Não obstante o afirmado pelo AUJ nº 9/2025, de 10 de Setembro, a efetivação de obras de finalização numa vivenda inacabada, por dois cônjuges, casados no regime de comunhão de bens adquiridos, prédio próprio de um deles, constitui “benfeitoria” e dá lugar a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio) com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, no momento da dissolução e partilha da comunhão (cf. art. 1726º, nº 2 do C.Civil).
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]
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1 – RELATÓRIO
Em autos de autos de Inventário para partilha dos bens comuns do casal formado por AA e BB, sequente ao divórcio de ambos, esta última, Requerente nos autos, notificada da relação de bens apresentada por aquele (cabeça-de-casal nos mesmos), apresentou reclamação à relação de bens, nomeadamente e para o que ora diretamente releva, requerendo a inclusão de benfeitorias realizadas em imóvel próprio do cabeça-de-casal, no valor de € 80.000.
O Cabeça de Casal AA, apresentou resposta à reclamação apresentada pela reclamante BB, em que, nomeadamente no que a esse particular dizia respeito, rejeitou a inclusão de benfeitorias, alegando que as obras foram realizadas com recursos próprios antes e após o casamento, sem utilização de valores comuns.
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Foram admitidos, por legais e tempestivos, os documentos e róis de testemunhas apresentados com os articulados e designou-se data e hora para a inquirição de testemunhas.
Realizou-se inquirição de testemunhas, tendo sido observado todo o formalismo legal, conforme consta da respetiva Ata.
Na sequência oportuna, o Exmo. Juiz de 1ª instância proferiu DECISÃO no dito Incidente de Reclamação à Relação de Bens, com o seguinte concreto dispositivo:
«III. Decisão:
Termos em que se julga a presente reclamação parcialmente procedente e, consequentemente, determina-se:
1. A inclusão na relação de bens, no ativo:
1.1.dos bens descritos no ponto 3 dos factos provados,
1.2.dos bens descritos no ponto 5.a.ii. dos factos provados,
1.3.dos bens descritos nos pontos 5.d.i., 5.e.i., 5.h.i., 5.j.ii e 5.1,
1.4.como benfeitorias, das obras referidas nos pontos 9 e 10 dos factos provados,
1.5.da quantia de €3.100,00, em numerário.
2. Em consequência do decidido no ponto 1.4, determina-se a inclusão na relação de bens, no passivo, de um direito de crédito compensatório em favor do património comum contra o património próprio do cabeça de casal, decorrente das obras referidas nos pontos 9 e 10 dos factos provados, realizadas no prédio urbano, que atualmente corresponde ao artigo matricial urbano n.º ...71 da freguesia ..., concelho ...;
3. Julgar improcedente a reclamação à relação de bens, nas demais pretensões deduzidas.
4. Condenar a interessada reclamante, e o cabeça de casal, ora reclamado, em custas do incidente, fixando-se a proporção da responsabilidade das custas, em partes iguais (cfr. art.º 527.º, n.º 1 e 2 do CPC), atenta a proporcionalidade do vencimento das pretensões deduzidas.
5. Fixar a taxa de justiça do incidente em 2 (duas) UC (cfr. art.º 7.º, n.º 4 do RCP e Tabela II-A anexa a este), atenta a complexidade do presente incidente.
6. Notifique, sendo o cabeça de casal, para, em 10 dias, após o trânsito em julgado da presente decisão, apresentar relação de bens corrigida, em conformidade, com o acima decidido.» [com destaques da nossa autoria]
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Irresignado com a referenciada parte dessa decisão, o Cabeça de Casal AA interpôs recurso de apelação da mesma, cujas alegações finalizou com as seguintes conclusões:
«1- A prova documental produzida nos autos, o conhecimento geral e as regras da experiência e da normalidade do acontecer impõem que se altere a decisão da matéria de facto dada como provada.
2- “A reclamante e o cabeça de casal contraíram casamento entre si em 28 de julho de 2012, sem convenção antenupcial” (cfr. ponto 1 dos factos provados).
3- Da factura n.º 13/2012 e do recibo n.º 19/2012, ambos no valor de €2.460,00 e emitidos, em 18/07/2012, ao cabeça-de-casal, juntos como documento 9 do requerimento de resposta à reclamação à relação de bens, de 20/09/2024 (ref.ª citius 11145732), resulta que os materiais e a mão-de-obra referentes à canalização do recuperador de calor a água, no valor de €2.460,00, foram pagos pelo cabeça-de-casal em 18/07/2012, antes do casamento entre as partes, pelo que se tem de concluir que o pagamento dessa obra foi feito com dinheiro próprio do cabeça-de-casal, obtido antes do casamento.
4- Nessa sequência, impõe-se que:
a) Se altere a redacção do ponto 15) dos factos não provados, passando o mesmo a ter a seguinte redacção: As obras referidas no ponto 9, alíneas b) a f) dos factos provados foram pagas integralmente pelo cabeça-de-casal com dinheiro que este havia amealhado antes do casamento, bem como com dinheiro que os seus pais lhe foram dando depois do casamento.
b) Se adite à factualidade provada o seguinte facto: As obras referidas na alínea a) do ponto 9 dos factos provados, foram pagas integralmente pelo cabeça-de-casal com dinheiro que o cabeça-de-casal havia amealhado antes do casamento.
5- Uma vez que não foi paga pelo casal e, por isso, não é bem comum do casal, a benfeitoria da obra referida no ponto 9. alínea a) dos factos provados – “canalização do recuperador de calor a água, no valor de €2.460,00” - não pode ser incluída na relação de bens.
