EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRAZO
DESPACHO DE ADMISSÃO OU DE REJEIÇÃO
ACTO INÚTIL
Sumário

1. O prazo legal de 10 dias previsto no art. 236º, nº 1 do CIRE para o devedor requerer o incidente de exoneração do passivo não é perentório, isto é, não é preclusivo da possibilidade de ser posteriormente apresentado.
2. O período intermédio previsto pelo art. 236º, nº 1 do CIRE tem início no termo do prazo legal de 10 dias e termo no encerramento da assembleia de credores ou, quando esta não é designada, no 60º dia subsequente à prolação da sentença de insolvência.
3. O poder de livre apreciação da admissão ou rejeição do pedido de insolvência deduzido no período intermédio não reconhece ao julgador o poder de o rejeitar de forma arbitrária.
4. O juiz deve proferir despacho de admissão ou de não admissão do pedido de exoneração do passivo restante depois da realização da assembleia de credores ou, sendo dispensada, depois de decorrido o prazo de 10 dias sobre o termo do período de 60 dias subsequente à prolação da sentença de insolvência (cfr. arts. 236º, nº 4[1] e 239º, nº 1[2] do CIRE).
5. O tribunal pratica atividade processual inútil e desconforme à tramitação legal prevista no art. 236º, nº4 do CIRE ao ordenar a notificação do pedido de exoneração do passivo restante aos credores e ao administrador da insolvência para conhecer do mesmo antes da assembleia de credores ou antes do termo do período de 60 dias subsequente à prolação da sentença de insolvência.
7. Carece de fundamento legal a rejeição liminar do pedido de exoneração do passivo restante apresentado no período intermédio única e simplesmente pelo facto de o devedor não ter justificado a sua não apresentação no prazo de 10 dias após citação para os termos do processo; no caso, após a perfeição da notificação da nomeação de patrono ao próprio no âmbito do apoio judiciário por aquele requerido.
8. A apresentação de pedido de exoneração do passivo restante em data próxima da prolação da sentença de declaração da insolvência ou da sua notificação não interfere com a regular tramitação do processo de insolvência e daquele incidente, designadamente, da possibilidade de o administrador da insolvência e os credores sobre ele se pronunciarem sem exigir a prática de qualquer ato adicional distinto ou acrescido em relação ao que fosse necessário praticar ou cumprir se o incidente de EPR pedido tivesse sido requerido no prazo de 10 dias para oposição ao pedido de insolvência.

[1] Estabelece esta norma que Na assembleia de apreciação de relatório ou, sendo dispensada a realização da mesma, no prazo de 10 dias subsequente ao decurso do prazo de 60 dias previsto na parte final do n.º 1, é dada aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento.
[2] Estabelece esta norma que Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º.

Texto Integral

I – Relatório

1. No âmbito da ação especial de insolvência instaurada por BTL Ireland Acuisitions I DC, com sede em Dublin 4 D04XN32, cumprida a citação do devedor F., foi por este apresentado pedido de proteção jurídica nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento da compensação de patrono, que juntou aos autos em 13.02.2025 e que foi deferido por decisão do Instituto da Segurança Social dos Açores, notificada ao requerido por expediente de 05.03.2025 e comunicada aos autos em 28.04.2025
2. Na ausência de oposição ou outra intervenção, em 21.05.2025 foi proferida sentença de declaração da insolvência que, além do mais, dispensou a realização de assembleia de credores, sentença que foi notificada ao próprio requerido por expediente com registo postal na mesma data.
3. Em 28.05.2025 o insolvente requereu incidente de exoneração do passivo restante (EPR) e, com o pedido juntou comprovativo da notificação à patrona nomeada da sua designação para patrocínio do insolvente no âmbito deste processo, remetida em 15.04.2025 pela Ordem dos Advogados para o endereço eletrónico oficial da ilustre patrona.
4. Sobre esse requerimento recaiu decisão que, considerando o facto de a citação do insolvente ter sido cumprida em 10.02.2025 e com a menção da possibilidade de requerer a exoneração do passivo restante no prazo legal de 10 dias após citação, de o deferimento do pedido de apoio jurídico lhe ter sido notificado em 05.03.2025, e de não ter apresentado justificação para a não apresentação do pedido no referido prazo, concluiu pela ausência de fundamento que justifique “um afastamento do regime geral no que concerne ao prazo de apresentação do requerimento”, e indeferiu o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo insolvente.
