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IMPUGNAÇÃO DE ADMISSÃO DE TESTEMUNHA A DEPOR
ADMISSIBILIDADE DE APELAÇÃO AUTÓNOMA
PROCURADOR COM PODERES PARA CONFESSAR
Sumário
1. A decisão de incidente de impugnação de admissão de testemunha a depor, na medida em que, por razões meramente formais, atinentes à identidade ou inabilidade da pessoa em causa, tem por objecto a própria admissibilidade de prestação do depoimento, subtraindo-o ou não aos meios de prova susceptíveis de serem ponderados pelo tribunal em sede de julgamento da matéria de facto, está abrangida na alínea d) do n.º 2 do art. 79.º-A do Código de Processo do Trabalho. 2. O art. 496.º do Código de Processo Civil, ao excluir da prova testemunhal todos os que possam depor como partes, abrange o representante legal e o representante voluntário com poderes para confessar, independentemente de o depoimento ter ou não valor de confissão, sendo no momento da inquirição que se afere a possibilidade de depor ou não como testemunha.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
Nos presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo especial de impugnação de despedimento colectivo, que AA e BB movem a Corden Pharma Lisbon, S.A., verificou-se que, na sessão de audiência de julgamento realizada em 1-07-2025, a testemunha comum aos Autores, CC, após ser identificada, entregou uma procuração conferida pela Ré a seu favor.
Seguidamente, o mandatário da Ré pediu a palavra e no seu uso impugnou a admissão da testemunha a depor, nos termos dos arts. 514.º e 515.º do CPC, com os fundamentos que da acta constam, a saber, em síntese, tratar-se de pessoa que pode prestar depoimento de parte. Após resposta dos mandatários dos Autores, opondo-se à impugnação com os fundamentos que da acta constam, foi proferido o seguinte despacho: «O tribunal acolhe no essencial todos os argumentos invocados pelos Ilustres Mandatários dos Autores, entendendo que a procuração apresentada não é suficiente para afastar o depoimento da identificada CC como testemunha. Desde logo porque os poderes de representação da sociedade em juízo são poderes genéricos que não lhe dão sequer a possibilidade de confessar factos e, como tal, entende o Tribunal que a identificada pessoa não esta impedida de declarações ou de depoimento como testemunha. Assim sendo, acolhendo-se todos os argumentos dos Ilustres Mandatários dos Autores, entende-se que a referida senhora irá prestar o seu depoimento na qualidade de testemunha. Como tal indefere-se o requerido pela Ré. Não pode efetivamente o Tribunal deixar de manifestar estranheza quanto a este incidente, que salvo melhor entendimento, a ter ocorrido devia ter sido suscitado atempadamente e não aqui hoje, na presença da testemunha, e sendo certo que a mesma pessoa foi indicada como testemunha da Ré, embora prescindida, e a procuração ora exibida data de 2019. Por tudo isto e pelo incidente suscitado o Tribunal condena a Ré em multa processual que se fixa em 3 UC.»
Seguidamente, procedeu-se ao depoimento da testemunha CC, tendo referido, aos costumes: é responsável de Recursos Humanos e do Departamento Legal da Ré, onde trabalha desde 02 de Outubro de 2004, e exerce funções de procuradora da Ré há cerca de 20 anos. Conhece os Autores enquanto trabalhadores que foram da empresa. O seu depoimento prosseguiu no dia 04-09-2025, sendo que, quando foi dada a palavra ao mandatário da Ré para contra-instar, querendo, pelo mesmo foi dito o seguinte: «A Ré entende que o depoimento da Dr.ª CC como testemunha é processualmente inadmissível, por essa razão oportunamente deduziu o incidente de impugnação de testemunha. A Ré não se conformou com a decisão do Tribunal nessa matéria e, por isso, interpôs recurso para o Tribunal da Relação, encontrando-se o mesmo pendente. Por essa razão, e por uma questão de coerência processual a Ré entende que não deve participar na inquirição da testemunha e, por isso, não vai fazer qualquer contra instância.»
