CONTRAORDENAÇÃO
PERÍODO DE DESCANSO
PERÍODO DE REPOUSO SEMANAL REDUZIDO
REGULAMENTO (CE) N.º 561/2006
INTERPRETAÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
Sumário

I. É nula por insuficiência da matéria de facto a sentença que não reflete e relação entre o condutor e a empresa a que é imputada uma contraordenação decorrente da violação, nos termos dos regimes, conjugados, do Regulamento (CE) n.º 561/2006 e da Lei n.º 27/2010, dos tempos de períodos de repouso.
II. O tribunal da Relação pode suprir a nulidade referida em I., se do processo constarem todos os elementos que permitam dar factualidade por provada, designadamente quando aceite pela empresa a quem foi imputada a contraordenação.
III. A interpretação dos conceitos referentes à organização dos tempos de trabalho, como os períodos de repouso, do Regulamento (CE) n.º 561/2006, que integram matéria de competências partilhadas nas quais a União Europeia exerceu a sua competência, é teleológica, ou finalista [effet utile].
IV. A compensação a que alude o parágrafo 2 do n.º 6 do artigo 8.º é condição, ou pressuposto, de um período de repouso semanal reduzido válido, e não um conceito, autónomo dos tempos de trabalho/repouso do Regulamento (CE) n.º 561/2006.
V. Nas condições referidas em IV. um motorista que gozou um período de repouso semanal de 34:04 horas e não compensou essa redução mediante um período equivalente, antes do final da terceira semana a contar da semana em questão, preenche a previsão a que alude a alínea c) do n.º 5 do artigo 20.º da Lei 27/2010, de 30 de agosto.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Transportes XX & YY, Lda., inconformada com a decisão proferida pela Autoridade para as Condições de Trabalho, que lhe aplicou a coima de € 10 200, correspondente a 100 UC’s, pela prática de uma contraordenação muito grave, decorrente da violação do disposto no artigo 20.º, n.º 5, alínea c), da Lei n.º 27/2010, conjugado com o disposto no artigo 8.º, n.º 6 do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, que altera os Regulamentos (CEE) n.º 3821/85 e (CEE) n.º 2135/98 do Conselho e revoga o Regulamento (CEE) n.º 3820/85 do Conselho1, interpôs recurso para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
2. Por decisão proferida no Tribunal referido em 1., foi revogada a decisão administrativa, absolvendo Transportes XX & YY, Lda. da prática da contraordenação imputada.
3. O Ministério Público interpôs recurso da sentença proferida formulando, as seguintes conclusões:
1.ª- Como decorre do art.º 1.º, do Regulamente (CE) n.º 561/2006, a preocupação do legislador com os regimes oportunamente transcritos é, por um lado, as condições de trabalho dos motoristas de transportes rodoviários e, por outro, a segurança rodoviária.
2.ª- Por isso, os tempos de trabalho e descanso foram previsto de forma detalhada, bem como a violação do que se encontra legalmente estabelecido.
3.ª- Assim sendo, e salvo o devido respeito por melhor opinião, não se afigura que não se mostre prevista a punição pela não compensação do período em falta para perfazer as 45 horas do período de repouso semanal.
4.ª- Com efeito, a não ser assim, e atenta a natureza humana, um trabalhador poderia fazer numa semana um descanso regular e na seguinte um reduzido, de 24 horas, e assim sucessivamente, portanto menos 21 em cada uma dessas semanas, que num ano daria menos 546 horas de descanso (21 horas x 26 semanas, das 52 que tem um ano), sem qualquer consequência.
5.ª- Neste contexto, afigura-se-nos que do regulamento CE n.º 561/2006 resulta que o legislador nunca prescinde que um motorista por cada duas semanas tenha direito a fazer, tenha de fazer, dois repousos de 45 horas.