5. O insolvente interpôs recurso dessa decisão requerendo seja revogado e substituído por outra que defira o pedido de exoneração do passivo restante. Formulou conclusões que não cumprem o ónus de sintetização imposto pelo art. 639º, nº 1 do CPC mas que, feito o seu depuramento, permitem a identificação e delimitação das questões objeto do recurso, nos seguintes termos:
(…)
15) Aliás, prevê esse preceito legal [art. 236º, nº 2 do CIRE] que no despacho de citação deve constar explicitamente a possibilidade do recorrente poder efetuar o pedido de exoneração do passivo restante - o que não se verificou. Esta menção terá de constar inequivocamente do teor do despacho para citação do ora recorrente, para proceder ao pedido de exoneração do passivo restante.
(…)
17) Mais, houve o indeferimento sem que existisse ainda o Relatório efetuado pelo administrador da Insolvência, bem como a lista dos credores. O que não se aceita.
18) Para além do mais, embora o dever de fundamentação de um despacho não reveste a mesma complexidade e grau de exigência que o de uma sentença, os despachos devem estar minimamente fundamentados – o que igualmente não se verificou.
19) Estatui o artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que “[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
20) Ao negar, o despacho da exoneração do passivo restante, violou, pois o Tribunal a quo por erro de interpretação o artigo 236.º n.º 1 e 2 do CIRE.
21) Ocorre ainda que o despacho a proferir nesta fase processual, mesmo que favorável ao apelante, não implica que não deva ser reapreciado subsequentemente em moldes de se vir a recusar a exoneração. O que se lhe faculta nesta fase é o período experimental, como que a ver se merece que, a final, lhe seja concedida a exoneração.
(…).
3. Não foram apresentadas contra-alegações.

II – Objeto do recurso
Nos termos dos arts. 635º, nº 5 e 639º, nº 1 e 3, do Código de Processo Civil, o objeto do recurso, que incide sobre o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é balizado pelo objeto do processo, tal qual como o mesmo surge configurado pelas partes de acordo com as questões por elas suscitadas, e destina-se a reapreciar e, se for o caso, a revogar ou a modificar decisões proferidas, e não a analisar e a criar soluções sobre questões que não foram sujeitas à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, se apresentam como novas, ficando vedado, em sede de recurso, a apreciação de novos fundamentos de sustentação do pedido ou da defesa. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas que, contidas nos elementos da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo livre na aplicação do direito (cfr. art. 5º, nº 2 do CPC).
Nesta conformidade, considerando que a alegação do incumprimento do dever de fundamentação da decisão recorrida surge inconsequente por desacompanhada de arguição da nulidade da decisão nos termos do art. 615º do CPC, que não vem requerida, cumpre apenas apreciar se existe fundamento para o indeferimento liminar do incidente de EPR, o que no caso passa por aferir da exigibilidade ou não de apresentação de justificação para a sua apresentação no período intermédio previsto no art. 236º nº 1 do CIRE. 

III – Fundamentação
A)  De Facto
Os factos que relevam na apreciação do recurso constam descritos no relatório supra, para o qual se remete.

B) De Direito
1. Numa breve incursão pelo instituto da exoneração do passivo restante, cumpre anotar que constitui este o facto determinante da iniciativa da apresentação à insolvência pelo devedor singular (senão em todos pelo menos na grande maioria dos casos): alcançar a exoneração do passivo restante (doravante, EPR), libertando-se através deste benefício legal de um passivo que com toda a probabilidade o acompanharia ao longo de grande parte, senão de toda a sua vida, com os consequentes e recorrentes constrangimentos, no imediato logo ao nível das disponibilidades financeiras e, no mediato ao nível da sua paz pessoal, familiar, profissional, com o consequente reflexo no coletivo social ao nível da integração sócio-económico-profissional do indivíduo e respetivo agregado familiar. Deste concreto instituto decorre que a especificidade do processo de insolvência singular - para além da natureza da pessoa jurídica que dele é sujeito passivo (que, contrariamente ao que sucede com as pessoas coletivas, não se ‘extingue’ com o encerramento do processo) -, reside no referido benefício legal que através da insolvência o devedor pode ver legalmente reconhecido, traduzido na extinção ou perdão legal do seu serviço de dívida através da concessão da exoneração do passivo que restar em dívida depois de esgotado o produto da liquidação e decorrido que seja o período de três anos[1] de cessão do rendimento disponível (também designado período de ‘provação’) durante o qual, e por referência a um conjunto de obrigações, o devedor deve revelar ser merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante lhe concede, através do perdão de dívidas e do consequente sacrifício dos interesses dos seus credores. Em síntese, o instituto da EPR traduz o reconhecimento de uma nova causa de extinção das obrigações relativamente às previstas pelos arts. 837º a 873º do Código Civil, de origem legal e não contratual e sem qualquer contrapartida para o credor, que vê definitivamente precludida a possibilidade de satisfação dos seus créditos pelo devedor, em oposição ao princípio pacta sunt servanda que caracteriza o regime legal dos contratos e das obrigações (art. 406º do CC).
