Ocorrendo a ocupação, por um dos herdeiros, de um imóvel pertencente à herança indivisa, e sendo tal ocupação impeditiva da posse pelo outro herdeiro, o prejuízo causado a este último corresponde à parte do valor locativo daquela unidade predial no mercado de arrendamento, durante o período em que se verificar a privação do uso e na proporção da quota deste herdeiro na herança.
(Sumário da Relatora)
II. FUNDAMENTOS
1. Fundamentos de facto
1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
«1. O pai do Autor e da Ré faleceu a 09 de abril de 2013 e a mãe, (…), faleceu a 29 de março de 2021.
2. Por óbito dos indicados progenitores, sucedeu-lhes, como seus únicos herdeiros, os seus filhos:
(…).
(…).
3. Em 11 de outubro de 2017, na Conservatória do Registo Civil / Predial / Comercial de Sesimbra, foi outorgada a respetiva escritura de habilitação de herdeiros, por óbito do pai do Autor e da Ré.
4. Em 23 de junho de 2021, no Cartório Notarial de (…), em Alcácer do Sal, foi outorgada a escritura de Habilitação de Herdeiros, por óbito da mãe de ambos.
5. Os autores da herança à data do óbito eram titulares de bens, cujo processo de inventário está a correr termos sob o n.º 483/23.0T8SSB, do Juízo Local Cível de Grândola.
6. Entre os bens a partilhar existe o prédio urbano sito na Rua (…) , 9, (…), concelho de Alcácer do Sal, freguesia União das Freguesias de (…), inscrita sob o artigo matricial (…), com o valor patrimonial de € 46.659,55.
7. O edifício tem uma área bruta de 129,000 m2, com 4 divisões, casa de banho, despensa e anexo servindo de fumeiro e garagem e ainda, uma área bruta dependente de 30.000 m2, acrescida da área bruta privativa de 99.000 m2, o que totaliza 237.000 m2.
8. O Autor pretendeu partilhar os bens, tendo comunicado à Ré, em 23 de agosto de 2022, que estava na disposição de comprar ou vender a quota parte à sua irmã.
9. A Ré respondeu ao e-mail remetido às 10:04h, no dia 16 de setembro de 2022, sendo rececionado às 12:15h, do dia 20 de setembro de 2022, referindo que “aceitava vender ao Autor o quinhão hereditário de que é titular no imóvel pelo preço de € 130.000,00”.
10. Após esta proposta, o Autor não apresentou outra proposta à Ré, informando de ter qualquer comprador para o imóvel ou que pretendia contactar qualquer imobiliária para a promoção da venda.
11. O Autor recusou-se a adquirir o direito de que a Ré é titular, nos termos em que o propusera.
12. O Autor, até à data em que a Ré foi citada para a presente ação, não manifestou a sua oposição a que a cabeça de casal utilizasse os bens da herança.
13. O Autor solicitou uma análise do valor do arrendamento para o local e o mesmo está estipulado entre os € 1.500,00 e os € 3.750,00.
14. Desde a morte dos pais do Autor e da Ré, até à presente data, o prédio vem sendo habitado pela Ré e respetiva família.
15. A Ré nunca efetuou qualquer pagamento ao Autor pela ocupação do imóvel.»
1.2. A decisão recorrida não considerou provado o seguinte facto:
«A) Que a Ré não aceitou vender nem comprar ao Autor ou vender a terceiros mantendo-se a residir no imóvel sem pagar nada ao Autor.»
2. Do objeto do recurso
2.1. Da nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC
O Recorrente entende ter havido “omissão de indicação dos factos que o tribunal a quo considerou não provados e da respetiva fundamentação”, o que subsume ao disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
Efetivamente, o aludido preceito determina ser nula a sentença quando não “especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
Ora, para que a sentença careça de fundamentação, “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”[1]. Assim o vem entendendo de forma unânime a nossa jurisprudência, devendo ver-se, por todos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/03/2021, proferido no processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1 e disponível na base de dados da dgsi.
