PROCESSO DE INVENTÁRIO
PARTES PRINCIPAIS
INCIDENTE DE INTERVENÇÃO PRINCIPAL ESPONTÂNEA
Sumário

Em conformidade com o disposto no art. 1085.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, no processo de inventário apenas podem intervir como partes principais: - os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens; e - o Ministério Público, nas situações legalmente previstas.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra

(Processo n.º 22/20.5T8CNF-B.C1)

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Sumário:
(sumário elaborado pelo relator, nos termos do art. 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil)

(…).


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I – Relatório

Recorrentes:
AA
BB
CC
DD

Recorridos:
EE de FF
GG
HH


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No âmbito do inventário aberto por óbito de II e de JJ, AA e mulher BB, bem como CC e marido DD vieram requerer a respetiva intervenção principal espontânea, ao abrigo do disposto no artigo 1087.º do Código de Processo Civil, alegando, em suma, que corre termos ação (processo n.º 74/17....) por si instaurada, na qualidade de arrendatários, pela qual exercem o direito de preferência sobre a transmissão do prédio urbano inscrito no artigo ...94 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...93, que corresponde à verba n.º 3 dos Bens Imóveis constantes da Relação de Bens junta ao processo de inventário.

Em seu entender, têm interesse no desfecho do presente inventário na medida em que o destino da verba n.º 3 lhes diz diretamente respeito, devendo, por isso, serem admitidos a intervir no processo de inventário.

Também requereram que, em virtude da pendência da mencionada ação de preferência, o processo de inventário fique suspenso ao abrigo do disposto no artigo 1092.º, n.º 1, alíneas a) e b) do Código de Processo Civil, porquanto se a ação de preferência for procedente tal prédio haverá de ser excluído destas partilhas, e as rendas relativas ao mesmo, haverão de ser restituídas aos preferentes, cujo direito de propriedade sobre o prédio retrotrairá à data da escritura ou, ao invés, no caso de improcedência, o prédio em causa pertencerá ao acervo hereditário e bem assim o valor resultante das rendas depositadas.

Depois de cumprido o contraditório, foi proferido despacho que indeferiu o incidente de intervenção principal espontânea deduzido por AA e mulher BB, bem como por CC e marido DD.


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II – O Objeto do Recurso

Inconformados, os Requerentes interpuseram o presente recurso.
As alegações de recurso são rematadas pelas seguintes conclusões:
(…).

Não foram apresentadas contra-alegações.


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Questões a decidir
Atendendo às conclusões das alegações do recurso, importa analisar e decidir se o despacho que indeferiu o incidente de intervenção principal espontânea deduzido por AA e mulher BB, bem como por CC e marido DD, merece censura.

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III – Fundamentos

Os factos a considerar para a decisão deste recurso são os acima elencados no relatório.


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Está em causa o despacho que indeferiu o incidente de intervenção principal espontânea, deduzido no âmbito de um processo de inventário; incidente esse instaurado pelos autores numa ação em que, invocando a qualidade de arrendatários, pretendem exercer o direito de preferência relativamente à transmissão de um prédio urbano que integra a relação de bens constante do processo de inventário.
Relevam para a decisão a proferir os artigos 1085.º e 1087.º, ambos do Código de Processo Civil.
Estabelece o artigo 1087.º do Código Civil (sob a epígrafe «Intervenção principal»):
«1 - É admitida, em qualquer altura do processo, a intervenção principal espontânea ou provocada relativamente a qualquer interessado direto na partilha.
2 - O cabeça de casal e os demais interessados são notificados para responder à dedução do pedido de intervenção».
Por seu turno, dispõe o 1085.º do Código Civil (sob a epígrafe «Legitimidade»):
«1 - Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo:
a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens;
b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a menores, maiores acompanhados ou ausentes em parte incerta.
2 - Podem intervir num processo de inventário pendente:
a) Quando haja herdeiros legitimários, os legatários e os donatários, nos atos, termos e diligências suscetíveis de influir no cálculo ou determinação da legítima e de implicar eventual redução das respetivas liberalidades;
b) Os credores da herança e os legatários, nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos;
c) O Ministério Público, para o exercício das competências que lhe estão atribuídas na lei».
Como decorre do artigo 1087.º do Código Civil, qualquer interessado direto na partilha pode requerer a sua intervenção principal espontânea.
Face ao disposto no nosso ordenamento jurídico, «são interessados diretos na partilha os herdeiros (que tenham aceite a herança – cfr. art. 2050.º do Código Civil), o cônjuge meeiro (cfr. artigos 1724.º e 1730.º do Código Civil), o cônjuge do herdeiro casado em comunhão geral (ou, em qualquer regime de bens, mas apenas se estiver em causa direito deste cônjuge do herdeiro sobre a casa de morada de família – cfr. art. 1682.º-A, n.º 2, do Código Civil), os usufrutuários de parte da herança, os credores do herdeiro repudiante em caso de sub-rogação no direito que a este assistia (cfr. art. 2067.º do Código Civil), o cessionário em caso de alienação de herança (cfr. art. 2124.º do Código Civil), o adotado pleno (cfr. artigo 1986.º do Código Civil)» (cfr. Carla Câmara, O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial, Almedina, Coimbra, 2021, pp. 45-46).
Sucede que os ora Recorrentes não podem ser qualificados como interessados diretos na partilha, pois – como bem refere o despacho sob recurso – o que os ora Recorrentes invocam é que são autores numa ação em que se discute o seu eventual direito de preferência sobre um bem relacionado no processo de inventário; sendo que, caso tal ação venha a ser julgada procedente, daí não resultará que passam a dispor da qualidade de herdeiro dos inventariados, ou que assumam qualquer uma das outras posições mencionadas no parágrafo precedente.
Não sendo interessados diretos na partilha, inexiste fundamento legal para a intervenção principal espontânea requerida pelos ora Recorrentes (artigo 1085.º, n.º 1, alíneas a) e b), a contrario, e artigo 1087.º, n.º 1, alínea a), a contrario, ambos do Código de Processo Civil).

