TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO
PODER DISCIPLINAR
Sumário

No caso de transmissão de estabelecimento prevista no artigo 285.º do Código do Trabalho, o adquirente ingressa na posição contratual do anterior empregador e, por essa via, adquire o poder de punir disciplinarmente, na mesma medida em que o detinha o anterior empregador.

Texto Integral

Acordam os Juízes na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
Na presente acção especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento que AA intentou contra Rodoeste/“Siga Rodoeste- Concessionária Unipessoal, Lda”, em 02.05.2025 foi proferido despacho saneador que julgou procedente a excepção da ilegitimidade da Ré Rodoeste e, consequentemente, absolveu-a da instância, bem como apreciou a excepção da ineficácia ou inexistência do processo disciplinar nos seguintes termos:
“Da ineficácia ou inexistência do processo disciplinar
Em contestação o Autor trabalhador afirma que foi trabalhador da Rodoeste e a 01.07.2024 passou a ser trabalhador da Ré empregadora Siga Rodoeste, por força de um contrato de concessão de serviços e foi esta que tomou a decisão de despedimento. Assim, entende, em suma, que o poder disciplinar que a Rodoeste tinha sobre si extinguiu-se a 01.07.2024, com a transmissão do estabelecimento, extinguindo-se o poder disciplinar.
Em resposta, a Ré impugna o alegado, visto que ocorreu uma transmissão de estabelecimento por contrato de concessão. E como tal, transmitiu-se da Rodoeste para a SIGA Rodoeste a posição de empregadora no contrato de trabalho do Autor. E a Ré empregadora SIGA Rodoeste tinha toda a legitimidade para dar continuidade ao procedimento disciplinar e proceder à aplicação de sanção, pois que era a titular do contrato de trabalho.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos presentes autos temos por certo que o Autor trabalhador tinha um contrato de trabalho com a empresa Rodoeste desde 2010 e que em 2024, por força da transmissão do estabelecimento, a ora Ré empregadora SIGA Rodoeste assumiu esse papel, passando a ser, como tal, empregadora do Autor trabalhador.
O procedimento disciplinar que fundamenta a sanção de despedimento com justa causa do Autor trabalhador teve início em Março de 2024. E consta do mesmo que em 2 de Julho seguinte a ora Ré empregadora declarou no processo disciplinar iniciado ratificar todo o processado, dando continuidade ao procedimento, e que proferiu decisão final em Julho de 2024.
Nos termos do artigo 98º, do Código do Trabalho, “o empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho”. O que significa ter o empregador a faculdade de aplicar sanções disciplinares ao trabalhador quando este com o seu comportamento cometa infração disciplinar – ou seja, infrinja os deveres que sobre si impendem decorrentes da lei, dos regulamentos internos da empresa e dos instrumentos de regulação coletiva de trabalho. Mais latamente, abrange tal poder as condutas extralaborais com reflexos na relação de trabalho e nos interesses do empregador, sempre que o trabalhador se coloque na vigência do contrato e no âmbito da organização em que se insere, numa situação censurável atentatória dos interesses dessa organização (Pinheiro, Paulo Sousa; - Curso de Direito Processual do Trabalho, Almedina Maio 2020, pág. 95).
O poder disciplinar caracteriza-se, assim, por ser um poder subjetivo do empregador, enquanto direito potestativo, traduzindo para o trabalhador uma posição de sujeição face às alterações que o exercício de tal poder implicam na sua esfera jurídica.
É um poder exclusivo do empregador que pode ser exercido diretamente pelo empregador, ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele (artigo 329º n.º 4 do Código do Trabalho).
E, com a transmissão da posição jurídica de empregador, como no caso dos nossos autos, transmitiu-se para o adquirente, a ora Ré empregadora, todos os direitos e deveres, incluindo o poder disciplinar da cedente, manifestado no processo disciplinar em curso.
Como tal, a ora Ré empregadora, investida do poder disciplinar decorrente da transmissão, legitimamente o exerceu concluindo o processo disciplinar em curso e aplicou a sanção disciplinar ao Autor trabalhador.
Do que se deixa dito resulta à saciedade que a ratificação efectuada pela ora Ré empregadora constitui apenas e tão só uma manifestação de concordância com a bitola estabelecida pela anterior empregadora. E esta, em nosso humilde entender, se bastaria com a mera continuação do processo disciplinar.
Nestes termos, por falta de fundamento legal, julgo improcedente a excepção suscitada.”
Inconformado com o despacho saneador no segmento que julgou improcedente a excepção da ineficácia ou inexistência do procedimento disciplinar, o Autor recorreu e sintetizou as suas alegações nas seguintes conclusões:
“1. Vem a recorrente insurgir-se contra o douto despacho saneador, na parte em que viu indeferida a exceção perentória de ineficácia/inexistência do procedimento disciplinar, que levou à decisão do seu despedimento com justa causa, assim como desta, absolvendo-se a recorrida da mesma.
2. Entendeu, a Mmª Juiz á quo, que, tendo havido transmissão da unidade económica em que se inseria o recorrente, da sociedade Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda, para a recorrida, em 01/07/2024, ocorreu uma alteração da posição contratual da empregador, mas também a transferência do poder disciplinar da primeira, para a segunda, assim como dos procedimentos disciplinares encetados por aquela, contra o recorrente, já decididos, ou por decidir, como é o caso do procedimento destes autos, que se iniciou em 06/03/2024.
