I. Não obstante a abolição dos institutos da interdição e da inabilitação, criando-se, em sua substituição, o regime jurídico do maior acompanhado, considera-se que a hipótese de prodigalidade continua a figurar entre as situações em que o acompanhamento de maior se pode justificar e em que a imposição de medidas de acompanhamento se pode tornar necessária.
II. Porém, a demonstração de gastos excessivos, imotivados e desproporcionais face aos rendimentos não é, por si só e desacompanhada da demonstração de que a pessoa visada sofre de uma afectação das suas capacidades, suficiente para que se decrete o acompanhamento de maior.
1. No âmbito da presente acção de inabilitação por anomalia psíquica proposta, em 18-04-2005, por AA e BB contra CC foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.
2. AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.
3. Inconformada com a decisão do tribunal superior, veio a autora/recorrente interpor recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e pela sua substituição por acórdão que determine “a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para ser conhecida a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e ser proferida decisão de direito em conformidade”.
4. Em 04-07-2024, foi proferido acórdão por este Supremo Tribunal que determinou a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para apreciação efectiva da impugnação da matéria de facto.
5. Em 19-12-2024, o Tribunal da Relação de Évora proferiu novo acórdão, tendo concluído pela improcedência do recurso de apelação e pela confirmação integral da sentença da 1.ª instância.
6. Em 06-02-2025, a autora/recorrente interpôs novo recurso para este Supremo Tribunal, tendo formulado, para o efeito, as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso é admissível porque interposto do Acórdão proferido em 19 de Dezembro de 2024, em processo especial de acompanhamento de maiores (distribuído em 2005 como interdição/inabilitação), declarado não urgente por despacho da 1ª Instância proferido em 22-2-2021, tudo nos termos dos Artºs. 901.º, ao art. 988.º, n.º 2, ao art. 671.º, n.º 1, e ao art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
2. É admissível julgar o modo de exercício dos poderes do Tribunal da Relação de Évora no Acórdão de 19 de Dezembro de 2024, no uso de presunções e por contradições insanáveis no julgamento da matéria de facto, dado que tal previsão preenche a previsão normativa de “lei de processo” para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC e não se aplica o regime da dupla conforme.
3. O presente recurso de Revista deve ser, desde logo admitido, quer como Revista Ordinária ou como Revista Excecional (Acórdão fundamento STJ de 6/2/2020, tirado no processo nº 2251.12.6TBVNG.P1.S1) dada a relevância social da transição do regime da Inabilitação/Interdição para o instituto do Maior Acompanhado e também porque se junta o Acórdão fundamento.
4. No caso concreto a Revista é admissível pois o Supremo Tribunal de Justiça pode pronunciar-se sobre a interpretação e sobre a integração das normas aplicáveis ao caso; sobre o preenchimento dos pressupostos, sobre a prossecução do fim e sobre o respeito dos limites estabelecidos na lei, in caso, sobre o não uso dos poderes da revisão da decisão da matéria de facto em 2ª Instância.
5. Não existem duvidas que na presente Revista, está em causa a interpretação e aplicação de critérios de legalidade estrita, e por isso a presente impugnação terá cabimento em sede de revista, devido a erro de direito, quanto à interpretação dos Artºs 640 al b) e 662 ambos do CPC.
6. É admissível o recurso de revista, nos termos gerais e o art. 901.º do Código de Processo Civil não deve interpretar-se a contrario sensu, no sentido de que da decisão relativa ao processo de menor acompanhado não cabe recurso de Revista e perante a matéria de facto disponível, constata-se que os presentes autos estão pendentes desde 2005, e todos atos e negócios do requerido foram feitos antes de 2005 e até 2010, pelo que tem plena aplicação aos autos, os termos do Artº 26 nº 3 da Lei 49/2018 de 14 de Agosto, que prescreve que aos atos dos requeridos aplica-se a lei vigente no momento da sua prática.
7. A decisão do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto é nula, porque não tem qualquer fundamento logico, é contraditória entre si, porque têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, não podem subsistir ambas utilmente, por uma delas ser contrária da outra, como é por exemplo a afirmação de que os negócios elencados em 27º e 33º. 34º foram feitos por falta de liquidez do Réu, quando está provado em 26º que o Réu sempre foi poupado e muito cioso dos seus bens em especial do dinheiro e não existem factos para comprovar a falta de liquidez.
8. Estando provado em 14º que o Réu administrava os seus bens, também se deveria ter constatado que o mesmo Recorrido não teve capacidade para fazer um juízo de prognose e analise das consequências dos atos que praticou na pendencia dos presentes autos.
9. O acórdão fez um não isso dos poderes, pois limitou-se a confirmar a sentença de 1ª Instância, sem que haja dupla conforme, pois refere com manifesta ilogicidade e omissão de factos instrumentais, que as herdades foram vendidas em contextos de necessidade, sendo consentâneo com as regras da vida que a necessidade de vender, consequência normalmente vendas putativamente desfavoráveis, menos vantajosas do ponto de vista económico, sem que daí se possa inferir que a pessoa que celebra tais negócios, está em condições de gerir a sua pessoa e bens.
10. A decisão ora impugnada considera que perder mais de meio milhão de Euros em duas vendas de Herdades no Alentejo é algo consentâneo com as regras da vida e que a necessidade de vender, é consequência normal de vendas putativamente desfavoráveis, menos vantajosas do ponto de vista económico, o que desafia a logica das decisões judiciais e é sindicável pelo STJ.
11. O Acórdão recorrido aditar o novo facto provado nº 40, mas perante este dado concreto dir-se-á que nada tem de normal tem uma venda de uma herdade livre de ónus ou encargos por apenas € 250.000,00 e que vale mais de 669.000,00€ e que já estava cedida gratuitamente, quando a divida a pagar era de apenas € 55.135,87, não é certamente prova de falta de liquidez e é até contraditório com o facto não provado em s) esse sim já contribuiria decisivamente para a falta de liquidez, mas não tendo sido provado não existe nos autos prova da iliquidez .
12. O Tribunal de 2ª Instância incorre, deste modo, numa contradição sobre a iliquidez do Réu que supostamente poderia ter motivado os negócios provados em 27º, 33º e 34º em contraste com a afirmação de que o R. sempre foi poupado e muito cioso dos seus bens, em especial do dinheiro, mas que in casu, gera a nulidade do Acórdão por vicio do raciocínio jurídico e contradição entre os fundamentos e decisão final e ora recorrida e inviabilizam a solução jurídica do pleito.
13. O Acórdão de 19-12-24, é nulo porque não é crível nem logico que uma pessoa poupada e ciosa dos seus bens e que administrava sozinho os mesmos não fosse capaz de prever que iria facilmente cair numa situação de falta de liquidez, por pagar dividas de € 55.135,87 afiançadas a terceiros sem qualquer benefício e por ter cedido gratuitamente uma Herdade que vendeu livre de ónus ou encargos por € 250.000,00 quando valia pelo menos 669,000,00€.
14. A tudo isto acrescem atos ruinosos em 2008, de doações de bens imoveis já em testamento e sem encargos modais, com perda de rendas de Olival e venda da herdade 1 por 50.000,00€ quando valia pelo menos € 235.000,00.
15. Está demonstrada a flagrante contradição entre os factos provados e a decisão final, e a nulidade do Acórdão nesta parte por não isso dos poderes da 2ª Instância na analise do recurso da matéria de facto, sendo também verificada a nulidade por contradição entre factos provados e não provados nos termos da situação excecional referida no Acórdão do STJ de 6/2/2020, tirado no processo nº 2251.12.6TBVNG.P1.S1.
16. Inexiste dupla conforme que impeça o conhecimento do presente recurso de Revista, pois entre os Acórdãos de 2023 e 2024, o Tribunal da Relação teve mais do que oportunidade de resolver esta flagrante contradição (por falta de elementos patrimoniais e desprezo pelos extratos bancários) e por ter dado como provado que o Réu sempre foi muito poupado e muito cioso dos seus bens, mas continuou a omitir a analise dos factos concreto que pudessem comprovar concreta e realmente, a iliquidez do requerido e a incapacidade de o Réu prever que o dinheiro que tinha disponível não chegaria para honrar os seus compromissos.
17. Inexiste dupla conforme que impeça o conhecimento do presente recurso de Revista, pois a contradição entre os factos provados e o indeferimento da presente ação no Acórdão recorrido ainda é mais gritante quando se dá como provado em 37. Que o Réu, através da escritura pública referida em 33., procedeu à venda da Herdade 1 a fim de assegurar liquidez para proceder ao pagamento das mais valias decorrentes da alienação da Herdade 2, quando não estão provados os montantes mensais que auferia e a proveniência dos rendimentos do Réu (rendas, pensões?) nem qual era o seu património.
18. O Tribunal da Relação não apurou qual o montante das mais valias, qual a quantia efetivamente paga à Autoridade Tributária, se existia execução fiscal se foi invocada a caducidade ou prescrição e se foi efetivamente paga a título de mais valias ou imposto do selo e também não apurou qual era o património do requerido em 2010, ou analisou os extratos bancários para se saber se tinha ou não liquidez.
19. Lavra pois a segunda instância num mar de incertezas e especulações e contradições sobre a matéria de facto dada como assente na sentença final, pois não é crível nem logico que sem consultar os extratos da conta do requerido, sem se provar a proveniência de rendimentos, o Tribunal da Relação de Évora possa concluir pela falta de liquidez para pagamento de mais valias, se não se sabe quanto é que eram o calculo de mais valias, sendo certo que a herdade 2 foi vendida por € 250.000,00 e as responsabilidades honradas rondavam apenas os € 55.135,87, sendo que o Tribunal de 2ª Instância nem ao menos apurou qual o destino que o Requerido terá dado aos € 194.864,13, e nem sequer procurou conciliar os factos provados que são contraditórios entre si e padecem de uma “evidente ilogicidade”.
20. O recurso de Revista deve ser admitido porque nos presentes autos não está vedado ao STJ conhecer dos vícios invocados, pois é permitido ao Supremo Tribunal sindicar a atuação do Tribunal da Relação de Évora, que após a prolação do Acórdão do STJ de 4-7-24 não deu cumprimento ao mesmo, limitando-se alterar 3 pontos da matéria de factos para depois ficar tudo na mesma e sufragar novamente a posição da 1ª Instância com os mesmos vícios e erros flagrantes.
21. A admissibilidade da Revista em sede de STJ é, nesta matéria supra, inequivocamente afirmativa pois o Acórdão recorrido padece de uma “evidente ilogicidade”, é como refere o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, o STJ pode controlar qualquer resultado probatório que seja incompatível com a “prudente convicção” imposta pelo artigo 607.º, n.º 5, do CPC.
22. É manifesto, no Acórdão recorrido a violação das Leis Adjetivas, com menosprezo de factos provados e verdadeira anulação em 9º, 18º, 19º e 21º 22º, mas sobretudo os factos de 20º e 21º dos factos assentes, valorizando ilegalmente depoimento da testemunha, Dr. DD, como se fosse um perito que não viu as suas declarações escritas nos factos provados pois não foram alegadas nos articulados próprios nem invocada a sua superveniência, contra toda a prova assente tudo em detrimento do depoimento do Dr. EE também testemunha, cujo teor é confirmado a fls 688 e no facto provado 21º que foi mantido pelo Tribunal da Relação na decisão impugnada.
23. O Tribunal da Relação violou as regras relativas a presunções judiciais, ao valorar os escritos feito ad hoc para o julgamento pelo Dr. DD, de fls 1252 a 1255 que não estão nos articulados e nem constam dos factos provados, louvando-se ainda a 2ª instância num critério parco em objetividade qual seja que o Dr. DD, testemunha, é médico psiquiatra a prestar funções para o Instituto Nacional de Medicina Legal, omitindo ainda assim que o Dr. EE é o ... do Hospital Júlio de Matos (Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e do Serviço Regional Psiquiatria Forense).
24. A Recorrente entende deste tipo de fundamentação demonstra, que por parte do Tribunal da Relação existe uma evidente ilogicidade no sentido que lhe dá o Prof, Teixeira de Sousa, pois em matéria de reapreciação das provas, na sequência do pedido de alteração sobre a decisão relativa à matéria de facto, formulada pela aqui recorrente, a Relação de Évora estava vinculada a idêntico dever de fundamentação das respostas proferidas, tal como acontece com a decisão em 1ª instância.
25. O teor de fls, 688, escrito pelo Dr. EE, foi sujeita a contraditório porque alegada na Petição Inicial e portanto elevada à categoria de factos provados em 20 e 21, mas as conclusões opinativas do Dr. DD, de fls 1252 a 1255, não foram alegadas na contestação ou em articulado superveniente, e portanto não foram sujeitas a contraditório, contrariam os factos provados e a realidade da vida do Requerido e os negócios ruinosos que fez, apenas se mostram fundamentadas na verbalização e convicção do próprio médico que é testemunha, sendo uma opinião não fundamentada nem justificada e portanto nunca foram elevadas à categoria de factos, nem baseadas em exames médicos ou analises.
26. O acórdão recorrido deve ser revogado pois fez uso ilegal de presunções judiciais como se constata pelo teor de fls 1252 a 1255 a que dá a relevância de verdadeira peritagem considerando os escritos como verdadeiras “consultas” dadas requerido-testemunha, Dr. DD, e por isso não pode ser valorada no sentido pretendido pelo Tribunal da Relação, pois o “diagnostico” de fls 1252 a 1255 não tem fundamento em face dos atos e negócios desastrosos do Réu e não é sequer contemporâneo pois em 7 anos apenas existiriam 3 ou 4 “consultas”.