Acontece que, como escreve Abrantes Geraldes[2], a “falta de especificação dos fundamentos de facto jamais pode ser confundida com a falta de prova ou mesmo com a falta de consideração de determinados factos”.
Ora, no caso em apreço o que ressalta do recurso é, precisamente, que a insuficiência da fundamentação, invocada pelo Recorrente, é sustentada na mera discordância por parte deste relativamente ao decidido desde logo em sede de matéria de facto. Como tal, a pretensão do Recorrente subsume-se, verdadeiramente, a um erro de julgamento, ao invés de uma nulidade da sentença. O que o Recorrente diz é que há factos em desacordo com a prova produzida. O Recorrente discorda das opções tomadas em sede de apreciação fáctica, discorda do entendimento do tribunal, mas isso não constitui nulidade da sentença.
Na verdade, como se vê, a sentença elencou os factos que julgou provados e não provados, motivou a matéria de facto e procurou, depois, subsumir os factos ao direito, sendo percetíveis as razões que levaram o tribunal a quo às suas conclusões. Não padece a sentença, como tal, da putativa nulidade.
A decisão pode estar errada, pode haver um erro de julgamento, mas não há qualquer vício que a afete pela via invocada.
Improcede, assim, a invocação da nulidade.
Contudo, não só tal menção na sentença não constituiria qualquer nulidade, como, principalmente, da sentença resulta claro que, neste seu segmento, o tribunal a quo pretendeu unicamente enunciar jurisprudência que, tratando, é certo, da questão objeto destes autos, ainda assim versa factos que se distinguem dos destes autos (v.g. a ocupação de um imóvel por mais de duas décadas) – cfr. pág. 11 da sentença.
2.2. Da impugnação da decisão da matéria de facto
2.2.1 Da observação do ónus de impugnação
Na motivação do recurso em apreço o Recorrente anuncia pretender impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
Fá-lo de modo essencialmente genérico, afirmando que o tribunal a quo “desconsidera em absoluto toda a prova da qual não permanece dúvidas que a Recorrida decidiu de forma ilegítima, e unilateralmente, ao utilizar o único imóvel da herança em proveito próprio, com a oposição do ora Recorrente” (cfr. ponto 4º das alegações) e insurgindo-se contra segmentos da parte decisória da sentença (ou seja, segmentos que nenhuma afirmação factual encerram (cfr. ponto 6º das alegações).
Ora, de acordo com o disposto no artigo 640.º do CPC, a impugnação da matéria de facto obedece a regras, impendendo sobre o recorrente um ónus, que, quando não observado, determina a rejeição da impugnação, sem prévio convite ao aperfeiçoamento.
Tais regras, conforme ensina Abrantes Geraldes[3], são em síntese as seguintes:
“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) O recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinem uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
d) […]
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.”
Por outro lado, como vem sendo entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça[4], destas regras devem evitar-se leituras excessivamente formalistas que possam conduzir a restrições injustificadas do direito a um processo equitativo, devendo, antes, convocar-se sempre, para o efeito da melhor interpretação da norma, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Procurando o equilíbrio assim propugnado, temos que, no caso em apreço, muito embora o Recorrente não identifique a asserção enunciada no ponto 1. das conclusões como um ponto de facto controvertido, é esse o seu entendimento, pois expressou-o, como tal, nos pontos 11º e 14º da motivação, onde identifica expressamente a alínea A) dos factos não provados e o ponto 12 dos factos provados como merecendo a sua desaprovação.
Por outro lado, o Recorrente indicou na motivação os meios de prova que, no seu entender, determinariam uma decisão diversa quanto a cada um daqueles pontos (cfr. pontos 8º, 9º e 10º da motivação) – quais sejam as suas declarações de parte e o depoimento das testemunhas (…) e (…) –, mencionando também as passagens da gravação relevantes.
Por último, extrai-se da motivação (cfr. pontos 11º e 14º) a decisão que, no entender do Recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas: o Recorrente pretende ver como provado o facto que consta da alínea A) (ainda que, logo de seguida, afirme que tal facto “não tem qualquer valor para o presente processo […]– cfr. ponto 12º da motivação) e como não provado o facto constante do ponto 12 dos factos provados.