6.ª- Na verdade, o que permite é que um deles possa ser reduzido numa semana às 24 horas, diferindo o cumprimento das horas em falta até à terceira semana seguinte àquela em que fez o descanso reduzido.
7.ª- Donde que, não perfazendo as 45 horas de descanso até à terceira semana seguinte àquela em que fez o período de descanso reduzido, não completando, assim, o período de descanso regular em falta, tal venha a preencher o previsto no n.º 5, do art.º 20.º, da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, isto por, para todos os efeitos legais, ter feito um repouso semanal inferior ao previsto no regulamento em causa.
8.ª- Em suma, entendemos que a Mm.ª Juíza a quo errou quando entendeu que o art.º 20.º, nº 5, al. c), da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, não era aplicável à situação dos autos, isto por também ter errado quando entendeu, desde logo, que a não compensação do período semanal, a que alude o nº. 6-B, do art.º 8, do Regulamento (CE) n.º 561/2006, não se pode reportar ao período de repouso semanal regular a que alude o art.º 4, al. h), do mesmo regulamento.
9.ª- Pelo que fica dito, e atento que a Mm.ª Juíza a quo deu como provado que na situação em apreço o motorista na primeira semana gozou um período de repouso semanal reduzido de 34H04 e que não compensou essa redução com um período equivalente antes do final da terceira a contar da semana em questão, afigura-se-nos que a arguida/recorrida deverá ser condenada nos precisos termos constantes da decisão administrativa, isto é, na coima de €10.200,00, por ser proporcional à infração cometida, à sua culpa, pois atuou como dolo, como se extrai da factualidade dada como provada na douta sentença recorrida e resulta da fundamentação de direito da decisão administrativa, e à sua situação económica.
10.ª- Por todo o exposto, e por errada interpretação das normas aplicáveis, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por decisão em que se condene arguida/recorrida nos termos disposto no art.º 20.º, nº 5, al. c), conjugado com o art.º 14.º, n.º 4, al. b), ambos da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto, por violação do disposto nos art.ºs 4.º, al. h), e 8.º, n.º 6 e 6-B, do Regulamento (CE) n.º 561/2006.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, entende-se que deve ser concedido provimento ao presente recurso.».
4. Admitido o recurso, a Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de que «Atentos fundamentos do recurso interposto, que se subscrevem, somos de parecer que o recurso interposto merece provimento».
5. A recorrida, pronunciou-se sobre o Parecer do Ministério Público, apresentando as seguintes conclusões:
1. Atenção ao princípio de Nulla poena sine lege!!!!
2. O condutor cumpriu um repouso reduzido válido (foi superior a 24h mais especificamente 32 horas).
3. A falta de compensação não transforma o repouso reduzido num repouso regular inferior a 45h. É esta a subversão no raciocínio do MP.
4. A Lei 27/2010 não prevê sanção para omissão de compensação.
5. A compensação pode ser feita com repouso diário ≥9h, o que o MP ignora.
6. A sentença recorrida respeitou o princípio da legalidade; o recurso do MP erra em interpretação violando o princípio de nulla poena sine lege, e deve ser rejeitado.».
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II. Objeto do Recurso
A questão a decidir, como suscitada nas conclusões formuladas pelo recorrente e na resposta ao respetivo parecer, é a de saber se o condutor trabalhador da recorrente cumpriu um período de repouso reduzido, válido, e, em caso negativo, se tal incumprimento integra ilícito contraordenacional, p.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 20.º, n.º 5, alínea c), da Lei n.º 27/2010, conjugado com o disposto no artigo 8.º, n.º 6, do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006.
E ainda as de conhecimento oficioso.
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III. Fundamentação de Facto
O tribunal a quo fixou a seguinte matéria de facto:
A) FACTOS PROVADOS
1. A arguida Transportes XX & YY, SA., com o NIF ..., com sede em Rua 1, com o alvará n.º 604085, é a entidade empregadora.