3. Por ter entendido assim, considerou, ainda, a Mmª Juiz à quo, que a recorrida podia ter tomado a decisão de despedir o recorrente com justa causa, no 29/07/2024 (em conjunto com a cedente) não necessitando, sequer, de ter ratificado aquele procedimento disciplinar, em 02/07/2024 (também este assinado pela cedente).
4. É com este entendimento que o recorrente não se conforme, crendo que a Mmª Juiz à quo, com o devido respeito, fez uma leitura e interpretação incorretas do art.º 98º, e do art.º 285º, nº1 e 2, todos do CT, violando-os, tendo tecido, ainda, um raciocínio, no douto despacho saneador, que é contraditório, e contrário à própria natureza e função das referidas normas, e do poder disciplinar.
5. Desde logo, não se lê, em lado nenhum dos referidos preceitos, que o poder disciplinar, e os procedimentos disciplinares encabeçados por uma empregadora possam ser transmitidos para outra, por via da transmissão da unidade económica em que se insere um trabalhador.
6. Aquilo que se lê no art.º 285º, nº 1 e 2 do CT, é que, em caso da transmissão de uma unidade económica, o contrato de trabalho do trabalhador não cessa, dando-se apenas uma alteração da posição contratual do empregador, que deixa de ser a cedente, para passar a ser a adquirente.
7. E, se conjugadas tais normas, com a que se encontra prevista no nº 3, do mesmo artigo, logo se percebe que a adquirente apenas recebe obrigações, nomeadamente, como aí se encontra previsto, a de respeitar os direitos adquiridos do trabalhador, nomeadamente, a retribuição.
8. Não recebe qualquer direito ou prerrogativa da cedente, nomeadamente, o poder disciplinar ou os procedimentos disciplinares que tenha encetado com o trabalhador cedido.
9. Fosse assim, e então o trabalhador estaria sujeito a ver ponderados e ou decididos atos e procedimentos anteriores à formação do vínculo contratual com a aquirente, o que implicaria um risco de despedimento, que o legislador certamente não quis estipular através de tais normas.
10. Aliás, tais normas visam precisamente o contrário, isto é, impedir que os trabalhadores estejam sujeitos a atos que possam colocar em causa o seu emprego, e fonte de rendimento, apenas e só porque ocorreu a transmissão da unidade económica em que se insere.
11. Ou seja, visam proteger esses trabalhadores e o nível de emprego, o que obrigação que também decorre do direito comunitário, nomeadamente, dos artigos 1º e 3º, Diretiva 2001/23/CE, do Conselho Europeu, conforme se consignou no douto Ac. do TRP, de Ac. do TRP, de 16-04-2012, proc. 434/08.2TTSTS.P2, disponível em www.dgsi.pt.
12. Já do art.º 98º do CT, também não decorre o entendimento defendido pela Mmª Juiz à quo, embora se possa compreender algum equívoco que possa decorrer da leitura do último segmento da norma, isto é, “enquanto se mantiver o contrato de trabalho.”
13. Crê-se que a redação nessa norma não foi a mais feliz, principalmente quando relacionada com art.º 285º, porque, na verdade, no caso de transmissão da unidade económica, o que se mantém são os direitos dos trabalhadores, mas ocorre uma alteração subjetiva (do lado do empregador), no contrato de trabalho, não se podendo afirmar, com propriedade e rigor, que o mesmo se mantenha, ou que se mantenha qua tale.
14. Na verdade, pensa-se que naquele segmento da norma, o que deveria constar é “enquanto a relação jurídica se mantiver”, pois que é esta que conforme e baliza o poder disciplinar, ou seja, começa com início da mesma, e termina no momento da sua cessação, o que acontece, nomeadamente, no caso da transmissão da unidade económica.
15. Neste caso, por um lado, a relação jurídica do trabalhador com a cedente, termina na data da transmissão da unidade económica, deixando de haver qualquer vínculo ou prestação de trabalhado, o que implica, nos termos dos restantes segmentos da norma do art.º 98º, a cessação do poder disciplinar, e, bem assim, por arrasto, de todos os procedimentos disciplinares que tenha encetado contra o trabalhador, designadamente, os que se encontrem ainda aberto nesse momento.
16. Por outro lado, nesse instante, nasce uma nova relação jurídica nova, entre o trabalhador, e a adquirente, passando aquele a prestar o seu trabalho para esta, o faz nascer, nos termos dos mesmos segmentos da norma, concomitantemente, um poder disciplinar, mas também ele novo, e, naturalmente, diferente do da cedente.
17. Não há transferência de qualquer disciplinar à luz da referida norma, nem dos procedimentos disciplinares da cedente, o que seria incompatível, em todo o caso, com a própria natureza de função deste.
18. Conforme vem sendo entendido pela doutrina e jurisprudência, nomeadamente, no douto Ac. dessa Relação, de 09-02-2022, proc. 9443/19.5T8LRS.L1-4, disponível em www.dgsi.pt, a titularidade do poder disciplinar é exclusiva do empregador, e só a sua execução pode ser delegada em terceiros, conforme previsto no art.º 329.º n.º 4, do CT, mas tal como aqui se prevê, de acordo com a instruções do delegante, sendo certo que qualquer decisão que seja tomada, só será imputada na esfera jurídica do mesmo, e na relação que mantém com o seu trabalhador.
19. O que se justifica em defesa do empregador, que tem de ter os poderes necessários para fazer cessar os comportamentos e atos lesivos do trabalhador que tem ao seu serviço, despedindo-o com justa causa, no limite.