A Ré interpôs recurso do despacho supra, em 16-07-2025, formulando as seguintes conclusões: «A. No interrogatório preliminar, a testemunha CC declarou ter poderes para representar a Ré em juízo perante todas as instâncias judiciais, na qualidade de procuradora da sociedade, com poderes para o efeito, por procuração outorgada em junho de 2019. B. Por procuração outorgada em 12 de Junho de 2019, reconhecida pelo Notário Público da Suíça Dr. DD e autenticada pela Notária portuguesa Dr.ª EE, a Recorrente (à data denominada OM Pharma S.A.) conferiu à testemunha CC uma extensíssima lista de poderes de representação que, por economia processual se dão aqui por integralmente reproduzidos, (alíneas a) a q) da dita Procuração) – cf. procuração junta aos autos em audiência, com a referência citius 158536448. C. Imediatamente após o interrogatório preliminar, a Recorrente deduziu incidente de impugnação de testemunha (cf. artigos 514º e 515º do Código de Processo Civil (“CPC”)), aplicáveis ao processo do trabalho atento o preceituado no artigo 1.º(1) a) do Código de Processo do Trabalho (“CPT”), opondo-se à admissão da testemunha. D. De entre os poderes conferidos são de destacar os poderes de representação em juízo, perante todas as instâncias judiciais, incluindo os poderes especiais para confessar, desistir e transigir e constituir mandatários judiciais (alínea q) da Procuração. E. No exercício dos poderes que lhe haviam sido conferidos, a testemunha outorgou, em momentos distintos (04 de agosto de 2021, 29 de novembro de 2023 e 7 de maio de 2025), três procurações forenses conferindo poderes aos mandatários da Recorrente para o exercício do mandato forense nos presentes autos. F. O mandato conferido a CC continua válido e plenamente eficaz. G. É assim inquestionável que a testemunha CC é procuradora da Recorrente, tendo-lhe sido conferidos poderes de representação da Recorrente em juízo, poderes esses que exerceu, por várias vezes nos autos. H. Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, a circunstância de os poderes conferidos à testemunha CC deverem ser exercidos em conjunto com um administrador ou outro procurador da Recorrente, não retira à procuradora a qualidade legal de parte. I. Aquilo que é relevante com vista à sua admissão a depor como testemunha é que representa a Recorrente e pode obrigá-la, pelo que é parte, independentemente de o fazer apenas juntamente com outro procurador ou administrador. J. O Tribunal a quo confunde erradamente (i) a qualidade de parte – que, para o que aqui releva, no caso das pessoas coletivas decorre da existência de poderes de representação, legais ou convencionais, (ii) as condições de exercício dos poderes de representação e (iii) o valor confessório do depoimento de parte. Trata-se de matérias com alguma proximidade, mas necessariamente distintas. K. A testemunha tem a qualidade de representante legal da Recorrente, sendo titular de poderes para a obrigar e que exerceu nos presentes autos por várias vezes, ainda que em conjunto com outra pessoa, pelo que, enquanto representante legal da Recorrente, não podia depor como testemunha, porque é parte, e isto independentemente de obrigar ou não sozinha a Ré (cf. artigo 496º do CPC). L. O Tribunal a quo considerou ainda que o incidente “deveria ter sido suscitado atempadamente e não aqui hoje” e “na presença da testemunha” quando é a lei processual que impõe, não só que o incidente seja deduzido quando terminar o interrogatório preliminar (e não antes), mas também que a testemunha seja perguntada à matéria de facto do incidente. M. A simples leitura do artigo 515.º(1) do CPC não deixa dúvidas quanto à manifesta oposição entre o entendimento do Tribunal a quo e o que a lei determina: “A impugnação é deduzida quando terminar o interrogatório prelimina[r]”. N. Por outro lado, a referida CC foi arrolada como testemunha pela Recorrente, nas suas contestações apresentadas há quase quatro anos, em 2021, sendo inquestionável que à data já era procuradora da Recorrente. O. Não se pode, contudo, inferir do exercício legítimo desse direito o que quer que seja quanto a inabilidade para depor na qualidade de representante legal da Ré. P. Entre 2021 e o início da audiência de discussão e julgamento (maio de 2025) diversas vicissitudes poderiam ter ocorrido, nomeadamente a cessão do mandato por qualquer causa. Q. Não tendo tal ocorrido, a Recorrente, no exercício da faculdade que lhe confere o artigo 498.º (2) do CPC prescindiu da inquirição da referida CC, sendo que é no momento do juramento e interrogatório preliminar que se determina se a testemunha é hábil (cf. artigo 513.º do CPC). R. De todo o modo, do artigo 513.º do CPC resulta uma norma imperativa, pelo que, ainda que se admitisse que a Recorrente indicou CC como testemunha, tal não afastaria a conclusão de que, pelos motivos expostos, a mesma está legalmente impedida de depor nessa qualidade. S. Sendo que é à Recorrente que cabe determinar quem poderá prestar depoimento de parte em seu nome, não podendo o Tribunal substituir-se à parte processual nessa designação.»