2. O representante legal da arguida é AA, com o NIF ..., com morada em Avenida 2.
3. No dia 16 de Janeiro de 2023, pelas 16:25 horas, na EN. 119, Rotunda da Repsol, Alcochete, o veículo com a matrícula ..-GH-.., de transporte de mercadorias, com registo em Portugal, conduzido por BB, com licença adequada ao veículo, com o n.º L- 1265529, foi objeto de fiscalização.
4. O condutor, na primeira semana do período de fiscalização, de 19 a 26 de dezembro de 2022, gozou um período de repouso semanal reduzido de 34:04 horas (das 17:27 horas de 24 de dezembro de 2022 às 3:31 horas do dia 26 de Dezembro de 2022) e não compensou essa redução mediante um período equivalente, antes do final da terceira semana a contar da semana em questão (15.01.2023).
5. A arguida é uma sociedade comercial, que se dedica à atividade de transporte de mercadorias, com o alvará n.º 604085.
B) FACTOS NÃO PROVADOS
a) Sobre a situação financeira da empresa, a empresa, no ano de 2022, apresenta um volume de negócios correspondente a € 57.543.495,00, de acordo com o declarado pela mesma e conforme consta do Relatório Único.
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Em processo contraordenacional, decorre do disposto no artigo 51.º, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, que o recurso para a Relação sobre a decisão da 1.ª instância é restrito à matéria de direito; isto é, a Relação tem os seus poderes de cognição limitados à matéria de direito, estando excluída a sua intervenção em sede de decisão sobre a matéria de facto, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios decisórios ao nível da matéria de facto previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, conquanto resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Os autos reportam à imputação à recorrente de uma contraordenação muito grave, decorrente da violação do disposto no artigo 20.º, n.º 5, alínea c), da Lei n.º 27/2010, conjugado com o disposto no artigo 8.º, n.º 6 do Regulamento (CE) n.º 561/2006, Regulamento segundo o qual as empresas de transportes são responsáveis por qualquer infração cometida pelos condutores da empresa, ainda que essa infração tenha sido cometida no território de outro Estado-Membro ou de um país terceiro [artigo 10.º, n.º 3].
Da matéria provada resulta que a recorrente é a entidade empregadora e que no dia 16 de janeiro de 2023, pelas 16:25 horas, na E.N. 119, Rotunda da Repsol, Alcochete, o veículo com a matrícula ..-GH-.., de transporte de mercadorias, com registo em Portugal, conduzido por BB, que não compensou a redução dos períodos de descanso mediante um período equivalente, antes do final da terceira semana a contar da semana em questão (15.01.2023).
Os factos feitos constar da sentença não vertem a relação jurídica [vínculo de trabalho] entre BB e a recorrente, sem a qual a infração não pode ser imputada à última.
Verifica-se assim a nulidade da sentença por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artigos 379.º, n.º 1, al a); 374.º, n.º 2 e n.º 2 do artigo 410.º, todos do CPP, ex vi do artigo 50.º, n.º 4, da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro].
A nulidade é suprível [artigo 379.º, n.º 2, do CPP], sendo que o vínculo em discussão resulta assente nos próprios autos e foi aceite pela (ora) recorrida nas conclusões do recurso de impugnação judicial, onde invoca que «não praticou a infração de que vem acusada. (…) O motorista da arguida efetuou todos os repousos semanais regulares e reduzidos previstos por lei».
Por conseguinte, julga-se verificada a nulidade da sentença por insuficiência da matéria de facto e, suprindo tal nulidade, altera-se a matéria de facto, alterando-se o ponto 1. da matéria de facto, que passa a ter o seguinte teor: Transportes XX & YY, SA., com o NIF ..., com sede em Rua 1, com o alvará n.º 604085, é a entidade empregadora de BB.
Outrossim, a questão jurídica a decidir, e como resulta do relatório supra, importa a qualificação do período de repouso gozado como sendo, ou não, de um período de repouso semanal, reduzido.