6- A inclusão na relação de bens, no activo, das benfeitorias das obras referidas nos pontos 9 e 10 dos factos provados e, em simultâneo, a inclusão na relação de bens, no passivo, do direito de crédito compensatório em favor do património comum contra o património próprio do cabeça-de-casal decorrente das mesmas obras referidas nos pontos 9. e 10. dos factos provados, configura uma duplicação do relacionamento do direito dos ex-cônjuges decorrente das benfeitorias resultantes das ditas obras, enquanto benfeitorias em si próprias e enquanto direito de crédito compensatório sobre o cabeça-de-casal, o que, na prática, se traduzirá no pagamento em dobro das benfeitorias pelo cabeça-de-casal, o que não pode acontecer, sob pena existir enriquecimento sem causa da reclamante.
7- O património comum a partilhar não tem qualquer dívida que deva ser relacionada no passivo da relação de bens.
8- As benfeitorias decorrentes das obras referidas nos pontos 9, alíneas b) a f) e 10 dos factos provados, realizadas no prédio urbano, que actualmente corresponde ao artigo matricial urbano n.º ...71 da freguesia ..., concelho ..., conferem apenas ao património comum um direito de crédito compensatório sobre o cabeça-de-casal correspondente à benfeitoria em causa, o qual não pode ser relacionado no passivo, mas no activo da relação de bens.
9- Tal direito de crédito por benfeitorias não pode ser relacionado em duplicado, mas apenas de forma única, como direito de crédito do casal sobre o cabeça-de-casal.
10- Na parte da decisão recorrida, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 607.º, n.º 4, 1082.º, al. d) do Código de Processo Civil e os artigos 216.º, n.º 1, 473.º, 1721.º e 1722.º, n.º 1 al. a) do Código Civil.
Nestes termos, deve ser dado provimento à presente apelação e, por via dela, ser revogada a parte da decisão recorrida e ser a mesma substituída por outra que:
a) altere o ponto 1.4 da decisão recorrida, no sentido de ser incluído na relação de bens, no activo, o direito de crédito compensatório a favor do património comum contra o património próprio do cabeça de casal, decorrentes das obras referidas nos ponto 9 alíneas b) a f) e 10 dos factos provados, realizadas no prédio urbano, que actualmente corresponde ao artigo matricial urbano n.º ...71 da freguesia ..., concelho ..., não se incluindo na relação de bens o relacionamento de qualquer outro direito activo ou passivo referente a tais benfeitorias;
b) Ser revogada a decisão recorrida na parte que determina a inclusão na relação de bens, no passivo, de um direito de crédito compensatório em favor do património comum contra o património próprio do cabeça de casal, decorrente das obras referidas nos pontos 9 e 10 dos factos provados, realizadas no prédio urbano, que actualmente corresponde ao artigo matricial urbano n.º ...71 da freguesia ..., concelho ... (ponto 2. da decisão recorrida).
Assim fazendo V. Exas. a costumada
JUSTIÇA!»
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Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
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Na sequência processual, o Exmo. Juiz de 1ª instância prosseguiu com a admissão do recurso e fixação do seu efeito (como “suspensivo”, nos termos do nº3 do art. 1123º do n.C.P.Civil).
Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:
- impugnação da decisão sobre a matéria de facto [no sentido de que «a) Se altere a redacção do ponto 15) dos factos não provados, passando o mesmo a ter a seguinte redacção: As obras referidas no ponto 9, alíneas b) a f) dos factos provados foram pagas integralmente pelo cabeça-de-casal com dinheiro que este havia amealhado antes do casamento, bem como com dinheiro que os seus pais lhe foram dando depois do casamento; b) Se adite à factualidade provada o seguinte facto: As obras referidas na alínea a) do ponto 9 dos factos provados, foram pagas integralmente pelo cabeça-de-casal com dinheiro que o cabeça-de-casal havia amealhado antes do casamento.»];
- desacerto da decisão que determinou a inclusão na relação de bens, no “passivo”, de um direito de crédito compensatório em favor do património comum contra o património próprio do cabeça de casal, decorrente das obras referidas nos pontos “9.” e “10.” dos factos “provados”.
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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado como “provado” pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação poderá ter um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.
Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram provados no tribunal a quo:
«1. A reclamante e o cabeça de casal contraíram casamento entre si em 28 de julho de 2012, sem convenção antenupcial.
2. O casamento foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento, por sentença de 18/09/2017, transitada em julgado em 18/10/2017, proferida no processo de divórcio n.º 159/17...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Família e Menores de Oliveira do Bairro.
3. Nessa data, o casal detinha os seguintes bens, na casa de morada de família:
a. No “quarto virado para a estrada”:
i. Um conjunto de cortinados verdes e cinza, no valor de €10,00,
ii. Um candeeiro grande e de dois candeeiros de cabeceira, no valor de €10,00,
iii. Um quadro verde, no valor de €10,00.
b. No “quarto cinza”:
i. dois candeeiros de cabeceira, no valor de €10,00;
ii. um cortinado cinza, no valor de €5,00,
iii. uma estátua do soldado, no valor de €5,00;
c. no “quarto de arrumos/ginásio”:
i. um móvel de sala (módulo de vitrine e bar), no valor não concretamente apurado;
d. no “escritório”
i. dois cortinados roxos, no valor de €5,00.
e. Na “casa de banho brown”
i. Um tapete bege, de valor não concretamente apurado.
f. Na “casa de banho maison”
i. Um tapete castanho claro, de valor não concretamente apurado.
g. No “quarto do piso de baixo virado para as traseiras”:
i. cortinados castanhos, no valor de €5,00,
ii. 2 candeeiros inox e um candeeiro grande no valor de €10,00, no seu conjunto.
h. na “sala”:
i. 2 cortinados verdes, no valor de €5,00;
ii. 2 cortinados brancos, no valor de €5,00;
iii. 1 móvel, no valor de €100,00,
iv. 1 tv ..., no valor de €100,00
i. na “cozinha”:
j. na “despensa”:
i. 1 ...,
ii. 1 torradeira,
iii. 1 liquidificadora,
iv. 1 máquina de gelados, tudo de valor não concretamente apurado.
v. 1 garrafeira de esferovite, no valor de €5,00.
k. na “garagem”:
i. 2 bicicletas, no valor de €20,00 cada uma.
l. na “casa das máquinas”:
i. 1 estante de madeira, no valor de €50,00;
ii. 1 escultura do hall 1.º piso, no valor de €50,00;
m. no “exterior/jardim”:
i. 1 pulverizador, em plástico, no valor de €5,00,
ii. 4 vasos verdes, no valor de €1,00;
4. Na casa de morada de família, à data do divórcio, encontrava-se ainda 24 copos bermioli água/vinho e 12 copos bermioli de champanhe.
