A desconsideração pelo tribunal da Relação de uma alegada confissão não reduzida a escrito não é sindicável, em sede de revista, pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça
AA, residente na Estrada 1, freguesia de ..., do concelho do Funchal, requereu contra BB, residente na Rua 2, freguesia de..., do concelho do Funchal, inventário para partilha dos bens comuns do casal.
O requerido, nomeado cabeça-de-casal, apresentou a relação de bens.
A requerente reclamou, acusando a falta, entre outros, dos seguintes bens que considerava comuns:
• Fração autónoma, destinada a habitação, tipo T2, com 1 lugar de estacionamento e arrecadação com duas divisões, designada pela letra O, pertencente ao prédio urbano sito na Rua 2, freguesia de ..., concelho do funchal, inscrito na respetiva matriz sob o art.º ..56 e descrito na CRP do Funchal sob o nº ..61, adquirida pelo casal na constância do casamento;
• Poupança associada à conta nº 0008..........20, do Banco Santander Totta, titulada pela requerente e pelo cabeça-de-casal e que apresentava o saldo de € 22.094,15 no início de Fevereiro de 2018, saldo esse actualmente todo na posse do cabeça-de-casal, que o levantou à revelia da requerente
O cabeça-de-casal respondeu, sustentando a exclusão destes bens da relação com a alegação de que eram bens próprios dele.
O processo prosseguiu os seus termos e após a produção da prova, foi proferida sentença em 1.ª instância que decidiu:
a. Aditar à relação de bens, a fração autónoma, destinada a habitação, tipo T2, com 1 lugar de estacionamento e arrecadação com duas divisões, designada pela letra O, pertencente ao prédio urbano sito na Rua 2, freguesia de ..., concelho do funchal, inscrito na respetiva matriz sob o art. ..56 e descrito na CRP do Funchal sob o nº ..61, adquirida pelo casal na constância do casamento, como bem comum;
b. Remeter os interessados para os meios comuns quanto à questão de saber se o valor de € 22.094,15, relativo ao saldo da poupança associada à conta bancária n.º 0008..........20, do Banco Santander Totta era bem comum do casal ou bem próprio do cabeça-de-casal.
Apelação
O cabeça-de-casal não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação, pedindo a nulidade da decisão recorrida e a substituição dela por outra que não aditasse à relação dos bens comuns a fracção autónoma acima descrita.
A requerente também não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação da parte em que ela remeteu para os meios comuns a questão de saber se o valor de € 22.094,15, relativo ao saldo da poupança associada à conta bancária n.º 0008..........20, do Banco Santander Totta era bem comum do casal ou bem próprio do cabeça-de-casal. Pediu a revogação desse segmento da sentença e a substituição dele por decisão que declarasse que a mencionada poupança era bem comum da recorrente e do recorrido em partes iguais, ou seja, na proporção de 50% (cinquenta por cento) para cada um.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 13 de Março de 2025, decidiu:
1. Julgar improcedente a apelação interposta pelo cabeça-de-casal e manter, em consequência, a decisão da 1.ª instância de aditar à relação dos bens comuns do casal a fracção autónoma acima descrita;
2. Julgar procedente a apelação interposta pela requerente do inventário e, em consequência, revogou a decisão da 1.ª instância de remeter os interessados para os meios comuns quanto à questão de saber se valor de €22.094,15, relativo ao saldo da poupança associada à conta bancária n.º0008..........20, do Banco Santander Totta era bem comum ou bem próprio do cabeça-de-casal e substituiu essa decisão por outra a determinar o aditamento do valor atrás indicado à relação de bens comuns do casal.
Revista
O cabeça-de-casal (BB) não se conformou com estes dois segmentos do acórdão da Relação e interpôs recurso de revista, pedindo a revogação e a substituição deles por decisão que reconhecesse que a fração autónoma e o saldo da poupança existente no Banco Santander Totta, S.A. eram bens próprios dele.
Os fundamentos do recuso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O Tribunal da Relação de Lisboa violou o disposto no artigo 1726.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, ao não reconhecer a sub-rogação real no caso concreto;
2. Resultou provado que o recorrente vendeu bens próprios (herdados) imediatamente antes da aquisição da fração, aplicando o produto da venda nessa aquisição.
3. A sub-rogação real não exige prova de aplicação exclusiva de fundos próprios bastando a existência de uma conexão lógica e temporal, como pacificamente reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão 12/2015 de 02/07/2015 - 899/10.2TVLSB.L2.S1).