2. A lei coloca o pedido de concessão da EPR na exclusiva disponibilidade/vontade do devedor, de cuja iniciativa depende a instauração e prosseguimento do incidente - posto que legalmente instituído em seu benefício -, e cuja admissibilidade depende (antes de mais) da prévia declaração da insolvência do requerente e, no âmbito desta, da verificação de requisitos (pela positiva ou pela negativa), uns de natureza formal ou processual, e outros de natureza material ou substantiva.
No âmbito dos primeiros, o nº 1 do art. 236º exige que o pedido seja apresentado em determinado prazo ou em determinada fase do processo, e o nº3 exige que “Do requerimento conste expressamente a declaração que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes” (sem que imponha a sua especificação, mas que correspondem aos ónus a que o devedor fica vinculado durante o período de cessão, previstos pelo art. 239º, nº 4 do CIRE). Este formalismo e a oportunidade temporal do pedido constituem pressupostos de conhecimento oficiosamente, que são aferidos pelo teor do requerimento e do processado nos autos, independentemente de alegação e pedido nesse sentido. Distintamente, os requisitos materiais da exoneração do passivo restante têm subjacente a não concessão discricionária desse beneficio a quem quer que ao mesmo se habilite e, simultaneamente, que o mesmo também “não deve ser discricionariamente rejeitado.”[2]  Assim, para além da declaração prevista pelo art 236º nº 3, a sindicância da (in)admissibilidade do incidente pauta-se e concretiza-se nos pressupostos taxativamente previstos pelo art. 238º, nº 1.
3. Em causa na decisão recorrida e no presente recurso está a admissibilidade do incidente de EPR por referência ao requisito processual da oportunidade temporal para o requerer e ao disposto no art. 238º, nº 1, al. a), nos termos do qual O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: a) For apresentado fora de prazo; (…).
 O art. 236º, nº 1 regula o momento até ao qual pode ser requerido e admitido o incidente de exoneração do passivo restante. Nos seus termos, O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio.
Assim, o pedido pode ser feito no requerimento de apresentação à insolvência ou, tratando-se de insolvência requerida, como é o caso, no prazo de 10 dias após a citação para os termos do processo. Em qualquer um daqueles contextos processuais (de apresentação à insolvência ou de citação para o processo) o devedor pode ainda requerer o incidente da EPR num dos períodos que no art. 236º, nº 1, parte final, a lei designa de intermédio, a saber: até e no âmbito da assembleia de credores para apreciação do relatório caso esta tenha sido designada; ou, caso não tenha sido designada, nos 60 dias subsequentes à sentença de declaração da insolvência. A admissão ou rejeição do pedido de EPR apresentado em qualquer um dos períodos intermédios – que nas insolvências requeridas, reitera-se, tem inicio depois de decorrido o prazo de 10 dias sobre a citação do devedor -  é decidida livremente pelo juiz (cfr. art. 236º, nº 1, parte final). Sendo designada assembleia de credores, estes e o administrador da insolvência podem pronunciar-se sobre o pedido de EPR que até esse ato ou no âmbito do mesmo seja deduzido; não sendo designada assembleia de credores, em coerência lógica e cronológica com o art. 36º, nº 1, al. n)[3] e o sistema regra de prazos sucessivos adotado pelo CIRE (no sentido de o termo inicial de um prazo ocorrer com o termo final do prazo que o precede), o administrador da insolvência e os credores dispõem do prazo de 10 dias subsequente ao período de 60 dias após a sentença para sobre ele se pronunciarem (cfr. art. 236º, nº 3).