5. Na casa de morada de família, à data do divórcio, existiam, ainda, os seguintes bens:
a. no “quarto virado para a estrada”:
i. 1 edredão bicolor verde e 1 secretária no quarto da filha comum da reclamante e do cabeça-de-casal, de valor não concretamente apurado.
ii. 1 conjunto composto por flechas e arco, de valor não concretamente apurado.
b. no “quarto da filha CC”:
i. candeeiros (de tecto e de cabeceira), o baú com brinquedos, a estante, a roupa, calçado e brinquedos, de valor não concretamente apurado.
c. no “quarto de arrumos/ginásio”:
i. insuflável e brinquedos da filha dos interessados, CC, de valor não concretamente apurado.
ii. Roupas e objetos de praia, de valor não concretamente apurado.
d. na “casa de banho green”:
i. 1 conjunto de toalhas, de valor não concretamente apurado.
e. na “casa de banho maison”:
i. 1 conjunto de toalhas, de valor não concretamente apurado.
f. no “quarto do piso de baixo virado para as traseiras”:
i. 1 conjunto de tapetes, de valor não concretamente apurado.
g. na “sapateira”:
i. sapatos da filha CC, de valor não concretamente apurado.
h. na “sala”:
i. 1 conjunto de sofás, de valor não concretamente apurado.
i. Na “cozinha”:
i. 1 placa, 1 exaustor e 1 forno de valor não concretamente apurado, que foram adquiridos pelo cabeça de casal, antes do casamento (doc. 1 da resposta à reclamação).
j. Na “casa das máquinas”:
i. Uma máquina de lavar a roupa, adquirida pelo cabeça de casal, antes do casamento, de valor não concretamente apurado.
ii. Uma escada composta por 2 peças em alumínio, de valor não concretamente apurado.
k. no “exterior/jardim”:
i. um tanque em cimento da propriedade da reclamante, de valor não concretamente apurado;
ii. um conjunto de garrafa de gás.
l. Na “garagem”:
i. 1 compressor,
ii. 1 conjunto de chaves,
iii. 1 berbequim, 1 rebarbadora,
iv. 7 holofotes led,
v. 1 roçadora,
vi. 1 motobomba,
vii. 1 aparafusadora,
viii. estantes metálicas,
ix. 1 motocultivador, tudo de valor não concretamente apurado.
6. O prédio rústico descrito na verba n.º 2 da relação de bens, tem um valor tributário de €445,64.
7. Na data do casamento, o cabeça de casal era proprietário do prédio urbano correspondente ao artigo matricial urbano n.º ...71 da freguesia ..., concelho ..., composto de terreno com uma vivenda inacabada.
8. Ainda antes de contraírem casamento, foram realizadas obras no prédio urbano referido no ponto 7. dos factos provados, de modo a dotar o mesmo nas condições necessárias a habitá-la.
9. Após o casamento, foram realizadas as seguintes obras no referido prédio urbano:
a. canalização do recuperador de calor a água, no valor de €2.460,00;
b. trabalhos de eletricidade, no valor de €922,50;
c. madeiramento, no valor de €7.724,40;
d. caleiras, no valor de €350,03;
e. tintas e trabalhos de pintura, no valor de €1.829,01;
f. canalização e instalação de painéis solares e radiadores, no valor de €2.800,00.
10. Também foram realizadas as seguintes obras:
a. construção de um muro,
b. foram cimentados os espaços exteriores,
c. remate do telhado,
d. aplicação e fornecimento dos resguardos das bases dos chuveiros/banheira em 3 casas de banho, fornecimento e
e. aplicação de uma escada inox anterior (na casa das máquinas),
11. Em 29/02/2016, foi constituída a sociedade A..., Unipessoal Lda., com o NIPC ...10, do qual o cabeça-de-casal era o único sócio e gerente.
12. O pai do cabeça de casal permitiu-lhe usar no desenvolvimento da atividade da sociedade o imóvel onde esta tinha as suas instalações, sitas em ..., em ..., a título de comodato,
13. … bem como diversas máquinas e equipamentos, também a título de comodato.
14. A referida sociedade foi dissolvida e liquidada em 29/06/2018, sem ativo, nem passivo a partilhar.
15. À data da separação de facto do casal, existiam €3.100,00, em numerário.»
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Sendo consignado o seguinte em termos de factos “não provados” pelo tribunal a quo:
«1) Os bens referidos no ponto 4 dos factos provados, foram adquiridos pela interessada antes do casamento.
2) Os bens referidos em 5.a.ii. foram comprados pelo cabeça de casal como presente pelo seu aniversário.
3) Os bens referidos em 5.b.i., 5.c.i., 5.g.i., 5.k.ii. eram bens do extinto casal.
4) Os bens referidos nos pontos 5.d.i. e 5.e.i. foram oferecidos ao cabeça-de-casal pela sua mãe e pela sua tia, antes do casamento.
5) Os bens referidos no ponto 5.h.i., foram comprados com recurso a dinheiro doado ao cabeça-de-casal pela mãe deste.
6) O bem referido no ponto 5.j.ii, foi adquirido pelo cabeça de casal antes do casamento.