27. Quer o exame directo, quer o exame realizado no instituto de medicina legal, também têm desfasamento temporal, dado o arrastamento dos autos e as inúmeras doenças que padecia o Réu, foram feitos ambos apenas no ano de 2006, e com base na mera observação do Requerido/Recorrido, e com fundamento nas informações prestadas pelo mesmo, sem o auxílio de exames médicos e analises clínicas que dessem mais pistas sobre os problemas de saúde que estão provados em 8º,9º,18º, 19º,22º e 23º que levaram ao seu internamento logo após o falecimento da mãe FF.
28. Quando o Réu fez as doações em 2008, sem encargos e vendeu o 1 em 2010, dando origem à ação de preferência descrita em 38º, já não havia qualquer informação clinica atualizada, algo que foi sendo permitido pela 1º Instância ao indeferir todos os articulados supervenientes apresentados pela Recorrente, para depois decidir a favor do Réu por falta de elementos médicos o que foi abusivamente confirmado pela 2ª Instância.
29. O Acórdão não respeitou as presunções judiciais na analise da prova documental e testemunhal gravada e resultado de terem sido ignoradas as doenças do R./Recorrido, durante 7 anos, quanto aos dois negócios ruinosos de venda de 2 Herdades, às doações de imoveis e direitos com perda de rendas e a atos de favor como cedência gratuita de imóvel e fiança de favor, é uma realidade bastante cruel, o R .Recorrido faleceu, sem património, na pendência do processo, sem proteção do Tribunal, com todo o patrocínio à mercê.
30. Resulta da economia do Acórdão de 19-12-2024 que é impossível que tenha analisado com a mínima logica toda prova produzida, considerando o rasto de doações, cedências gratuitas, fiança de favor, e dois negócios ruinosos de venda de Herdades, sem planeamento fiscal por confundir usucapião com propriedade e ainda demandado em ação de preferência referida em 39º de fls, , que o R. Recorrido deixou nos autos, até ao seu internamento no Lar da Santa Casa da Misericórdia de ..., dir-se-á que o pensamento verbalizado pelo declarante de fls. 1252 a 1255, não podia ser mais erróneo e desfasado da realidade.
31. O Acórdão de 19-12-24, comete, um erro de julgamento ao aderir a quase totalidade matéria de facto da 1º instância, pois além de revelar analise pouco cuidada dos factos, viola flagrantemente a Lei substantiva, nomeadamente, o disposto no Artº 371 do C.Civil, na parte da força probatória de documentos autênticos (certidão judicial de 06-06-2012 do Tribunal do Redondo) sem transcrever o teor da certidão inutiliza o valor probatório do 38º que a venda da Herdade 1 com base em erróneas declarações de usucapião e de extremas deu origem ao processo 202/11.4TBVVC. por violação da preferência e de contrato promessa subscrito pelo próprio Réu.
32. o Tribunal da Relação de Évora omitiu também nos factos provados o teor dos documentos autênticos juntos em 7-4-22 e admitidos por despacho de 3-5-22, que comprovam um facto superveniente verificado no decurso do julgamento e que foi totalmente ignorado nos factos provados e na fundamentação da sentença confirmada pelo Acórdão de 19-12-24.
33. Acontece que está provado por certidão e resulta do depoimento do Eng. GG (identificado em 29º), que a venda da Herdade 2 por € 700.000,00, ocorreu em 19-3-2019, após o arquivamento dos presentes autos na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, e gerou uma mais valia de € 450.000,00, foi pura e simplesmente ignorada pelas instâncias, o que merece censura pelo Supremo Tribunal de Justiça.(cfr. junção em citius durante o julgamento de 1ª Instância em 7-4-22).
34. O Acórdão também omitiu a força probatória de outra escritura de 28-3-1967, documento que é contraditório com os factos provados em 33º e 34º, pois o Réu declarou erroneamente na justificação notarial o usucapião da Herdade 1 cuja nua-propriedade já tinha desde 1967 e adquiriu a propriedade plena em 2005 com a extinção do usufruto por morte do ultimo progenitor.
35. A escritura 28-3-1967 foi junta na sessão de julgamento de 7-4-2022 com a Refª 31762112, e não tendo sido impugnada, foi admitida e prova que o R. AA até na simples identificação de uma propriedade que já era sua plenamente desde 2005 que foi incapaz de a identificar pela escritura que o seu pai tinha lavrado em 1967, concedendo-lhe logo a nua-propriedade.
36. A incapacidade de o R. avaliar este tipo de situações causou litigio ainda pendente no processo identificado em 38º da matéria provada a fls.2153 a 2168 conforme consta da escritura de 1967, a nua-propriedade era do requerido e foi comprado pelo pai aos outros familiares, na zona do Guadiana, e do Alqueva, é a Herdade 1.
37. A Herdade 1 é vendida a terceiros, o que vai dar origem a um processo que está pendente desde 2011 no Tribunal do Redondo a fls.2153 a 2168 e isto só atesta a prodigalidade do R. AA e havia outorgado o contrato de arredamento de fls. 1247, documente que também foi desprezado na sua força probatória no Acórdão recorrido.
38. Tais escrituras e certidões, têm a força probatória do Artº 371 do C.Civil, e não foram impugnados tendo sido expressamente admitidos nos autos por despachos transitados em julgado.
39. O Recurso de Revista é, assim, admissível também por via do Artº 674 nº 1 a) do CPC, do Acórdão de 19-12-24 por violação de factos provados e utilizando depoimentos testemunhas para contraditar o teor de documentos autênticos, sem qualquer juízo critico fundamentado pela 2ª instância.
40. O presente recurso comporta também analise do caso dos autos e se na sequência da matéria alterada pelo Tribunal da Relação, a factualidade provada passou a preencher o requisito da “habitual prodigalidade” nos atos gratuitos e negócios (vendas com prejuízo) que caracterizaram o comportamento do Requerido desde a morte da mãe e o seu internamento hospitalar em 2005 e até ao seu falecimento em 2012.
41. A analise da prodigalidade é uma medida adequada aos casos como o presente em que o Réu na pendencia da ação delapidar os bens mais valiosos (avaliados em mais de 900.000.00) e que lhe pertenciam foram vendidos por apenas € 300.000,00 que o Réu gastou para honrar fiança de favor a “afilhados” e agravou a respectiva situação patrimonial ao ponto de ter de vendar a Herdade 1 em 2010 e de ter falecido no lar da Santa Casa da Misericórdia de ..., situação que o Réu não desejava conforme verbalizou no interrogatório judicial de 21-4-2006 e exame de 28-11-2006.
42. Sendo que desde logo consta de fls. 634 e do facto provado nº 28, que a Herdade 2 foi vendida livre de ónus ou encargos e que o contrato de cedência gratuita que já havia atingido o seu termo e portanto não é um encargo pelo que o preço de venda de apenas € 250.000,00 quando existe uma avaliação de 669.000,00 € é um negocio com propensão para delapidar os bens imoveis que lhe pertencem, o que se confirmou em 2010 com a venda da Herdade 1 por apenas € 50.000,00 quanto foi avaliado em 235.590,00,
43. Donde, caso seja inviabilizada a censura do Tribunal da Relação na alteração da decisão da matéria de facto, nos termos pretendidos pela ora recorrente, subsidiariamente este Supremo Tribunal de Justiça tem o poder-dever neste tipo de processos de verificar a legalidade e a subsunção dos factos ao conceito do Artº 152 na redação anterior à Lei 49/2018 de 14 de Agosto.
44. Conforme a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça é possível o julgamento e a procedência da presente acção com base na habitual prodigalidade pois basta atentar que entre 10º e 11º, temos dois negócios gratuitos de cessão de exploração e fiança que conjugados as doenças provadas (8º, 9º, 19º e 18º,20º, 21º, 22º, e 23º, levaram a que o requerido em face às responsabilidades assumidas pelo mesmo gratuitamente (11º dos factos provados) celebrasse os negócios ruinosos que estão documentados nos factos provados em 29º a 38º dos factos assentes
45. Se o Réu, não sofresse de prodigalidade teria medido os riscos de afiançar um empréstimo de 47.500,00€, como qualquer pessoa e teria percebido que não tinha liquidez para assumir a fiança e que iria ter falta de dinheiro para pagar, isso aliado à desnecessidade de invocar usucapião da Herdade 1 pois a nua propriedade já era sua desde 28 de Março de 1967, e com o falecimento dos seus pais que eram usufrutuários, o Réu ficou com a propriedade total de todos os imoveis da Herdade, conforme escritura que se juntou no julgamento com a Refª 31762112, e que foi admitida durante o julgamento por despacho de 3 de Maio de 2022, mas depois olimpicamente ignorada pelos Tribunais de 1º e 2º Instâncias.
46. O presente recurso de Revista deve ser, desde logo admitido, quer como Revista Ordinária ou como Revista Excecional dada a relevância social da transição do regime da Inabilitação/Interdição para o instituto do Maior Acompanhado, e a existência de Acórdão fundamento que se junta e que refere uma tese contraria ao Acórdão de 19-12-24, estabelecendo que o princípio de que não pode haver colisão entre respostas positivas e negativas, não deixa de comportar exceções, existindo contradição entre respostas positivas e respostas negativas, quer nos casos em que as respostas negativas têm, singular ou globalmente consideradas, um conteúdo sobreponível ao das respostas positivas, quer nos casos específicos em que as respostas negativas não acolheram o facto que constitui ou integra “antecedente lógico necessário da resposta afirmativa.
47. O Recurso deve ser admitido porque o Tribunal da Relação afirma no Acórdão de 19-12-24 que não pode, logicamente, haver contradição entre factos provados e factos não provados, pois quanto a estes tudo se passa como se o facto não tivesse sequer sido alegado, já que uma resposta negativa significa que não se provou o facto, mas já não a prova do contrário, o que desde logo inviabiliza o vício da contradição.
48. O recurso deve ser admitido porque o Tribunal da Relação de Évora, agora de maneira mais rebuscada continua a furtar-se julgar e a formar a sua convicção nesta parte do Recurso de Apelação, e faz um não uso dos seus poderes. Invocando apenas que improcede, sem julgar nem fundamentar esta parte – contradição entre os factos provados sob os nºs 20 e 21 e os factos não provados d), i), k), m), n), f), u), v), w) e z), bem assim como contradição entre o ponto s) não provado e o facto n.º 25 provado- o que a tal propósito consta das conclusões do recurso da apelante.”.
7. Em 12-03-2025, HH, testemunha nestes autos, requereu a consulta do processo.
8. Em 14-03-2025, a autora apresentou requerimento opondo-se a tal pretensão.
9. Em 25-03-2025, o Tribunal da Relação proferiu despacho admitindo o recurso de revista interposto em 06-02-2025 e determinando a subida dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça.
10. Em 28-03-2025, o Tribunal da Relação proferiu novo despacho deferindo a consulta do processo requerida.
11. Em 31-03-2025, a autora apresentou requerimento invocando a nulidade dos despachos mencionados em 9. E 10., anunciando a intenção de apresentar reclamação nos termos do disposto no art. 643.º do CPC.
12. Em 31-03-2025, a autora apresentou reclamação “contra retenção de recurso” que, no seu entendimento, decorre dos despachos proferidos em 25-03-2025 e em 28-03-2025, ao abrigo do disposto no art. 643.º do CPC. (Apenso A)
13. Em 01-04-2025, a autora interpôs recurso de revista dos despachos proferidos em 25-03-2025 e em 28-03-2025, por considerar inadmissível o deferimento da pretensão de consulta do processo.
14. Em 03-04-2025, o Tribunal da Relação proferiu despacho, indeferindo a arguição de nulidades (cfr. 11.) e rejeitando o recurso interposto dos despachos mencionados (cfr. 13.) por considerar, em suma, que tais despachos configuram despachos de mero expediente não susceptíveis de recurso.
15. Em 02-05-2025, a autora apresentou reclamação contra o despacho proferido em 03-04-2025 (cfr. 14.) que não admitiu o recurso de revista interposto em 01-04-2025, ao abrigo do disposto no art. 643.º do CPC. (Apenso B)
16. Em 06-05-2025, a autora interpôs novo recurso de revista, desta feita do despacho proferido em 03-04-2025, pugnando pela sua revogação.
17. Em 09-05-2025, o Tribunal da Relação proferiu novo despacho, julgando inadmissível o recurso interposto em 06-05-2025 (cfr. 16.).
18. Desta decisão reclamou a autora para a Conferência.
19. Em 25-06-2025, foi proferido acórdão pela Conferência que concluiu pelo indeferimento da reclamação e pela confirmação da decisão singular proferida em 09-05-2025.
20. Em 02-09-2025, a autora interpôs novo recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão da Conferência e pela convolação do recurso de revista interposto em 06-05-2025 em reclamação para a Conferência.
21. Em 03-09-2025, a autora apresentou reclamação de acto da secretaria, por considerar que a secretaria qualificou, erradamente, os presentes autos como findos.
22. Em 07-09-2025, foi proferido o seguinte despacho “os autos já foram remetidos para o Colendo STJ, remeta para esse Tribunal, estes requerimentos.”.
23. Em 08-09-2025, a autora apresentou reclamação para a Conferência, por considerar que o Tribunal da Relação não se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso interposto em 02-09-2025 (cfr. 20.).