20. Ora, se o poder disciplinar é exclusivo, então não se pode transmitir, nem mesmo, veja-se, à adquirente que assume a posição de empregadora no contrato de trabalho, em caso de transmissão da unidade económica.
21. Sendo que, se não se pode transmitir, também não pode partilhar (representando esta um minus em relação àquele) o que acontece, até mesmo, nos casos de trabalho temporário e em regime de outsorcing, apesar de haver uma relação tripartida (uma entidade tem e titularidade do contrato e a outra tem a prestação de trabalho do trabalhador).
22. Ademais, também não se vê qual seria o interesse que haveria em permitir e dar legitimidade a terceiros para punir um trabalhador com o qual não tem qualquer relação jurídica, ou a fazer cessar um vínculo, pelo despedimento, com o qual nada tem que ver.
23. Efetivamente, sendo, tal poder, exclusivo, o mesmo acompanha a relação jurídico-laboral subjacente, e cessa ao mesmo tempo que essa relação, como é no caso da transmissão da unidade económica em que o trabalhador se insere.
24. E se este cessa, também cessam os procedimentos disciplinares encetados pela cedente, que ainda se encontrem abertos, ao tempo da transmissão.
25. É esta a leitura, interpretação e entendimento mais coerente e conforme com as normas em causa, com a natureza, função do poder disciplinar, sendo de rejeitar qualquer outro em sentido diverso, como aquele que se encontra vertido no douto despacho saneador em crise.
26. Nesse despacho, salvo melhor entendimento, até se extrai uma enorme e insuprível contradição, ao afirmar-se, por um lado, que o poder disciplinar de um empregador é exclusivo, e, por outro lado, que tal poder pode ser transmitido a um terceiro, como é, o empregador que sucede àquele, no caso de transmissão da unidade económica.
27. Uma coisa não é compatível com a outra, sendo por demais evidente, que o raciocínio da Mmª Juiz à quo, nessa parte do despacho saneador, e sempre com o devido respeito, se encontra inquinado de invalidade, assim como é, consequentemente, a conclusão a que chegou, por violar os artigos 98º e 285º, nº1 e 2, do CT.
28. De acordo com estes normativos, o poder disciplinar, como se disse, não transmite em caso de transmissão da unidade económica em que se insere o trabalho, assim como não se transmitem os procedimentos disciplinares em curso nessa altura.
29. Tanto uns, como outros, cessam por caducidade, nesse momento, com legais e importantes consequências, nomeadamente, no caso sub judice.
30. Por um lado, a cedente, ou seja, a sociedade Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda, já nada podia decidir a partir daí, relativamente ao procedimento disciplinar que iniciara em 06/03/2024, não só porque o seu poder disciplinar já tinha cessado/caducado, mas também porque a decisão em nada lhe iria servir, sendo inútil, tendo o trabalhador deixado de ter qualquer vínculo laboral consigo, para passar a tê-lo com a adquirente/recorrida, em 01/07/2024.
31. Sendo que, ao ter tomado a decisão de despedir o recorrente, em 29/07/2024, a mesma é extemporânea e ilegal, e, de todo em todo, ineficaz contra o mesmo, porque a relação jurídica entre ambos se encontrava cessada.
32. Por outro lado, a adquirente ou recorrida também não podia tomar qualquer decisão sobre aquele procedimento, como aconteceu na mesma data, em conjunto com aquela, não só porque o procedimento disciplinar de base, como se disse, se tinha extinguido/caducado, mas também porque dizia respeito a factos completamente estranhos à relação que acabara de estabelecer com o trabalhador, por via da transmissão da unidade económica, não tendo a potencialidade de a lesar ou de prejudicar tal relação.
33. Sendo que, ao ter tomado tal decisão, fê-lo, automaticamente, sem qualquer procedimento disciplinar, próprio e prévio, donde decorre, como se sabe, e, desde logo, a ilicitude de tal despedimento, com todas as consequências legais, como seja a reintegração do trabalhador, e a indemnização por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo mesmo.
34. Foi esta solução dada ao caso resolvido pelo douto acórdão supracitado, do TRP, de 16-04-2012, ao consignar que “Na verdade, a partir da data da celebração do contrato de cessão da exploração, tendo os contratos de trabalho acompanhado o estabelecimento, cuja exploração passou para a 2.ª R., a 1.ª R. deixou de ser a empregadora da A.[14], perdendo esta o poder disciplinar, atento o disposto, a contrario sensu, nos Art.ºs 365.º e ss. do CT2003, pelo que o procedimento disciplinar instaurado à A. é ineficaz. Tal significa, por isso, que a A. foi despedida sem precedência de procedimento disciplinar. E foi-o pela 2.ª R. por ser ela quem efetivamente permite ou impede os trabalhadores de exercer atividade no estabelecimento …”
35. De nada tendo valido, diga-se, a ratificação do procedimento disciplinar lograda em 02/07/2024, pois que, tal como também se defendeu no douto acórdão dessa relação, de 09-02-2022, “… a “ratificação” do negócio, levada a cabo pela 2.ª Ré, no sentido de fazer seus os atos praticados pela 1.ª Ré, não tem como consequência tornar eficaz relativamente a si o procedimento disciplinar e o despedimento perpetrados pela 1.ª Ré na pessoa do Autor (…).
