I – A aquisição pelas partes, no decurso do processo, de meios económicos suficientes em resultado de vencimento total ou parcial na ação, constitui presunção juris tantum da sua capacidade para suportar o pagamento de custas e encargos processuais e autoriza o Ministério Público ou qualquer outro interessado a instaurar ação para cobrança das respetivas custas e outros encargos (art. 10º-1-2 da Lei n.º 34/2004, de 29-07).
II – Independentemente dessa ação, a lei prevê outro mecanismo, incidental, que habilita o juiz da causa a condenar no próprio processo a parte vencedora no pagamento de tais quantias (art. 10º-3 da cit. Lei).
III – Suscitada a questão da condenação de uma parte, beneficiária de apoio judiciário, em virtude da aquisição de meios económicos suficientes para suportar os custos da ação, cabe ao juiz da causa decidir o respetivo incidente de acordo com os elementos de prova que, no âmbito do trâmite incidental, sejam carreados para os autos.
IV – Em consequência, não é lícito ao juiz da causa remeter as partes para os meios comuns quanto à questão da cobrança das custas processuais no âmbito do incidente previsto no art. 13º-3 da citada Lei, com o fundamento de que “a matéria factual é controvertida” e que “se lhe afigura desadequada a decisão por simples despacho”.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam os Juízes na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – Relatório
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: AA e BB
Na ausência de partilha amigável foi apresentada relação de bens pela cabeça de casal, a qual foi objeto de reclamação.
Foi realizada audiência prévia de interessados na qual os interessados chegaram a acordo sobre o suscitado incidente da reclamação de bens, na sequência do qual apresentaram relação de bens conjunta.
Foi agendada conferência de interessados e dispensados os interessados de propor forma à partilha, e foi ouvido o credor hipotecário.
Em observância do acordo da partilha acordou-se no pagamento de tornas.
Foi, por sentença, homologada a partilha constante do acordo vertido na ata de 02.10.2024 do presente inventário e foram feitas as adjudicações das respetivas verbas.
Ao interessado, ora recorrido, BB foram adjudicadas as verbas elencadas na relação de bens de 01.06.2023, representando bens no valor global atribuído de cerca de €577.000,00.
Foi aprovado o passivo comum relativo ao credor Banco 1..., S.A.
Foram acordadas tornas a prestar à interessada, ora recorrida, AA, no valor de €300.000,00, a liquidar em duas prestações, a 1.ª no valor de €20.000,00 e a 2.ª no valor remanescente de €280.000,00.
O interessado recorrido assumiu o pagamento do passivo da verba n.º 1 em exclusivo, prescindindo do direito de regresso sobre a interessada cabeça de casal quanto a prestações vencidas e vincendas, incluindo a verba n.º 2 do passivo, sem prejuízo da manutenção da responsabilidade solidária para com o credor e a possibilidade de renegociação/restruturação do crédito com exclusão da cabeça de casal enquanto devedora.
Ambos os recorridos litigaram a coberto do benefício do apoio judiciário, nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos.
Após prolação de sentença homologatória de partilha, o Ministério Público, ora recorrente, veio aos autos promover o seguinte:
“Uma vez que se afigura possível presumir que os interessados adquiriram meios económicos suficientes por via do vencimento na presente acção (entendido enquanto procedência da pretensão atinente à realização de inventário), considerando o valor dos bens adjudicados, promovo que se elabore conta de custas e que os interessados sejam condenados neste próprio processo no seu pagamento, nos termos do art. 13.º, n.º 3, segunda parte, com referência ao n.º 2 do mesmo normativo, da Lei n.º 34/2004, de 29/07.”
“Nos termos do acordo de partilha alcançado nos presentes autos, o ora Interessado ficou obrigado a pagar à Cabeça-de-casal tornas no montante de € 300.000,00 (trezentos mil euros) e obrigado a pagar a totalidade do passivo ao credor Banco 1..., SA.
Para conseguir proceder ao pagamento das tornas o ora Interessado foi obrigado a contrair vários empréstimos bancários, tendo já liquidado à Cabeça de casal o montante de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), faltando ainda liquidar a quantia de €60.000,00 (sessenta mil euros), prevendo-se que o pagamento do valor remanescente seja efectuado a curto prazo, estando apenas dependente da conclusão de um último crédito pessoal que o Interessado teve de contrair, estando o mesmo já aprovado pela instituição bancária.