24. Em 08-09-2025, foram os autos remetidos ao Tribunal da Relação para apreciação dos requerimentos apresentados.
25. Em 10-09-2025, o tribunal da Relação proferiu o seguinte despacho: “O despacho que ordenou a remessa dos requerimentos apresentados neste Tribunal, para o Supremo Tribunal de Justiça onde já correm termos os autos e para a respectiva junção aos mesmos, não admite reclamação para a Conferência, pelo que indefere-se o requerido.”.
26. Em 18-09-2025, a autora apresentou nova reclamação “contra retenção ilegal do recurso de Revista interposto em 02-09-2025”.
27. Em 22-09-2025, o Tribunal da Relação proferiu despacho: (i) admitindo o recurso interposto em 02-09-2025; (ii) consignando que as reclamações haviam sido já remetidas para o STJ; (iii) pronunciando-se sobre o acto da secretaria reclamado; e (iv) relegando para momento ulterior a apreciação do requerimento apresentado em 18-09-2025.
28. Em 24-09-2025, foi apresentada reclamação para a Conferência do despacho proferido em 22-09-2025.
29. Em 17-06-2025, no Apenso B de reclamação, foi proferido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que concluiu pelo indeferimento da reclamação apresentada contra o despacho que não admitiu o recurso de revista interposto em 01-04-2025 (proc. n.º 168/05.0TBVVC.E3-B.S1).
30. Em 23-09-2025, no Apenso A de reclamação, foi proferido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que concluiu pelo indeferimento da reclamação apresentada contra o despacho que não admitiu o recurso de revista interposto em 01-04-2025 (proc. n.º 168/05.0TBVVC.E3-A.S1).
31. Não foram apresentadas contra-alegações.
32. Exarado despacho de inscrição em tabela veio a recorrente, por requerimento de 16.10.2025 impugnar para a conferência.
II – Admissibilidade do recurso interposto em 06-02-2025. Não conhecimento da impugnação apresentada pelo requerimento de 16.10.2025
Tendo em consideração a natureza dos presentes autos, a data da entrada em juízo da petição inicial, o valor da causa e da sucumbência, bem como a legitimidade da recorrente, não se colocam obstáculos à admissibilidade do recurso de revista interposto em 06-02-2025.
Na medida em que o despacho de inscrição em tabela exarado pela relatora do presente acórdão reveste a natureza de despacho de mero expediente, nos termos do art. 652.º, n.º 3, do CPC, dele não cabe impugnação para conferência. Deste modo, não se conhecerá do requerimento apresentado pela recorrente a 16.10.2025.
III – Objecto do recurso
Tendo por referência as alegações de recurso, em conjugação com as respectivas conclusões, as questões objecto do presente recurso são as seguintes:
• Erro na apreciação da matéria de facto (e, conexamente, nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão);
• Ilogicidade no uso de presunções judiciais;
• Violação de normas de direito probatório material;
• Verificação dos pressupostos de decretamento de acompanhamento de maior, com fundamento em prodigalidade.
IV – Fundamentação de facto
São os seguintes os factos dados como provados:
1. Na Conservatória do Registo Civil do Alandroal, a Autora BB, nascida em D-M-1915, consta registada como filha de II e de JJ.
2. Na Conservatória do Registo Civil do Alandroal, a Autora AA, nascida em D-M-1925, consta registada como filha de II e de JJ.
3. Na Conservatória do Registo Civil de Vila Viçosa, o Réu CC, nascido em D-M-1940, consta registado como filho de KK e FF.
4. Na Conservatória do Registo Civil de Vila Viçosa, o Réu consta registado como neto paterno de II e JJ.
5. Na Conservatória do Registo Civil de Oeiras consta registado que KK faleceu no dia D-M-1988.
6. Na Conservatória do Registo Civil de Vila Viçosa consta registado que FF faleceu no dia D-M-2005.
7. O Réu é o único herdeiro dos seus progenitores.
8. Na data referida em 6, o Réu encontrava-se gravemente doente, tendo sido internado por se apresentar extremamente fragilizado.
9. Após a data referida em 6, o Réu foi submetido a tratamentos clínicos diversos, tendo-lhe sido diagnosticada insuficiência renal, infeção urinária, celulite da perna esquerda, hipertiroidismo, bócio com compressão da traqueia, edema pulmonar, hipertensão central arterial cardiopatia isquémica e hipertrofia prostática. Em 3-3-2005 foi operado à próstata no Hospital ... e tem necessidade de tratamentos ao bócio mergulhante devido ao Hipertiroidismo, além da fibrilação auricular a aguardar consulta no Hospital .... – Alterado pelo tribunal da Relação
10. LL e MM ocupam a Herdade 2, sita no concelho de Borba, freguesia de ..., durante vários anos, tendo para tanto celebrado com o Réu um “contrato de cedência gratuita de exploração datado de 14 de Dezembro de 1994, pelo prazo de seis anos com inicio em 1 de Janeiro de 1996 e termo em 31 de Dezembro de 2000, prorrogável por igual período se as partes estiverem de acordo”.
11. O Réu constituiu-se fiador das obrigações assumidas pela sua afilhada LL e pelo marido dela MM num empréstimo que estes contraíram na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ....
12. Os afiançados não cumpriram com as obrigações a que estavam adstritos.
13. O Réu viveu sempre com a sua progenitora, FF, até à data do óbito desta anteriormente mencionada em 6.
14. Até à data do decesso de FF, era o Réu que assegurava a administração dos bens, negociando contrato de compra e venda de pastagens dos prédios rústicos e as rendas dos arrendamentos dos prédios urbanos, as quais lhe eram pagas diretamente e pelas quais emitiu recibos.
15. A Autora AA prestou assistência ao Réu e à sua progenitora na residência onde estes habitavam.
16. O Réu, desde muito novo revelou dificuldades de aprendizagem, tendo a sua vida sido centrada no seu agregado familiar constituído pelos seus progenitores.
17. Os progenitores do Réu, mesmo após atingir a idade adulta, revelaram uma atitude de proteção quanto ao primeiro.
18. O Réu sofreu internamento hospitalar entre 10-01-2005 e 11-02-2005.
19. Apresentava gastroenterite, desidratação, falência renal prerrenal transitória, septicemia, infeção urinária por E. coli, úlcera e duodenite e hiperrogia prostática com retenção urinária.
20. Foi observado pelo serviço de psiquiatria da clínica médica e de diagnóstico de ..., em 22-02-2005.
21. Na sequência do mencionado em 20, foi prestada a seguinte informação clínica:
“O Sr. CC tem sido observado no centro de psiquiatria apresenta um quadro involutivo com alteração de humor. Sofre de várias doenças orgânicas que têm originado estados confusionais e limitação das capacidades cognitivas tornando-se difícil apreciar a realidade dos factos, significados e consequências. Apesar de conservar alguma capacidade de memória antiga, o pensamento é mais concreto com níveis de difícil abstracção, por exemplo, na interpretação de provérbios e/ ou expressões que conhece. Tem necessidade de cuidados de terceiros mesmo para tarefas práticas de orientação terapêutica e outras atitudes de decisão em situações difíceis. Neste contexto existe um processo involutivo que se tem agravado com limitações das capacidades funcionais e (…) numa incapacidade de avaliação das decisões não sendo capaz de gerir os bens e a própria pessoa continuando a necessitar de terceiros”.
22. Entre janeiro e fevereiro de 2005, apurou-se em estudos complementares, realizados ao Réu no Hospital de ..., o seguinte: “(…) sinais de hipertrofia ventricular. Eco renal: má diferenciação cortiço medular. (…) TAC tórax: deslocação do mediastino a esquerda por aumento do globo tirodeio direito com glândula homogénea e calcificações grosseiras, o lobo esquerdo também acrescentado com as mesmas características. No mediastino superior há importante estreitamento lateral da traqueia compatível com bócio sem adenopatias”.
23. Em consequência dos factos provados n.ºs 18 a 22, o Réu o período de tempo a que se seguiu a necessitar de cuidados de terceiros, encontrando-se fisicamente debilitado.
24. Por força do contrato mencionado no facto provado n.º 10, LL e MM não pagaram, ao Réu, rendas da exploração da parte rústica da Herdade 2.
25. O Réu não possuía liquidez para honrar as obrigações que garantiu.
26. O Réu sempre foi poupado e muito ciosos dos seus bens, em especial do dinheiro.
27. Em 09-02-2006, no Cartório Notarial de Borba, foi outorgada escritura pública na qual, na qualidade de primeiro e segundo outorgantes, respetivamente, “PRIMEIRO: CC solteiro, maior, natural da freguesia de Vila Viçosa (...), concelho de Vila Viçosa, onde é residente na Rua 1, titular do bilhete de identidade número ....56 emitido em 22/09/2005 pelos SIC de Évora, NIF .......40” e “SEGUNDO: NN casado, natural da freguesia de Ajuda, concelho de Lisboa, residente na Avenida 1, titular do bilhete de identidade número ....43 emitido em 20/04/2005 pelos SIC de Lisboa, o qual outorga como procurador e em representação de OO, solteiro, maior, natural da freguesia de Santa Maria de Belém, concelho de Lisboa, residente na mesma morada, NIF .......30, no uso de poderes que lhe foram conferidos por uma procuração que arquivo”.
28. Do teor da escritura pública referida em 27. Dos factos provados consta, de entra o mais, o seguinte:
“Verifiquei a identidade dos outorgantes pelos seus referidos bilhetes de identidade.
E pelo primeiro outorgante foi dito:
Que pela presente escritura, pelo preço já recebido de duzentos e cinquenta mil euros, vende ao representado do segundo livre de ónus ou encargos, o prédio misto, denominado Herdade 2, sito na freguesia de ..., concelho de Borba, descrito na Conservatória do Registo Predial de Borba sob o número cento e sessenta e três, e aí registado a seu favor pela inscrição G-um, com a área total de quinhentos e noventa e seis mil oitocentos e oitenta e quatro metros quadrados, com a parte rústica inscrita na respetiva matriz sob parte do artigo .13, secção E e a parte urbana, destinada exclusivamente a habitação, inscrita sob o artigo .31, com o valor patrimonial tributário de € 105.341,81, correspondendo o preço de duzentos mil euros à parte rústica e cinquenta mil euros à parte urbana.
Que não possuí outros prédios rústicos contíguos ao ora vendido. Pelo segundo outorgante foi dito:
Que aceita para o seu representado esta venda nos termos exarados. Disseram os outorgantes:
Que, para a transmissão ora efectuada, não recorreram à intervenção de qualquer mediadora imobiliária.
Mais declararam, os outorgantes, sob sua inteira responsabilidade:
Que o prédio ora alienado está ocupado por LL, que passou a explorar a parte rústica e a residir na parte urbana ao abrigo de um contrato de cedência gratuita de exploração, que o aqui primeiro outorgante celebrou com ela em catorze de Dezembro de mil novecentos e noventa e quatro, pelo prazo de seis anos com início em um de Janeiro de mil novecentos e noventa e cinco e termo em trinta e um de Dezembro de dois mil, prorrogável por igual período de tempo se as partes estivessem de acordo.
Que a partir da indicada data termo a cessionária continuou residir no prédio e a explorá-lo sem qualquer título e contra a vontade do cedente.
Que por carta datada de quinze de Setembro de dois mil e cinco que enviou à cessionária em dezasseis de Setembro de dois mil e cinco registada e com aviso de recepção e que a mesma recebeu em dezassete de Setembro de dois mil e cinco, o cedente informou-a, designadamente, de que ela deveria devolver-lhe o prédio improrrogavelmente até ao dia trinta e um de Dezembro de dois mil e cinco.
Que apesar disso a cessionária não devolveu o prédio até esta data.
Que todas as diligências e despesas, extrajudiciais e judiciais necessárias para a desocupação e devolução das partes rústica e urbana do prédio, livres de pessoas, coisas, máquinas e animais, serão da exclusiva responsabilidade do representado do segundo outorgante, sem que daí decorra nenhum direito do mesmo ao respectivo reembolso, qualquer indemnização ou sequer à redução do preço da compra venda.
Que o primeiro outorgante fez nesta data entrega ao segundo outorgante dos originais do contrato de cedência, da carta de notificação da cessionária e do talão de registo da mesma e do respectivo aviso de recepção.
Assim o outorgaram.”.
29. Em 09-02-2006, data da outorga da escritura pública referida em 27. Dos factos provados, NN e OO tinham conhecimento que havia sido proposta a presente ação.
30. O Réu, através da escritura pública referida em 27. Dos factos provados, procedeu à venda da Herdade 2 num contexto de ansiedade e intranquilidade face às responsabilidades assumidas pelo mesmo supra mencionadas em 11. Dos factos provados.
31. No período entre novembro de 2005 e janeiro de 2006 o valor médio do metro quadrado da Herdade 2 correspondia a 1,12€/m2.
32. No período referido em 31., o valor de mercado da Herdade 2, livre de quaisquer ónus ou encargos, correspondia a € 669.500,00.
33. Em 13-12-2010, no Cartório Notarial de Reguengos de Monsaraz, foi outorgada escritura pública, na qual intervieram, na qualidade de “Primeiro”, “Segundo” e “Terceiro” outorgantes, os seguintes:
“PRIMEIRO
CC, NIF ... ... .40, solteiro maior, residente na Rua 1, natural da freguesia de Vila Viçosa (...), concelho de Vila Viçosa, portadora do bilhete de identidade número ....56 de 22/09/2005, emitido pelos SIC de Évora.