Antes de mais oferece realçar que do citado regime legal decorre inequivocamente que o prazo de 10 dias previsto no art. 236º, nº 1 do CIRE não configura um prazo perentório. Por outro lado, nos casos como o presente, em que a insolvência foi requerida por terceiro – e, bem assim, nos casos em que é declarada sem prévia citação do devedor para deduzir oposição (art. 12º do CIRE) -, esse prazo só pode ser contabilizado a partir do momento em que o devedor se considera citado para os termos do processo e está em condições legais para exercer os direitos processuais que lhe assistem, designadamente, deduzir oposição ao pedido de insolvência e/ou,  incidente de exoneração do passivo restante, ou requerer incidente de plano de pagamentos (cfr. art. 253º do CIRE).[4]
Como dos termos daquela norma resulta, a partir do termo desse prazo de 10 dias a lei permite ao insolvente requerer o incidente de exoneração do passivo restante até ao encerramento da assembleia de credores ou, quando esta não é designada, até ao 60º dia subsequente à prolação da sentença. Em rigor, este período – que o legislador designou de intermédio - não configura um prazo para requerer o incidente de EPR; antes define um termo final absoluto para a possibilidade de o insolvente requerer a EPR (até ao encerramento da assembleia de credores ou até 60 dias após a sentença de insolvência) depois de ultrapassada a fase ou o prazo legalmente previstos para o efeito (com a petição no caso de apresentação à insolvência, ou 10 dias após a citação no caso de insolvência requerida), termo a partir do qual a lei impõe, sempre, a sua rejeição. 
Assim, o art. 236º prevê que:
i) (em conjugação com o art. 37º, nº2 do CIRE e o art. 24º, nº 4 e 5, al. a) da Lei nº 34/2004 de 29.07) sendo apresentado com a petição, no prazo de 10 dias após a citação ou da notificação com valor de citação ou, como no caso, após a notificação do patrono nomeado no âmbito do apoio judiciário, o pedido de EPR é sempre tempestivo por imperativo legal;
ii) sendo apresentado após a petição de apresentação à insolvência ou para além de 10 dias posteriores àqueles factos, o juiz decide livremente rejeitar ou admitir o pedido;
iii) sendo apresentado depois da realização da assembleia de credores ou após os 60 dias subsequentes à prolação da sentença, o pedido é sempre rejeitado.
É na segunda hipótese que se enquadra o pedido apresentado pelo recorrente posto que, tendo o prazo de 10 dias previsto no art. 236º, nº1.
4. Cumpre aferir se se justifica a sua rejeição.
O que se faz começando por realçar que o poder de livre apreciação (da rejeição ou admissão do pedido de insolvência deduzido no período intermédio) previsto no art. 236º, nº 1 não reconhece ao julgador o poder de o rejeitar de forma arbitrária.[5] E de outra forma não poderia ser – o legislador optou por não atribuir natureza perentória ao prazo de 10 dias que previu no art. 236º, nº 1 do CIRE e, por outro lado, está em causa o exercício de faculdade processual com efeitos materiais de grande relevância na esfera jurídica do requerente. Assim, e nas palavras de Assunção Cristas[6]: “O juiz decidirá com base na sua convicção pessoal sobre a vantagem ou desvantagem em permitir àquele devedor submeter-se a este procedimento provavelmente com recurso a um juízo de prognose: na base da sua decisão pesará a convicção que venha ou não a formar acerca da vontade e capacidade do devedor para cumprir as exigências legais o que permitirá um bom aproveitamento deste mecanismo.” Perspetiva à qual aderiu a jurisprudência.[7]
Conforme se extrai da exposição de motivos que consta do diploma preambular do Dec. Lei nº 53/2004 de 18.03 (ponto 45) e das fontes do instituto em questão, esgotado que seja o património do devedor (massa insolvente) e os rendimentos cedidos durante o período probatório (rendimentos disponíveis), a exoneração do passivo restante visa a recuperação da pessoa singular enquanto agente económico em benefício de uma visão sistémica da economia, no ciclo e de acordo com os papéis dos que nela intervêm. Por referência à esfera jurídico-pessoal do devedor, surge também justificado pelo interesse superior do direito à realização pessoal condigna de cada ser humano, sendo aquele beneficio concedido apenas se o devedor revelar conduta anterior não desmerecedora do mesmo, a par com a reeducação, contemporânea com o decurso do período de cessão, de hábitos de consumo e poupança, com adequação do nível de vida aos rendimentos de que pode dispor e aos encargos que suporta para garantia de uma subsistência minimamente condigna (sendo esta aquilatada por referência ao quotidiano comum a todos e previsível pela sua normalidade, sem prejuízo de pontuais situações caracterizadas pela imprevisibilidade do devir da vida). Em síntese, ainda que condicionado ao período de cessão, é evidente o predomínio do propósito do legislador, de reabilitação do devedor, que constitui elemento teleológico que deve informar a interpretação de todo o regime legal deste instituto, durante o qual, e por referência a um conjunto de obrigações, o devedor deve revelar ser merecedor da oportunidade que a exoneração do passivo restante lhe concede, através do perdão de dívidas e do consequente sacrifício dos interesses dos seus credores. Benefício/sacrifício que, nas palavras de Cláudia Oliveira Martins[8], justifica afirmar que o processo de insolvência, como primeiro pressuposto para o pedido de exoneração do passivo restante, deixou de ser o processo dos credores para passar a ser o processo dos devedores.