Com o compromisso assumido de pagamento das tornas no montante €300.000,00 (trezentos mil euros) o ora Interessado recorreu a crédito bancário, tendo ficado com encargos e despesas mensais no valor de €1.242,54 (mil duzentos e quarenta e dois euros e cinquenta e quatro cêntimos), relativamente a prestações bancárias (…).
Para além deste valor mensal, o Interessado contraiu ainda um outro empréstimo bancário junto da A..., SA, suportando uma prestação mensal no valor de €244,60 (duzentos e quarenta e quatro euros e sessenta cêntimos) (…).
Após a data da concessão do benefício do Apoio Judiciário o Interessado não teve qualquer aumento do seu património ou rendimento, antes pelo contrário, uma vez que passou a ter mais encargos mensais decorrentes dos créditos que teve de contrair para efectuar o pagamento das tornas à Cabeça-de-casal. Termos em que, Se requer a V.a Ex.a se digne manter ao Interessado BB a isenção de pagamento de custas em face do acima exposto e dos encargos mensais que este tem de suportar.”
“Contrariamente, ao promovido pelo Ministério Público, A Cabeça-de-Casal, não adquiriu meios económicos no decurso dos presentes autos nem com a decisão.
- In casu, apenas se procedeu à partilha de bens, os quais são coincidentes com os existentes à data do deferimento do pedido de proteção jurídica apresentado pela Cabeça-de-Casal.
- Pelo que, com o devido respeito, não assiste razão ao Ministério Público, quando afirma “…que se afigura possível presumir que os interessados adquiriram meios económicos suficientes por via do vencimento na presente ação…”
- Conforme supra referido, o património ou os rendimentos da Requerente não aumentaram (mantiveram-se os mesmo) apenas foram partilhados, entre a Cabeça-de-Casal e o Interessado.
- Não tendo sido adquiridos pela Requerente meios económicos para proceder ao pagamento das custas processuais.
- Acresce ainda que, a Requerente, desde o ano 2019 até ao corrente ano, não teve qualquer rendimento ou pensão, por se encontrar impedida de trabalhar devido aos graves problemas de saúde de que padece, sobrevivendo apenas com o valor dos empréstimos que foi obrigada a contrair junto de amigos e familiares.
- Pelo que, a Requerente, em virtude de não poder trabalhar até ao final dos seus dias devido à sua fraca saúde, terá que sobreviver com o montante que sobrar após liquidar todas as dívidas que contraiu.
- Termos em que se requer a V. Exa, que se digne manter a isenção no pagamento das custas deferido à Requerente pela Segurança social, em virtude de não se verificar qualquer dos pressupostos para cancelamento da proteção jurídica que lhe foi deferida ao abrigo da Lei 34/2024 de 29/07.”
“(…) não conhece nem tem de conhecer os factos alegados nos requerimentos/exposições apresentadas, salvo no que respeita aos factos extraídos dos documentos juntos aos autos e do próprio processo, pelo que se impugnam os mesmos. Acresce que o Ministério Público desconhece quais os bens que foram indicados nos pedidos de apoio judiciário, sendo que, antes da partilha, os bens adjudicados nos presentes autos integravam o património comum do casal (art. 1721 e ss. do CC).
Por outro lado, salvo o devido respeito por outro entendimento, decorre dos autos que, na sequência de decisão proferida nos presentes autos (cfr. entre o mais as rfas. 108487734, datada de 02/10/2024, 11724765 e 11726356, ambas datadas de 12/03/2025), ao interessado BB foram adjudicados bens no valor global de cerca de € 577 000. Mais decorre dos autos que na sequência da decisão supramencionada, a cabeça de casal recebeu tornas do interessado BB, no valor de € 300 000 (cfr. entre o mais as rfas. acima identificadas).
Todos estes factos são posteriores à concessão de apoio judiciário àquelas partes e fazem presumir que por via do vencimento na presente acção, tanto a cabeça de casal como o interessado, adquiriram meios económicos suficientes para efectuar o pagamento das custas da sua responsabilidade nos presentes autos.