Consequentemente, deverá ser confirmada a decisão sob recurso.

Aqui chegados, haverá ainda que referir o seguinte.

Dizem os ora Recorrentes que «o despacho recorrido nada refere no que respeita ao acautelamento no recebimento das rendas pelo mesmo prédio geradas» (conclusão 10). E advogam os ora Recorrentes pese embora a utilização do mecanismo processual do incidente de intervenção principal espontânea possa «não ter sido o mais adequado», «tratar-se-ia de “erro da forma de processo”, ou de erro no meio processual utilizado, o qual se encontra previsto no artigo 193º do C.P.C.»; «o eventual erro na forma de processo poderá resultar da utilização do mecanismo legal previsto no artigo 1087º do C.P.C., relativo à intervenção principal, quando deveria eventualmente ter sido usado o mecanismo legal previsto no artigo 1085º, nº 2, alínea b), relativo à intervenção de credores da herança, nas questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos»; porquanto «os recorrentes são verdadeiros credores da herança para os efeitos da alínea b) do nº 2 do artigo 1085º do C.P.C.»; «razão pela qual a admissão dos Recorrentes haveria sempre e por qualquer forma de ser admitida, e, se o não fosse a título principal nos termos do artigo 1087º do C.P.C., sempre teria de o ser, para as finalidades específicas determinadas pela alínea b) do nº 2 do artigo 1085º do C.P.C., ou seja, para as questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos, ou por outros melhores termos de Direito que invocar e conhecer se possam, e que o Venerando Tribunal ad quem, doutamente, suprirá» (conclusões 13 a 21).
Nas conclusões que apresentaram, os ora Recorrentes afirmam que «aquando do pedido de intervenção os recorrentes solicitaram a suspensão dos presentes autos até trânsito em julgado do Proc. 74/17...., a que corresponde a acção de preferência, contudo, a parte dispositiva do despacho recorrido não toma posição quanto a essa matéria, muito embora a respectiva fundamentação seja no sentido de tal suspensão ser também indeferida o que consubstancia vício da decisão recorrida»; sendo que, em seu entender, «estão reunidos ambos os pressupostos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 1092.º, do C.P.C.» (conclusão 7 e conclusões 22 a 30).

Na conclusão 32, escreveram os ora Recorrentes: «Deverá ser anulado e dado sem efeito o subsequente despacho que ordena o desentranhamento de todos os requerimentos e respectivos anexos apresentados pelos recorrentes, porquanto os mesmos assumem relevância e pertinência na posição por estes defendida nos presentes autos de inventário».

A propósito do referido nos três precedentes parágrafos, cumpre sublinhar que o presente recurso incide apenas sobre o despacho que indeferiu o incidente de intervenção principal espontânea, porquanto, no requerimento de interposição do recurso, os ora Recorrentes especificaram que é essa a decisão de que recorrem (art. 635.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).

Assim, na pág. 1 do requerimento de interposição do recurso/alegações, os ora Recorrentes afirmam, de forma inequívoca:

«AA e mulher BB, e CC e marido DD, não se conformando com o douto despacho que indeferiu o pedido de intervenção principal espontânea, dele vêm interpor recurso para o venerando Tribunal da Relação de Coimbra»;

«Vem o presente recurso interposto do douto despacho onde se decidiu que “por manifesta e legalmente inadmissível, indefere-se o pedido de intervenção principal espontânea deduzido por AA e mulher BB e CC e marido DD, não se afigurando, nos termos legais, como interessados diretos na partilha, ao abrigo do disposto nos artigos 1087º, nº 1 a contrário e 1085º a contrario ambos do Código do Processo Civil”».