7) Os bens referidos no ponto 5.l, foram doados ao cabeça-de-casal pelo seu pai, antes do casamento, altura em que o cabeça-de-casal os passou a usar na sua atividade de canteiro.
8) Os bens referidos dos pontos 3 a 5 dos factos provados tinham o valor de €20.000,00.
9) Há data do divórcio, existiam, na casa de morada de família, os seguintes bens:
a. no “quarto virado para a estrada”:
i. 1 varão de cortinados, e 1 armário não encastrados nas paredes da casa;
ii. Quadros pintados a óleo;
iii. roupa e as carteiras da reclamante;
iv. peças de cristal;
v. álbum do casamento dos interessados.
b. no “quarto da filha CC”
i. 1 armário não encastrado nas paredes da casa;
c. No “quarto cinza”
i. 1 edredão azul cinza;
ii. 1 armário
iii. 1 varão de cortinado não encastrado na parede da casa.
d. No “quarto de arrumos/ginásio”
i. 1 árvore de Natal e decorações;
e. No “escritório”:
i. 2 estantes altas e as duas estantes baixas
ii. 1 viola pintada,
iii. 1 tábua de passar a ferro,
iv. 1 ferro com caldeira,
v. 1 router;
vi. 1 ferro de engomar verde;
vii. 1 varão de cortinado não encastrado na parede da casa.
f. na “casa de banho green”:
i. 1 móvel lavatório com espelho, e 1 resguardo da base de duche não materialmente ligados com carácter de permanência à casa de morada de família
ii. Tapetes verdes
g. na “casa de banho brown”:
i. 1 móvel lavatório com espelho, e 1 resguardo da base de duche não materialmente ligados com carácter de permanência à casa de morada de família
h. na “casa de banho maison”:
i. 1 móvel lavatório com espelho, e 1 resguardo da base de duche não materialmente ligados com carácter de permanência à casa de morada de família
ii. 1 toalheiro de mão;
iii. 1 secador de cabelo;
iv. 1 balança digital de vidro;
i. no “quarto do piso de baixo virado para as traseiras”:
i. 1 varão de cortinados não encastrado na parede da casa.
j. Na “sapateira”
i. 1 aspirador
ii. prateleiras de sapatos não encastradas nas paredes da casa;
iii. sapatos da requerente
k. Na “sala”
i.Varões de cortinados não encastrados nas paredes da casa;
ii.1 cesto de lenha;
iii.1 carpete verde;
iv.jarras de vidro/estanho ou cristais
l. Na “cozinha”
i.1 cafeteira elétrica,
ii.1 bomboneira de cristal Atlantis,
iii.1 pote de barro com tampa,
m. Na “despensa”
i.1 espremedor de citrinos;
ii.1 varinha mágica,
iii.4 estantes não encastradas nas paredes dessa divisão,
iv.1 bilha inox,
v.1caixa de utensílios;
vi.1 mala térmica,
n. Na “garagem”
i.máquinas de sublimação e de “tampografia”,
ii.potes altos com tampa, altos de plástico preto e/ou baixos de plástico preto;
o. Na “casa das máquinas”
i. 1 prateleira superior não encastrada nas paredes da divisão da casa;
ii. utensílios de limpeza.
p. No “jardim/exterior”
i.1 floreira;
10) Na horta da casa, há data do divórcio existiam três tanques.
11) O prédio rústico descrito na verba 2 da relação de bens, tem um valor de €8.500,00.
12) As obras referidas nos pontos 8 a 10 dos factos provados foram realizadas pela Requerente e o cabeça-de-casal.
13) O pai do cabeça-de-casal ofereceu a este as bancadas da cozinha e as canalizações (materiais e mão-de-obra),
14) bem como construiu o muro de suporte de terras e cimentou espaços exteriores.
15) As obras referidas no ponto 9 dos factos provados foram pagas integralmente pelo cabeça de casal com dinheiro que o cabeça-de-casal havia amealhado antes do casamento, bem como com dinheiro que os seus pais lhe foram dando depois do casamento.
16) As obras referidas nos pontos 9 e 10 dos factos provados, têm o valor de €80.000,00.
17) À data da dissolução do casamento, a sociedade referida no ponto 11 dos factos provados, encontrava-se a laborar e tinha um património composto por vário imobilizado corpóreo, nomeadamente máquinas (máquina de escassilhar, compressor, mós, rebarbadoras, calços e outras máquinas) e equipamento informático, matéria-prima, nomeadamente várias quantidades de pedras de granito já laminadas, e ainda alguns créditos sobre clientes.
18) … e a quota da referida sociedade tinha um valor não inferior a €25.000,00.
19) À data da dissolução do casamento dos interessados, a referida sociedade não tinha qualquer atividade, nem imobilizado.
20) À data da separação de facto do casal, o mesmo detinha uma aplicação mutualista no Banco 1..., no montante de 400,00 euros.
21) À data da separação de facto do casal, a interessada levou consigo €4.500,00, em numerário.
22) No mês de Setembro de 2012 a mãe da interessada DD, emprestou ao então casal a quantia total de 10.000,00 euros.»
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3.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz na impugnação da decisão sobre a matéria de facto [no sentido de que «a) Se altere a redacção do ponto 15) dos factos não provados, passando o mesmo a ter a seguinte redacção: As obras referidas no ponto 9, alíneas b) a f) dos factos provados foram pagas integralmente pelo cabeça-de-casal com dinheiro que este havia amealhado antes do casamento, bem como com dinheiro que os seus pais lhe foram dando depois do casamento; b) Se adite à factualidade provada o seguinte facto: As obras referidas na alínea a) do ponto 9 dos factos provados, foram pagas integralmente pelo cabeça-de-casal com dinheiro que o cabeça-de-casal havia amealhado antes do casamento.»]
Que dizer?