Face ao exposto requer-se que tanto a cabeça de casal como o interessado sejam condenados neste próprio processo no pagamento das custas da sua responsabilidade, nos termos do art. 13.º, n.º 3, segunda parte, com referência ao n.º 2 do mesmo normativo, da Lei n.º 34/2004, de 29/07.”
“Nos termos do art.º 13.º da Lei n.º 34/2004, de 29/07, caso se verifique que o requerente de protecção jurídica possuía, à data do pedido, ou adquiriu no decurso da causa ou no prazo de quatro anos após o seu termo, meios económicos suficientes para pagar honorários, despesas, custas, imposto, emolumentos, taxas e quaisquer outros encargos de cujo pagamento haja sido declarado isento, é instaurada acção para cobrança das respectivas importâncias pelo Ministério Público ou por qualquer outro interessado (n.º 1), sendo que para os efeitos do número anterior, presume-se aquisição de meios económicos suficientes a obtenção de vencimento na acção, ainda que meramente parcial, salvo se, pela sua natureza ou valor, o que se obtenha não possa ser tido em conta na apreciação da insuficiência económica nos termos do artigo 8.º (n.º 2), acrescendo que a acção a que se refere o n.º 1 segue a forma sumaríssima, podendo o juiz condenar no próprio processo, no caso previsto no número anterior (n.º 3).
Relevando o requerimento do Ministério Público e o sequente contraditório das partes com defesa por impugnação quanto à aquisição de meios económicos suficientes, considerando a matéria factual controvertida, afigurando-se-nos desadequada a decisão por simples despacho, remeto as partes para os meios comuns quanto à cobrança das custas.
Notifique.”
Desta decisão veio o apelante Ministério Público interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões:
(…).
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo se a lei o permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso – cf. art.s 608º-2, 635º-4 e 639º do CPC.
A única questão a decidir, em face do teor das conclusões formuladas pelo recorrente, consiste em apreciar se, na sequência da aquisição de meios económicos suficientes pela parte no decurso da causa, foi acertada a decisão proferida pelo tribunal a quo em remeter as partes para os meios comuns quanto à cobrança de custas, em face da previsão do art. 13º da Lei do Apoio Judiciário ou se, contrariamente, tinha o dever de proferir a respetiva decisão incidental no processo.
Os factos com interesse para a decisão da causa e a levar em consideração são as ocorrências processuais delimitadas no relatório que antecede e os que decorrem do teor do despacho recorrido posto em crise, tudo aqui dado por reproduzido.
Resulta apurado nos autos ter sido instaurado inventário para partilha de bens comuns após divórcio entre o outrora casal constituído pelos recorridos e que estes, por via do acordo de partilha homologado nos autos por sentença, receberam bens e valores que integraram a sua meação: o recorrido ficou de receber todos os bens identificados nas verbas constantes da relação de bens a que a sentença homologatória se reporta, no valor global de cerca de €577.000,00; e a recorrida ficou de receber das mãos daquele interessado tornas no valor global de €300.000,00.
O Ministério Público, ora recorrente, sustenta que os recorridos, em face da ocorrência de aquisição de meios económicos suficientes, verificada no decurso da causa, devem ser condenados, no próprio processo de inventário, no pagamento das custas do processo, cessando consequentemente a proteção jurídica de que gozavam até ao momento, consistente no benefício do apoio judiciário nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos.
Com este enquadramento fáctico, questiona-se se é lícita a decisão proferida pelo Tribunal a quo de remeter para os meios comuns a discussão da questão da cobrança do montante das custas que a conta final venha a apurar.
Vejamos o normativo aplicável.
Primeiramente importa salientar que o sistema de acesso ao direito e aos tribunais se destina a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos: é o que preceitua o art. 1º da Lei do Acesso ao Direito e aos Tribunais, disciplinado pela Lei n.º 34/2004, de 29-07 (doravante, LADT), com respaldo nos art.s 13º e 2º-2 da Constituição da República Portuguesa, exprimindo uma derivação do princípio da igualdade.