Tal «período de repouso semanal reduzido» é um conceito jurídico, que o Regulamento, exatamente porque é um conceito de direito, define na alínea h), § 2, do artigo 4.º Regulamento.
Tratando-se de matéria de direito é, além do mais, a questão a subsumir para a decisão a proferir.
Pelo que oficiosamente se procede à sua supressão da matéria de facto [facto 4 provado].
Atento o alterado, e considerando que Transportes XX & YY, S.A. é agora recorrida, suprime-se a referência a arguida, fixando-se os seguintes factos provados:
1. Transportes XX & YY, SA., com o NIF ..., com sede em Rua 1, com o alvará n.º 604085, é a entidade empregadora de BB.
2. O representante legal de Transportes XX & YY, S.A., é AA, com o NIF ..., com morada em Avenida 2.
3. No dia 16 de janeiro de 2023, pelas 16:25 horas, na EN. 119, rotunda da Repsol, Alcochete, o veículo com a matrícula ..-GH-.., de transporte de mercadorias, com registo em Portugal, conduzido por BB, com licença adequada ao veículo, com o n.º L- 1265529, foi objeto de fiscalização.
4. O condutor, na primeira semana do período de fiscalização, de 19 a 26 de dezembro de 2022, gozou um período de repouso de 34:04 horas (das 17:27 horas de 24 de dezembro de 2022 às 3:31 horas do dia 26 de dezembro de 2022) e não compensou essa redução mediante um período equivalente, antes do final da terceira semana a contar da semana em questão (15.01.2023).
5. Transportes XX & YY, S.A. é uma sociedade comercial, que se dedica à atividade de transporte de mercadorias, com o alvará n.º 604085.
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IV. Fundamentação de Direito
A recorrida dedica-se à atividade de transporte de mercadorias, e é entidade empregadora de BB.
Foi-lhe aplicada coima pela prática de uma contraordenação muito grave, decorrente da violação do disposto no artigo 20.º, n.º 5, alínea c), da Lei n.º 27/2010, conjugado com o disposto no artigo 8.º, n.º 6, do Regulamento (CE) n.º 561/2006.
Dispõe o artigo 5.º da Lei n.º 27/2010, que «o período de repouso semanal regular inferior ao previsto na regulamentação comunitária aplicável ou no AETR constitui contraordenação classificada como: a) Leve, sendo igual ou superior a 42 horas e inferior a 45 horas; b) Grave, sendo igual ou superior a 36 horas e inferior a 42 horas; c) Muito grave, sendo inferior a 36 horas».
Já nos termos do n.º 6 do mesmo preceito, «o período de repouso semanal reduzido inferior ao previsto na regulamentação comunitária aplicável ou no AETR constitui contraordenação classificada como: a) Leve, sendo igual ou superior a vinte e duas horas e inferior a vinte e quatro horas; b) Grave, sendo igual ou superior a vinte horas e inferior a vinte e duas horas; c) Muito grave, sendo inferior a vinte horas.»2.
No confronto das duas disposições, a sentença ora recorrida assentou na conclusão de que a violação do repouso semanal [regular] inferior a 36 horas, mas superior a 24 horas [do regular reduzido], não constitui contraordenação.
Daí que, e por apelo ao princípio da legalidade [artigo 2.º do D.L. n.º 433/82, de 27 de outubro], rejeitando a interpretação extensiva do artigo 20.º, n.º 5 e 6.º, da Lei n.º 27/2010, de 30-08, considerou não verificada a contraordenação, no que foi acompanhada pela ora recorrida.
Invocou o princípio de nulla poena sine lege, ou princípio da legalidade, com acolhimento constitucional no artigo 29.º, n.º l, da Constituição, que exige que uma infração esteja prévia e claramente definida na lei, dele decorrendo que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa [nullum crimen, nulla poene sine lege].
