórdão recorrido é a extinção da instância e o fim desta ação.
O acórdão recorrido ao extinguir a instância quanto à R/apelada/recorrente constitui decisão que lhe é favorável pelo que, prima facie, perante o disposto nos art.ºs 631.º, n.º 1 e 671.º, n.º 1, do C. P. Civil, a Recorrente não poderia dela interpor recurso de revista.
Não obstante, como decorre do disposto no n.º 1, do art.º 279.º, do C. P. Civil, relativo ao alcance e efeitos da absolvição da instância, “A absolvição da instância não obsta a que se proponha outra ação sobre o mesmo objeto”2, ao contrário do efeito que decorre da absolvição do pedido, a qual, para além da extinção da instância, nos termos da al. a), do art.º 277.º, do C. P. Civil, decide definitivamente o litígio, impedindo a repetição da causa, como decorre do disposto n.º 1, do art.º 619.º, do C. P. Civil.
E é precisamente nesta divergência de efeitos entre absolvição da instância e do pedido que se situa o cerne desta questão, de inadmissibilidade/admissibilidade da revista.
Finda esta ação, por absolvição da R/recorrente da instância por não se encontrar acompanhada dos restantes intervenientes nos dois acordos simulatórios invocados nos autos, atento o disposto no n.º 1, do art.º 279.º, do C. P. Civil, sempre os AA/recorridos poderão interpor nova ação contra todos os intervenientes, entre eles a própria recorrida, assim dando cumprimento ao disposto, entre outros, no n.º 3, do art.º 30.º e nos n.ºs 1 e 2, do art.º 33.º, do C. P. Civil.
Diversamente, a improcedência da ação e a absolvição do pedido decretado pela sentença, transitando em julgado, fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, como determina o n.º 1, do art.º 619.º, do C. P. Civil, votando ao fracasso qualquer nova ação que venha a ser proposta contra a R/recorrente por operância da exceção do caso julgado, como previsto no art.º 577.º, al. i), 578.º e 580.º, do C. P. Civil, assim regulando o litígio relativamente à Recorrente em termos definitivos.
Não podemos, assim, deixar de concluir que, não obstante a absolvição da instância se configurar como uma decisão favorável à Recorrente, sendo-lhe ela menos favorável do que a absolvição do pedido decretada pela sentença e pretendendo a Recorrente, como pretende, que ao acórdão recorrido estava vedado conhecer da exceção de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo, que determinou a absolvição da instância, a mesma Recorrente tem a faculdade de interpor recurso de revista do acórdão, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 631.º e no n.º 1, do art.º 671.º, do C. P. Civil.
E assim sendo haverá que conhecer da questão suscitada pela Recorrente
Relativamente a esta questão importa, desde já, referir que a Recorrente invoca o princípio dispositivo, que é um dos princípios conformantes do nosso processo civil com um conteúdo e dimensão que o mesmo não comporta.
Com efeito, este princípio processual, consagrado, entre outros, no n.º 1 do art.º 3.º e no n.º 1, do art.º 5.º, do C. P. Civil, também invocados pela Recorrente, na sua delimitação positiva submete a intervenção do tribunal à ação/pedido e contradição/oposição das partes, impedindo o tribunal de se lhes substituir oficiosamente na iniciativa processual (n.º 1, do art.º 3.º), e impõe às partes litigantes a conformação factual essencial dos termos do litígio (n.º 1, do art.º 5.º), sem prejuízo neste caso de poder/dever de atender a outros factos não essenciais (n.º 2, do mesmo art.º 5.º).
Com esta delimitação positiva o princípio dispositivo comporta também uma delimitação negativa, desde logo, a inerente ao vetusto principio jura novit curia, consagrado no n.º 3, do art.º 5.º, do C. P. Civil, quando dispõe que “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” e que se reporta, no essencial, ao direito substantivo aplicável à decisão do litígio, mas também todas as outras limitações que decorrem do poder/dever do tribunal de condução da tramitação processual necessária à decisão do mesmo litígio em tudo o que não exige a ação/impulso das partes.
Integram este segundo grupo, de delimitação do princípio dispositivo pela negativa, grosso modo, todos os atos processuais que o tribunal deve praticar oficiosamente, sem impulso de qualquer das partes no litígio.
O conhecimento da exceção da ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo e a absolvição da R/apelada que a decisão sumária da Exm.ª Relatora decretou e o acórdão recorrido confirmou, como decorre do disposto no art.º 578.º, do C. P. Civil, é uma dessas ações processuais oficiosas que constituem poder/dever do tribunal, não violando, mas antes delimitando o princípio dispositivo invocado pela Recorrente.
E assim sendo, o acórdão recorrido e a decisão sumária que confirmou confrontados com as questões suscitadas na apelação constataram que o seu conhecimento se encontrava prejudicado por falta de um pressuposto processual necessário para o efeito, a saber, que do lado passivo da ação se encontrassem os outorgantes nos atos cuja declaração de invalidade foi pedida pelos AA e constatada pela R agora Recorrente e decidiram em conformidade, como não podiam deixar de fazer.
A revista não pode, pois, deixar de ser negada, nos termos expostos, assim se confirmando e mantendo o acórdão recorrido.
Pelo exposto, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando e mantendo o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente, que lhes deu causa, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2, do art.º 527.º, do C. P. Civil.
Lisboa, 23-10-2025
Orlando Nascimento (relator)
Isabel Salgado
Ana Paula Lobo
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1. Código de Processo Civil anotado, 2.ª ed., Vol. I, pág. 834.↩︎
2. A situação dos autos é assaz diversa da que estava em causa na decisão proferida pelo Exm.º Vice-Presidente da Relação de Évora de 11-11-2011, no P.º 5/11.6T2STC-A.E1, no exercício da competência que então lhe era cometida pelo n.º 1, do art.º 688.º, do C. P. Civil, aprovado pelo Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, na redação anterior à alteração introduzida pelo Dec. Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, citada pelos recorridos.
Nessa decisão, como na própria fundamentação consta, a absolvição da instância tinha uma consequência sui generis pois com ela a apreciação e a decisão do próprio litígio não poderia ser objeto de uma futura ação, antes passando a integrar a esfera de competência da própria entidade administrativa recorrente - “A consequência da decisão questionada é tão só a remessa para o âmbito administrativo e para o próprio reclamante a verificação dos requisitos do direito à pensão de sobrevivência, ónus que estava cometido aos tribunais”.