Como é bom de ver, estão em causa diretamente as obras respeitantes à “canalização do recuperador de calor a água (no valor de € 2.460,00)”, relativamente às quais o cabeça de casal ora recorrente pretende que passem a figurar positivamente como tendo sido pagas integralmente pelo próprio, com dinheiro que ele havia amealhado antes do casamento.
Recorde-se que a convicção do Exmo. Juiz de 1ª instância foi a de que, considerando que tais obras foram efetivamente realizadas “após o casamento” [cf. facto “provado” sob o ponto “9.”, ab initio], não havia sido feita prova, muito menos convincente, de que foram pagas pelo cabeça de casal com dinheiro amealhado pelo próprio antes do casamento (bem como com dinheiro que os seus pais lhe foram dando depois do casamento), e daí o facto “não provado” sob o ponto “15)” do correspondente elenco, nos termos literais com que nele figura.
Sustenta o cabeça de casal ora recorrente nas suas alegações recursivas que «Da factura n.º 13/2012 e do recibo n.º 19/2012, ambos no valor de €2.460,00 e emitidos, em 18/07/2012, ao cabeça-de-casal, juntos como documento 9 do requerimento de resposta à reclamação à relação de bens, de 20/09/2024 (ref.ª citius 11145732), resulta que os materiais e a mão-de-obra referentes à canalização do recuperador de calor a água, no valor de €2.460,00, foram pagos pelo cabeça-de-casal em 18/07/2012, antes do casamento entre as partes, pelo que se tem de concluir que o pagamento dessa obra foi feito com dinheiro próprio do cabeça-de-casal, obtido antes do casamento.»
Que dizer?
Salvo o devido respeito não lhe assiste qualquer razão, desde logo quando alude a que face aos documentos que invoca “se tem de concluir”.
Atente-se que apenas invoca os ditos documentos para este efeito!
Na verdade, trata-se apenas de meros documentos particulares, cujo valor probatório, só por si, isto é, sem qualquer outro apoio em termos probatórios, não “impõe” [cf. art. 662º, nº1 do n.C.P.Civil] que se altere a resposta dada à matéria de facto quanto a este particular.
Aliás, se bem compulsarmos a “convicção” consignada pelo Exmo. Juiz a quo na sua decisão sob recurso, é possível constatar que esses documentos foram, por ele ponderados na formação da sua convicção, a qual enquanto orientada e tendo como critério a “livre convicção” (cf. art. 607º, nº5 do n.C.P.Civil) conduziu a um tal resultado, a saber, de que – tal como já explicitado – não havia sido feita prova, muito menos convincente (“bastante e segura”), de que as ditas obras foram pagas pelo cabeça de casal com dinheiro amealhado pelo próprio antes do casamento (bem como com dinheiro que os seus pais lhe foram dando depois do casamento).
A este propósito, depois de apenas referir expressamente o depoimento da testemunha EE (mãe de próprio) – o que faz legitimamente presumir que esta foi a única testemunha que aludiu especifica e concretamente a estas obras de “canalização do recuperador de calor a água”! – o Exmo. Juiz a quo reportou que a mesma «Quanto ao recuperador de calor, afirma que foi o filho quem pagou, mas não sabe quando, o que levanta dúvidas sobre se o pagamento ocorreu antes ou depois do casamento», sendo nesta linha que veio a consignar expressamente como fundamentação para a “não prova” em causa que «(…) As faturas vertidas nos docs 2 a 15, só por si, não provam que o pagamento foi feito em exclusivo pelo Cabeça de Casal, bem como, a origem do dinheiro destinado a pagar as obras. É perfeitamente plausível – e de resto o mais provável – o cenário de que o pagamento possa ter sido feito com proventos comuns obtidos pelo casal e que as faturas apenas tenham sido emitidas a favor do cabeça de casal. Não foi produzido qualquer meio de prova que permitisse apurar quem procedeu ao pagamento das aludidas despesas e qual a origem do dinheiro destinado a pagá-las.».
Subscrevemos, no essencial, uma tal apreciação.
Acresce que o cabeça de casal ora recorrente é ele mesmo incoerente, senão contraditório, com a sua linha argumentativa, pois que se aceita que as ditas obras foram realizadas “após o casamento” [que teve lugar em 28 de julho de 2012[2]], é incongruente com tal apresentar meios de prova [leia-se, fatura e recibo ambos com data de 18/de julho de 2012], datados de momento anterior ao casamento…
O que tudo serve para dizer que não foi efetivamente feita prova consistente e concludente no sentido pretendido pelo cabeça de casal ora recorrente em sede recursiva, termos em que, por sancionarmos a resposta que sobre tal aspeto foi dada em termos de matéria de facto “provada” e “não provada” pelo Exmo. Juiz a quo, sem necessidade maiores considerações, se declara improcedente esta primeira questão recursiva.
*
4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Importa nesta sede aferir do invocado desacerto da decisão que determinou a inclusão na relação de bens, no “passivo”, de um direito de crédito compensatório em favor do património comum contra o património próprio do cabeça de casal, decorrente das obras referidas nos pontos “9.” e “10.” dos factos “provados”.
De referir que nestes pontos de facto estão em causa obras realizadas por ambos “após o casamento”.
E recorde-se que na decisão recorrida o Exmo. Juiz a quo perfilhou o entendimento jurídico de que «(…) na medida em que se logrou provar a realização de tais obras, no terreno próprio do cabeça de casal, as mesmas haver-se-ão de considerar como benfeitorias; e, uma vez que, não foi produzida prova destinada a ilidir a presunção de comunicabilidade de tais benfeitorias, as mesmas deverão ser incluídas na relação de bens comuns. Isso gera um crédito de compensação do património comum em relação ao património próprio do cabeça de casal, garantindo o equilíbrio patrimonial, já que se o seu imóvel próprio foi beneficiado e melhorado com as aludidas obras.»