2.2.2 Do erro de julgamento quanto ao ponto 12 da matéria de facto provada
O ponto 12 da matéria de facto provada tem a seguinte redação:
“O Autor, até à data em que a Ré foi citada para a presente ação, não manifestou a sua oposição a que a cabeça de casal utilizasse os bens da herança”.
Tendo por base os fundamentos invocados relativamente a este ponto da matéria de facto, procedemos à audição da gravação da audiência final.
Analisada a prova produzida, em especial as declarações de parte do Autor e o depoimento das testemunhas (…) e (…), inexiste dúvida de que ficou cabalmente demonstrado tal facto. Na verdade, o Autor reconheceu, por duas vezes (cfr. passagens 05:17 e 17:15), nunca ter dito à Ré que não queria que a mesma morasse na casa. A testemunha (…), mulher do Autor, por sua vez, foi perentória na afirmação de que este nunca demonstrou descontentamento ou desagrado por a Ré viver na casa (cfr. passagem 09:09), no que foi corroborada pela testemunha (…), tio das partes, que expressamente referiu nunca se ter o Autor oposto a que a Ré residisse na casa (cfr. passagem 18:48).
Inexiste, pois, motivo para não julgar provado o aludido facto.
2.2.3. Do erro de julgamento quanto à alínea A) da matéria de facto não provada
O teor da alínea em questão é o seguinte:
«A) Que a Ré não aceitou vender nem comprar ao Autor ou vender a terceiros mantendo-se a residir no imóvel sem pagar nada ao Autor.»
Também aqui a prova produzida não é de molde a que se possa julgar este facto provado.
Na verdade, foi o próprio Autor quem reconheceu que a Ré reagiu à sua proposta de compra/venda dizendo que “por 130 mil vendia” a casa “já” (cfr. passagem 12:41), no que foi corroborado pelo depoimento da filha da Ré, … (cfr. passagem 2:54), enquanto as testemunhas (…) e (…) revelaram não ter conhecimento sustentado sobre qual a reação da Ré à proposta do Autor (cfr., designadamente, passagem 6:23 do depoimento da testemunha … e passagem 12:33 do depoimento da testemunha …, cujo conhecimento se restringiu às reuniões que com a Ré teve).
A impugnação da matéria de facto improcede, pois, também nesta parte.
A sentença recorrida concluiu ser aplicável ao caso dos autos o regime previsto no artigo 1406.º do Código Civil (de ora em diante CC), que, em sede dos direitos e encargos do comproprietário, rege o uso da coisa comum.
Não podemos deixar de acompanhar esta subsunção.
É sabido que a herança indivisa não constitui uma situação de compropriedade, já que, entre nós, esta se define pela contitularidade num único direito de propriedade sobre a coisa comum – artigo 1403.º do CC –, enquanto a herança indivisa constitui um caso de comunhão de mão comum, isto é, um património afetado a certo fim, que pode ser integrado por relações jurídicas de diversa natureza (designadamente relações reais e creditórias) e que pertence em contitularidade a dois ou mais indivíduos ligados por determinado vínculo[5]. Na compropriedade cada comproprietário é titular de uma quota ideal sobre uma coisa, de que pode dispor, enquanto na comunhão de mão comum (ou propriedade coletiva), os vários contitulares não têm um direito autónomo, pois existe “contitularidade sobre um património que integra várias posições jurídicas, quer de natureza real quer de natureza obrigacional”[6], ou seja, na comunhão sucessória os direitos dos contitulares não incidem sobre cada um dos elementos que constituem o património coletivo, mas sim sobre todo ele, como um todo unitário[7].
No entanto, o artigo 1404.º do CC prevê a aplicação das regras da compropriedade à comunhão de quaisquer outros direitos, com as necessárias adaptações e sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles. Essa aplicação justifica-se no caso do uso das coisas que integram a herança indivisa pelos co-herdeiros, precisamente porquanto inexiste um regime legal que rega tal uso.