Exigindo-se que a infração esteja prevista na Lei, este [regime sancionatório] encontra-se regulado pela Lei n.º 27/2010, de 30-08.
Já os conceitos referentes à organização dos tempos de trabalho, por se tratar de matéria de competências partilhadas nas quais a União exerceu a sua competência3, é matéria que se encontra vertida no Regulamento, estando vedada ao legislador nacional, como decorreria, também, do princípio do primado4, uma vez que os Estados-Membros não podem adotar leis nacionais que modifiquem os tempos, pausas ou repousos definidos pelo Regulamento, que é de harmonização quase total, consentindo [apenas] a determinação das sanções5.
Assente que a definição dos tempos de condução é matéria subtraída da competência dos Estados-membros, e deve encontrar-se no texto o Regulamento, o artigo 4.º, al. h), do Regulamento define o «período de repouso semanal regular» como o de, pelo menos, 45 horas, e «período de repouso semanal reduzido» como o de 45 horas, que pode, nas condições previstas no n.º 6 do artigo 8.º, ser reduzido para um mínimo de 24 horas consecutivas6.
Dispõe o n.º 6 do artigo 8.º do Regulamento que, em cada período de duas semanas consecutivas, o condutor deve gozar pelo menos de dois períodos de repouso semanal regular, ou um período de repouso semanal regular e um período de repouso semanal reduzido de, no mínimo, 24 horas. Todavia, a redução deve ser compensada mediante um período de repouso equivalente, gozado de uma só vez, antes do final da terceira semana a contar da semana em questão7.
Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, na interpretação de uma disposição de direito da União deve dar-se a prioridade à que é adequada para salvaguardar o seu efeito útil [effet utile] (v., designadamente, acórdão de 22 de setembro de 1988, Land do Sarre e o., C-187/87, Colect., p. 5013, n.° 19)8.
O Regulamento “pretende melhorar as condições sociais dos empregados abrangidos pelo mesmo, bem como a segurança rodoviária em geral os conceitos referentes à organização dos tempos de trabalho, por se tratar de matéria de competências partilhadas nas quais a União exerceu a sua competência , é matéria que se encontra vertida no Regulamento. Este objectivo é alcançado sobretudo mediante as disposições relativas aos tempos de condução máximos por dia, por semana e por períodos de duas semanas consecutivas, a disposição que impõe um período de repouso semanal regular aos condutores pelo menos uma vez em cada período de duas semanas consecutivas e as disposições que preveem que em caso algum o período de repouso diário poderá ser menor do que um período ininterrupto de nove horas”9.
O Regulamento tem por objetivo o estabelecimento de normas comuns claras em matéria de tempos de condução, pausas e períodos de repouso10.
Daí que o que importa e define, como aliás resulta das definições do Regulamento, são os períodos de repouso e repouso semanal, período ininterrupto durante o qual o condutor pode dispor livremente do seu tempo, sendo de considerar como semana o período entre as 00h00 de segunda-feira e as 24h00 de domingo. A compensação não tem autonomia dogmática enquanto período de descanso per se: é apenas o gozo noutro período referencial que, a não se verificar, antes do final da terceira semana, se subsume ao não cumprimento do período de descanso, interpretação única consentida pelo effet utile dos períodos de descanso vertidos no Regulamento.
Inexiste, assim, vazio legal que reclame a interpretação extensiva dos períodos de descanso: eles são, como resulta do Regulamento, o que já se transcreveu e consta do n.º 6 do artigo 8.º, a falta de gozo, em cada período de duas semanas consecutivas, de, pelo menos dois períodos de repouso semanal regular, ou um período de repouso semanal regular e um período de repouso semanal reduzido, válido, que pode atingir um mínimo 24 horas, nas condições de admissibilidade da redução, que são as de compensação mediante um período de repouso equivalente, gozado de uma só vez, antes do final da terceira.