Prescreve o art. 13º da LADT, na parte que interessa aos autos, o seguinte:
“1 - Caso se verifique que o requerente de protecção jurídica possuía, à data do pedido, ou adquiriu no decurso da causa ou no prazo de quatro anos após o seu termo, meios económicos suficientes para pagar honorários, despesas, custas, imposto, emolumentos, taxas e quaisquer outros encargos de cujo pagamento haja sido declarado isento, é instaurada acção para cobrança das respectivas importâncias pelo Ministério Público ou por qualquer outro interessado.
2 - Para os efeitos do número anterior, presume-se aquisição de meios económicos suficientes a obtenção de vencimento na acção, ainda que meramente parcial, salvo se, pela sua natureza ou valor, o que se obtenha não possa ser tido em conta na apreciação da insuficiência económica nos termos do artigo 8.º
3 - A acção a que se refere o n.º 1 segue a forma sumaríssima, podendo o juiz condenar no próprio processo, no caso previsto no número anterior.
4 - Para fundamentar a decisão, na acção a que se refere o n.º 1, o tribunal deve pedir parecer à segurança social.
5 – (…)
6 – (…)”.
A norma em apreço reporta-se à ação de cobrança de quantias cujo pagamento foi dispensado no quadro da proteção jurídica fundada na aquisição de meios económicos suficientes.
No caso dos autos a situação entronca na circunstância dos requerentes/recorridos terem adquirido, no decurso da causa, isto é, no decurso do processo de inventário para partilha de bens comuns após divórcio, meios suficientes para pagar taxa de justiça e encargos (honorários, despesas, custas, impostos, emolumentos, taxas e outros encargos) que por força da concessão do benefício do apoio judiciário estavam isentos de suportar até então, estatuindo que, nesse caso, deve ser instaurada pelo Ministério Público (ou outro interessado) ação para cobrança de tais importâncias. Apesar de a lei aludir a forma sumaríssima, deve entender-se, numa interpretação atualista da norma, tratar-se de ação declarativa comum de condenação, já que foram abolidas as antigas formas de processo comum ordinário, sumário e sumaríssimo, seguindo o processo de declaração, no regime hodierno, apenas a forma única (cf. art. 548º do CPC).
É, portanto, pressuposto da instauração dessa ação a circunstância de o beneficiário da proteção jurídica dispor, ao tempo da formulação do respetivo pedido, de património disponível suficiente para suportar os encargos, durante ou após o termo da causa, neste caso até quatro anos depois dele – cf. Salvador da Costa, O Apoio Judiciário, 9ª Ed., Almedina, 2013, p. 87.
Cumpre referir que não é qualquer aquisição ou aumento de bens ou valores pelo beneficiário de apoio judiciário que implica, automaticamente, a consideração de que adquiriu, no decurso da causa, meios económicos suficientes para suportar o pagamento dos encargos. Nem tão-pouco o mero aumento de vencimento do beneficiário do apoio judiciário releva para efeitos da norma em apreciação, porquanto tal aumento se limita a repor o poder de compra, pelo que não pode significar a aquisição de bens para efeitos da mesma previsão legal – cf. Salvador da Costa, O Apoio Judiciário, cit., p. 89; cf., no mesmo sentido, o Ac. da RC de 27.07.1982, Colectânea de Jurisprudência, Ano VII, t. 4, p. 61.
Importa distinguir e, por conseguinte, ponderar casuisticamente.