Sucede que, depois de ter sublinhado que estas obras referidas nos pontos “9.” e “10.” dos factos “provados” haviam “de ser consideradas benfeitorias comuns”, e sem que lhes atribuísse valor em concreto, no “dispositivo” da decisão veio a determinar-se o seguinte quanto a este particular:
«1. A inclusão na relação de bens, no ativo:
(…)
1.4.como benfeitorias, das obras referidas nos pontos 9 e 10 dos factos provados,
(…)
2. Em consequência do decidido no ponto 1.4, determina-se a inclusão na relação de bens, no passivo, de um direito de crédito compensatório em favor do património comum contra o património próprio do cabeça de casal, decorrente das obras referidas nos pontos 9 e 10 dos factos provados, realizadas no prédio urbano, que atualmente corresponde ao artigo matricial urbano n.º ...71 da freguesia ..., concelho ...;
(…)»
Contrapõe o cabeça de casal ora recorrente nas suas alegações recursivas que foi operada uma duplicação e erro neste particular – das obras como “benfeitorias” incluídas no “ativo”, e simultaneamente incluídas no “passivo” do património comum a partilhar, enquanto “dívida” deste.
Vejamos.
É consabido que as implicações da edificação pelos cônjuges em terreno pertencente apenas a um deles (in casu do ora cabeça de casal recorrente), tem sido problemática, podendo sintetizar-se, no essencial, em duas orientações, de que nos deu conta douto aresto jurisprudencial[3], a saber:
«a) Uma, no sentido de que se trata de um bem comum do casal, em regime de comunhão de adquiridos, por aplicação do art. 1726 nº1 CC.
Neste sentido, Rita Lobo Xavier, sobre o tema “construção de uma casa sobre terreno próprio de um dos cônjuges casados em regime de comunhão de adquiridos”, em síntese da argumentação, conclui: “Do meu ponto de vista, nada obsta a que a casa construída por ambos os cônjuges em terreno próprio de um deles, com utilização de valores comuns, seja considerada um bem “adquirido” em parte com bens próprios e em parte com bens comuns. E que por aplicação da regra prevista no nº1 do artigo 1726 se considere que ingressou no património comum. A atribuição patrimonial que favoreceu a comunhão faz nascer um direito de compensação no património próprio do cônjuge proprietário do terreno, exigível no momento da dissolução e partilha da comunhão (artigo 1726 nº1)”( (“Das Relações entre o Direito Comum e o Direito Matrimonial – A propósito das atribuições patrimoniais entre cônjuges”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, vol. I, pág.487 e segs). Segue esta orientação alguma jurisprudência (cf., por ex., Ac RC de 12/10/2020 (Teresa Albuquerque), Ac RG de 30/6/2022 (José Dias), em www dgsi.,pt).
b) Outra, que a concebe como benfeitoria e, não como acessão, porque a qualidade de cônjuge não se reconduz à noção de terceiro.
No regime da comunhão de bens adquiridos fazem parte da comunhão “os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei”( art.1724 b) CC ).
Na verdade, seguindo o critério subjectivo, não parece que a situação se ancore no instituto da acessão, e também não se pode sustentar que a “família,” constituída pelo casamento, seja uma entidade distinta dos cônjuges, com personalidade própria, de modo a considerá-la terceiro para efeitos de acessão.
Presumem-se comuns as benfeitorias efectuadas pelo cônjuge em prédio pertencente ao outro, quando realizadas na pendência do casamento e sob o regime de comunhão de adquiridos, tendo em conta a aplicação analógica do art.1733 nº2 CC e por força do disposto no art.1723 c) CC, pois na ausência de menção em documento da proveniência do dinheiro, o bem não pode ser exceptuado da comunhão.
Nesta perspectiva, a edificação insere-se na titularidade do proprietário do terreno, por força do princípio dos direitos reais da especialização ou individualização, dando lugar a um crédito de compensação.»
Como quer que seja, o Supremo Tribunal de Justiça recentemente analisou tal problemática tendo proferido na Revista ampliada n.º 985/20.0T8VCD-B.P1.S1, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 9/2025, de 10 de Setembro, que se encontra publicado no Diário da República n.º 174/2025, Série I de 2025-09-10[4], onde firmou o entendimento de que “A obra edificada (casa de morada de família) por dois cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, com dinheiro ou bens comuns, em terreno próprio de um deles, constitui coisa nova que é bem próprio do cônjuge titular do terreno e dá lugar a um crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial”.
Neste aresto argumentou-se, no essencial, pela seguinte forma:
«(…)
Assim, inexistindo, como não existe, norma legal ou contratual que imponha o arredamento do critério distintivo objetivo supramencionado, crê-se que a edificação de uma moradia, com bens ou dinheiro comuns, por um casal unido em regime de comunhão de adquiridos, num terreno que é bem próprio de um dos cônjuges, não constitui uma benfeitoria: mais do que constituir a melhoria de uma coisa, consubstancia a criação de uma coisa nova (neste sentido, para além dos acórdãos, supracitados, que defendem a aplicação, a estas situações, do disposto no art.º 1726.º do Código Civil, o já acima mencionado acórdão do STJ, de 16.02.2016, processo n.º 3036/11.2TBVCT.G1.S1, não publicado).