Os Autores, separadamente, apresentaram respostas ao recurso da Ré, pugnando pela sua improcedência e o 2.º Autor também pela sua inadmissibilidade.
Observou-se o disposto no art. 87.º, n.º 3 do CPT, tendo o Ministério Público emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumprido o previsto no art. 657.º do CPC, cabe decidir em conferência.
2. Questões a resolver
Tal como resulta das conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto, a única questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se deve ser revogado o despacho que indeferiu o incidente de impugnação de admissão de CC a depor como testemunha.
Previamente, coloca-se a questão da inadmissibilidade do recurso, suscitada pelo Autor BB.
A Ré interpôs o recurso com fundamento no art. 79.º-A, n.º 2 do CPT, na parte em que estabelece que cabe recurso de apelação, além do mais, das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:
d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;
e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual;
k) Da decisão cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil.
Antes de mais, sublinha-se que, ainda que esteja em causa decisão que põe termo a incidente de impugnação de admissão de testemunha a depor, previsto e regulado no art. 515.º do CPC, parece certo que a mesma não se mostra abrangida pelo disposto no art. 79.º-A, n.º 1, al. a) do CPT, posto que aqui se terão tido em vista apenas os incidentes processados autonomamente, isto é, aqueles que, independentemente de serem tramitados por apenso ou nos próprios autos, constituem incidentes da instância1.
Por outro lado, relativamente à alínea d) do n.º 2 da mesma disposição legal, tem-se entendido maioritariamente que apenas estão abrangidas as decisões de admissão ou rejeição do meio de prova e não também as decisões que, depois da admissão do meio de prova, se pronunciem sobre questões suscitadas com vista a abalar ou influenciar o valor que o mesmo deve merecer por parte do tribunal em sede de julgamento da matéria de facto, como sucede com a contradita e a acareação2.
Não obstante, a decisão de incidente de impugnação de admissão de testemunha a depor distingue-se claramente daquelas, posto que, por razões meramente formais, atinentes à identidade ou inabilidade da pessoa em causa, tem por objecto a própria admissibilidade de prestação do depoimento, subtraindo-o ou não aos meios de prova susceptíveis de serem ponderados pelo tribunal em sede de julgamento da matéria de facto.
Em face do exposto, entende-se que o presente recurso é legalmente admissível e nada obsta ao conhecimento do objecto do mesmo.
3. Fundamentação
3.1. Os factos a atender são os decorrentes do Relatório supra e ainda os seguintes:
A - Na sessão de julgamento realizada em 6-05-2025, apresentou-se para prestar depoimento de parte da Ré, requerido pelos Autores, FF, a quem, de acordo com o documento de revogação de procuração e procuração apresentado com o requerimento de 14-02-2024 no Apenso A, aquela conferiu os necessários poderes para, em nome e em representação da sociedade, além do mais, representar a sociedade em juízo perante todas as instâncias judiciais, administrativas ou policiais, podendo, designadamente, apresentar queixas-crime ou qualquer outro processo de natureza criminal, devendo substabelecer em advogado, quando necessário, poderes forenses gerais ou especiais para transigir, confessar e desistir dos respectivos processos, bem como praticar todos os actos de administração e gestão corrente, sempre em conjunto, no mínimo, com outro procurador ou com um administrador;
B - Por requerimento de 7-05-2025, a Ré juntou aos autos procuração em que, representada por FF e CC, na qualidade de procuradoras com poderes para o acto, constitui seus bastantes procuradores os Senhores Dr. GG, Dr. HH e Dr.ª II, Advogados, a quem confere, conjunta ou individualmente, com a faculdade de substabelecer por uma ou mais vezes, os mais amplos poderes forenses em Direito permitidos, e ainda os poderes especiais para confessar, desistir ou transigir no presente processo;
C - Nas sessões de julgamento de 23-06-2025, 26-06-2025 e 1-07-2025, prestou depoimento como testemunha comum dos Autores e da Ré JJ, que aos costumes declarou ter trabalhado na empresa OM Pharma/ViforPharma entre Maio de 2019 e Fevereiro de 2022, tendo o contrato cessado por sua iniciativa;
D - Na sessão de audiência de julgamento realizada em 1-07-2025, a testemunha comum aos Autores, CC, após ser identificada, entregou procuração outorgada pela Ré, com efeitos a partir de 29 de Maio de 2019, a favor daquela e de JJ e KK, a quem conferiu os necessários poderes para, em nome e em representação da sociedade, além do mais, representar a sociedade em juízo perante todas as instâncias judiciais, administrativas ou policiais, podendo, designadamente, apresentar queixas-crime ou qualquer outro processo de natureza criminal, devendo substabelecer em advogado, quando necessário, poderes forenses gerais ou especiais para transigir, confessar e desistir nos respectivos processos, bem como praticar todos os actos de administração e gestão corrente, cada um sempre em conjunto com outro procurador ou um administrador.