Em anos recuados, no domínio do antigo regime da assistência judiciária, foram apreciadas pelos tribunais superiores casos de recebimentos de montantes indemnizatórios no decurso da ação emergente de acidente de viação, nos quais se entendeu não ter justificação a instauração de ação de cobrança pelo Ministério Público. Estavam em causa processos em que uma das partes, beneficiária dessa assistência, recebia indemnização em razão da ação que instaurara e questionava-se se, em função desse recebimento, devia ou não ser acionada e condenada no pagamento das custas em dívida no processo, com vista ao seu pagamento coercivo. Formou-se, então, jurisprudência em sentido negativo – vd. o Ac. da RL de 06.12.1988, Colectânea de Jurisprudência, Ano XIII, t. 5, p. 117 que apreciou um caso de recebimento de uma indemnização por parte de um lesado num acidente de viação discutindo se constituía “aquisição de bens que determina a exigibilidade da dívida de custas”, fundamento de execução por custas, para concluir que não, com a consideração de que “a indemnização não constitui a aquisição de um bem de fortuna, mas sim a reparação de um dano”, não devendo, portanto, de “ser encarada como um rendimento, mas sim como um capital”. No mesmo sentido o Ac. da RP de 30.03.1982, Colectânea de Jurisprudência, Ano VII, t. 2, p. 277, entendendo que o recebimento do montante da indemnização civil por acidente de viação, sendo orientada pelo princípio da reconstituição ou reintegração no estado anterior ao dano, não traduzia enriquecimento ou melhoria económico-financeira para efeitos de ser retirado o apoio judiciário; aliás, reconstituir ou reintegrar – ponderou-se neste aresto – é, bem vistas as coisas, inconciliável com melhoria ou enriquecimento. No Ac. da RC de 16.12.1980, Boletim do Ministério da Justiça n.º 304º, p. 475 ponderou-se outra perspetiva: a de que a quantia recebida no decurso da causa era, feitas as contas, manifestamente insuficiente para cobrir as despesas da demanda em face dos encargos de sobrevivência do assistido.
Atento o exposto, é de assentar, como pano de fundo, que nem toda a aquisição ou aumento de bens ou valores pelo beneficiário de apoio judiciária implica, necessária e automaticamente, a consideração de que adquiriu, no decurso da causa, meios económicos suficientes para suportar o pagamento dos encargos.
De salientar que o mecanismo da condenação no próprio processo (art. 13º-3 da LADT) não se confunde com a questão do cancelamento do benefício do apoio judiciário (art. 10º da LADT). Quanto a este, aliás, carece o tribunal de competência material para o ordenar (ou, sequer, para o manter), porquanto é à entidade administrativa que no âmbito do procedimento administrativo decidiu conceder a concessão do apoio judiciário a quem cabe a decisão de revogação da proteção jurídica, restando ao tribunal onde corre termos o processo para o qual foi conferida a mencionada proteção respeitar tal decisão e limitar-se a verificar os efeitos da mesma na concreta causa, sob pena de violação do âmbito do poder jurisdicional em matéria de proteção jurídica. Ao tribunal da causa está, portanto, vedada a apreciação dos vícios do procedimento administrativo ou da decisão administrativa bem como a discussão do acerto da mesma, seja qual for o fundamento em que assenta – sobre a competência para o referido cancelamento caber ao órgão da segurança social que concedeu a proteção jurídica, vd. Salvador da Costa, O Apoio Judiciário, 9ª Ed., 2013, p. 75; na jurisprudência, o Ac. de 25.10.2022, rel. Edgar Lopes, proc. 8834/20.3T8LSB-A.L1-7; o Ac. da RC de 28.02.2023, rel. Arlindo Oliveira, proc. 705/21.2T8FIG.C1; o Ac. da RG de 12.10.2023, rel. Des. José Duarte, proc. 1665/14.1T8BRG-N.G1; o Ac. da RP de 27.01.2025, rel. Des. Eugénia Cunha, proc. 3161/18.9T8PNF-E.P1; e o Ac. do STJ de 15.05.2025, rel. Catarina Serra, proc. 6672/23.0T8STB.E1.S1.