4. O Tribunal recorrido desconsiderou documentos autênticos e prova testemunhal que impunham decisão diversa.
5. A decisão recorrida violou ainda o princípio da verdade material (arts. 412.º e 607.º, n.º 4, CPC) e o princípio da livre apreciação da prova. Ao não reconhecer a sub-rogação, a decisão violou também o direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
A recorrida respondeu. Na resposta começou por alegar que não era admissível recurso de revista. Para a hipótese de assim se não entender, sustentou a manutenção do acórdão recorrido. Alegou para o efeito em síntese:
A. O acórdão recorrido fundamentou devidamente a sua decisão, de facto e de direito, fazendo uma análise critica da prova documental e dos factos dados como provados pela sentença de cujo recurso conheceu, relativamente à natureza (comum ou própria) dos bens “fracção autónoma Rua 2, freguesia de ..., concelho do Funchal” e “saldo associado à conta bancária n.º 0008..........20 junto do Banco Santander Totta, S.A.”;
B. O acórdão recorrido fez uma correcta aplicação do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 607.º, n.º 5, do NCP Civil, bem como uma correcta valoração das mesmas, face à prova disponível nos Autos e às regras legais atinentes;
C. O recorrente não conseguiu fazer a prova que lhe competia, de modo a reverter a presunção do art.º 1724º do Código Civil;
D. A sentença recorrida igualmente também não padece de qualquer vício ou ilegalidade;
E. Pelo que bem decidiu o Tribunal recorrido ao “julgar improcedente o recurso do cabeça-de-casal, mantendo-se a decisão recorrida que determinou o aditamento dos bens nela identificados”, bem como ao determinar “o aditamento à relação de bens do valor de €22.094,15, relativo ao saldo da poupança associada à conta bancária n.º 0008..........20, do Banco Santander Totta”.
Recurso: saber se a decisão recorrida violou o artigo 1726.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, o princípio da verdade material (arts. 412.º e 607.º, n.º 4, CPC), o princípio da livre apreciação da prova e o direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa
Resposta: saber se é admissível o recurso de revista.
• Não admitiu a revista que tem por objecto o acórdão recorrido na parte em que manteve a decisão da 1.ª instância de aditar à relação de bens comuns a fracção autónoma acima descrita;
• Admitiu a revista que tem por objecto o acórdão recorrido na parte em que revogou a sentença proferida em 1.ª instância e determinou a inclusão, na relação de bens comuns, do saldo da poupança, no montante de €22.094,15, associada à conta bancária n.º 0008..........20, do Banco Santander Totta.
Segue-se do exposto que a única questão suscitada pelo recurso que importa solucionar é a de saber se o acórdão recorrido, na parte em que determinou o aditamento à relação de bens do saldo de €22.094,15, relativo à poupança associada à conta bancária n.º 0008..........20, do Banco Santander Totta, violou o artigo 1726.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, o princípio da verdade material (arts. 412.º e 607.º, n.º 4, CPC), o princípio da livre apreciação da prova e o direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa
1. O cabeça-de-casal e a requerente contraíram casamento católico um com o outro, no dia 26 de Setembro de 1998, sem convenção antenupcial.
2. Em 1 de Março de 2019, a requerente instaurou contra o cabeça-de-casal uma acção de divórcio.
3. Por sentença datada de 11 de Fevereiro de 2020, foi decretado o divórcio entre a requerente e o cabeça-de-casal, tendo ficado declarado que os efeitos do mesmo retroagem a Janeiro de 2018, data em que ocorreu a separação de facto.
4. De tal sentença não foi interposto recurso.
5. Por escritura de compra e venda datada de 13/04/2000, o cabeça-de-casal, no estado de casado no regime da comunhão de adquiridos com AA, comprou a fração autónoma, unidade habitacional, designada pela Letra O, correspondente ao piso 5, do bloco I, compreendendo o lugar de estacionamento n.º8 e arrecadação “O”, do prédio urbano denominado “Colinas ...”, ao Sítio ..., ..., concelho do Funchal, descrito na CRP do Funchal sob o número ..61, pelo preço de 22.000.000$00 (correspondente à quantia de 109.735,54€).
6. Em Fevereiro de 2018, a conta bancária n.º 0008..........20, do Banco Santander Totta, titulada pelo cabeça de casal e pela interessada AA, apresentava uma poupança associada que, à data, tinha o valor de €22.094,15.
7. A interessada AA apresentou remunerações relativas a trabalho dependente, para efeito de inserção no regime da segurança social no período de 1990 a 1998 e entrou na função pública em 19.9.1994, vínculo que se mantinha à data de 30.10.2020.
8. O cabeça-de-casal, no período de 1987 a 1999, com exceção do ano de 1996, apresentou remunerações para efeito de inserção no regime geral da segurança social, não exercendo profissão desde então e até 30.10.2020, pelo menos, com carácter regular.
9. Por escritura de compra e venda datada de 5/08/1999, o cabeça-de-casal, e CC venderam, pelo preço de vinte milhões de escudos, o prédio urbano, sito no Sítio ..., Urbanização ..., concelho do Funchal, descrito na CRP do Funchal sob o número .03/87010, que fazia parte da herança da mãe deles.