Assim, embora a comunhão de mão comum não caiba na figura da compropriedade, o certo é que o artigo 1404.º do CC não restringe a aplicabilidade das regras da compropriedade às hipóteses de comunhão romana. Pelo contrário, como se lê no acórdão da Relação de Évora, de 11/04/2024, proferido no processo n.º 376/23.1T8TMR.E1, disponível na base de dados da dgsi, a característica da comunhão hereditária de os co-herdeiros não serem titulares de quotas sobre cada um dos bens que constituem a herança, mas apenas sobre a globalidade desta e para valerem no momento da partilha, “até a torna mais harmoniosa com o regime do artigo 1406.º, n.º 1, que a própria compropriedade. Nesta, ao usar a totalidade da coisa, o comproprietário vai além das forças da sua quota. Daí a necessidade do n.º 2 do mesmo artigo, que esclarece que o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título. Na comunhão hereditária, os co-herdeiros têm um direito unitário sobre cada uma das coisas que integram a herança, pelo que, quando um deles usa uma dessas coisas, não se verifica a desconformidade entre esse uso e o direito de que ele é titular sobre a mesma coisa. Daí que a aplicabilidade do n.º 2 à comunhão hereditária seja desnecessária. Dada a natureza unitária do direito dos co-herdeiros sobre cada uma das coisas que integram a herança, em caso algum o uso de uma dessas coisas por um deles poderia conduzir à usucapião, a menos que houvesse inversão do título da posse.”
O artigo 1406.º do CC dita que “Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive o outros consortes do uso a que igualmente têm direito”.
O tribunal a quo entendeu, e bem, que a Ré, ao residir na casa que integra a herança indivisa, não emprega o imóvel para fim diverso àquele a que o mesmo se destina. Pelo contrário, dá-lhe um dos seus usos mais comuns (embora outros se configurem, quais sejam o da sua rentabilização por via do arrendamento a terceiros, adiante-se já).
Contudo, na análise do segundo limite ao uso da coisa, o tribunal a quo lançou mão de um argumento que não conseguimos acompanhar. Trata-se, como resulta expresso do preceito sobremencionado, de escrutinar se a Ré, ao viver na casa em questão, privou o Autor do uso a que o mesmo igualmente tem direito. O tribunal a quo entendeu inexistir “por parte do Autor, uma vontade manifesta de lhe dar outra utilização ou outro fim, já que o seu interesse não surge por uma questão de necessidade, mas sim porque pretende rentabilizar o imóvel”. Salvo o devido respeito, confundiu-se nesta sede dois aspetos distintos: por um lado, a privação do uso pelo Autor e, por outro, o tipo de uso em questão. Ora, a lei não exige que o consorte (aqui co-herdeiro) pretenda fazer do bem o mesmo uso que dele faz aquele que do imóvel vem usufruindo. O que releva, tão-somente, é que o consorte ocupante não prive o outro consorte do uso a que este igualmente tem direito, de entre o qual, tratando-se de um imóvel, pode configurar-se quer a habitação própria, quer a rentabilização, v.g. por via do arrendamento.
Dito isto, é imperioso entender que, ao habitar, em exclusivo, o imóvel da herança – consubstanciado num prédio urbano com 4 divisões, casa de banho, despensa e anexo servindo de fumeiro e garagem, com uma área total de 237 m2 (cfr. ponto 7 da matéria de facto provada), indivisível, portanto – a Ré priva o Autor do uso a que este igualmente tem direito, estando, pois, verificado o pressuposto por último elencado no artigo 1406.º do CC. É que, como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[8] – ainda que a propósito da compropriedade (cujo regime, como vimos é aplicável ao caso dos autos) –, uma vez que “a nenhum dos comproprietários pode ser imposto o dever de co-habitar com os outros, não sendo o prédio divisível em fracções autonomizáveis […] , a qualquer deles será lícito opor-se a uma deliberação da maioria nesse sentido, alegando que o uso pretendido ou exercido pelos outros o priva do direito que ele tem a usar também da coisa […]. Nestes casos, o único recurso a adoptar, na falta de acordo, será o do gozo indirecto, que consistirá em regra na locação da coisa, com a consequente repartição dos proventos dela entre os consortes. Quando assim seja, já nada obstará a que o locatário possa ser um dos comproprietários, se a maioria, no exercício dos poderes de administração que a lei lhe confere, assim o entender”.