IX– Na presente situação, a declaração da 2.ª Ré, a “ratificar” os atos praticados pela 1.ª, que o Autor recebeu, traduz inequivocamente a manifestação de vontade daquela de fazer cessar o contrato de trabalho com o trabalhador, pelo que não tendo o despedimento sido antecedido do respetivo procedimento disciplinar é o mesmo de qualificar como ilícito nos termos do art.º 381.º, alínea c) do Código do Trabalho.
36. Com efeito, e, salvo melhor entendimento, seria esta a melhor solução que a Mmª Juiz deveria ter dado ao caso, desde logo, no douto despacho saneador recorrido, declarando procedente, por provada, a exceção perentória de ineficácia e/ou inexistência do procedimento disciplinar contra o recorrente.
37. Ao ter decidido de forma diferente, considerando válida a assunção do procedimento disciplinar em crise pela recorrida, e possível a decisão tomada no seu âmbito, crê-se, com todo o respeito, que a Mmª á quo violou os artigos 98º e 285º, nº1 e 2 do CT, tendo permitido, a final, que entrasse pela janela, aquilo que o legislador pretendia impedir que entrasse pela janela, ou seja, a transferência do poder disciplinar e o despedimento do trabalhador no âmbito da transmissão de estabelecimentos e unidades económicas.
38. Sendo evidente que, pese embora a cedente e a recorrida não tenham celebrado um acordo prévio no sentido de impedir a transferência do trabalhador, tal como aconteceu no caso decidido no douto Ac. do TRP, de 16-04-2012, nem assim deixaram de lograr, em conjunto, o efeito que o art.º 285º, nº 1 e 2, do CT, pretendem impedir, utilizando o procedimento disciplinar em curso ao tempo da transmissão, apenas para lhe incutir uma aparente licitude.
39. O que deve ser reparado pelos Venerando Desembargadores, revogando o douto despacho saneador em crise, e substituindo-o, por outro que, considerando procedente, por provada, a exceção perentória de ineficácia e/ou inexistência de procedimento disciplinar prévio, declare o despedimento levado a cabo pela recorrida, ilícito, com todas as conhecidas consequências legais, previstas no art.º 389º, do CT, ou seja, a reintegração imediata do trabalho e a indemnização do mesmo por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais.
Nestes termos e nos mais de Direito, que doutamente suprirão, requer- se a V. Exas., Senhores (as) Desembargadores (as), que se dignem admitir o presente recurso, e julgando-o procedente, por provado:
a) Revoguem o douto despacho saneador, substituindo-o por outro que julgue procedente, por provada, a exceção perentória de ineficácia e/ou inexistência de procedimento disciplinar prévio, invocada pelo recorrente na sua contestação ao despedimento, com a consequente declaração da ilicitude do despedimento por justa causa, encetado pela recorrida em 29/07/2024, com todos os efeitos legais, previsto no art.º 389º, do CT, isto é, a reintegração imediata do trabalho e a indemnização do mesmo por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais.
Assim fazendo, V. Exas., a serena e acostumada Justiça.”
A Ré, SIGA RODOESTE, CONCESSIONÁRIA, UNIPESSOAL, LDA., contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
“A) O recurso interposto pelo Recorrente carece de fundamento factual e jurídico, assentando numa leitura manifestamente enviesada redutora e desconforme do regime legal aplicável à transmissão da posição contratual do empregador, consagrado no artigo 285.º do Código do Trabalho.
B) O poder disciplinar constitui expressão funcional da posição jurídico-laboral do empregador, não sendo autónomo nem destacável da relação contratual que o sustenta. Como tal, transmite-se, ope legis, juntamente com os demais poderes, deveres e faculdades inerentes à posição de empregador, nos termos do artigo 285.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
C) Resulta dos autos, de forma inequívoca, que a Recorrida assumiu a posição de empregadora por via de contrato de concessão legalmente celebrado com a Região Autónoma da Madeira, sucedendo integralmente à anterior entidade patronal, quer no plano obrigacional, quer no plano funcional, incluindo o exercício do poder disciplinar.
D) A Recorrida passou, por força da lei e não por vontade das partes, a deter todos os direitos e deveres anteriormente pertencentes à cedente — incluindo o exercício do poder disciplinar e a legitimidade para aplicar sanções decorrentes de procedimentos em curso.
E) O procedimento disciplinar em apreço foi validamente instaurado pela cedente (sendo que o Recorrente nunca colocou a sua validade em causa) antes da transmissão da unidade económica, encontrando-se em curso à data da cessão, tendo sido ratificado pela Recorrida, em conformidade com os princípios da continuidade, estabilidade e legalidade que regem a relação laboral.
F) A ratificação em causa apesar de não ser legalmente exigida constituiu, não um ato de validação retroativa de um procedimento viciado, mas uma natural e legítima assunção, pela nova entidade empregadora, da tramitação em curso.
G) Como claramente referido no Despacho Saneador (fls. 3-5):“A ratificação efetuada pela ora Ré empregadora constitui apenas e tão só uma manifestação de concordância com a bitola estabelecida pela anterior empregadora. E esta, em nosso humilde entender, se bastaria com a mera continuação do processo disciplinar.”
H) Com efeito, existiu a transmissão do contrato de trabalho do A. para a ora R., tendo a R. adquirido, por essa via, o poder disciplinar sobre o A. e, por conseguinte, transmitiu-se o poder disciplinar da Rodoeste para a Recorrida, sendo totalmente legal e legítimo o aproveitamento dos autos pela SIGA Rodoeste.