SEGUNDO
a) HH, casado, residente no Monte ..., freguesia de ..., concelho de Borba, de onde é natural, portador do bilhete de identidade número .....80 de 28/12/2004, emitido pelos SIC de Évora;
b) PP, casado, residente na Rua 2, e natural da freguesia de Estremoz (...), concelho de Estremoz, portador do bilhete de identidade número .....60 de 22/02/2000, emitido pelos SIC de Évora; e
c) QQ, divorciado, natural da freguesia de ..., concelho de Borba, onde reside na Rua 3, portador do bilhete de identidade número ....53 de 29/07/2005, emitido pelos SIC de Évora.
TERCEIRO
RR, NIF ... ... .30, casado com SS, (NIF ... ... .61) sob o regime da separação de bens, residente na Rua 4, natural da freguesia e concelho do ..., portador do bilhete de identidade número......19 de 27/09/2004 emitido pelos SIC de Lisboa.”.
34. Do teor da escritura pública referida em 33. Dos factos provados consta, de entre o mais, o seguinte:
“Pelo primeiro outorgante foi dito:
PRIMEIRO
Que, com exclusão de outrem, é dono e legítimo possuidor dos seguintes imóveis, sitos na freguesia de Alandroal (...), concelho do Alandroal:
VERBA UM
Prédio misto, denominado “1”, com a área total de vinte e três hectares e mil e sessenta e quatro centiares, composto a parte urbana por rés-do-chão e primeiro andar destinado a habitação, com cavalariça, com a área de implantação de cento e quinze vírgula setecentos e vinte e cinco metros quadrados, com uma dependência com sessenta e seis vírgula quatrocentos quarenta e cinco metros quadrados, e parte rústica por cultura arvense, olival, mato, construção rural e logradouro, a confrontar do Norte e Poente com TT, Sul com Fronteira, e Nascente com UU; inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo .04, em nome do justificante e na matriz rústica sob o artigo 7, secção 001, em nome do justificante e FF, com o valor patrimonial respectivamente de e 11.205,00 e € 13.283,60 e o atribuído de vinte e quatro mil quatrocentos e oitenta e oito euros e sessenta cêntimos.
VERBA DOIS
Prédio rústico, denominado “1”, com a área de sete mil setecentos e cinquenta metros quadrados, composto por olival, a confrontar do Norte e Poente com TT, Sul com Fronteira, e Nascente com UU, inscrito na matriz rústica sob o artigo 8, secção 001, em nome do justificante, com o valor patrimonial e atribuído de trezentos e setenta e cinco euros e quarenta cêntimos.
SEGUNDO
Que os identificados imóveis não se encontram descritos na Conservatória do Registo Predial do Alandroal.
CC
Que os mencionados prédios foram adquiridos por ele primeiro outorgante, em dia e mês que não pode precisar do ano de mil novecentos e setenta, por doação verbal de seus pais, KK e FF, residentes que foram em Vila Viçosa, já falecidos.
QUARTO
Que, em virtude disto, não é detentor de qualquer título formal que legitime o domínio dos referidos prédios.
QUINTO
Que, não obstante isso, ele justificante, passou a exercer sem interrupção todos os poderes de facto inerentes ao direito de propriedade, desde a referida aquisição, tendo procedido a obras de conservação, usufruindo de todas as utilidades por eles proporcionadas, colhendo os frutos, pagando sempre as respectivas contribuições ou impostos, com ânimo de quem exercita direito próprio, sendo reconhecido como seu dono por toda a gente, fazendo-o de boa fé, por ignorar lesar direito alheio, pacificamente porque sem violência, contínua e publicamente, à vista e com conhecimento de todos e sem oposição de ninguém, e tudo isto por lapso de tempo superior a vinte anos.
SEXTO
Que, dadas as características de tal posse, adquiriu os citados imóveis por usucapião, título esse que, por sua natureza, não é susceptível de ser comprovado pelos meios normais.
SÉTIMO
Que, para suprir tal título, recorre à presente justificação para fins de primeira inscrição no registo predial.
Declararam os segundos outorgantes:
Que por serem verdadeiras, confirmam plenamente as declarações que antecedem.
Adverti os outorgantes de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se. Dolosamente e em prejuízo de outrem, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas.
Declarou ainda o primeiro outorgante:
Que, pelo preço global já recebido de cinquenta mil euros, vende ao terceiro outorgante, RR, os atrás indicados prédios, e ainda os seguintes, também sitos na citada freguesia de Alandroal (...):
VERBA TRÊS
Prédio misto, denominado “1”, com a área total de vinte e cinco hectares e sete mil e dezasseis centiares, composto a parte urbana por três divisões que se destinam a cavalariça, cocheira e cabana de bois, com a área de implantação de trezentos e trinta vírgula oitenta metros quadrados, com uma dependência com vinte e três vírgula vinte metros quadrados, e parte rústica por cultura arvense, olival e construção rural, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 803, e na matriz rústica sob o artigo 9, secção 001, (anteriormente inscrito sob parte do artigo 6, secção Q), com o valor patrimonial respectivamente de € 18.560,88 e € 12.367,20;
Que este prédio se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial do Alandroal sob o número três mil e noventa e sete, a folhas quarenta e nove verso do livro B-dez, definitivamente registado a favor dele primeiro outorgante pela inscrição dois mil setecentos e vinte e oito do livro G oito;
Que sobre o indicado imóvel se encontra registado usufruto a favor de KK e FF, pela inscrição duzentos do livro F um, usufruto esse já extinto, em virtude do falecimento dos usufrutuários.
VERBA QUATRO
Prédio rústico, denominado “1”, com a área de cento e cinquenta metros quadrados, composto por cultura arvense, a confrontar do Norte e Poente com TT, Sul com Fronteira, e Nascente com UU, inscrito na matriz rústica sob o artigo 10, secção 001, (anteriormente inscrito sob parte do artigo 6, secção Q), com o valor patrimonial de € 3,40.
Que este prédio foi desanexado do prédio atrás identificado, descrito na dita Conservatória sob o número três mil e noventa e sete, a folhas quarenta e nove verso do livro B-dez, em virtude de se encontrar fisicamente separado do mesmo pela Albufeira do Alqueva.
Que do indicado preço de cinquenta mil euros, corresponde: catorze mil e oitocentos euros, ao artigo urbano 804;dez mil euros ao artigo 7, secção 001; trezentos euros, ao artigo 8, secção 001; dez mil euros, ao artigo 803; catorze mil e oitocentos euros, ao artigo 9, secção 001, e; cem euros, ao artigo 10, secção 001.
Declarou o terceiro outorgante:
Que aceita este contrato nos termos exarados.”.
35. O valor de transação da Herdade 1 à data da escritura pública referida em 33. Dos factos provados ascendia a € 235.590,00, correspondendo o valor do metro quadrado a € 4,75/m2
36. Atualmente, o valor de transação da Herdade 1 corresponde a € 268.000,00.
37. O Réu, através da escritura pública referida em 33. Dos factos provados, procedeu à venda da Herdade 1 a fim de assegurar liquidez para proceder ao pagamento das mais valias decorrentes da alienação da Herdade 2.
38. A venda da Herdade 1 deu origem à ação judicial de preferência contra o Réu com o n.º de processo 202/11.4TBVVC a qual corre os seus termos no Juízo de Competência Genérica do Redondo – Alterado pelo tribunal da Relação.
39. O Réu CC veio a falecer em D-M-2012.
40. O requerido, no âmbito do acordo referido em 11., pagou a quantia de €55.135,87 € - Aditado pelo tribunal da Relação.
a) Por remissão para o facto provado n.º 14, que FF procedesse à administração dos bens.
b) Por referência ao facto provado n.º 15, que a assistência prestada pela Autora AA se tenha mantido até à data do decesso da progenitora do Réu.
c) O Réu usasse linguagem para comunicação autista.
d) O Réu tivesse dificuldades de interpretar e aprender as capacidades de interação social e emocional com os outros ou falta de reciprocidade social ou emocional, mesmo com a família mais próxima.
e) O Réu, com o avançar da idade, nunca teve um comportamento correspondente à sua idade biológica.
f) Sem prejuízo do facto provado n.º 16, que o mencionado nos factos não provados c) a e) se tenha agravado ou que tal tenha sucedido na data do decesso da progenitora do Réu.
g) A progenitora do Réu FF mostrava-se impossibilitada de lhe dar assistência.
h) Sem prejuízo do facto provado n.º 15, que a assistência prestada pela Autora AA ao Réu tenha sido uma consequência da impossibilidade de tal assistência ser prestada pela progenitora daquele.
i) Em consequência dos factos provados n.ºs 18 a 22, as capacidades cognitivas do Réu tenham resultado enfraquecidas.
j) Os tratamentos referidos no facto provado n.º 9 tenham sido iniciativa da Autora AA.
k) Em consequência do diagnóstico referido no facto provado n.º 9, o Réu tenha de ser assistido por terceiros nos cuidados de higiene.
l) À data da instauração da presente ação o Réu se encontrasse a residir em casa das Autoras.
m) O Réu revela frequentes alterações de memória.
n) O Réu apresenta dificuldades na interpretação de conversas que obriguem à abstração do pensamento.
o) Por referência aos factos provados n.ºs 10 e 24, que o Réu tenha suportado um prejuízo superior a € 10.000,00.
p) Por remissão para o facto provado n.º 11 e sem prejuízo do mesmo, que LL e MM tenham invocado a qualidade de afilhados para convencerem o Réu a constituir-se seu fiador.
q) MM, durante o ano de 2005, não possuiu quaisquer bens patrimoniais suscetíveis de poder honrar com as suas obrigações.
r) LL e MM têm procurado, com a colaboração de familiares diretos, convencer o Réu para que este venda a Herdade 2 por ser esta a única forma de assegurar o cumprimento das responsabilidades para com a Caixa Agrícola de ....
s) As responsabilidades do Réu perante a Caixa Agrícola de ... ascendiam a cerca de € 100.000,00.
t) O Réu revelasse submissão às pretensões do seu rendeiro e devedor.
u) O Réu não é capaz de apreciar documentos que lhe sejam apresentados para assinatura, mesmo que revelem a assunção de responsabilidades vultuosas.
v) O Réu não é capaz de cálculo e de avaliação de propostas que lhe forem apresentadas para vender o seu património.
w) O Réu não tenha consciência da gravidade de regularizar dívidas de pessoas estranhas à família, bem assim como do mencionado nos factos não provados u) e v).
x) O Réu não desenvolve qualquer atividade produtiva.
y) Sem prejuízo do facto provado n.º 14, que o Réu tenha iniciado a administração dos bens em janeiro de 1988.
z) Por referência aos factos provados n.ºs 27 e 28, que o Réu não tinha consciência do ato praticado em 09-02-2006.
V – Fundamentação de direito
1. Recorde-se que o presente recurso tem por objecto as seguintes questões:
• Erro na apreciação da matéria de facto (e, conexamente, nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão);
• Ilogicidade no uso de presunções judiciais;
• Violação de normas de direito probatório material;
• Verificação dos pressupostos de decretamento de acompanhamento de maior, com fundamento em prodigalidade.
2. Erro na apreciação da matéria de facto
A recorrente insurge-se contra o acórdão recorrido, na parte em que conheceu da impugnação da matéria de facto, invocando: (i) que o Tribunal da Relação não conheceu, em parte, da impugnação da matéria de facto; (ii) que o acórdão recorrido é nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão; (iii) e que se verifica uma contradição insanável entre diversos pontos da matéria de facto provada, por um lado, e entre pontos da matéria de facto provada e não provada, por outro.
Vejamos.
2.1. Do não conhecimento da impugnação da matéria de facto quanto ao facto provado n.º 25 (“O Réu não possuía liquidez para honrar as obrigações que garantiu”)
Insurge-se a recorrente contra o acórdão recorrido por considerar que a impugnação da matéria de facto levada a cabo no âmbito do recurso de apelação não foi objecto de conhecimento e que a prova produzida nos autos impunha a conclusão de que o réu tinha liquidez para fazer face às responsabilidades por si assumidas (cfr. facto provado n.º 11) e que, por esse motivo, não tinha necessidade de vender as herdades descritas nos autos.
Considera, em síntese, a recorrente que o Tribunal da Relação não podia ter dado como provada a falta de liquidez do réu, em face da prova produzida nos autos a que a recorrente aludiu em sede de apelação, na parte relativa à impugnação do facto n.º 25 dado como provado.
Ora, analisado o recurso de apelação, cumpre deixar expresso que o facto n.º 25 foi objecto de impugnação da matéria de facto, tendo a então apelante, ora recorrente, aludido a um conjunto de elementos probatórios que, em seu entendimento, seriam suficientes para justificar a alteração do dito facto.