Não sendo a edificação uma benfeitoria, nem sendo aplicável a regra da acessão prevista no art.º 1340.º do Código Civil, prevalecerá, isto é, atuará diretamente o princípio, dos direitos reais, maxime no que concerne ao direito da propriedade, da especialização ou individualização. O direito real incide sobre coisas únicas e individualizadas (José Alberto Vieira, Direitos Reais, ob. citada, páginas 216 a 225). Em princípio, o direito real não incide apenas sobre partes de uma coisa, mas sobre a totalidade desta, dotada de autonomia (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, 2022, 10.ª edição, Almedina, páginas 24 a 26 – aqui mencionando, este autor, o subprincípio da autonomização ou da totalidade). É o que decorre de norma como a contida no artigo 408.º n.º 2, parte final, do Código Civil (“Se a transferência [de direito real sobre coisa determinada] respeitar a coisa futura ou indeterminada, o direito transfere-se quando a coisa for adquirida pelo alienante ou determinada com conhecimento de ambas as partes, sem prejuízo do disposto em matéria de obrigações genéricas e do contrato de empreitada; se, porém, respeitar a frutos naturais ou a partes componentes ou integrantes, a transferência só se verifica no momento da colheita ou separação”). E também nesse sentido operam a acessão e o regime das benfeitorias. É sabido que em certos casos se podem constituir direitos reais autónomos sobre partes de coisa, como na propriedade horizontal, que incide sobre frações autónomas de um prédio (art.º 1414.º do Código Civil) ou no direito de superfície, em que alguém é titular de um implante em prédio alheio (art.º 1524.º do Código Civil). Pode igualmente constituir-se hipotecas separadas das partes do prédio suscetíveis de propriedade autónoma (art.º 688.º, n.º 2, do Código Civil). Nesses casos, no entanto, o legislador autonomiza essas partes como objeto autónomo do direito real, o que não afeta a solução geral de o direito real ter de abranger a totalidade (Luís Menezes Leitão, obra citada, nota 33, pág. 24). Isto é, estas situações particulares, especialmente admitidas pelo legislador, não obnubilam que a regra da totalidade é uma característica tendencial, natural, quanto ao âmbito objetivo dos direitos reais (cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de direitos reais, 5.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2007, 5.ª edição revista e remodelada, páginas 57 a 59).
Por força deste princípio, na falta de norma legal que a tal obsta ou que determine solução contrária, no caso sub judice o direito de propriedade sobre o terreno passa também a incidir sobre a obra nele edificada, ou seja, o direito de propriedade (do cônjuge titular do terreno) abrange a totalidade da coisa nova criada.
Tal solução harmoniza-se com o disposto na parte final da alínea b) do art.º 1724.º e no art.º 1728.º n.º 1 e n.º 2 alínea a) do Código Civil. A incorporação de uma edificação (casa de morada de família), operada pelo esforço conjunto dos cônjuges, num terreno pertencente (bem próprio) a um dos cônjuges, não podendo dar origem à acessão invertida prevista no art.º 1340.º do Código Civil, desde logo por falta dos necessários elementos de estraneidade e de boa fé, reveste a natureza do terreno alvo da união/incorporação, isto é, o todo constituirá bem próprio do cônjuge dono do terreno, sem prejuízo da compensação devida ao património comum.
(…)»
Ocorre que no recurso em apreciação não foi diretamente questionada a qualificação das obras na decisão recorrida como “benfeitorias”.
E nem nos parece que dogmaticamente tal seja de questionar, na medida em que anteriormente ao casamento com a aqui interessada recorrida, o cabeça de casal já era proprietário de um prédio urbano (correspondente ao artigo matricial urbano n.º ...71 da freguesia ..., concelho ...), composto de terreno com uma vivenda inacabada [cf. facto “provado” sob “7.”].
Ora se está em causa nos presentes autos a mera efetivação de obras de finalização numa vivenda inacabada, parece-nos dogmaticamente correto o seu enquadramento como “benfeitorias”, in casu “úteis”, enquanto despesas feitas para melhorar a coisa e que seguramente lhe aumentaram o seu valor.[5]
Sendo tal naturalmente uma situação distinta da construção/edificação de uma habitação de raiz e ex novo, situação que foi a apreciada/pressuposta no dito AUJ nº 9/2025, de 10 de Setembro.
O que tudo serve para dizer que entendemos ser de desconsiderar, in casu, o acórdão Uniformizador vindo de referir, não havendo que alterar a opção feita no ponto “1.4.” do “dispositivo”, isto é, das ditas obras referidas nos pontos “9.” e “10.” dos factos “provados” enquanto “benfeitorias” e incluídas no “ativo” da relação de bens.
Importa então apreciar sem mais o verdadeiramente questionado pelo recurso, a saber, que foi operada uma duplicação e erro neste particular – das obras como “benfeitorias” incluídas no “ativo”, e simultaneamente incluídas no “passivo” do património comum a partilhar, enquanto “dívida” deste.
Cremos que a resposta nesta parte já inteiramente se adivinha.
É que tendo sido determinada a inclusão das obras em causa no “ativo” da relação de bens, não se compreende que relativamente às mesmas se determine a sua inclusão no “passivo”.
Tal só se compreende certamente como fruto de algum lapso ou equívoco.
Atente-se que, mesmo na lógica da decisão recorrida, isto é, entendendo-se que as obras constituíam “benfeitorias”, as mesmas davam a um crédito de compensação (um crédito do património comum sobre o património próprio) com vista à reposição do equilíbrio patrimonial, donde, naturalmente a figurar no “ativo” do “património comum”/relação de bens.
Ademais, s.m.j., “um direito de crédito compensatório em favor do património comum” corresponde precisamente a um “ativo” do “património comum” …
Donde, nesta parte o correspondente segmento da decisão recorrida não podia ser sancionado, antes era caso de ser corrigido em conformidade.
Não obstante o vindo de dizer, cremos que a decisão final da questão suscitada no recurso não pode ser já alcançada.
Atente-se que de normas como as contidas nos artigos 1726º, nº 2, 1697º, 1722.º nº 2, 1728º nº 1 e 1689º do Código Civil é possível deduzir, «(…) um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro.».[6]
Na verdade, quanto ao valor do “crédito”/”ativo” das obras em causa, apenas foi apurado na decisão recorrida o correspondente às obras referidas no ponto “9.” dos factos “provados”.