I) Neste sentido (e este sim, semelhante ao caso em apreço), veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10.11.2016, relativo ao proc. nr.º 149/16.8YREVR.E1:
“Não tendo sido questionada a cessão da posição contratual transmitiu-se para cessionária a posição detida pela cedente de empregadora nos contratos de trabalho dos respetivos trabalhadores, passando a ter a cessionária toda a legitimidade para continuar a tramitar os processos disciplinares pendentes, aplicando as sanções disciplinares que considere adequadas, passando também a ser a única responsável pelos atos praticados.”(negrito e sublinhado nosso)
J) Com efeito, refere ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora:
“No caso concreto dos autos, a própria A. refere que em janeiro de 2015, passou a ser trabalhadora da 2ª R., tendo sido esta que lhe aplicou a sanção disciplinar no âmbito do processo disciplinar que lhe foi instaurado pela 1ª R.. A 2ª R., na qualidade de entidade empregadora, tinha toda a legitimidade para continuar a tramitar os processos disciplinares pendentes, aplicando as sanções disciplinares que entendesse adequadas, passando também a ser a única responsável pelos atos praticados.” (negrito e sublinhado nosso)
K) Tal entendimento está em linha com o douto despacho saneador e está também consolidado na recente jurisprudência do Juízo do Trabalho do Funchal, conforme decisão do Juízo do Trabalho do Funchal, proferida em 22/01/2025, no Proc. n.º 4487/24.8T8FNC e já transitada em julgado:
“O poder disciplinar caracteriza-se, assim, por ser um poder subjetivo do empregador, enquanto direito potestativo, traduzindo para o trabalhador uma posição de sujeição face às alterações que os exercícios de tal poder implicam na sua esfera jurídica. É um poder exclusivo do empregador que pode ser exercido diretamente pelo empregador, ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele (artigo 329º n.º 4 do Código do Trabalho).”
“E, com a transmissão da posição jurídica de empregador, como no caso dos nossos autos, transmitiu-se para o adquirente, a ora Ré empregadora, todos os direitos e deveres, incluindo o poder disciplinar da cedente, manifestado no processo disciplinar em curso.
Como tal, a Ré empregadora, investida do poder disciplinar decorrente da transmissão, legitimamente o exerceu concluindo o processo disciplinar em curso e aplicou a sanção disciplinar ao Autor trabalhador. Nestes termos, por falta de fundamento legal, julgo improcedente a excepção suscitada.” (Negrito e sublinhado nosso)
L) Não se compreende, pois, a tese do Recorrente segundo a qual o poder disciplinar não poderia ser exercido pela Recorrida, sob pena de se colocar em causa a estabilidade e continuidade das relações laborais.
M) O entendimento defendido pelo Recorrente levaria ao absurdo de considerar extintos todos os procedimentos disciplinares pendentes no momento de uma transmissão, criando zonas de impunidade absolutamente injustificáveis e contraditórias com o sistema legal vigente.
N) Por outro lado, a jurisprudência que o Recorrente traz à colação, se analisada com algum rigor técnico- jurídico, facilmente se percebe que nada tem a ver com o caso concreto dos presentes autos. (No caso do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16.04.2012, relativo ao proc. n.º 434/08.2TTSTS.P2.citado pelo Recorrente, efetivamente, ocorre a transmissão de estabelecimento da 1.ª R. para a 2.ª, mas quem instaura o processo disciplinar à trabalhadora é a 1.ª R., após a referida transmissão, mais grave ainda é a citação do A. do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.02.2022, no que á ratificação diz respeito, porquanto, tal acórdão, reporta-se a um despedimento efetuado por um sujeito sem qualquer tipo de relação e ou poder disciplinar sobre o trabalhador na qualidade de gestor de negócios, nada tendo de idêntico com os presentes autos.
O) No caso dos presentes autos, aquando da transmissão do contrato de trabalho da Rodoeste para a ora Ré, a SIGA Rodoeste procedeu à ratificação de todos os atos disciplinares já produzidos no processo disciplinar do Autor que, teve o seu términus com o despedimento por justa causa do mesmo, decidido, naturalmente, pela ora R. pois era a titular do contrato de trabalho.
P) A Recorrida atuou sempre em estrita conformidade com os princípios do contraditório, da proporcionalidade e da legalidade disciplinar, tendo assegurado ao Recorrente todas as garantias que a lei confere em sede de processo disciplinar.
Q) Os factos imputados ao Recorrente, devidamente apurados e objeto de contraditório, traduzem condutas reiteradamente graves, ofensivas da dignidade dos utentes, lesivas da confiança exigida ao exercício das suas funções, e que justificam plenamente a aplicação da sanção de despedimento com justa causa.
R) O recurso do Recorrente configura uma tentativa inequívoca de esvaziar de conteúdo o princípio da continuidade da relação laboral e de criar, na prática, uma zona de impunidade disciplinar sempre que ocorra a transmissão da unidade económica, solução manifestamente contrária ao sistema jurídico vigente.
S) A tese do Recorrente colide, aliás, com a ratio dos artigos 98.º e 285.º do Código do Trabalho, cujo escopo é precisamente garantir a continuidade e estabilidade das relações laborais, evitando ruturas artificiais ou desprovidas de fundamento legal.
T) O argumento segundo o qual o poder disciplinar exercido pela Recorrida seria “novo” e desligado da conduta do trabalhador antes da transmissão é, além de juridicamente insustentável, social e laboralmente inadmissível, pois consagraria um privilégio negativo para o trabalhador que praticasse infrações antes da transmissão.