A este propósito, escreveu a recorrente, nomeadamente, que “constam dos autos a fls. 2020 e 2021, a outorga de Testamento do R. em 200517 a fls. 2140, e do qual ficaram fora as Herdades 2 e do 1, a fls. 2148 a 215 2 as doações, em 2007 (fls. 1320 a 1325), de nua-propriedade e usufruto, respetivamente ao empregado HH, mulher e filhas, de 4 herdades que já estavam no testamento, sem clausula modal, em 28/02/2007 e a fls.1326 a 1419 e a 1997 a 2118 as movimentações da conta bancária de requerido, a debito entre 2006 e 2012, na qual era co-titular o funcionário do R. HH, da qual foram debitados € 270 mil Euros, antes de ser institucionalizado no Lar da Santa Casa da Misericórdia de ..., que surgiram durante o julgamento. (…) São também factos instrumentais os movimentos a debito de quantias levantamentos de quantias bancárias nos anos de 2006 a 2012, a fls.1326 a 1419, o que se mostra incompatível com os factos provados em 25º pois havia liquidez e se o Réu sempre foi poupado e muito ciosos dos seus bens, em especial do dinheiro, então como se explica que tenha gasto € 270 mil em 4 anos, tendo de vender a Herdade 1, mostrando para o efeito o extrato bancário à testemunha VV que ao minuto 31:10 disse o seguinte: (…). Não faz qualquer sentido dar como provado o 25 e o 26 neste processo, se ainda o quesito estabelecesse que o R. era muito cioso das suas propriedades, poderia incorrer numa situação de falta de liquidez, mas quem tem falta de liquidez e é cioso dos seus bens não doa 4 propriedades que estão arrendadas e não faz os movimentos bancários a debito de fls. 1997 a 2118.
Todas as testemunhas são unanimes em dizer que o R. vivia de rendas e resultando dos extratos de fls.1997 a 2118 que o R. gastou € 270.000,00 entre 2006 e 2010, cabe perguntar onde está provada a falta de liquidez, e por consequência cabe explicar porque terá o R. vendido as Herdade 2 do 1, se não tivesse os problemas identificados e dados como provados a fls. 688 e que foram confirmados no depoimento em 1º instância pelo Dr. EE, identificado em ata de 09-03-202244, tendo sido ouvido em depoimento das 09:38:01 horas com seu termo pelas 10:57:47 horas.”.
Ora, o Tribunal da Relação nada escreveu sobre esta matéria, tendo, ao invés, considerado que tal facto se encontrava provado, não tendo sido objecto de impugnação. Isso mesmo resulta do seguinte segmento: “Por outro lado, está provado que o réu constituiu-se fiador das obrigações assumidas pela sua afilhada LL e pelo marido dela MM num empréstimo que estes contraíram na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... (facto provado sob o nº11) e que o réu não possuía liquidez para honrar as obrigações que garantiu (facto provado sob o nº25).” [bold nosso].
Assim, temos que o acórdão recorrido apenas se pronunciou sobre a pretendida alteração ao facto provado n.º 30, nada referindo de concreto quanto ao facto n.º 25, quanto aos meios de prova indicados pela recorrente em sede de impugnação da matéria de facto. Referiu-se, assim, o tribunal da Relação ao facto n.º 25 provado como estando provado e como não tendo sido impugnado, o que, como já se disse, não corresponde ao que, efectivamente, se verificou nos autos.
Verifica-se, assim, que o Tribunal da Relação não cumpriu o seu dever de reapreciar devidamente a matéria de facto provada e oportunamente impugnada, em concreto quanto ao facto n.º 25 provado.
Sucede, porém, que, como este Supremo Tribunal tem vindo, reiteradamente, a afirmar:
“De harmonia com o princípio da limitação a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com indiscutível relevância para a decisão da causa, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (cf. art. 130º, do CPC).
Por conseguinte, se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação da decisão proferida pela 1ª instância, no plano dos factos.
O direito à impugnação da decisão de facto previsto no art. 640º, do CPC assume, pois, claramente, um caráter instrumental face à decisão sobre o fundo da causa.” – acórdão do STJ, de 14-03-2019 (proc. n.º 8765/16.16.1T8LSB.L1.S2), disponível em www.dgsi.pt.
Temos pois que, caso se conclua que a alteração pretendida pela parte não tem – em cenário de procedência - a virtualidade de alterar o desfecho dos autos, não há que determinar a baixa dos autos ao tribunal recorrido para conhecimento da matéria de facto não analisada. Assim é, uma vez que tal equivaleria à prática de um acto inútil, vedada nos termos da nossa lei processual civil (cfr. art. 130.º do CPC).
É esse o caso dos autos.
Com efeito, como se procurará demonstrar infra, face ao quadro fáctico apurado nos autos, a demonstração da liquidez ou da iliquidez do réu é, por si só e desacompanhada de outros elementos, irrelevante para a solução a dar ao caso vertente.
Esta conclusão, a cujos fundamentos aludiremos infra, torna inútil a determinação da baixa do processo ao tribunal recorrido, na medida em que, mesmo que a pretensão da recorrente viesse a ser acolhida, tal não teria a virtualidade de alterar a sorte do presente litígio, no sentido pretendido pela recorrente.
Relega-se, assim, para o momento do conhecimento do mérito da causa o conhecimento desta matéria e a demonstração de que, face aos contornos fácticos apurados, a factualidade impugnada e não conhecida pelo Tribunal da Relação não tem – mesmo na formulação pretendida pela recorrente – relevância para a decisão da causa.
O mesmo se afirma quanto às demais referências à iliquidez do réu ao longo do elenco de factos provados, nomeadamente a menção de que os negócios celebrados pelo réu visaram assegurar liquidez para fazer face às dívidas existentes à data.
Alega, contudo, a recorrente que a demonstração do facto n.º 25 se mostra incompatível com um conjunto de factos, igualmente, dados como provados.
Ora, sem prejuízo do que se afirmou supra, no sentido da irrelevância daquele facto, consideramos que a hipótese de contradição entre factos provados, por um lado, e entre factos provados e não provados, por outro, pode e deve ser conhecida por este Supremo Tribunal.
2.2. Contradição entre os factos provados n.ºs 25, 26, 27, 33, 34 e 37 e a decisão final
Invoca a recorrente existir contradição insanável entre os factos n.ºs 25, 26, 27, 33, 34 e 37, por considerar que “as respostas dadas à matéria de facto são contraditórias porque têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, não podem subsistir ambas utilmente, por uma delas ser contrária da outra, como é por exemplo a afirmação de que os negócios elencados em 27º e 33º. 34º foram feitos por falta de liquidez do Réu, quando está provado que sempre foi poupado e muito cioso dos seus bens em especial do dinheiro.”.
Alega a recorrente que tal contradição gera a nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão final.
Ora, como este Supremo Tribunal teve já oportunidade de afirmar, “o vício da al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, só ocorre quando os fundamentos de facto e de direito invocados no acórdão recorrido conduzirem de acordo com um raciocínio lógico a resultado oposto ao que foi decidido, ou seja, quando a fundamentação apresentada justifica uma decisão precisamente oposta à tomada” (acórdão de 27-05-2025, proc. n.º 6130/22.0T8FNC.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Assim, “uma coisa é a contradição lógica entre fundamentos e decisão e outra, essencialmente diversa – e que não determina a nulidade do acórdão –, é o erro de interpretação dos factos ou do direito ou na aplicação deste” (acórdão de 18-12-2012, proc. n.º 402/06.9TBVCT.G1.S1, não publicado).
Deste modo, a nulidade da decisão por oposição entre os fundamentos de facto e de direito (cfr. art. 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do CPC), “pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la” (acórdão de 11-01-2018, proc. n.º 779/14.2TBEVR-A.E1.S1, não publicado). Neste sentido, pronunciaram-se, entre muitos outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 21-01-2021 (proc. n.º 3384/16.5T8GMR.G1.S1) e de 04-02-2021 (proc. n.º 22/17.2T8CLB.C1.S1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Feito este breve enquadramento, cumpre recordar que, no caso dos autos, estão em causa os seguintes factos:
25. O Réu não possuía liquidez para honrar as obrigações que garantiu.
26. O Réu sempre foi poupado e muito cioso dos seus bens, em especial do dinheiro.
27. [venda da herdade 2]
33. e 34. [venda da herdade 1]
37. O Réu, através da escritura pública referida em 33. dos factos provados, procedeu à venda da Herdade 1 a fim de assegurar liquidez para proceder ao pagamento das mais valias decorrentes da alienação da Herdade 2.
Ora, analisados os factos em confronto, conclui-se que não se verifica a invocada contradição entre os fundamentos de facto e a decisão final.
O raciocínio da recorrente é o seguinte: se o réu era poupado e cioso dos seus bens e se viu numa situação de falta de liquidez, então é evidente que se verifica uma situação de prodigalidade e de incapacidade do réu para gerir a sua pessoa e os seus bens.
Não lhe assiste razão, uma vez que a circunstância de o réu ser poupado e cioso dos seus bens não é incompatível com um cenário de falta de liquidez, sem que tenha de se verificar necessariamente uma situação de prodigalidade porque o montante das dívidas existente pode ser, por razões várias, superior ao valor da poupança eventualmente existente; e porque a poupança existente pode não se revelar em dinheiro, podendo estar investida em outros bens, nomeadamente nas herdades em discussão nos autos.
Como é evidente, a existência de património ou mesmo de poupança não é sinónimo de liquidez, pelo que não se alcança a verificação de qualquer contradição, muito menos insanável, entre os factos mencionados e a decisão final proferida. Se assim não fosse, seria de concluir que qualquer pessoa poupada não teria, em caso algum, falta de liquidez e que, caso tivesse falta de liquidez, não poderia, em caso algum, ter capacidade para gerir o seu património, o que manifestamente não corresponde à normalidade da vida e às regras da experiência comum.
Ademais, como explicou o Tribunal da Relação, a venda de património em condições desfavoráveis, pode justificar-se, desde logo, pela necessidade de vender o imóvel com urgência, sem que também este cenário implique, necessariamente, que se conclua pela prodigalidade do réu.
A circunstância de as recorrentes não concordarem com os negócios celebrados pelo réu, não significa que tais vendas tenham ocorrido num cenário de prodigalidade, até porque nada impede que uma pessoa que se encontre na plena posse das suas faculdades mentais celebre negócios economicamente desfavoráveis, como sucede, repete-se, quando exista urgência na realização de dinheiro.
Acresce que a circunstância de a recorrente não concordar com os negócios celebrados não impõe a conclusão de que o réu só aceitaria tais negócios se tivesse numa situação de capacidade diminuída. Trata-se da visão da recorrente face aos negócios, que, repete-se, não tem de corresponder à visão que o réu tinha desses mesmos negócios.
Ora, não cabe avaliar, nestes autos, se o réu era bom gestor, mas sim se tinha capacidade para alcançar e compreender as consequências dos seus actos e de gerir o seu património, análise que se fará mais adiante.
Tudo isto para afirmar que não se vislumbra qualquer oposição entre os fundamentos de facto e a decisão final, capaz de afectar a decisão recorrida nos termos pretendidos pela recorrente.
Considera, assim, a recorrente que a decisão recorrida é nula por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão final.
O raciocínio da recorrente é o seguinte: se o réu vendeu as herdades por valor inferior ao valor de mercado e se vendeu herdades que tinham um valor muito superior ao valor em dívida, então é evidente que não tinha capacidade para gerir a sua pessoa e os seus bens.
Porém, novamente não lhe assiste razão.
Efectivamente, analisado o teor da decisão recorrida, há que deixar expresso que não se descortina um qualquer vício na construção lógica da decisão, tendo o Tribunal da Relação afirmado, simplesmente, que, tendo por referência a matéria de facto dada como provada, não existiam elementos suficientes para fazer proceder a pretensão da autora.
Considerou o tribunal a quo que “as herdades foram vendidas em contextos de necessidade, sendo consentâneo com as regras da vida que a necessidade de vender, consequência normalmente vendas putativamente desfavoráveis, menos vantajosas do ponto de vista económico, sem que daí se possa inferir que a pessoa que celebra tais negócios, não está em condições de gerir a sua pessoa e bens.”.
Ora, as razões da discordância da recorrente prendem-se, no essencial, com a interpretação dos factos dados por provados à luz das normas jurídicas aplicáveis ao caso. Sucede que tais razões de discordância respeitam à subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal, o que, nos termos da jurisprudência supra citada, se deve reconduzir à invocação de erro de julgamento e não à invocada nulidade. Mais uma vez, não releva, neste contexto, avaliar do acerto da decisão recorrida, mas tão-só verificar se a dita contradição (geradora de nulidade) se verifica.
No caso que nos ocupa, a resposta a tal questão não pode deixar de ser negativa, dando-se por reproduzidas, nesta sede, as considerações tecidas supra.
Assim, o que se verifica no caso é que a recorrente discorda da decisão proferida pelo Tribunal da Relação, naturalmente, por ser a mesma contrária à sua pretensão, o que não é suficiente para que se conclua pela nulidade da decisão.
É, pois, quanto basta para afirmar que não se verifica a nulidade imputada ao acórdão recorrido.
Em face disto, conclui a recorrente que tal facto deveria ter determinado a procedência da presente acção.
Ora, mais uma vez, cumpre afirmar que o montante devido a título de mais-valias é irrelevante para a solução a dar à presente causa. Voltaremos a esta matéria mais adiante.
Seja como for, cumpre salientar que, lido o recurso de apelação, resulta manifesto que, não só a recorrente não impugnou o facto n.º 37 dado como provado, como o utilizou como argumento para sustentar a sua visão sobre a factualidade provada e não provada.
Escreveu a recorrente, a determinado passo, que “[n]este particular estão também os factos relativos à falta de planeamento fiscal do requerido, com a necessidade de vender uma propriedade atrás da outra, perante a “surpresa” da notificação para pagamento de mais valias, que foi referido pela testemunha Dr. José Alberto dos Santos Fernandes Pereira. (…) O comportamento do R. não pode ser valorado pelo padrão de diligência exigível a “um bom pai de família”, pois ninguém vende um imóvel misto, sem fazer planeamento fiscal, sem saber quanto é que vai ter de pagar em mais valias.”.