Mas, será que se verifica, no caso dos autos, a falta de acordo sobre o uso da coisa comum, exigida na primeira parte do artigo 1406.º, n.º 1, do CC?
O Autor entende que desde 23/08/2022, data em que, pretendendo proceder à partilha dos bens da herança indivisa, comunicou à Ré estar na disposição de comprar ou vender a quota parte à sua irmã (cfr. ponto 8 da matéria de facto provada), tal falta de acordo ficou patente.
Afigura-se-nos, porém, não lhe assistir razão, nesta sede. Repara-se que, ao comunicar à Ré estar disposto, designadamente, a vender-lhe a sua “quota parte”, o Autor reconheceu nada ter contra a continuação do uso do imóvel pela Ré. E à proposta efetuada pelo Autor, a Ré inclusivamente respondeu dizendo que aceitava vender-lhe o seu quinhão hereditário (cfr. ponto 9 da matéria de facto provada), sem que posteriormente o Autor apresentasse outra proposta (ponto 10. da matéria de facto). Ou seja, Autor e Ré procuravam, então, chegar a acordo quanto ao uso do imóvel, sem que o Autor se opusesse a que a Ré nele residisse. Como ressalta do ponto 12.º da matéria de facto, o Autor até à data em que a Ré foi citada para a presente ação, não manifestou a sua oposição a que a Ré utilizasse o imóvel.
Tal status quo alterou-se, portanto, com a comunicação à Ré, por via da citação, de que o Autor não mais tolerava o uso gratuito do imóvel integrante da herança. Ou seja, em outubro de 2024 ficou patente não estarem, Autor e Ré, em acordo sobre o uso do imóvel que integra a herança indivisa. O que significa que apenas então a privação do uso, decorrente da utilização exclusiva do bem pela Ré, passou a ilícita.
Como se lê no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/04/2022, proferido no âmbito do processo n.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1, disponível na base de dados da dgsi, enquanto “não se manifestar uma vontade de utilização do bem incompatível com o uso exclusivo que vem sendo feita pelo co-herdeiro em seu proveito não é possível concluir que esse uso tenha sido excludente do direito de uso dos demais herdeiros. A privação só ocorre com a existência de uma vontade não satisfeita. Mas, manifestada uma oposição a esse uso, a manutenção daquela ocupação passa a ser ilícita, uma vez que priva o herdeiro contestatário da posse de um bem comum, devendo este, e apenas ele, ser indemnizado da privação sofrida. Assim, ocorrendo uma ocupação por um herdeiro de um imóvel pertencente a uma herança, impeditiva da sua posse por outro herdeiro e, portanto, ofensiva da composse sobre esse bem, o prejuízo causado a este último corresponde à parte do valor locativo daquela unidade predial no mercado de arrendamento, durante todo o período em que se verificar tal ocupação, correspondendo essa parcela à quota desse herdeiro na herança. Deve, pois, ser esse o quantum da indemnização a pagar pelo herdeiro ocupante ao herdeiro privado do uso, nos termos dos artigos 562.º, 564.º e 566.º do Código Civil.”
Efetivamente, encontramo-nos em sede de responsabilidade civil aquiliana, estando verificados os pressupostos de que o artigo 483.º do CC faz depender tal responsabilidade (quais sejam, a existência de um facto voluntário, ilícito e imputável ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano): a Ré permaneceu no imóvel sem nada pagar (cfr. ponto 15 da matéria de facto provada), apesar de saber que violava ilicitamente o direito de uso do Autor, causando-lhe assim um dano.
Não sendo possível in casu a reconstituição natural, é devida ao Autor a indemnização em dinheiro (artigo 566.º, n.º 2, do CC). Como vimos, o prejuízo causado ao Autor corresponde à parte do valor locativo do imóvel no mercado de arrendamento, desde que se verificou a ocupação ilícita, correspondendo essa parcela à quota desse herdeiro na herança.