Quanto às obras referidas no ponto “10.” dos factos “provados”, não foi apurado qualquer valor na e pela decisão recorrida [cf. também o facto “não provado” sob “16)”].
Acontece que, salvo o devido respeito, impunha-se determinar qual o valor correspondente e bem assim a valorização que essas obras aportaram ao prédio existente.
Tendo-se optado pela apreciação e decisão do incidente de Reclamação à Relação de Bens, isto é, sem remessa dos interessados (totalmente ou em parte) para os meios comuns, um non liquet naquela matéria do valor do “ativo” não é aceitável.
Com efeito, tal engloba-se no elenco do que se impunha “resolver” com tal decisão – “todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar” [cf. art. 1110º, nº1, al.a) do n.C.P.Civil].
Mais concretamente, e atendendo à controvérsia que a esse respeito se gerou entre as partes, deverá o mesmo ser apurado após avaliação a efetuar nos autos, avaliação essa cuja determinação cabe nos poderes oficiosos do tribunal (cf. art. 411º do n.C.P.Civil).
Esta foi também a solução que foi operada no AUJ nº 9/2025, de 10 de Setembro supra citado, face a um caso com similitude com o ajuizado (apenas distinto por se tratar da construção/edificação de uma habitação de raiz e ex novo) e perante uma situação factual indefinida em termos de valor como a que ocorre in casu.
O que tudo serve para dizer que se impõe revogar totalmente o consignado no ponto “2.” do “dispositivo”.
Sendo certo que na situação ajuizada também acaba por estar em causa apurar o valor total da edificação, não obstante, à data do casamento, o cabeça de casal já ser proprietário de um prédio urbano (correspondente a uma vivenda inacabada).
É que, e repetimos, embora na situação ajuizada as obras referidas nos pontos “9.” e “10.” dos factos “provados” não correspondam a uma construção/edificação de uma habitação de raiz e ex novo, antes à finalização de uma vivenda inacabada, sempre terá que ser apurado o valor total da edificação, mas com apuramento unitário do que representou a valorização trazida ao mesmo pelas obras referidas nos pontos “9.” e “10.” dos factos “provados”.
Temos então que importa efetivamente proceder a uma “avaliação imobiliária”, de cariz pericial, tendo em vista a avaliação das duas componentes do imóvel sub judice (terreno com vivenda inacabada, em primeiro lugar, e obras de finalização nesta última referidas nos pontos “9.” e “10.” dos factos “provados”, em segundo lugar), com o objetivo de fixação do valor do crédito do património comum, sobre o cabeça de casal, correspondente ao valor das obras de finalização em causa, efetuadas no prédio urbano deste último (sendo certo que haverá que ter em consideração o já apurado quanto ao ponto "9.").
Relativamente a tal, o Exmo. Juiz a quo, embora sem tirar consequências em termos de “dispositivo”, opinou a págs. 22 da sua decisão pela seguinte forma:
«O crédito compensatório deve ser calculado com base no valor das despesas realizadas com recursos comuns para a construção e na valorização patrimonial trazida ao bem próprio em razão dessas despesas.
Para o cálculo, é necessário identificar o custo das obras, somando os valores das dívidas e outros gastos comprovados relacionados à edificação, estabelecer o valor atual da valorização do imóvel, calculando a diferença entre o valor do terreno sem as obras e o valor total do imóvel (casa e terreno) no momento da partilha, e determinar a proporção do crédito correspondente ao investimento comum em relação ao valor total.
Para tanto, tornar-se-á necessária a realização de uma avaliação imobiliária atualizada para determinar com precisão o valor das obras e da correspondente valorização do imóvel.»
Também em nosso entender será precisamente isso a que importará proceder.
Mas nesta sede processual e de imediato.
Pelo que se impõe revogar o ponto “2.” do “dispositivo”, decisão a ser substituída por outra que determine se proceda à aludida avaliação para apurar, a final, a valorização que as obras em causa aportaram ao prédio existente e, bem assim, definir o valor da compensação que for devida ao património comum desfalcado.
Nestes termos e limites procedendo as alegações recursivas e o recurso.
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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (…).
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6 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, decide-se, a final, dar parcial procedência à apelação e, consequentemente:
1º Revoga-se o ponto “2.” do “dispositivo” da decisão recorrida e, em sua substituição, determina-se que se proceda à produção de prova, de cariz pericial, tendo em vista a avaliação das duas componentes do imóvel sub judice (terreno com vivenda inacabada, em primeiro lugar, e obras de finalização nesta última referidas nos pontos “9.” e “10.” dos factos “provados”, em segundo lugar), com o objetivo de fixação do valor do crédito do património comum, sobre o cabeça de casal, correspondente ao valor das obras de finalização em causa, efetuadas no prédio urbano deste último (sem prejuízo do já apurado nos autos quanto ao ponto “9.”), devendo tal crédito ser relacionado em conformidade oportunamente, integrando e complementando a descrição feita no ponto “1.4.” do “dispositivo”;
2º No mais, confirma-se a decisão recorrida;
3º As custas do recurso serão suportadas por ambas as partes, na proporção de ½ para cada uma.
Coimbra, 14 de Outubro de 2025
Fernando Monteiro
Carlos Moreira
[1] Relator: Des. Luís Cravo
1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] Cf. facto “provado” sob “1.”.
[3] Trata-se do acórdão do STJ de 29.11.2022, proferido no proc. nº 1530/20.3T8VNF.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[4] Acessível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/9-2025-934744203
[5] Preceitua-se pela seguinte forma no Artigo 216º do C.Civil, com a epígrafe de “Benfeitorias”:
«1. Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa.
2. As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias.
3. São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante». [com destaques da nossa autoria]
[6] Assim refere RITA LOBO XAVIER, in “Limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges”, Coimbra, Livª Almedina, 2000, a págs. 395.