3.2. Conforme acima consignado, cabe decidir se deve ser revogado o despacho que indeferiu o incidente de impugnação de admissão de CC a depor como testemunha.
Estabelece o Código de Processo Civil, diploma a que se reportam os preceitos doravante citados sem outra referência:
Artigo 513.º
Juramento e interrogatório preliminar
1 - O juiz, depois de observar o disposto no artigo 459.º, procura identificar a testemunha e pergunta-lhe se é parente, amigo ou inimigo de qualquer das partes, se está para com elas nalguma relação de dependência e se tem interesse, directo ou indirecto, na causa.
2 - Quando verifique pelas respostas que o declarante é inábil para ser testemunha ou que não é a pessoa que fora oferecida, o juiz não a admite a depor.
Artigo 514.º
Fundamentos da impugnação
A parte contra a qual for produzida a testemunha pode impugnar a sua admissão com os mesmos fundamentos por que o juiz deve obstar ao depoimento.
Artigo 515.º
Incidente da impugnação
1 - A impugnação é deduzida quando terminar o interrogatório preliminar; se for de admitir, a testemunha é perguntada à matéria de facto e, se a não confessar, pode o impugnante comprová-la por documentos ou testemunhas que apresente nesse acto, não podendo produzir mais de três testemunhas.
2 - O tribunal decide imediatamente se a testemunha deve depor.
3 - Quando se procede ao registo ou gravação do depoimento, são objecto de registo, por igual modo, os fundamentos de impugnação, as respostas da testemunha e os depoimentos das que tiverem sido inquiridas sobre o incidente.
Nos presentes autos, na sessão de audiência de julgamento realizada em 1-07-2025, a testemunha comum aos Autores, CC, depois de ser identificada, entregou uma procuração conferida pela Ré a seu favor, após o que o mandatário da Ré pediu a palavra e no seu uso impugnou a admissão da testemunha a depor, em virtude de, em síntese, se tratar de pessoa que pode prestar depoimento de parte.
Ora, relativamente à oportunidade de deduzir o incidente, é inequívoco que a Ré o efectuou no momento legalmente previsto, em face do disposto no n.º 1 do art. 515.º. O facto de a Ré ser sabedora de que a pessoa em causa é responsável de Recursos Humanos e do Departamento Legal da Ré, onde trabalha desde 02 de Outubro de 2004, e exerce funções de procuradora da Ré há cerca de 20 anos, conhecendo os Autores enquanto trabalhadores que foram da empresa, e, não obstante, nada ter dito nos autos até àquele momento, tendo, inclusive, a respeito do requerimento do depoimento de parte da Ré através de pessoa que conhecesse ou tivesse obrigação de conhecer os factos, referido que estava material e juridicamente impossibilitada de o fazer por não existir pessoa em tais circunstâncias, o que as declarações que acabaram por ser prestadas por CC alegadamente demonstra que não corresponde à verdade, só tem relevância para efeitos de apreciação da litigância de má fé da ora Apelante.
No que concerne ao fundamento do incidente, resulta dos arts. 513.º, n.º 2 e 514.º que é atendível como tal o facto de o declarante ser inábil para ser testemunha, sendo certo que as inabilidades para depor são as previstas nos arts. 495.º a 497.º e uma delas é precisamente o impedimento de depor como testemunhas dos que na causa possam depor como partes (art. 496.º). Por seu turno, o art. 453.º, n.º 2 esclarece que pode requerer-se o depoimento de representantes de sociedade, embora o depoimento só tenha valor de confissão nos precisos termos em que estes possam obrigar a representada. Aqui se reflecte o disposto no art. 353.º, n.º 1 do Código Civil, nos termos do qual a confissão só é eficaz quando feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira.
Ora, da factualidade a atender no presente recurso, de acordo com os documentos constantes dos mesmos, decorre que a Ré, através de duas procurações, conferiu os necessários poderes para, em nome e em representação da sociedade, além do mais, representar a sociedade em juízo perante todas as instâncias judiciais, administrativas ou policiais, podendo, designadamente, apresentar queixas-crime ou qualquer outro processo de natureza criminal, devendo substabelecer em advogado, quando necessário, poderes forenses gerais ou especiais para transigir, confessar e desistir nos respectivos processos, bem como praticar todos os actos de administração e gestão corrente, cada um sempre em conjunto com outro procurador ou um administrador, a favor de:
- CC;
- JJ;
- KK;
- FF.