U) Sendo a decisão recorrida irrepreensível quer a nível técnico que ao nível de realização da justiça, pelo que, nesta conformidade, e sem necessidade de considerações adicionais, deve o recurso do A. ser julgado improcedente in totum porquanto, a decisão do Tribunal a quo, não é merecedora de qualquer reparo. FAZENDO ASSIM A COSTUMADA JUSTIÇA!”
Foi proferido despacho que determinou a subida dos autos ao Tribunal da Relação.
Subidos os autos a este Tribunal, a Relatora proferiu despacho a determinar a remessa dos autos ao Tribunal de 1.ª instância a fim de ser fixado o valor da causa.
Foi fixado o valor da causa em €26.000,00.
Neste Tribunal, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso improceder e de ser mantido o despacho saneador quanto ao segmento objecto do recurso.
O Autor respondeu ao Parecer sustentando que a doutrina e jurisprudência citadas não se debruçam concretamente sobre o tema em análise e invoca jurisprudência em sentido contrário ( Ac. TRP, de 16-04-2012, proc. 434/08.2TTSTS.P2, e Ac. TRL, de 09-02-2022, proc. 9443/19.5T8LRS.L1-4). Pugna, a final, pela rejeição da douta posição assumida pelo Ministério Público e total provimento do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635.º n.º 4 e 639.º do CPC, ex vi do n.º 1 do artigo 87.º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608.º nº 2 do CPC).
Assim, no presente recurso, há que apreciar se com a transmissão de estabelecimento se transmite o poder disciplinar em curso da transmitente para a transmissária.
Fundamentação de facto
Para além dos factos que resultam do relatório que antecede, ainda resultam dos autos os seguintes factos:
- A Concessão do Serviço Público de Transporte de Passageiros na Região Autónoma da Madeira que anteriormente era assegurado pela Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda, passou a ser assegurado pela SIGA Rodoeste Concessionária, Unipessoal, Lda, com efeitos a 1 de Julho de 2024;
- A Rodoeste remeteu, quer ao Autor, quer à organização sindical onde o mesmo é filiado, a respectiva carta de transmissão a que aludem os artigos 285.º e 286.º do Código do Trabalho;
-Em 06.03.2024, a Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda, instaurou procedimento disciplinar contra o Autor;
- Em 02.07.2024, a Siga Rodoeste Concessionária, Unipessoal, Lda, lavrou despacho de ratificação do processado no procedimento disciplinar instaurado ao Autor;
- Em 29.07.2024 foi aplicada ao Autor a sanção disciplinar de despedimento com justa causa; e
-A decisão final de despedimento foi subscrita pela Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda e pela Siga Rodoeste Concessionária, Unipessoal, Lda.
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Fundamentação de direito
Apreciemos, então, se com a transmissão do estabelecimento se transmite o poder disciplinar em curso da transmitente para a transmissária.
Como resultou provado, a Concessão do Serviço Público de Transporte de Passageiros na Região Autónoma da Madeira que, anteriormente, era assegurado pela Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda, passou a ser assegurado pela SIGA Rodoeste Concessionária, Unipessoal, Lda, com efeitos a 1 de Julho de 2024, do que resultou que, nessa data, ocorreu a transmissão de estabelecimento, o que não vem contestado pelas partes.
Resulta ainda dos autos que, em 06.03.2024, ou seja, em data anterior à transmissão do estabelecimento, a anterior empregadora do Recorrente, Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda, instaurou procedimento disciplinar contra o Autor que ainda não se mostrava concluído em 01.07.2024. Sabemos, também, que, em 02.07.2024, ou seja, depois da transmissão do estabelecimento, a Ré Siga Rodoeste Concessionária, Unipessoal, Lda, lavrou despacho de ratificação do processado no procedimento disciplinar instaurado ao Autor e que, em 29.07.2024, foi aplicada ao Autor a sanção disciplinar de despedimento com justa causa.
Por fim, está provado que a decisão final de despedimento foi subscrita pela Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda e pela Siga Rodoeste Concessionária, Unipessoal, Lda.
Para além do poder de direcção e de organização da empresa, o artigo 98.º do Código do Trabalho confere ao empregador poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho.
Quanto ao exercício do poder disciplinar, determina o artigo 329.º n.º 4 do Código do Trabalho que “O poder disciplinar pode ser exercido directamente pelo empregador, ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele.”
Das mencionadas disposições legais resulta que o poder disciplinar é um poder atribuído ao empregador, poder esse que emana do contrato de trabalho e que existe para aquele empregador enquanto durar o contrato de trabalho; pode ser exercido pelo próprio empregador ou delegado por este no superior hierárquico do trabalhador ou em instrutores nomeados para tramitarem processos disciplinares, mas sempre nos termos estabelecidos por aquele.
Como escreve a Professora Doutora Maria do Rosário Palma Ramalho, na obra “Direito do Trabalho Parte II-Situações Laborais, 3.ª Edição Revista e Actualizada ao Código do Trabalho de 2009, Almedia, pag.709: “I. O art.98.º do CT atribui a titularidade do poder disciplinar ao empregador, o que decorre do facto deste poder constituir um elemento essencial do contrato de trabalho e uma componente imprescindível da posição do empregador nesse contrato, nos termos expostos.