O mesmo é dizer que o gozo de um período de descanso inferior a 45 horas não converte o «período de repouso semanal regular», num «período de repouso semanal reduzido», válido. Só o será se for compensado nos termos sobreditos: a compensação é a condição prevista no n.º 6 do artigo 8.º11.
Em conclusão, um período de 34 horas e 4 minutos que não seja compensado por um período equivalente até à terceira semana a contar da semana em questão não é subsumível ao conceito de «período de repouso semanal reduzido» válido.
Não o sendo, e se inferior às 36 horas, integra a contraordenação muito grave do artigo 20.º, n.º 5, alínea c), da Lei n.º 27/2010, de 30 de agosto.
Resulta dos factos provados que o condutor da recorrida, no período em referência, gozou um período de repouso semanal de 34:04 horas (das 17:27 horas de 24 de dezembro de 2022 às 3:31 horas do dia 26 de dezembro de 2022) e não compensou essa redução mediante um período equivalente, antes do final da terceira semana a contar da semana em questão (15.01.2023).
Pelo que verificada está a contraordenação imputada à recorrida.
Procede, assim, o recurso.
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VI. Decisão
Em face do exposto:
- Julga-se procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência,
- Julga-se improcedente a impugnação judicial, mantendo-se a decisão administrativa proferida que condenou a recorrida a coima de dez mil e duzentos euros [€ 10 200], correspondente a 100 UC’s, pela prática de uma contraordenação muito grave, decorrente da violação do disposto no artigo 20.º, n.º 5, alínea c), da Lei n.º 27/2010, conjugado com o disposto no artigo 8.º, n.º 6 do Regulamento (CE) n.º 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março de 2006, relativo à harmonização de determinadas disposições em matéria social no domínio dos transportes rodoviários, que altera os Regulamentos (CEE) n.º 3821/85 e (CEE) n. o 2135/98 do Conselho e revoga o Regulamento (CEE) n.º 3820/85 do Conselho.
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Custas pela recorrida, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s– artigo 513.º, do Código de Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais.
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Lisboa, 5 de novembro de 2025
Cristina Martins da Cruz
Francisca Mendes
Manuela Fialho
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1. JO L 102 de 11.4.2006, pp. 1–14. Doravante Regulamento (CE) n.º 561/2006, ou Regulamento. O Regulamento foi alterado pelo Regulamento (UE) 2020/1054 (15 de julho de 2020) e pelo Regulamento (UE) 2024/1258 (24 de abril de 2024).
2. Negritos nossos.
3. Artigos 4.º, n.º 1 e 2, alínea g), e 91.º, n.º 1, alínea c), ambos do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia [TFUE]. JO C 202 de 7.6.2016, pp. 1–388.
4. Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 15 de Julho de 1964, C-6/64, Costa/ENEL, EU:C:1964:66: «A transferência efectuada pelos Estados, da sua ordem jurídica interna em benefício da ordem jurídica comunitária, dos direitos e obrigações correspondentes às disposições do Tratado, implica, pois, uma limitação definitiva dos seus direitos soberanos, sobre a qual não pode prevalecer um acto unilateral ulterior incompatível com o conceito de Comunidade».
5. Artigos 288.º§ 1 e 291.º do TFUE, artigo 19.º e Considerando (26), estes do Regulamento e artigo 1.º, n.º 1, al. a), da Lei em referência.
6. Negritos nossos.
7. Negritos nossos. Substitui-se a hifenização [que consta no nosso Diário da República] por pontuação, uma vez que esta é a que consta das línguas oficiais [francês e inglês] do Regulamento.
8. Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 24 de fevereiro de 2000, Comissão contra República Francesa, C-434/97, EU:C:2000:98, n.º 21.
9. Considerando (17).
10. Artigo 1.º e considerando (28).
11. É condição, ou pressuposto, de um período de repouso semanal reduzido, e não um conceito de período de descanso autónomo cuja omissão reclame uma sanção autónoma.