Como foi logo salientado por João Labareda e Carvalho Fernandes, a razão de ser do termo final perentório para a apresentação do pedido de exoneração do passivo restante previsto no art. 236º, nº 1 - na redação original do preceito, até à realização da assembleia de credores, quando a lei ainda não previa a possibilidade da sua dispensa, que só sucedeu com a revisão ao CIRE operada pelo Decreto Lei nº 79/2017 de 30.06  – “reside no facto de o pedido de exoneração dever ser dado a conhecer na assembleia de apreciação do relatório, trâmite que, por um lado, ficava prejudicado se se admitisse a apresentação posterior à sua realização, mesmo que dentro dos de dias posteriores à citação (…).”[9] Mais aduzindo que “[e]m face dos elementos recolhidos na interpretação do nº1 do art. 236º, a al. a) do nº1 do art.º 238º não pode ser entendida na sua expressão literal, mas cum granus salis.//Assim, não é verdade que a apresentação do pedido de exoneração fora de prazo determine, sem mais, o indeferimento liminar. Tal só acontece se, cabendo a iniciativa do processo a terceiro, o pedido de exoneração do passivo restante for apresentado após a realização da assembleia de apreciação do relatório do administrador da insolvência. Nos demais casos, a extemporaneidade do pedido só por si não releva para efeito de indeferimento liminar do pedido de exoneração, cabendo ao juiz apreciar livremente se deve ser admitido ou rejeitado, em função de outros dados (substanciais) que o processo revele e da posição assumida pelos credores e pelo administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório.[10] (subl. nosso).
5. O tribunal recorrido justificou o indeferimento liminar do pedido com o facto de o recorrente não ter apresentado justificação para o facto de o ter apresentado na data em que o fez (28 de maio) e não no prazo legal de 10 dias subsequente à citação.
Na aferição da bondade deste fundamento, como pano de fundo reitera-se que o prazo de 10 dias previsto no art. 236º, nº 1 não é perentório e assinala-se que: a admissão do pedido de EPR no período intermédio o art. 236º, nº 1 não exige que o insolvente justifique a sua não apresentação no prazo de 10 dias após a citação (no caso, após a perfeição da notificação da nomeação de patrono ao próprio no âmbito do apoio judiciário por aquele requerido); este prazo de 10 dias coincide com o prazo legal para o requerido, querendo, deduzir oposição ao pedido de insolvência; ao nível dos seus pressupostos, a admissibilidade do incidente de exoneração do passivo restante pressupõe antes de mais a prévia declaração da insolvência do requerente; na ausência de causa para indeferimento liminar, o juiz deve proferir despacho de admissão ou de não admissão do pedido de EPR depois da realização da assembleia de credores ou, sendo dispensada, depois de decorrido o prazo de 10 dias sobre o termo do período de 60 dias subsequente à prolação da sentença de insolvência (cfr. arts. 236º, nº 4[11] e 239º, nº 1[12] do CIRE).
Tendo estes parâmetros por referência, no caso releva o facto de, como dos termos da decisão resulta, na apreciação que fez o tribunal recorrido ter considerado que o recorrente foi notificado em 05.03.2025 do deferimento do pedido de apoio judiciário e apenas em 28 de maio (ou seja, quase três meses depois) é que requereu o incidente de EPR, pressupondo implicitamente que o recorrente tinha condições para o requerer até 15.03.2025. Pressuposto de facto que é infirmado pelas vicissitudes processuais destes autos, das quais resulta que o prazo de 10 dias para dedução do pedido de exoneração do passivo restante (bem como para oposição ao pedido de insolvência) terminou em 02.05.2025 (ou, pelo menos, terminou não antes de 28.04.2025), como se passa a justificar.