Assim, não resultando dos autos que tenham sido revogadas as procurações em causa, é seguro que, nos termos das supra citadas disposições legais, qualquer um destes representantes da Ré podia prestar depoimento de parte, ainda que este só tivesse valor de confissão quanto aos factos desfavoráveis reconhecidos pelo depoente que também o fossem por outro procurador ou um administrador que também prestasse depoimento, sem qualquer relevância, porém, para efeitos da admissibilidade do depoimento de parte em si mesma, tanto mais que, compulsada a certidão permanente do registo da Ré, junta aos autos, se constata que cada administrador também só obriga a sociedade quando actue em conjunto com outro administrador ou um procurador.
Na verdade, como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, o art. 496.º exclui da prova testemunhal todos os que possam depor como partes, incluindo o representante legal e o representante voluntário com poderes para confessar3. O mesmo entende Luís Filipe Pires de Sousa, dizendo que estão impedidos de depor como testemunhas, por inabilidade legal, as partes, os seus representantes legais e quem dispuser de poderes para confessar a acção, esclarecendo que a possibilidade de depor ou não como testemunha se afere no momento da inquirição e não por reporte a qualquer outro4.
É, pois, certo que CC não podia ter deposto como testemunha, o mesmo sucedendo, aliás, com JJ, sem prejuízo de quanto a esta estar sanada a nulidade, por falta de arguição tempestiva5.
Claro que, estando tais depoimentos efectivamente prestados, e devidamente gravados, nada obsta a que o tribunal, uma vez que pode determinar oficiosamente a prestação de depoimento de parte e de declarações de parte, inclusive sem sujeição a indicação dos pontos sobre que deve incidir (arts. 452.º, n.º 1 e 466.º, n.ºs 2 e 3), decida espontaneamente ou por sugestão da parte interessada proceder à convolação dos aludidos depoimentos testemunhais prestados em declarações de parte e depoimentos de parte, com assentada da eventual confissão alcançada (art. 463.º), desde que reabra a audiência de julgamento para observância do indispensável contraditório e demais requisitos legais (art. 607.º, n.º 1), tudo em obediência aos princípios da boa gestão processual, da cooperação, da boa fé processual, do aproveitamento dos actos, do inquisitório, da audiência contraditória e da adequação formal (arts. 6.º, 7.º, 8.º, 195.º, n.º 2, 411.º, 415.º, 417.º, n.ºs 1 e 2 e 547.º), o mesmo podendo suceder, aliás, com a prestação de declarações de parte e depoimento de parte pelos identificados KK e FF. Com efeito, mesmo no que respeita ao depoimento de parte, embora, em princípio, caiba à sociedade, e não a quem requer o depoimento da mesma, indicar o seu representante para o efeito, podem circunstâncias concretas, como a prática ou observação dos factos por certo representante, desde que este mantenha poder de representação da sociedade à data da prestação do depoimento, obstar a tal liberdade de escolha6. E o mesmo sucede quando seja o próprio tribunal a determinar oficiosamente a prestação de depoimento de parte, posto que o mesmo pode livremente determinar a comparência de todos e qualquer um que legalmente estejam habilitados para tanto.
O que é seguro, todavia, é que CC não podia ter deposto como testemunha, como sustenta a Apelante no seu recurso, pelo que não resta senão conceder-lhe provimento.
4. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar o despacho de 1-07-2025 que admitiu CC a depor como testemunha.
Custas pelos Apelados.
Uma vez que o presente acórdão é susceptível de influir na tramitação da causa e elaboração da sentença, comunique-o de imediato à 1.ª instância, com nota de que não transitou em julgado.
Lisboa, 5 de Novembro de 2025
Alda Martins
Susana Silveira
Alves Duarte
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1. Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 01-04-2014, processo n.º 230/11.0TBSRE-A.C1, disponível em www.dgsi.pt.
2. Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 08-05-2018, processo n.º 3166/15.1T8VIS-B.C1, e Acórdão da Relação do Porto de 12-07-2023, processo n.º 15877/20.5T8PRT-A.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.
3. V. Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, Almedina, 3.ª edição, pp. 356-357.
4. V. Prova Testemunhal, Almedina, 2013, pp. 262-265.
5. V. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 358, e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pp. 266-267.
6. V. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., p. 288.