Note-se que a lei, quanto ao âmbito objetivo de aplicação, alude a aquisição de meios suficientes pelo beneficiário da proteção jurídica em duas normas distintas, uma, no art. 10º-1-a) da LADT, atinente ao cancelamento da proteção jurídica e, outra, no art. 13º-1 da LADT que agora cuidamos, com parcial coincidência quanto às causas de revogação do benefício do apoio judiciário e do correlativo acionamento para cobrança de valores que o beneficiário respetivo deixou de pagar em razão daquele benefício, a requerer, por isso, a sua harmonização. De modo que o elemento de harmonização, quanto aos segmentos normativos coincidentes, “parece ser de natureza temporal, isto é, o relativo ao momento em que é verificada a situação de suficiência económica do beneficiário da concessão da proteção jurídica”. Assim, “se a situação de suficiência económica do beneficiário da concessão da proteção jurídica for verificada anteriormente ao termo da causa em função da qual operou o procedimento administrativo na segurança social haverá lugar à revogação daquele benefício, nos termos do artigo 10º, n.º 1, desta Lei; se só o for depois do termo da causa para a qual foi concedida a proteção jurídica, então a solução será o acionamento a que se reporta o n.º 1 do artigo em análise [leia-se: art. 13º]” – cf. Salvador da Costa, O Apoio Judiciário, cit., pp. 95-96. É este mesmo entendimento que veio a ser acolhido no Ac. da RE de 05.06.2025, rel. Sónia Moura, proc. n.º 1331/20.9T8BJA.E1 ao sumariar que “o artigo 10.º do Regime do Acesso ao Direito e aos Tribunais, atinente ao cancelamento da proteção jurídica, não é aplicável após o trânsito em julgado da sentença que põe termo ao processo, sendo antes aplicável, nesses casos, o disposto no artigo 13.º do mesmo diploma legal.”.
No âmbito do mecanismo previsto no n.º 3 do art. 13º da LADT e independentemente da instauração da ação prevista no n.º 1 desta norma, verificamos que o texto legal aplica o verbo poder no sentido não de faculdade, possibilidade ou eventualidade, mas sim no sentido de um verdadeiro poder-dever - ou dever funcional, digamos assim - que recai sobre o juiz do processo direcionado à eventual condenação no próprio processo a parte que, entretanto, no decurso da causa, veio a adquirir meios económicos suficientes para suportar o pagamento das custas, cabendo-lhe, então, proferir a decisão incidental nos autos de acordo com os elementos de que disponha, por si só ou complementados por elementos probatórios requeridos pelas partes (a decisão não tem, necessariamente, de ser condenatória no pagamento das custas, pois, se não resultar acréscimo de património de um interessado que o mesmo obteve meios suficientes para custear as despesas judiciais, em face da ponderação das provas, deve manter-se o benefício de proteção jurídica anteriormente concedido: cf., assim, o Ac. da RG de 17.02.2016, rel. António de Almeida, proc. n.º 4432/15.1T8GMR.G1. Um procedimento a adotar, comum neste tipo de situações, consiste em o tribunal ordenar preliminarmente, antes de tomar posição sobre a eventual condenação em custas do beneficiário da proteção jurídica, que a Secção de Processos proceda ao cálculo prévio provável das custas, por referência ao valor da causa, o qual, no processo de inventário, é apurado, em regra, por referência à soma do valor dos bens a partilhar: cf. art.s 302º-3 e 1130º do CPC).
É neste sentido que se pronuncia a doutrina autorizada, fazendo a exegese da norma: “[s]e o juiz verificar, na sequência de sentença definitiva, que o beneficiário da concessão da proteção jurídica auferiu vantagem económica considerável no confronto com os valores de cujo pagamento foi dispensado em razão da concessão daquele benefício, deve proceder à sua condenação no processo da ação, oficiosamente ou sob promoção do Ministério Público, naturalmente ouvindo previamente o interessado, nos termos do artigo 3º, n.º 3 do CPC” – cf. Salvador da Costa, O Apoio Judiciário, cit., p. 91.
O Ministério Público, ora recorrente, sustentou que os recorridos adquiriram no decurso da causa meios económicos suficientes para suportar o pagamento das custas do processo e promoveu isso mesmo, pedindo ao juiz do processo que os condenasse de imediato no pagamento das custas. Cumprido o contraditório, e juntos por uma das partes os respetivos meios de prova, vieram os recorridos sustentar que não devem ser condenados no próprio processo, devendo manter-se o benefício do apoio judiciário que por decisão administrativa dos serviços de segurança social lhes foi atribuído.
O juiz a quo entendeu não dispor de elementos para tomar tal decisão, aduzindo que a matéria de facto a considerar de suporte à decisão e condenação se apresenta controvertida nos autos, concluindo pela desadequação da decisão por simples despacho e remetendo as partes para os meios comuns quanto à cobrança das custas, como exarou no despacho recorrido.
Questiona-se: é lícita a solução preconizada pelo juiz a quo?
A resposta é negativa.