10. Por contrato escrito, datado de 17.12.2012, DD, AA, EE, e a sociedade B..., Lda, venderam o total de 29/32 avos que detêm sobre o prédio urbano composto por casa com 4 pavimentos, descrito na CRP do Funchal sob o n.º ..09, pelo preço de 90 mil euros, cabendo do mesmo a quantia de €8.385,88 à vendedora AA corresponde ao seu direito no imóvel (3/32 avos).
11. Foram adquiridos na pendência do casamento os veículos automóveis com a matrícula V1 (Volkswagen Polo) e com a matrícula V2 (Opel Frontera).
12. Os móveis que compõem o recheio da habitação foram adquiridos durante o casamento.
Como se escreveu acima, a questão que importa solucionar é a de saber se se o acórdão recorrido, na parte em que determinou o aditamento à relação de bens do saldo de €22.094,15, relativo à poupança associada à conta bancária n.º 0008..........20, do Banco Santander Totta, violou as disposições legais e os princípios indicados pelo recorrente.
O acórdão sob recurso julgou que este saldo constituía bem comum do casal por se ter provado que, à data da separação do casal, existia uma conta bancária com o saldo de € 22 094,15, sem que tivesse ficado demonstrado que tal quantia proviesse de dinheiros próprios do cabeça de casal, designadamente de alegadas poupanças derivadas da venda de bens herdados.
O recorrente pede se reconheça que o saldo da conta poupança constitui bem próprio dele, a excluir da relação de bens comuns, com a alegação de que a recorrida assumiu que o valor constante de tal saldo era dele, recorrente, sendo resultado dos rendimentos que lhe haviam advindo da herança de seus pais.
O argumento não colhe contra o acórdão recorrido. Vejamos.
A assunção de que fala o recorrente, a ter existido, configuraria uma confissão, pois traduzir-se-ia no reconhecimento de um facto que lhe era desfavorável e que favorecia o ora recorrente (artigo 352.º do Código Civil).
Apesar de o recorrente não indicar em que momento do processo é que a requerente do inventário, ora recorrida, assumiu que o valor constante da conta do Banco Santander Totta, S.A. resultava dos rendimentos que ele, recorrente, havia recebido da herança de seus pais, a circunstância de invocar uma passagem da sentença proferida em 25-10-2023, onde é afirmado que a interessada/requerente referiu que a conta do Millenium e Montepio eram suas e que do cabeça de casal eram as do BPI e Santander”, aponta no sentido de que a alegada confissão ocorreu quando a requerente prestou declarações em sede de produção de prova do incidente de reclamação contra a relação de bens, concretamente na sessão de 25 de Março de 2022 e/ou 10-05-2022
Exminadas as actas destas duas sessões, verificamos que não há nelas a redução a escrito de qualquer declaração confessória da requerente. Se tivesse existido, seria de esperar, atento o disposto no n.º 1 do artigo 463.º do CPC, que ela tivesse sido reduzida a escrito.
A ter existido confissão, o que se ignora, tratou-se de uma confissão que não foi reduzida a escrito e que, nos termos do n.º 4 do artigo 358.º do Código Civil, é apreciada livremente pelo tribunal. O erro na apreciação desta confissão não pode ser sindicado em sede de recurso de revista nem constitui fundamento de alteração da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido, por a tanto se opor o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 682.º do CPC conjugado com o n.º 3 do artigo 674.º do mesmo diploma. Vejamos.
Resulta dos n.ºs 1 e 2 do artigo 682.º do CPC, combinado com o n.º 3 do artigo 674.º do mesmo diploma, que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo nos seguintes casos:
• Se tiver havido ofensa de uma disposição expressa d alei que exija certa espécie de prova para a existência do facto;
• Se tiver havido ofensa de uma disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova.
Segue-se daqui que, em sede de revista, o STJ apenas podia censurar a decisão da Relação de considerar não provado que o saldo da conta do Banco Santander Totta era proveniente de dinheiros próprios do cabeça-de-casal, designadamente de poupanças auferidas com a venda de bens herdados, se existisse um meio de prova que demonstrasse com força probatória plena tal realidade, condição que não se verifica.
Por todo o exposto é de concluir que o acórdão recorrido, ao determinar a inclusão na relação dos bens comuns do casal do saldo da de €22.094,15, relativo à poupança associada à conta bancária n.º 0008..........20, do Banco Santander Totta, com os fundamentos nele indicados, não violou o princípio da verdade material, os artigos 412.º e 607.º, n.º 4, ambos do CPC, o princípio da livre apreciação da prova, nem o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efectiva garantidos pelo artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.
Responsabilidade quanto a custas:
Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de o recorrente ter ficado vencido no recurso, condena-se o mesmo nas respectivas custas.
Lisboa, 23 de Outubro de 2025
Relator: Emídio Santos
1.ª Adjunta: Isabel Salgado
2.ª Adjunta: Maria da Graça Trigo