Assim, tendo em consideração que o facto n.º 37 não foi impugnado pela recorrente em sede de apelação não se mostra possível equacionar a violação do disposto no art. 662.º do CPC.
Por fim, sempre se dirá que a eventual contradição entre este facto n.º 37 e a decisão final proferida é matéria que se coloca no domínio do erro de julgamento e já não no das nulidades da decisão. Com efeito, como se procurou demonstrar supra, a eventual discordância quanto à interpretação dos factos provados à luz das normas aplicáveis não implica a nulidade da decisão recorrida e apenas poderá ser apreciada em sede de análise do mérito da causa.
2.3. Contradição entre os factos n.º 25 e 30 dados como provados
Considera a recorrente que a decisão sobre a matéria de facto é contraditória por não ser possível concluir, a um só tempo, que a venda das herdades foi determinada por uma situação de falta de liquidez e, ainda, por intranquilidade e ansiedade.
Estão em causa os seguintes factos:
25. O Réu não possuía liquidez para honrar as obrigações que garantiu.
30. O Réu, através da escritura pública referida em 27. dos factos provados, procedeu à venda da Herdade 2 num contexto de ansiedade e intranquilidade face às responsabilidades assumidas pelo mesmo supra mencionadas em 11. dos factos provados.
37. O Réu, através da escritura pública referida em 33. dos factos provados, procedeu à venda da Herdade 1 a fim de assegurar liquidez para proceder ao pagamento das mais valias decorrentes da alienação da Herdade da Tanganha.
Mais uma vez, não assiste razão à recorrente.
Na verdade, uma análise concatenada dos factos provados em confronto permite concluir, com clareza e facilidade, que o Tribunal da Relação considerou que a venda daquela concreta herdade foi realizada num contexto de falta de liquidez, o que, associado à circunstância de o réu ser poupado, gerou uma situação de intranquilidade e ansiedade. Este raciocínio nada tem de contraditório.
Não se alcança em que medida tal factualidade pode conflituar, até porque, em circunstâncias normais, qualquer pessoa que se veja confrontada com a existência de dívidas, em contexto de falta de liquidez, facilmente ficará intranquila e ansiosa.
Não procede, assim, a alegação da recorrente.
2.4. Contradição entre os factos provados 25 e 37 e os factos não provados o) e s)
Invoca a recorrente a existência de contradições várias entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada. Em concreto, está em causa a contradição entre os factos provados n.ºs 25 e 37 e os factos não provados constantes das alíneas o) e s).
Aqui chegados, é pertinente recordar que este Supremo Tribunal tem vindo a propugnar o entendimento, absolutamente pacífico, de que “a contradição entre factos provados e factos não provados não merece relevância, por não determinar colisão entre respostas positivas e negativas, pois que estas últimas nenhuns juízos permitem formular sobre os factos indagados; tal relevância só surge quando as respostas negativas tiverem conteúdo totalmente sobreponível ao das respostas positivas, ou seja, se a mesma matéria factual for considerada provada e não provada.” (acórdão de 16-03-2023, proc. n.º 1377/18.7T8LSV.L1.S1, não publicado. E ainda que “a contradição existirá, excepcionalmente, [se] as respostas negativas não acolheram o facto que constitui ou integra “antecedente lógico necessário da resposta afirmativa” (acórdão de 20-05-2010, proc. n.º 2655/04.8TVLSB.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt. Neste sentido, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do STJ de 20-12-2017 (proc. n.º 396/13.4TBALR.E1.S1) e de 16-12-2010 (proc. n.º 5889/05.4TBAVR.C1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.
Assim, a contradição entre factos provados e não provados apenas relevará quando a mesma matéria factual for considerada provada e não provada (o que, no caso, não se sucede), e, excepcionalmente, quando se verifique que as respostas negativas não acolheram facto que constitui ou integra antecedente lógico necessário da resposta afirmativa.
Ora, feitas as considerações, cumpre apreciar o caso dos autos.
Estão em causa os seguintes factos:
Provados:
25. O Réu não possuía liquidez para honrar as obrigações que garantiu.
37. O Réu, através da escritura pública referida em 33. dos factos provados, procedeu à venda da Herdade 1 a fim de assegurar liquidez para proceder ao pagamento das mais valias decorrentes da alienação da Herdade 2.
Não provados:
o) Por referência aos factos provados n.ºs 10 e 24, que o Réu tenha suportado um prejuízo superior a € 10.000,00.
s) As responsabilidades do Réu perante a Caixa Agrícola de ... ascendiam a cerca de € 100.000,00.
Alega a recorrente que “não ficou provado em o) que o Réu tenha suportado um prejuízo superior a € 10.000.00, e então não há suporte factual para a iliquidez, pois também não se provou o s) ou seja que as responsabilidades do Réu para com a CCA de ... ascendiam a cerca de € 100.000,00, pelo que tal situação é contraditória com o 25º e o 37º onde está provado que o Réu procedeu à venda da Herdade 1 a fim de assegurar liquidez para proceder ao pagamento das mais valias decorrentes da alienação da Herdade 2, quando a dívida paga à CCA foi de apenas 55.135,87€, tendo ainda disponível a quantia € 194.864,13, pelo que não existem factos de suporte à falta de liquidez, nem foram apuradas as “mais valias””.
Mais uma vez não se acompanha a posição da recorrente.
Como se afirmou supra, em regra não existe contradição entre factos provados e factos não provados, sendo que o caso que nos ocupa não integra a referida hipótese excepcional. Assim é porque os factos não provados a que a recorrente alude não configuram, em si mesmos, qualquer pressuposto lógico necessário relativamente a qualquer um dos factos provados supra mencionados.
Com efeito, a circunstância de não se ter demonstrado a existência de despesas concretas ou ainda o montante liquidado para pagamento de dívidas não significa que o réu não tivesse falta de liquidez por outros motivos, nomeadamente por força da realização de outros pagamentos não alegados – e por isso não provados – pela parte interessada.
O mesmo é dizer que, ainda que o réu tenha ficado com a quantia de € 194 864,13 disponível, tal não significa que não tenha alocado essa quantia a outro fim que se desconhece nos autos e que, no momento do pagamento das mais valias, já não tivesse essa quantia para fazer face a tal despesa.
Competia à recorrente alegar e provar qual o destino dado a tais montantes, sendo manifesto que a ausência de prova destes factos nunca poderia importar a conclusão pretendida pela recorrente, ou seja, de que o réu não tinha capacidade para gerir a sua pessoa e os seus bens.
Improcede, assim, a alegação da recorrente.
2.5. Contradição entre os factos não provados u) e v) com os factos provados n.ºs 33, 34, 35, 36 e 38
Invoca a recorrente que “factos não provados em u) e v) estão em contradição com ação provada em 39º, e com as avaliações de 35º e 36º e valores de 33º e 34º porque então podemos concluir se o Réu tivesse capacidade para perceber que não tinha liquidez, então não tinha capacidade de apreciar os documentos para assinatura, pois não representou as consequências de afiançar um empréstimo de capital de € 47.500.008 sem pôr a hipótese de o ter que pagar sozinho”.
Dão-se por integralmente reproduzidas as considerações supra a propósito da contradição entre matéria de facto provada e matéria de facto não provada.
Mais uma vez não assiste razão à recorrente. Vejamos.
São os seguintes os factos em causa:
Provados:
33. [negócio relativo à Herdade 1]
34. [negócio relativo à Herdade 1]
35. O valor de transação da Herdade do Aguilhão à data da escritura pública referida em 33. dos factos provados ascendia a € 235.590,00, correspondendo o valor do metro quadrado a € 4,75/m2
36. Atualmente, o valor de transação da Herdade 1 corresponde a € 268.000,00.
38. A venda da Herdade 1 deu origem à ação judicial de preferência contra o Réu com o n.º de processo 202/11.4TBVVC a qual corre os seus termos no Juízo de Competência Genérica do Redondo – Alterado pelo tribunal da Relação.
Factos não provados:
u) O Réu não é capaz de apreciar documentos que lhe sejam apresentados para assinatura, mesmo que revelem a assunção de responsabilidades vultuosas.
v) O Réu não é capaz de cálculo e de avaliação de propostas que lhe forem apresentadas para vender o seu património.
Ora, lidos e interpretados os factos supra, cumpre deixar expresso que não se alcança qualquer contradição entre a matéria de facto em análise.
No que concerne à fiança, o raciocínio da recorrente é o seguinte: se o réu tivesse capacidade para compreender que não tinha liquidez, então não teria prestado a fiança.
Ora, este entendimento não tem qualquer fundamento.
Desde logo, cumpre deixar expresso que os factos não provados a que a recorrente alude não configuram, em nenhuma medida, o antecedente lógico necessário dos factos dados como provados. Na verdade, a prestação de fiança a favor de terceiro implica sempre a hipótese de o fiador ser chamado a pagar em vez do devedor principal, sem que se exija que o fiador tenha liquidez ou que tenha consciência da sua liquidez.
Ademais, a recorrente retira uma conclusão de facto que não consta do elenco de factos provados, a saber, que o réu não tinha capacidade para perceber que não tinha liquidez. Ora, tal não resultou demonstrado, razão pela qual pode perfeitamente ter sucedido que o réu tenha prestado a fiança, sabendo que não tinha liquidez, mas que tinha património para fazer face à divida nessa eventualidade.
Não se vislumbra, assim, qualquer incongruência ou contradição que cumpra sanar.
2.6. Contradição existente entre os factos provados n.ºs 30 e 37 e o facto não provado w)
Invoca a recorrente que “[a]o não dar como provado o facto em w) o Tribunal entrou em contradição em 30º e 37º porque caso contrario, ou seja, se o Réu tivesse consciência das consequências dos seus atos não teria falta de liquidez nem de pagar mais valias, nem teria de ser demandado em acção de preferência e violação de contrato promessa de compra e venda a arrendatário da Herdade 1.”.
São os seguintes os factos provados em causa:
30. O Réu, através da escritura pública referida em 27. dos factos provados, procedeu à venda da Herdade 2 num contexto de ansiedade e intranquilidade face às responsabilidades assumidas pelo mesmo supra mencionadas em 11. dos factos provados.
37. O Réu, através da escritura pública referida em 33. dos factos provados, procedeu à venda da Herdade 1 a fim de assegurar liquidez para proceder ao pagamento das mais valias decorrentes da alienação da Herdade 2.
Facto não provado:
w) O Réu não tenha consciência da gravidade de regularizar dívidas de pessoas estranhas à família, bem assim como do mencionado nos factos não provados u) e v).
O raciocínio da recorrente é o que se segue: se o réu tivesse capacidade para apreciar os documentos dados para sua assinatura, então (i) não teria falta de liquidez, (ii) perceberia que era desnecessário invocar a usucapião e (iii) não teria sido demandado em acção de preferência.
Ora, por vezes, os argumentos mais desprovidos de sentido são os que mais custam a desmontar. É o que sucede nos autos.
Dir-se-á, contudo, o seguinte:
Desde logo, cumpre esclarecer que, também na situação em análise, a matéria de facto não provada não configura antecedente lógico necessário da matéria de facto provada.
De facto, não se alcança em que medida a falta de liquidez decorre, necessariamente, da falta de consciência dos seus actos. O que sucede nos autos é que a recorrente se debate com a ausência de factos suficientes para sustentar a sua pretensão. Na verdade, não resulta de todo em todo demonstrado qual o destino que o réu deu ao montante resultante da venda da Herdade 2 (deduzido o valor relativo ao pagamento da dívida). Não se sabe se o réu pagou outras dívidas, se adquiriu outro património ou ainda se teve despesas pessoais relevantes.
Dizer que tal falta de liquidez só pode resultar da sua falta de capacidade para analisar e compreender os seus actos não só não tem qualquer respaldo na matéria de facto dada como provada, como não se mostra a única hipótese ou sequer a hipótese mais plausível.
Ademais, é evidente que a circunstância de o réu ter sido demandado em acção de preferência nada indicia quanto à sua capacidade para gerir a sua pessoa e os seus bens. Abundam nos nossos tribunais acções de preferência sem que os diversos obrigados à preferência tenham de ter uma capacidade diminuída ou de sofrer de prodigalidade.
Por fim, o recurso infundado ou desnecessário a juízo não pode, de todo, ser imputado ao réu que não tinha, tanto quanto é do conhecimento dos autos, conhecimentos jurídicos suficientes para avaliar da pertinência da pretensão deduzida em juízo. Acresce que, como é comumente sabido, abundam nos nossos tribunais acções que se mostram desnecessárias ou manifestamente improcedentes, sem que tal implique a conclusão de que a parte activa na demanda padeça de capacidade diminuída.
Aqui chegados, cumpre apenas explicitar que, lido e interpretado o recurso de revista interposto, resulta cristalino que a recorrente se insurge, aqui e ali, contra a posição assumida pelas instâncias quanto à matéria de facto dada como provada e não provada.
Referimo-nos, em concreto, à discordância da recorrente face à forma como o Tribunal da Relação apreciou a prova produzida e à forma como a Relação interpretou os factos dados como provados.