O recorrente foi citado para os termos do processo de insolvência em 10 de fevereiro de 2025 e em 13.02.2025 juntou comprovativo da apresentação de requerimento de apoio judiciário para nomeação de patrono e pagamento da respetiva compensação. Em 05.03.2025 os serviços do Instituto da Segurança Social notificaram-no do deferimento desse pedido, que foi comunicado aos autos em 28.04.2025 e, conforme documento que juntou com o requerimento do incidente de EPR, a ilustre patrona nomeada foi notificada da sua designação pela Ordem dos Advogados em 15.04.2025. Na ausência de oposição ao pedido de insolvência, em 21.05.2025 foi proferida sentença de declaração da insolvência do recorrente, sentença que não foi notificada à ilustre patrona do recorrente, mas apenas ao próprio insolvente[13], irregularidade processual que foi sanada em 28.05.2025, data em que o recorrente, representado pela patrona nomeada, apresentou requerimento de EPR sem arguição daquela falta (cfr. arts. 199º, nº1, 2ª parte[14] e 247º, nº1[15] do CPC).
Neste quadro fáctico, considerando que o pedido de nomeação de patrono no âmbito do instituto do apoio judiciário interrompe os prazos em curso e que este inicia a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação (cfr. art. 24º, nº 4 e 5, al. a) da Lei nº 34/2004 de 29.07), temos que a partir da notificação eletróncia da nomeação à ilustre patrona designada (15.04.2025), o prazo de 10 dias subsequente à citação para dedução de oposição ao pedido e/ou para requerer o incidente de EPR iniciou entre 16.04.2025 e 22.04.025 (dia subsequente ao 1º dia útil subsequente ao 5º dia posterior ao envio da notificação).[16]
Em qualquer caso, o prazo de 10 dias previsto no art 236º, nº 1 do CIRE para requerer o incidente de EPR terá terminado pelo menos em 02.05.2025 (dia subsequente ao 1º dia útil após o termo do prazo, considerando o facto de 01.05 ser feriado nacional), mas não antes de 25.04.2025.
Neste contexto temporal, que a decisão recorrida desconsiderou, valorizando outro que não corresponde à realidade processual dos autos, mais releva o facto de o recorrente não ter deduzido oposição ao pedido de insolvência e de (com exceção da comunicação aos autos do pedido de apoio judiciário que apresentou no lugar próprio, também para nomeação de patrono) o requerimento do incidente de EPR corresponder à sua primeira intervenção processual nos autos que, como supra se expôs, coincide com a data em que se tem por notificado da sentença que decidiu pela declaração da sua insolvência sem a qual, como se referiu, não tem lugar o incidente de EPR. 
Mais acresce que, ao invés de arguir a irregularidade da notificação da sentença (por não ter sido notificada na pessoa da ilustre patrona que lhe foi nomeada), o recorrido optou por não criar qualquer entropia processual e limitou-se a apresentar o pedido em questão, fazendo-o muito antes do termo do prazo para o administrador da insolvência apresentar o relatório a que alude o art. 155º do CIRE[17] e, assim, sem comprometer quer a possibilidade de aquele ali sobre ele se pronunciar e, bem assim, de os credores sobre ele exercerem o contraditório em simultâneo com a apreciação do referido relatório, nos termos previstos pelo art. 236º, nº 4.
Os factos descritos são duplamente reveladores:
Por um lado, não manifestam o desleixo, incúria ou desconsideração do recorrente pela regular e linear tramitação dos autos, que o tribunal recorrido terá pressuposto ao ajuizar pela rejeição do pedido. Como é referido no acórdão da Relação de Coimbra de 24.03.2015, “não deve confundir-se o prazo de apresentação da exoneração do passivo restante que pode ser apresentado pelo devedor até à assembleia de apreciação do relatório do administrador da insolvência – o que ocorreu no caso em apreço – com a liberdade de decisão de admissão ou rejeição por parte do juiz, raciocínio este a ser formulado com base nos elementos existentes no processo, de tal sorte que emirjam de tal despacho os fundamentos que levam o Tribunal a sustentar a partir de juízos de prognose de que o requerente tem ou não capacidade e vontade para cumprir com as exigências legais.
Por outro lado, não interferiu com a regular tramitação do processo de insolvência e do incidente nos termos legalmente previstos posto que foi apresentado quase em simultâneo com a prolação da sentença de insolvência e, por isso, foi deduzido a tempo de ser oportunamente considerado pelo administrador da insolvência no relatório a apresentar para apreciação dos credores, bem como a tempo de ser objeto de oportuno contraditório pelos credores sem implicar a prática de qualquer ato adicional distinto ou acrescido em relação ao que fosse necessário praticar ou cumprir se o incidente de EPR pedido tivesse sido requerido no prazo de 10 dias para oposição ao pedido de insolvência[18].