Resultou provado que o valor do arrendamento para o local está estipulado entre € 1.500,00 e € 3.750,00 (cfr. ponto 13 da matéria de facto provada). Não sendo possível averiguar o valor exatos dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (artigo 566.º, n.º 3, do CC). No caso dos autos, não pode deixar de se atender, por um lado, ao facto de a Ré passar a pagar pelo uso de um bem que já antes e há vários anos ocupava de forma pacífica (cfr. pontos 12 e 14 dos factos provados) e, por outro, que os valores locativos em Portugal passam por uma fase altamente especulativa. Julga-se, como tal, ser justo, proporcional e adequado, considerando desde logo serem Autor e Ré os únicos herdeiros, atender a metade do valor locativo mínimo apurado (€ 1.500,00), ou seja, € 750,00. Tratando-se de indemnização em forma de “renda” mensal, há de reportar-se a primeira ao mês subsequente ao da citação, ou seja, novembro de 2024.
A condenação está limitada pelo pedido formulado (artigo 609.º, n.º 1, do CPC), sendo que o Autor apenas peticionou o pagamento do valor mensal “até trânsito em julgado da presente ação” – cfr. página 6 da petição inicial.
Sobre o montante indemnizatório são devidos juros de mora, à taxa supletiva legal, desde o último dia do mês a que respeitar cada parcela de € 750,00 até integral pagamento – artigos 564.º, n.º 2, 805.º, n.º 2, alínea b) e 806.º, n.ºs 1 e 2, todos do CC.
4. Custas
Tendo tanto o Autor com a Ré decaído, as custas da ação e do recurso são a suportar pelo Autor/Recorrente e pela Ré/Recorrida, na proporção do respetivo decaimento (artigo 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC e tabela I-B do Regulamento das Custas Processuais).
Efetivamente, revogando o acórdão, total ou parcialmente, a decisão recorrida, justifica-se que seja redefinida a responsabilidade global pelas custas nas diversas instâncias, de acordo com as regras gerais (cfr. neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 16/03/2023, proferido no processo n.º 2553/21.0T8GMR.G3, disponível na base de dados da dgsi).
III. DECISÃO
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar o recurso parcialmente procedente e, julgando-se a ação parcialmente procedente:
i) Revoga-se a decisão recorrida;
ii) Condena-se a Recorrida a pagar, ao Recorrente, uma indemnização, à razão de € 750,00 (setecentos e cinquenta) euros por mês, desde 01 de novembro de 2024, inclusive, até ao trânsito em julgado da presente ação;
iii) Condena-se a Recorrida a pagar, ao Recorrente, juros de mora, à taxa supletiva legal, desde o último dia do mês a que respeitar cada parcela de € 750,00,00 e até integral pagamento.
Custas da ação e do recurso pelo Recorrente e pela Recorrida, na proporção do decaimento.
Évora, 16 de outubro de 2025
Sónia Kietzmann Lopes (Relatora)
Francisco Xavier (1º Adjunto)
Elisabete Valente (2ª Adjunta)
(Acórdão assinado digitalmente)
________________________________________________
[1] Neste sentido, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed., Coimbra Editora, pág. 687.
[2] In “Recursos em Processo Civil”, 8.ª edição atualizada, Almedina, pág. 251.
[3] In ob. cit., págs. 228 e seguintes.
[4] Veja-se, por todos, o acórdão de 27/02/2025, proferido no processo n.º 1523/22.6T8PTM.E1.SI e disponível na base de dados da dgsi.
[5] Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2.ª ed, Coimbra Editora, pág. 347.
[6] Elsa Sequeira Santos, in “Código Civil Anotado”, Vol. II, 2023, Almedina, pág. 215.
[7] Neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15/12/2022, proferido no processo n.º 25657/15.4T8SNT.L1-6, disponível na base de dados da dgsi.
[8] In ob. cit., págs. 357 e seguintes.