Ora, relativamente à forma como o tribunal recorrido interpretou os factos dados como provados (valor de venda das herdades abaixo do valor de mercado, decisão de venda face ao valor em dívida perante a CCAM) e a sua relevância (ou irrelevância) para a afirmação da incapacidade do réu é matéria que se coloca no domínio do erro de julgamento e já não no domínio das nulidades da decisão ou da violação do poder-dever de reapreciação da matéria de facto.
A esta matéria – a do erro de julgamento - voltaremos em sede de análise do mérito da causa.
Já no que concerne à análise e reapreciação de meios de prova constantes dos autos, cumpre recordar que, como tem vindo a ser reiteradamente afirmado por este Supremo Tribunal, o poder de apreciar o cumprimento das regras adjectivas relativas à reapreciação da matéria de facto, não se confunde, em caso algum, com a sindicância do percurso probatório percorrido pelo Tribunal da Relação, nem tampouco da consistência da argumentação levada a cabo pelo tribunal recorrido. De facto, “não cabe ao tribunal de revista intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão pouco na aferição da sua consistência. (…) ao tribunal de revista não [compete] sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da livre e prudente convicção do julgador” (acórdão de 30-11-2021, proc. n.º 212/15.2T8BRG-B.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
No caso, em todas as questões suscitadas pela recorrente, estão em causa meios de prova sujeitos à livre apreciação das instâncias, matéria em que, consabidamente, o STJ não pode interferir.
Não se mostra, assim, possível sindicar a decisão do tribunal da Relação na parte em que se pronunciou sobre os meios de prova produzidos nos autos, sujeitos à livre apreciação da prova, tais como os que se referiu supra.
3. Ilogicidade no uso das presunções judiciais
Invoca, ainda, a recorrente que as presunções judiciais a que o Tribunal da Relação recorreu para dar como provados determinados factos são ilógicas, pugnando pela intervenção do Supremo Tribunal no âmbito desta matéria.
Aqui chegados, cumpre salientar que este Supremo Tribunal tem admitido a sindicância do uso de presunções judiciais se aquele ofender uma norma legal, padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados (cfr., a título exemplificativo, os acórdãos de 29-09-2016, proc. 286/10.2TBLSB.P1.S1) e de 11-04-2019, proc. n.º 8531/14.9T8LSB.L1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
Ora, analisadas as alegações de recurso, cumpre deixar expresso que a recorrente, a coberto da matéria relativa à ilogicidade no uso de presunções judiciais, nada invocou a este respeito. O que a recorrente considera ilógica é a apreciação dos meios de prova juntos aos autos levada a cabo pelo Tribunal da Relação, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova. Referimo-nos, em concreto, ao teor de depoimentos, de documentos juntos aos autos, dos quais decorre, no entender da recorrente, que é inequívoco que o réu não tinha capacidade para compreender as consequências dos seus actos.
Como é evidente, a discordância da recorrente face ao sentido decisório propugnado pelo Tribunal da Relação nada tem que ver com o recurso a presunções judiciais ilógicas, a que, de resto, a recorrente não aludiu e a que, de resto, o Tribunal da Relação não recorreu.
Seja como for, movemo-nos novamente no domínio da livre apreciação da prova não sindicável por este Supremo Tribunal.
O Tribunal a quo analisou a prova produzida, concatenando-a, tendo concluído em sentido contrário ao pretendido pela recorrente. A eventual existência de erro de julgamento de facto não é, face aos contornos do caso dos autos, sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Por fim, assinale-se que a recorrente confunde factos com meios de prova. Com efeito, muito embora seja prática corrente nos nossos tribunais a transcrição de documentos relevantes no contexto do litígio em análise, tal transcrição não corresponde aos concretos factos que cumpre demonstrar. Assim, a circunstância de o Tribunal da Relação ter consignado o teor de determinados documentos concretos existentes nos autos e não de outros não significa que os mesmos não tenham sido considerados para efeitos de fundamentação da matéria de facto.
Este procedimento nada tem de ilógico, sendo comum na actividade dos tribunais.
Competia à recorrente socorrer-se de tais documentos para fundamentar eventual impugnação da matéria de facto dada como não provada, nomeadamente da factualidade constante nas alíneas u), v) e w) dada como não provada.
Como é evidente, a transcrição do teor de determinados documentos e não de outros não implica a violação do disposto no art. 662.º do CPC, até porque, reitera-se, os documentos juntos aos autos configuram meios de prova e não factos em si mesmos.
Ademais, sempre se dirá que todos os meios de prova a que a recorrente aludiu configuram – face aos factos que a recorrente pretende demonstrar – meios de prova sujeitos à livre apreciação da prova, não podendo, nem devendo este Supremo Tribunal pronunciar-se sobre tal matéria.
É quanto basta para considerar improcedente a pretensão da recorrente.
4. Violação das regras de direito probatório material
Invoca a recorrente que o Tribunal da Relação violou normas de direito probatório material por considerar, em síntese, que o mesmo tribunal desconsiderou os documentos autênticos juntos aos autos.
Ora, como se sabe, “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. São, pois, os elementos que servem de instrumento à formação da convicção do juiz acerca dos factos controvertidos” (Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2020, pág. 245), sendo certo que o direito probatório material “regula o ónus da prova (estabelecendo as respetivas regras distributivas), bem como a admissibilidade e a força probatória dos diversos meios de prova.” (idem, pág. 247)
Assim, no que aqui releva, apenas existirá violação de direito probatório material nos casos em que “o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova ou tenha considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficientes” (idem, pág. 245).
Feito este breve enquadramento, cumpre apreciar a alegação da recorrente.
4.1. Não transcrição do “teor da certidão judicial, que inutiliza o valor probatório do 38º no sentido de que a venda da Herdade 1 com base em erróneas declarações de usucapião e de extremas deu origem ao processo 202/11.4TBVVCI”
Alega a recorrente que o Tribunal da Relação desresepeitou normas de direito probatório material por não ter considerado o teor dos documentos autênticos juntos aos autos, nomeadamente a certidão judicial junta aos autos relativa ao processo mencionado em epígrafe.
Invoca a recorrente que a circunstância de resultar daquela certidão judicial que a Herdade 1 estava onerada com um encargo e que o réu pensava que estava a vender o imóvel à pessoa a quem havia prometido vender o imóvel impõe a conclusão de que o réu tinha um défice cognitivo.
Ora, como é evidente, a recorrente não tem razão.
Desde logo, cumpre esclarecer que a simples circunstância de os documentos mencionados não se mostrarem transcritos no elenco de factos provados não implica que os mesmo tenham sido desconsiderados pelas instâncias.
Isto, por um lado.
Por outro lado, temos por manifesto que o que a recorrente coloca em crise é a circunstância de o tribunal recorrido não ter retirado de tais documentos a conclusão de que o réu tinha um défice cognitivo relevante. Como é evidente, tal factualidade – que resultará, de acordo com a recorrente, dos pedidos formulados no âmbito do processo supra e da factualidade ali invocada – não se mostra abrangida pela força probatória de quaisquer documentos, estando em causa apenas a interpretação que a recorrente faz daqueles elementos.
De facto, a certidão judicial não faz prova plena quanto à capacidade cognitiva do réu, apenas porque o mesmo foi demandado em acção de preferência.
Como é evidente, tais elementos sempre poderiam ser considerados ao abrigo da livre apreciação da prova, matéria sobre a qual este Supremo Tribunal não se pode pronunciar.
4.2. Não transcrição do teor dos documentos autênticos juntos em 07-04-2022 (venda da Herdade 2 por € 700 000,00)
Invoca a recorrente que o documento relativo à venda da Herdade 2, ocorrida já na pendência da audiência de julgamento, foi desconsiderado pelo Tribunal da Relação.
Ora, atento o objecto do presente processo não se alcança – e a recorrente também não explica – qual a relevância de dar como demonstrado que a Herdade 2 foi vendida já na pendência do processo.
Efectivamente, a factualidade que releva é a que consta dos factos provados n.ºs 32 e 35 e que corresponde ao valor de mercado dos imóveis vendidos pelo réu, na data dos negócios celebrados. Saber se esses imóveis foram vendidos posteriormente por terceiro não releva para a análise que se pretende levar a cabo nos autos.
Improcede, assim, a pretensão da recorrente.
4.3. Não consideração do teor da escritura pública de justificação notarial relativa à Herdade 1, não se tendo considerado que o réu se enganou a identificar a propriedade em causa; e não consideração do teor do contrato de arrendamento relativo à Herdade 1
Mais uma vez, vem a recorrente insurgir-se contra a não consideração do teor de escritura pública e de contratos celebrados pelo réu, por considerar que dos mesmos resulta que o réu não se encontrava na plena posse das suas faculdades mentais.
Ora, como já tivemos oportunidade de afirmar, a leitura que a recorrente faz daqueles documentos autênticos não se mostra abrangida pela respectiva força probatória (cfr. art. 371.º do CC), estando sujeita à livre apreciação das instâncias.
4.4. Não consideração da certidão do testamento do réu de 2005 e não consideração de que a Herdade 2 foi vendida sem ónus e encargos
Analisada a alegação da recorrente e tendo por referência as considerações teóricas tecidas supra, cumpre afirmar que não se vislumbra qualquer violação de regras de direito probatório material.
Com efeito, a pretensão deduzida pela recorrente, a coberto de uma suposta violação das regras de direito probatório material, mais não é do que uma discordância face à apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal da Relação. Considera a recorrente que os actos praticados pelo réu indiciam que ele não tinha capacidade para gerir a sua pessoa e os seus bens.
Sucede que tal factualidade não se mostra abrangida pela força probatória dos documentos autênticos invocados, na medida em que diz respeito à concreta capacidade do réu (cfr. art. 371.º do CC).
Mais uma vez, o que sucede no caso dos autos é que a recorrente não se conforma com a apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal recorrido, matéria na qual este Supremo Tribunal não se pode imiscuir.
5. Pressupostos para o decretamento de acompanhamento de maior, com fundamento em prodigalidade
Como é comumente sabido, com a aprovação da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, foram abolidos os institutos da interdição e da inabilitação, criando-se, em sua substituição, o regime jurídico do maior acompanhado.
Esta alteração legislativa visou a adaptação do nosso ordenamento jurídico à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adoptada, em Nova Iorque, pelas Nações Unidas a 30 de Março 2007 e aprovada pelo Estado Português pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 07 de Maio (publicada no Diário da República, Iª Série, n.º 146, de 30 de Julho de 2009), que veio “alterar o paradigma do direito das pessoas com deficiência, evoluindo de um modelo clínico para um modelo social de deficiência” (Diana Isabel Mota Fernandes, A interdição e inabilitação no Ordenamento Jurídico Português: Notas de enquadramento de direito material e breve reflexão face ao direito supranacional, Interdição e Inabilitação, pág. 263 (e-book do CEJ1)
Como salienta Maria dos Prazeres Beleza, a necessidade desta alteração visou reagir à “inadequação das soluções introduzidas pelo Código Civil de 1966 quanto às incapacidades dos maiores – interdição/inabilitação – à evolução social entretanto verificada”. Abandonou-se, assim, o “sistema dualista e rígido interdição/inabilitação e substituição por um regime monista e flexível, regido pelos princípios da “primazia da autonomia da pessoa”, respeitando e aproveitando a sua vontade e por um modelo de acompanhamento e não de substituição de pessoa carecida de protecção” – “Brevíssimas notas sobre a criação do regime do maior acompanhado, em substituição dos regimes da interdição e da inabilitação” (O novo regime jurídico do maior acompanhado (e-book do CEJ 2).
Em concretização do desígnio supra assinalado, surgiu o actual art. 138.º, n.º 1 do Código Civil que dispõe que “o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
A formulação mais ampla e menos rígida das possíveis causas subjacentes ao decretamento do acompanhamento de maior permite agora abarcar um conjunto de situações até então não contempladas na lei, impondo, contudo, uma ponderação caso a caso.
Como salienta Marta Caldas Viana (O regime jurídico do maior acompanhado: desafios, potencialidades e constrangimentos, págs. 84-853 , “quanto ao comportamento, não podemos ignorar ser este o critério que mais pontos de interrogação levanta pelo seu alcance, amplitude e indeterminabilidade, e que, por essa razão, mais carecerá de concretização jurisprudencial, não podendo «fundar a imposição de padrões sociais maioritários ou hegemónicos». (…) Destarte, apesar do seu caráter vago e ambíguo e da incerteza sobre o que poderá ou não aqui recair, o certo é que se tratarão de (i) comportamentos aditivos, geradores de uma compulsão, cujos impulsos a pessoa não consiga controlar, afetando as suas faculdades volitivas (ex: habitual prodigalidade, abuso de bebidas alcoólicas e estupefacientes ou dependência de videojogos); (ii) de casos em que, face à adoção de um determinado comportamento, a pessoa se veja impedida do livre domínio da sua vontade (ex: radicalização político-militar e adesão a seitas ilegais); (iii) ou de qualquer outro comportamento que, coartando a sua autodeterminação pessoal, ainda que num domínio específico da sua vida, impossibilite o pleno exercício dos seus direitos e cumprimentos dos seus deveres.” [bold nosso]
Há, assim, que ponderar, no caso concreto, se o comportamento do potencial maior acompanhado é susceptível, pela sua gravidade e consequências, de justificar o decretamento do acompanhamento e a aplicação de medidas de acompanhamento concretas.
Em qualquer caso, acompanhando o entendimento de Marta Viana, parece-nos inequívoco que a hipótese de prodigalidade continua a figurar entre as situações em que o acompanhamento de maior se pode justificar e em que a imposição de medidas de acompanhamento se pode tornar necessária.