A interpretação deste preceito deve, contudo, ser feita com cautela, já que ele se presta a alguma confusão. Assim, de uma parte, a norma esclarece que o poder disciplinar apenas se mantém «enquanto vigorar o contrato de trabalho», ora ,esta precisão, que provém do Código do Trabalho de 2003 (art.365.º n.º 1) e que não constava da norma correspondente da LCT (art.26.º n.º 1), afigura-se despicienda porque os poderes laborais caem necessariamente com a cessação do contrato de trabalho. Por outro lado, a norma mantém a referência da titularidade do poder disciplinar em relação ao trabalhador «ao […] serviço» do empregador; ora, esta referência não é suficientemente abrangente, porque, na prática, o empregador continua a deter e a poder exercer o poder disciplinar sobre os seus trabalhadores que estejam ao serviço de uma outra entidade, por exemplo no quadro do trabalho temporário ou no âmbito de uma cedência ocasional, bem como sobre os trabalhadores cujo contrato seja suspenso, dada a omnipresença deste poder.”
Aqui chegados importa apurar se com a transmissão de estabelecimento, o poder disciplinar da Rodoeste, Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda, se transmitiu para a cessionária Siga Rodoeste Concessionária, Unipessoal, Lda.
Estatui o artigo 285.º do Código do Trabalho, na redacção introduzida pela Lei n.º 18/2021 de 08.04:
“1 - Em caso de transmissão, por qualquer título, da titularidade de empresa, ou estabelecimento ou ainda de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, transmitem-se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de trabalho dos respectivos trabalhadores, bem como a responsabilidade pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contra-ordenação laboral.
2 - O disposto no número anterior é igualmente aplicável à transmissão, cessão ou reversão da exploração de empresa, estabelecimento ou unidade económica, sendo solidariamente responsável, em caso de cessão ou reversão, quem imediatamente antes tenha exercido a exploração.
3 - Com a transmissão constante dos n.ºs 1 ou 2, os trabalhadores transmitidos ao adquirente mantêm todos os direitos contratuais e adquiridos, nomeadamente retribuição, antiguidade, categoria profissional e conteúdo funcional e benefícios sociais adquiridos.
4 - O disposto nos números anteriores não é aplicável em caso de trabalhador que o transmitente, antes da transmissão, transfira para outro estabelecimento ou unidade económica, nos termos do disposto no artigo 194.º, mantendo-o ao seu serviço, excepto no que respeita à responsabilidade do adquirente pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contra-ordenação laboral.
5 - Considera-se unidade económica o conjunto de meios organizados que constitua uma unidade produtiva dotada de autonomia técnico-organizativa e que mantenha identidade própria, com o objetivo de exercer uma atividade económica, principal ou acessória.
6 - O transmitente responde solidariamente pelos créditos do trabalhador emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, bem como pelos encargos sociais correspondentes, vencidos até à data da transmissão, cessão ou reversão, durante os dois anos subsequentes a esta.
7 - A transmissão só pode ter lugar decorridos sete dias úteis após o termo do prazo para a designação da comissão representativa, referido no n.º 6 do artigo seguinte, se esta não tiver sido constituída, ou após o acordo ou o termo da consulta a que se refere o n.º 4 do mesmo artigo.
8 - O transmitente deve informar o serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral:
a) Do conteúdo do contrato entre transmitente e adquirente, sem prejuízo do disposto nos artigos 412.º e 413.º, com as necessárias adaptações;
b) Havendo transmissão de uma unidade económica, de todos os elementos que a constituam, nos termos do n.º 5.
9 - O disposto no número anterior aplica-se no caso de média ou grande empresa e, a pedido do serviço com competência inspetiva do ministério responsável pela área laboral, no caso de micro ou pequena empresa.
10 - O disposto no presente artigo é aplicável a todas as situações de transmissão de empresa ou estabelecimento por adjudicação de contratação de serviços que se concretize por concurso público ou por outro meio de seleção, no setor público e privado, nomeadamente à adjudicação de fornecimento de serviços de vigilância, alimentação, limpeza ou transportes, produzindo efeitos no momento da adjudicação.
11 - Constitui contraordenação muito grave:
a) A conduta do empregador com base em alegada transmissão da sua posição nos contratos de trabalho com fundamento em transmissão da titularidade de empresa, ou estabelecimento ou de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, ou em transmissão, cessão ou reversão da sua exploração, quando a mesma não tenha ocorrido;
b) A conduta do transmitente ou do adquirente que não reconheça ter havido transmissão da posição daquele nos contratos de trabalho dos respetivos trabalhadores quando se verifique a transmissão da titularidade de empresa, ou estabelecimento ou de parte de empresa ou estabelecimento que constitua uma unidade económica, ou a transmissão, cessão ou reversão da sua exploração.
12 - A decisão condenatória pela prática de contraordenação referida na alínea a) ou na alínea b) do número anterior deve declarar, respetivamente, que a posição do empregador nos contratos de trabalho dos trabalhadores não se transmitiu, ou que a mesma se transmitiu.
13 - Constitui contraordenação grave a violação do disposto nos n.os 1, 2, 3, 7, 8 ou 9.
14 - Aos trabalhadores das empresas ou estabelecimentos transmitidos ao abrigo do presente artigo aplica-se o disposto na alínea m) do n.º 1 do artigo 3.º e no artigo 498.º”
A citada norma transpôs para a ordem interna a Directiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de Março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas ou de estabelecimentos, ou de partes de empresas ou de estabelecimentos.