O recurso incide sobre o despacho que indeferiu um pedido de intervenção principal espontânea no âmbito de um processo de inventário, apresentado pelos ora Recorrentes AA e mulher BB e CC e marido DD.

No que concerne, à pretendida qualificação dos ora Recorrentes como «verdadeiros credores da herança para os efeitos da alínea b) do nº 2 do artigo 1085º do C.P.C.»; e à pretendida «admissão dos Recorrentes [a intervir no processo de inventário] se o não fosse a título principal nos termos do artigo 1087º do C.P.C., sempre teria de o ser, para as finalidades específicas determinadas pela alínea b) do nº 2 do artigo 1085º do C.P.C., ou seja, para as questões relativas à verificação e satisfação dos seus direitos, ou por outros melhores termos de Direito que invocar e conhecer se possam, e que o Venerando Tribunal ad quem, doutamente, suprirá», dir-se-á que este Tribunal, no âmbito do presente recurso, não tem de se pronunciar sobre tais matérias.

O recurso incide – não é demais repeti-lo – sobre o despacho que indeferiu um pedido de intervenção principal espontânea. A pretensão ora verbalizada pelos Recorrentes – pretendem ser admitidos como intervenientes secundários no inventário, ao abrigo do disposto no art. 1085.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil – é uma pretensão diferente daquela sobre a qual incidiu o despacho recorrido – o despacho recorrido incidiu sobre o pedido de intervenção principal dos ora Recorrentes, que foi o que estes requereram. E, além disso, a pretensão ora verbalizada pelos Recorrentes não foi apreciada e decidida pelo Tribunal de 1.ª Instância. Para que este Tribunal da Relação se possa pronunciar sobre a admissão ou não da intervenção dos ora Recorrentes como intervenientes secundários no inventário, ao abrigo do disposto no art. 1085.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, é necessário, nomeadamente, que haja prévia pronúncia do Tribunal de 1.ª Instância e que seja interposto recurso quanto ao decidido – o que não ocorreu in casu.

Relativamente à questão da suspensão do processo de inventário, é certo, por um lado, que no requerimento em que deduziram o incidente de intervenção principal espontânea, os ora Recorrentes também requereram, «nos termos do artigo 1092.º, n.º 1, alíneas a) e b) do C.P.C., que seja ordenada a suspensão da instância nos mesmos autos [i. e., no processo de inventário], até prolação de sentença, com trânsito em julgado, nos processos:

- 74/17.... que corre termos no Tribunal de Competência Genérica de Cinfães;

- 229/17.... que corre termos no Juiz 1 do Juízo Central de Viseu […];

- 37/17.... que corre termos no Tribunal de Competência Genérica de Cinfães».

Por outro lado, também é verdade que, no despacho sob recurso, são tecidas algumas considerações sobre a não suspensão da instância «por via da pendência da ação de preferência em causa», ou seja do processo n.º 74/17.....

Todavia, é igualmente certo que o despacho sob recurso, que de forma esclarecedora tem como epígrafe «I – Do Incidente de Intervenção Principal Provocada:», apenas decidiu tal incidente, não decidiu o pedido de suspensão da instância quanto ao processo de inventário.

O despacho sob recurso – que decidiu o incidente de intervenção principal espontânea – não padece de vício por não se ter pronunciado sobre a requerida suspensão da instância, porque a decisão do incidente de intervenção principal espontânea não impunha a prévia ou contemporânea decisão sobre a requerida suspensão da instância. A suspensão da instância é uma questão diferente do incidente de intervenção principal espontânea.
A questão da suspensão do processo de inventário até ao trânsito em julgado seja da decisão final que vier a ser proferida no processo n.º 74/17.... (que é a ação de preferência em que são autores os ora Recorrentes), seja da decisão final que vier a ser proferida no processo n.º 229/17.... e no processo n.º 37/17...., é questão que extravasa o âmbito do presente recurso e sobre a qual este Tribunal não deve pronunciar-se.

Quanto à requerida anulação ou declaração «sem efeito» do «despacho que ordena o desentranhamento de todos os requerimentos e respectivos anexos apresentados pelos recorrentes», também se trata de matéria que extravasa o âmbito do presente recurso, pois os ora Recorrentes interpuseram recurso apenas quanto ao despacho que indeferiu o incidente de intervenção principal espontânea, não quanto ao «despacho que ordena o desentranhamento de todos os requerimentos e respectivos anexos apresentados pelos recorrentes».


Termos em que se conclui ser de confirmar a decisão sob recurso.

As custas recaem sobre os Recorrentes (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).


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IV – Decisão


Pelo exposto, decide-se pela improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.

Condenam-se os Recorrentes a pagar as custas do recurso.


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Coimbra, 30 de setembro de 2025
Francisco Costeira da Rocha
Marco António de Aço e Borges
Luís Miguel Caldas