Há, contudo, que definir com clareza quais os pressupostos da figura da prodigalidade e aquilatar do respectivo preenchimento no caso que nos ocupa.
Temos por incontornável o recurso ao labor doutrinário e jurisprudencial em torno da figura da prodigalidade, de forma a aquilatar quais são os comportamentos concretos susceptíveis de fundamentar o decretamento do acompanhamento de maior. O tratamento desta matéria à luz das normas, entretanto, revogadas, com a abolição do regime da inabilitação, continua a constituir um elemento fundamental para a densificação do conceito ora em análise.
Voltando às palavras de Marta Viana, “quando falávamos em habitual prodigalidade, referíamo-nos à prática reiterada de gastos avultados, injustificados e desproporcionais aos rendimentos e património do inabilitado, levando a uma delapidação ou «dissipação desregrada (quer em proveito próprio, quer alheio)» dos seus bens e capital. Todavia, as despesas perdulárias e excessivas, por si só, não eram suficientes, devendo resultar de uma diminuição da capacidade de entender e querer do incapaz. Era o que acontecia, designadamente, em casos de vício do jogo.” (ob. cit., pág. 24).
Neste sentido, Jorge Morais Carvalho esclarece, em anotação ao artigo 152.º do Código Civil, entretanto revogado, “entende-se normalmente que a prodigalidade se consubstancia em gastos excessivos (injustificados e perdulários). Não basta, no entanto, a existência de gastos excessivos (ainda que alguém os considere injustificados e reprováveis), uma vez que a liberdade é um princípio fundamental do nosso ordenamento jurídico (…) e cada um deve ter a possibilidade de fazer com o seu património aquilo que entender. É necessário, portanto, que o entendimento do inabilitando se encontre diminuído. Assim, p. ex., nada impede uma pessoa de, independentemente da idade, utilizar todo o seu património para fazer a viagem com que sempre sonhou. (…) é importante ter em conta que o regime da inabilitação visa tutelar o interesse do inabilitado, protegendo-o da sua incapacidade, e não o interesse de terceiros, nomeadamente de potenciais herdeiros.” (Código Civil Anotado, Almedina, Coimbra, 2017, págs. 172 e segs.).
Sobre esta matéria veja-se, ainda, Carlos Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1996, págs. 236 e ss.) e Anabela Gonçalves – «Breve estudo sobre o regime jurídico da inabilitação», in AAVV – Estudos em homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Hörster, Almedina, Coimbra, 2012. Págs. 117-118.
Resulta, assim, do exposto que a prodigalidade pressupõe a demonstração em juízo de que o visado, fruto de uma diminuição da sua capacidade, realizou reiteradamente gastos excessivos, injustificados e desproporcionais face aos seus rendimentos e património.
Efectivamente, para além da necessidade de demonstrar a prática habitual de actos de delapidação do património da pessoa visada, através de gastos injustificados, inúteis ou mesmo supérfluos, e a desproporção desses gastos face ao património/rendimento da pessoa visada, há que demonstrar que a pessoa visada tinha, no momento da prática daqueles actos, a sua capacidade diminuída por qualquer motivo ou que tinha mesmo uma total incapacidade para compreender o alcance e consequências dos seus actos.
Assim é porque, como bem salienta Jorge Morais Carvalho, a realização de actos de dissipação de património pode corresponder a uma expressão de vontade livre e esclarecida, caso em que não será possível afirmar a pretendida prodigalidade.
O mesmo é dizer: a demonstração de gastos excessivos, imotivados e desproporcionais face aos rendimentos não é, por si só e desacompanhada da demonstração de que a pessoa visada sofre de uma afectação das suas capacidades, suficiente para que se decrete o acompanhamento de maior.
Dito isto, analisados os factos dados como provados, cumpre deixar expresso que é manifesta a falta de demonstração de factos suficientes para o decretamento do acompanhamento do réu.
Vejamos.
Desde logo, analisado o elenco de factos provados e não provados, fácil é de concluir que todos os factos alegados relativos à diminuição da capacidade do réu ou mesmo à sua falta de capacidade resultaram não provados (constantes das als. c), d), e), f), i), m), n), t), u), v), w)), sendo manifesto que a prova dos mesmos se afiguraria essencial para permitir equacionar a eventual necessidade de decretamento do acompanhamento.
Como é evidente, a transcrição do teor de um relatório médico elaborado em contexto de observação hospitalar para o elenco de factos provados em nada altera o que se afirmou supra. Referimo-nos, em concreto, ao teor do relatório transcrito no ponto 21 provado do qual resultará que o réu tinha, naquela concreta data, a sua capacidade diminuída, o que em tese seria favorável à pretensão das autoras.
Sucede que, tratando-se de uma prática corrente nos nossos tribunais (a da transcrição do teor de determinados documentos), tal não se confunde com a necessária prova dos factos alegados pelas autoras, até porque estamos perante meios de prova sujeitos à livre apreciação das instâncias. O que sucedeu no caso dos autos é que, apesar de o teor de tal relatório ter sido transcrito pelas instâncias para o elenco de factos provados, tal não foi suficiente para fazer prova sobre factos concretos alegados pelas autoras e cuja prova verdadeiramente importava nos autos.
Assim, estando em causa – como está – um documento sujeito a livre apreciação da prova, a sua transcrição em nada auxilia este tribunal a decidir, até porque o que importaria demonstrar – do ponto de vista das autoras - eram os factos a que aludimos supra (constantes das als. c), d), e), f), i), m), n), t), u), v), w) não provadas), o que as autoras não lograram realizar.
Não se mostra, assim, provada a capacidade diminuída ou incapacidade do réu.
Isto, por um lado.
Por outro, os factos dados como provados não indiciam, sequer remotamente, a prática reiterada ou habitual de tais actos. Efetivamente, estamos perante dois actos de disposição patrimonial celebrados nos anos de 2006 e de 2010.
Como é evidente, o intervalo de tempo existente entre os actos em análise torna claro que o réu não praticava actos de disposição patrimonial de forma habitual, reiterada e desregradamente, tendo aqueles negócios sido celebrados em contextos específicos, sem que entre eles seja possível estabelecer qualquer ligação.
Falha, assim, igualmente o pressuposto da habitualidade.
Falha, outrossim, a demonstração de que o réu levou a cabo gastos injustificados ou excessivos; efectivamente, este tribunal apenas sabe que o réu vendeu duas propriedades e que pagou uma dívida de cerca € 55 000,00, desconhecendo qual o destino dado às quantias remanescentes, uma vez pago o valor em dívida.
A circunstância de não ter resultado demonstrado o fim que o réu deu a tais quantias não pode, naturalmente, fazer presumir que o mesmo as gastou de forma desregrada e descuidada e ainda que não tinha capacidade para gerir o seu património.
O ónus de alegação e prova competia às autoras que falharam neste particular.
Não menos importante é ainda a circunstância de não terem resultado provados quaisquer factos atinentes aos rendimentos e património do réu, não sendo sequer possível aquilatar da desproporção entre o valor dos negócios celebrados e a possibilidade económica concreta do réu no momento da respectiva celebração. Não sabe, assim, este tribunal qual o património do réu, quais os seus rendimentos, quais as obrigações a cujo cumprimento o mesmo se encontrava, à data, adstrito nem qual o impacto relativo destes negócios no património do réu.
Esta circunstância leva-nos, agora sim, à questão atinente à liquidez ou iliquidez do réu.
É que, mesmo considerando – como pretendia a recorrente – que o réu tinha liquidez para fazer face à concreta dívida apurada nos autos, a verdade é que desconhece este tribunal se existiam outras dívidas ou responsabilidades a liquidar ou se o réu precisava das quantias de que dispunha para gastos pessoais, não contando alocar tais quantias ao pagamento de uma dívida de terceiro.
De facto, pode ter sucedido que o réu, mesmo tendo liquidez para pagar de imediato o valor em dívida, tenha tido a necessidade de vender a Herdade 2 por precisar dos montantes de que dispunha para outros fins que não se mostram apurados nos autos ou ainda por pretender dispor de alguma liquidez para os seus gastos pessoais.
Como é evidente, na economia dos presentes autos e em face do que aqui se discute, a existência de liquidez nada significa se não se apurar qual a dimensão do passivo inscrito na esfera jurídica do réu ou ainda se não se demonstrar a desnecessidade dos gastos realizados. Também por este motivo não releva o apuramento do valor das mais-valias devidas, na medida em que se desconhece as razões que levaram, em hipótese, o réu a gastar as quantias recebidas com a venda da Herdade 2.
Ora, as autoras nada alegaram a este propósito, não podendo, por isso, que se tenham como demonstrado tais factos que, tudo visto, se assumem como essenciais para sustentar a pretensão deduzida em juízo. Desconhece-se, assim, o que terá o réu feito ao dinheiro que restou após pagamento das suas responsabilidades, como o gastou ou se o gastou.
Sucede que esse desconhecimento não pode ser utilizado contra o réu, numa lógica de que a falta de demonstração da utilização dada ao dinheiro recebido só pode significar que o réu o gastou de forma irracional, na medida em que era às autoras que se impunha o ónus da prova de factos subjacentes à prodigalidade invocada.
Por fim, afigura-se essencial recordar que, atentos os factos provados, todos os negócios descritos nos autos têm uma justificação plausível: (i) a prestação de fiança em favor de afilhados, determinada, segundo um juízo de normalidade, pela relação existente entre o fiador e afiançados; (ii) a venda de uma herdade para fazer face ao passivo; e (iii) a venda de uma outra herdade para fazer face ao montante de imposto devido pelas mais-valias, entretanto apuradas.
Não estamos, assim, perante actos de disposição patrimonial gratuitos e injustificados, tendo, ao invés, tal motivação ficado patente nos autos.
Para terminar, e como acima já se aflorou, não está em causa a discordância face aos negócios celebrados ou ainda a sua racionalidade económica face às regras de mercado, mas sim saber se a pessoa visada quis celebrar tais negócios e se o fez de forma livre e esclarecida.
De forma muito clara, escreveu-se no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal, de 18-10-2012 (proc. n.º 8894/09.8T2SNT.L1.S1), não publicado: “II - No juízo que temos de fazer na procura da caracterização do pródigo há de o julgador estar bem prevenido e pronto para poder sondar a vivência social do inabilitando, a sua filosofia de vida, perscrutar os aspectos do seu foro íntimo, que identificam a pessoa e a diferenciam das outras, os seus hábitos terrenos e as palpáveis perspectivas quanto ao seu mundo intelectual e imaterial. Será da correcta apreensão do peso dos valores sociais, que lhe são mais caros, que melhor se aferirá se estamos, ou não, perante um caso de prodigalidade. III - Não se comprovando que os actos de alienação, levados a cabo pelo J, consubstanciem tão só actos de puro esbanjamento, desperdício, sem qualquer motivação pessoal a comandar a sua vontade, também não estamos nós legitimados a interferir na sua vontade, direccionada a fazer uma vida até onde a sua fazenda lho permitia.”,
Assim, a falta de demonstração de que os actos levados a cabo pelo réu foram imotivados, injustificados e desproporcionais, impõe a conclusão de que não é possível interferir na vontade do réu em gerir e usar o seu património. Aliás, o réu, se quisesse e se tivesse capacidade para compreender o alcance dos seus actos, podia até ter doado todo o seu património, sem que tal justificasse o decretamento do seu acompanhamento.
O que sucede é que a recorrente continua a laborar no seguinte erro: não é pela simples circunstância de a recorrente discordar dos negócios celebrados ou de considerá-los ruinosos ou desfavoráveis que se impõe a conclusão de que o réu não tinha, à data, consciência das respectivas consequências.
O mesmo é dizer: a celebração de negócios desfavoráveis ou a assunção de responsabilidade por dívidas alheias, ainda que impliquem a realização de pagamentos e assunção de despesas, não implica, necessariamente, que a pessoa visada esteja em situação de incapacidade para compreender o alcance e consequências dos seus actos. Na verdade, qualquer pessoa que se encontre na plena posse das suas faculdades mentais pode, querendo, celebrar negócios desfavoráveis ou mesmo ruinosos.
A recorrente pode até discordar dos negócios celebrados pelo réu e considerá-los ruinosos ou desfavoráveis. Pode, ainda, a autora considerar que o réu perdeu a oportunidade para fazer uma fortuna; o que não pode é extrair de tal circunstância que o requerido não tinha capacidade para compreender as consequências dos seus actos, sendo manifesto que toda a factualidade alegada pelas autoras para fundar o seu pedido de decretamento da inabilitação por prodigalidade resultou não provada.
Forçoso é, assim, concluir-se pela improcedência da pretensão da recorrente.
VI – Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.
Após trânsito, remetam-se os autos ao Tribunal da Relação para apreciação do requerimento apresentado em 18-09-2025. (cfr. ponto 27 do relatório do presente acórdão)
Custas pela recorrente.
Lisboa, 23 de Outubro de 2025
Maria da Graça Trigo (relatora)
Fernando Baptista
Ana Paula Lobo
______________
1. Acessível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=k2dHshrqlHg%3d&portalid=30;↩︎
2. Acessível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=_nsidISl_rE%3d&portalid=30.↩︎
3. Disponível em https://repositorium.uminho.pt/entities/publication/5a52693a-abcd-419c-996c-534aebfa33ad.↩︎