Nos considerandos 2 e 3 da Directiva consignou-se:
“(2) A evolução económica acarreta, no plano nacional e comunitário, modificações das estruturas das empresas que se traduzem nas transferências de empresas, estabelecimentos ou partes de empresas ou de estabelecimentos, para outros empresários, como consequência de cedências ou fusões.
(3) É necessário adoptar disposições para proteger os trabalhadores em caso de mudança de empresário especialmente para assegurar a manutenção dos seus direitos.”
E de acordo com o artigo 3.º da Directiva, CAPÍTULO II, Manutenção dos direitos dos trabalhadores:
“1. Os direitos e obrigações do cedente emergentes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes à data da transferência são, por esse facto, transferidos para o cessionário.
Os Estados-Membros podem prever que, após a data da transferência, o cedente e o cessionário sejam solidariamente responsáveis pelas obrigações resultantes de um contrato de trabalho ou de uma relação de trabalho existentes antes da data da transferência.
2. Os Estados-Membros podem adoptar as medidas adequadas para assegurar que o cedente notifique o cessionário de todos os direitos e obrigações transferidos para este último nos termos do presente artigo, na medida em que esses direitos e obrigações sejam, ou devessem ser, do conhecimento do cedente no momento da transferência. A não notificação pelo cedente ao cessionário de qualquer desses direitos ou obrigações não afectará a transferência desses mesmos direitos ou obrigações nem os direitos de quaisquer trabalhadores contra o cessionário e/ou cedente relativamente a esses direitos ou obrigações.
3. Após a transferência, o cessionário manterá as condições de trabalho acordadas por uma convenção colectiva, nos mesmos termos em que esta as previa para o cedente, até à data da rescisão ou do termo da convenção colectiva ou até à data de entrada em vigor ou de aplicação de outra convenção colectiva.
Os Estados-Membros podem limitar o período de manutenção das condições de trabalho desde que este não seja inferior a um ano.
(…).”
Ora, da citada norma e da Directiva resulta, com clareza, que a partir da data da transmissão do estabelecimento, os direitos e obrigações do transmitente emergentes de um contrato de trabalho existentes à data da transferência são, por esse facto, transferidos para o transmissário. Transpondo esta conclusão para o caso dos autos, impõe-se afirmar que, desde a data da transmissão (1 de Julho de 2024), a posição contratual da empregadora, Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda, no contrato de trabalho do Recorrente, transferiu-se para a adquirente, Siga Rodoeste Concessionária, Unipessoal Lda, o que significa que transmitiu-se para esta a posição contratual que, desse contrato, decorria para a Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda. Assim, em 1 de Julho de 2024, a Rodoeste Transportadora Rodoviária da Madeira, Lda, por força do disposto no artigo 285.º do Código do Trabalho, deixou de ser empregadora do Recorrente, o que, naturalmente, implicou a perda do poder disciplinar sobre este último. E em 01.07.2024, assumiu-se, por força do artigo 285.º do CT, na posição de empregadora do Recorrente a Siga Rodoeste Concessionária, Unipessoal, Lda.
Consequentemente, não se percebe por que motivo, em 29 de Julho de 2024, a anterior empregadora assinou, a par com a empregadora do Recorrente, a decisão de despedimento que lhe foi movido, posto que, nessa data, já não detinha qualquer poder disciplinar sobre o mesmo.
E a Ré Siga Rodoeste Concessionária, Unipessoal, Lda, podia ela ter aplicado ao Recorrente a sanção disciplinar de despedimento, como aplicou?
A resposta é afirmativa. Na verdade, à luz da referida Directiva e do artigo 285.º do Código do Trabalho, a transmissão de estabelecimento ou de unidade económica não interfere com o conteúdo dos contratos de trabalho; o que se verifica é a transmissão, ope legis, para o adquirente de todos os direitos e obrigações inerentes aos contratos de trabalho. Ou seja, o adquirente ingressa na posição contratual do anterior empregador e, por essa via, no que ao caso importa, adquire o poder de punir disciplinarmente, na mesma medida em que o detinha o anterior empregador.
E como escreve a Digna Procuradora Geral-Adjunta no seu Parecer, “como refere Júlio Gomes in “Novas, novíssimas e não tão novas questões sobre a transmissão da unidade económica em Direito do Trabalho”, e- book CEJ, Setembro de 2014: “o poder de despedir continua a pertencer ao transmitente até à data da transmissão e ao transmissário a partir desse momento”.
Por último, salvo o devido respeito, contrariamente ao que refere o Recorrente nas conclusões 26º e 27.ª, não há qualquer contradição no despacho recorrido posto que se é certo que o poder disciplinar é exclusivo de um empregador (deixando-o de o ser já o empregador não pode exercer esse poder) e só pode ser delegado nos termos do artigo 329.º n.º 4 do Código do Trabalho, não é menos certo que, no caso de transmissão de estabelecimento, como já dissemos, o adquirente assume a titularidade de todos os direitos e obrigações do transmitente que emanam dos contratos de trabalho onde se inclui o poder punitivo decorrente do poder disciplinar.
Em consequência, o recurso improcede devendo ser confirmado o despacho recorrido.
Considerando o disposto no artigo 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, as custas são da responsabilidade do Recorrente.

Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente e confirmar o despacho saneador na parte em que julgou improcedente a excepção da ineficácia ou inexistência do processo disciplinar.
Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 5 de Novembro de 2025
Celina Nóbrega
Alves Duarte
Francisca Mendes