Ao invés, foi o tribunal recorrido que praticou atividade processual inútil acrescida e desconforme à tramitação legal prevista no art. 236º, nº4 do CIRE ao ordenar a notificação do pedido de exoneração do passivo restante aos credores e ao administrador da insolvência e ao conhecer e concluir pela inadmissibilidade desse pedido antes do termo do período e do prazo ali previsto sem outro fundamento que não o incumprimento do prazo de 10 dias previsto no art. 236º, nº 1. Efetivamente, o processo de insolvência é caracterizado pela sua natureza consultiva que, precisamente, onera os interessados com a consulta do processo para se inteirarem nos atos nele praticados nos prazos ou períodos legalmente previstos, o que, no que aqui importa, dispensa a notificação aos interessados do relatório do administrador da insolvência e do requerimento de EPR apresentado até ao 60º dia posterior à prolação da sentença, que ficam disponíveis no processo para consulta durante esse período[19], a partir do qual, e conforme estabelece o nº 4 do art. 236º, os credores dispõem do prazo de 10 dias para sobre eles se pronunciarem.
Neste contexto legal processual, como é entendimento da doutrina e jurisprudência citadas e que aqui se acolhe, a apresentação do pedido de exoneração do passivo restante no período intermédio previsto pelo art. 236º, nº 1 do CIRE escapa à ratio da possibilidade do seu conhecimento e indeferimento liminar com fundamento na sua não apresentação no prazo de 10 dias por aquela norma também previsto (indeferimento que, além do mais, por ser liminar, pressupõe ter como fundamento questão de facto e/ou de direito incontroversa e a manifesta improcedência ou ilegalidade processual do pedido e, como da própria designação resulta (liminar), dispensa a prévia submissão do mesmo ao contraditório dos credores e do administrador da insolvência). Nesse sentido, Luís Menezes Leitão: “apesar de o art. 238º, nº 1 a) referir que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se for apresentado fora de prazo, a verdade é que resulta do art. 236º, nº 1, parte final, que a rejeição do pedido apenas pode ocorrer necessariamente se este for apresentado após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes a sentença que tenha declarado a insolvência (…).[20]
Termos em que se conclui pela tempestividade do pedido de exoneração do passivo restante e, consequentemente, pela procedência do recurso e consequente revogação da decisão recorrida, que o tribunal recorrido deverá substituir por outra que, à margem da questão da tempestividade da apresentação daquele pedido, aqui já apreciada e aferida pela positiva, decida pela admissão ou não admissão do incidente de exoneração do passivo restante deduzido pelo recorrente nos termos dos arts. 238º, nº 1, als. b) a g) e 239º nº 1 e 2 do CIRE[21].

IV – Das custas
Na ausência de parte que tenha dado causa ao recurso, de decaimento do recorrente, de contra-alegações, e de causa legal de isenção ou dispensa de tributação, as custas do recurso são da responsabilidade do recorrente por aplicação do critério subsidiário da vantagem ou do proveito processual previsto pelo art. 527°, n° 2 do CPC, e porque apenas o recorrente dele beneficiou[22].

V - Decisão
Em conformidade com o exposto, julga-se a apelação procedente, com consequente revogação da decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo do recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido na modalidade de dispensa de pagamento de custas e outros encargos.

Em 01.10.2025
Amélia Sofia Rebelo
_______________________________________________________
[1] O prazo de 5 anos originariamente previsto na lei foi reduzido para 3 anos pela Lei nº 9/22 de 11.01.
[2] Acórdão da Relação de Coimbra de 18.09.2012, proc. 904/11.5TBLSA, disponível na página jurisprudência.pt
[3] Estabelece que Na sentença que declarar a insolvência, o juiz: (…) Designa dia e hora, entre os 45 e os 60 dias subsequentes, para a realização da reunião da assembleia de credores aludida no artigo 156.º, designada por assembleia de apreciação do relatório, ou declara, fundamentadamente, prescindir da realização da mencionada assembleia.
[4] Sobre a matéria vd. acórdãos da RE de 02.04.2020 e da RL de 22.02.2022.