O mecanismo processual previsto no art. 13º-3 da LADT pode ser visto como um incidente da instância, porquanto coenvolve um procedimento que, emergindo na fase final das custas, exorbita a tramitação normal do processo onde surge. A doutrina caracteriza-o como «uma ocorrência extraordinária que perturba o movimento normal do processo», encarando-a como uma «questão secundária e acessória para a solução da qual se torna necessária a prática de actos e termos não compreendidos na estrutura própria do processo da acção», apresentando, portanto, em relação ao processo da acção, o carácter de episódio ou acidente - cf. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 1946, p. 563.
Por outras palavras, numa definição mais ampla, o incidente da instância é olhado como uma «ocorrência extraordinária, acidental, estranha, surgida no desenvolvimento normal da relação jurídica processual que origine um processado próprio, isto é, com um mínimo de autonomia [...] uma intercorrência processual secundária, configurada como episódica e eventual em relação ao processo próprio da acção principal ou do recurso» - cf. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 1999, p. 8.
No caso dos autos, suscitada a questão incidental em presença ao juiz do processo, deve entender-se que este tem o dever de decidir incidentalmente a questão suscitada, porquanto a mesma surge enxertada no decurso da causa após prolação da sentença homologatória do acordo de partilha, não se reportando a uma questão relacionada com o apuramento do acervo de bens a partilhar e que, por alguma razão, pudesse atrasar intoleravelmente o processo e requeresse, nessa medida, por complexidade ou extensão da prova a produzir, a necessidade de ser decidida em ação declarativa autónoma, tal como, especificamente, se previne na tramitação atinente ao processo de inventário (cf. art.s 1093º-1 e 1105º-5 do CPC).
Por outro lado, para efeitos da decisão incidental da eventual condenação no pagamento das custas pela parte vencedora no próprio processo em virtude da aquisição de meios suficientes, não se descortina complexidade na matéria que implique, ou sequer justifique, a remessa das partes para os meios comuns, nem redução das garantias de defesa que, na economia do incidente em causa, de estritura simplificada, se encontram amplamente acauteladas. O fundamento avançado pelo tribunal a quo para se abster de julgar a questão incidental - considerar desadequado decidir em virtude de a respetiva matéria se mostrar controvertida - carece de fundamento legal.
Para além do exposto, cumpre ainda referir que em relação a qualquer incidente recai sobre as partes o ónus de indicar, nos respetivos requerimentos, os meios de prova que entendam produzir com vista a convencer o tribunal das suas posições: no caso concreto dos autos sobre a manutenção do benefício do apoio judiciário antes concedido, incluindo para efeitos de ilisão da presunção legal acima indicada (cf. art.s 293º e 294º do CPC), o que, de resto, o interessado/recorrido BB fez, mediante a indicação de prova documental (vd. o req.º de 21.03.2025: ref.ª citius n.º 11724765).
Apesar da questão incidental em apreciação ter aparecido no âmbito de um processo de inventário para partilha, a mesma questão - aquisição de meios económicos suficientes - bem que poderia surgir num qualquer outro processo com diferente objeto, por exemplo numa vulgar ação de cobrança de dívida ou numa ação de condenação com pedido de restituição de uma quantia mutuada não reembolsada, onde, por identidade de razões, a aquisição de meios económicos suficientes pela parte vencedora poderia colocar a necessidade de desencadear o mesmo tipo de incidente.
Neste conspecto, não se vislumbra, portanto, fundamento legal que autorize remeter as partes para os meios comuns quanto a uma questão incidental que deve ser, na ótica legal, dirimida no próprio processo, para além do que, por expressa prescrição legal, o tribunal da causa, sendo competente para a ação, será também competente, por extensão, para conhecer dos incidentes que nela se levantem (cf. art. 91º-1 do CPC).
Atento o exposto, é de concluir pela revogação do despacho posto em crise, cabendo ao tribunal recorrido apreciar no próprio processo a questão incidental suscitada pelo Ministério Público.
(…).
Atento o exposto, acordam os Juízes da 3.ª Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido sindicado no recurso.
Sem custas.
Notifique e registe.
Coimbra, 14.10.2025.
Marco António de Aço e Borges
Hugo Meireles
Cristina Neves