[5] Nesse sentido, acórdão da RC de 10.03.2015: “(…) decidir livremente não tem, naturalmente, a sua equivalência em decidir arbitrariamente, tendo a decisão sempre de ser fundamentada.
[6] Em Exoneração do Passivo Restante- O Novo Direito da Insolvência, p. 168.
[7] Vd. acórdão da RC de 10.12.2009, assim sumariado: “1. A apresentação fora de prazo, causa de indeferimento liminar, do pedido de exoneração do passivo restante a que alude a alín. a) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE reporta-se à apresentação após a realização da assembleia de apreciação do relatório do administrador da insolvência;// 2. O decurso do prazo de 10 dias a contar da citação a que se reporta a 1.ª parte do n.º 1 do art.º 236.º do CIRE não preclude a possibilidade de o devedor apresentar o requerimento de exoneração até ao termo daquela assembleia;//3. Nessa circunstância, o juiz decide por sua livre decisão e mais amplamente do destino desse pedido, em função dos dados substanciais constantes do processo sobre o mérito do comportamento dos devedores, v. g., os que se reportam às diversas alíns. b) a g) do n.º 1 daquele art.º 238.º e da posição assumida pelos credores e pelo administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório.
[8] In Revista de Direito da Insolvência, Almedina 2016, p . 215.
[9] CIRE Anotado, II Vol., Quid Iuris, Lisboa 2005, p. 185.
[10] Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Iuris, Lisboa 2009, p. 284.
[11] Estabelece esta norma que Na assembleia de apreciação de relatório ou, sendo dispensada a realização da mesma, no prazo de 10 dias subsequente ao decurso do prazo de 60 dias previsto na parte final do n.º 1, é dada aos credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de se pronunciarem sobre o requerimento.
[12] Estabelece esta norma que Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º.
[13] Anota-se que o tribunal recorrido conheceu do pedido de insolvência e julgou os factos confessados por falta de oposição sem que previamente tenha aferido da nomeação de patrono ao recorrente ou da sua notificação ao patrono nomeado.
[14] Estabelece que (…) o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
[15] Estabelece que As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais.
[16] Sob a epígrafe Perfeição das notificações prevê-se no art. 113º da Lei nº42/2014 de 11.07 que aprovou o Código do Procedimento Administrativo: 5 - A notificação por meios eletrónicos considera-se efetuada, no caso de correio eletrónico, no momento em que o destinatário aceda ao específico correio enviado para a sua caixa postal eletrónica, e, no caso de outras notificações por via de transmissão eletrónica de dados, no momento em que o destinatário aceda ao específico correio enviado para a sua conta eletrónica aberta junto da plataforma informática disponibilizada pelo sítio eletrónico institucional do órgão competente.//6 - Em caso de ausência de acesso à caixa postal eletrónica ou à conta eletrónica aberta junto da plataforma informática disponibilizada pelo sítio eletrónico institucional do órgão competente, a notificação considera-se efetuada no quinto dia útil posterior ao seu envio ou no primeiro dia útil seguinte a esse quando esse dia não seja útil, (…).
[17] Prazo do qual em 28.05.2025 apenas tinham decorrido dois dias (considerando que a notificação e publicação da sentença foi cumprida por expediente de 21.05.2025 e que o 3º dia útil após a expedição coincidiu com um sábado).
[18] Assinala-se que do histórico do processo não resulta que o recorrente tenha junto certificado do respetivo registo criminal nem o tribunal notificado o recorrente para esse efeito e para aferir da verificação ou não do facto previsto pelo art. 238º, nº, 1, al. f) do CIRE).
[19] Nos termos da regra geral prevista pelo art. 26º, nº 2 do CIRE.
[20] Em A Recuperação Económica dos Devedores, Almedina, 2020, 2ª ed., p. 138.
[21] Consigna-se que a decisão da Relação só pode ser de cassação por não caber no objeto do recurso a prolação de decisão em substituição do tribunal recorrido nos termos do art. 665º do CPC na medida em que a decisão dele objeto se absteve de apreciar de mérito por se ter debruçado apenas sobre o requisito formal da tempestividade do pedido, ao qual se restringe o objeto de apreciação pela Relação, sendo que a decisão que nos autos cumpre proferir sobre o pedido de EPR impõe que se afira da verificação ou não dos demais fundamentos de indeferimento previstos pelo art. 238º, nº 1 (vd. acórdão da Relação de Lisboa de 21.11.2013).  
[22] Nesse sentido, acórdão da RL de 11.02.2021.