I – A remoção de fiel depositário por ter deixado de cumprir os deveres do seu cargo, com assento legal no art. 761.º do Código de Processo Civil, é legalmente configurada como um incidente declarativo enxertado (na acção executiva), que segue os termos dos seus arts. 292.º a 295, tendo na sua génese um juízo de culpa sobre os actos ou as omissões juridicamente relevantes praticadas pelo mesmo.
II – Tendo os factos sido impugnados pela contraparte e sendo factos constitutivos do pedido de remoção, carecem de demonstração probatória, recaindo o ónus de prova sobre o seu alegante ou aproveitante, segundo o art. 342.º, n.º 1, do Código Civil.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Tribunal a quo: Tribunal Judicial da Comarca de Leiria/Juízo de Execução de Ansião (J2)
Recorrente: AA
Sumário (art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…).
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:
I.
Em 31 de Julho de 2008, à data o Banco 1..., S.A.[2], instaurou acção executiva – constituindo os Autos Principais[3] – contra AA e mulher, BB, todos ali melhor identificados, fundada na outorga de dois contratos de mútuo com hipoteca, resolvidos por incumprimento, pretendendo deles haver o montante inicial de 104 976,40 €, equivalente à soma dos valores inscritos nas livranças (62 986,40 € + 41 990 €), acrescido de juros moratórios e imposto de selo.
No decurso dos trâmites processuais foi efectuada a penhora do bem imóvel objecto de hipoteca, vindo, sob impulso da Agente de Execução, a ser espoletado incidente de remoção de fiel depositária.
Em 22 de Janeiro de 2025, foi decidido:
«… julga-se procedente o incidente de remoção da depositária BB, pelo que, em conformidade:
1. Nos termos do artigo 761º, nº 1 do CPC, por não ter cumprido os deveres do seu cargo, ordeno a remoção do cargo de depositário de BB;
2. Procedo à nomeação da Agente de Execução como depositária do imóvel, deferindo o pedido de requisição de força pública, com arrombamento, se tal for necessário, para efectivação do estipulado no art. 757º n.º1 e n.º 2 do CPC, tendo em vista a obtenção de registo fotográfico do imóvel e apuramento do estado actual de conservação do imóvel, a obtenção de chave do imóvel (com mudança de fechadura), sem prejuízo dos executados aí continuarem a residir até que seja determinada a sua entrega ao futuro adquirente, devendo ser-lhes entregue cópia da chave. A agente de execução fixará previamente os dias e hora de visita ao imóvel pelos possíveis interessados, a qual deverá dar conhecimento prévio nos autos.».
II.
Dissentindo, o 1.º Executado interpôs Recurso de Apelação, formulando estas
«CONCLUSÕES
(…).».
III.
Questões decidendas
Não preterindo a apreciação de questões que sejam de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o âmbito da apelação (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil):
- Da legitimidade recursiva.
- Da ausência de fundamento para a remoção da 2.ª Executada como fiel depositária, acaso a mesma detenha essa qualidade.
IV.
Dos Factos
Vêm provados os seguintes factos (transcrição)[4]:
1. No âmbito do presente processo executivo encontra-se penhorada, desde 20-03-2010, a Fracção Autónoma, designada pela Letra “I”, do Prédio Urbano, sito em Rua ..., ..., ..., descrito na 1ª Conservatória ... sob o número ...75/..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...37, da freguesia ..., concelho ...;
2. As diligências de venda do supra mencionado prédio, tiveram início, no ano de 2013, mais concretamente, no dia 26-02-2013, tento esta sido a primeira data designada para a abertura de propostas em carta fechada, seguindo-se outras mais, todas sem concretização efetiva, devido aos mais variados motivos;
3. No seguimento da diligência (concretizada) de abertura de propostas em carta fechada, datada de 04-07-2013, que encerrou sem apresentação de propostas, tendo a venda prosseguido sobre a modalidade da venda para Negociação Particular;
4. Ao longo do presente processo, existiram algumas alterações ao valor de base do imóvel, todas acompanhadas de novas decisões de venda que foram datadas de 18-07-2012, 05-08-2016 (a venda passa, inclusivamente, a ser feita na modalidade de Leilão Eletrónico, na plataforma E-leilões), 02-02-2017, 07-03-2019;
5. A última alteração do valor base do imóvel ocorre em 2022, no seguimento do Douto Despacho da Meritíssima Juiz, datado de 28-09-2022, onde se fixa, na sequência da nova avaliação do imóvel, requerida pela Exequente a 12-07-2021, o valor base em € 115.000,00 (cento e quinze mil euros);
6. Ora, como é possível verificar pela análise historial dos autos, a avaliação realizada, acima mencionada, foi atrasada em praticamente um ano, por facto imputável ao aqui Executado – o pedido de nova avaliação é requerido a 12-07-2021 e a avaliação é realizada a 04-07-2022;
7. Durante o ano mencionado no ponto superior, várias foram as manobras dilatórias utilizadas pelo Executado para que tal avaliação não se verificasse. Veja-se, ademais, cronologicamente:
• Os Executados foram, inicialmente, notificados de três datas possíveis no dia 08-09-2021, tendo, igualmente, sido notificado o Digníssimo Mandatário destes, não se tendo, nenhuma das partes, pronunciado pelo agendamento de uma data;
• Na ausência de pronúncia, foi contactado telefonicamente o Mandatário dos Executados, no dia 20-09-2021, que apenas informou que o Executado AA (de ora em diante designado por AA), não se encontrava em Portugal continental por motivos de trabalho;
• No mesmo dia, 20-09-2021, o Executado AA endereça um email à Signatária a informar que se encontra ausente por motivos de profissionais até meados de outubro;
• A 20-10-2021, é contactado o Executado AA, via email, para perceber se já seria possível agendar a pretendida diligência, ao que este nos responde (no dia 21), que devido a atrasos profissionais ainda não se encontra no Continente, sugerindo que estaria por volta do dia 15 de novembro de 2021 e que, nessa altura, contactaria a Agente de Execução para o agendamento pretendido;
• No dia 28-10-2021, por se encontrar próxima a data definida pelo Executado, é endereçado novo email para que nos indique um dia em concreto, por forma a ser possível notificar o perito para o efeito. Como não existiu qualquer resposta a este email, foi feita nova insistência, no dia 10-11-2021, ao que o Executado AA responde, uma vez mais, que quando puder informa;
• A 16-11-2021, devido à total ausência de novidades por parte do Executado, bem como por já nos encontrarmos na data que este informou que estaria no Continente, novo email foi endereçado, alertando, conforme já havia sido feito, que se ele não pudesse pode estar presente a Executada BB (doravante designada por BB), que, inclusivamente, é a fiel depositária do imóvel;
• Neste seguimento, a 19-11-2021, o Executado AA requer mais tempo (para além de todo o já concedido), desta feita, por motivos da Covid-19;
• Em detrimento do pedido de “mais uns dias”, concede a Exequente um prazo de 10 dias para que os Executados indiquem uma data entre dezembro de 2021 e janeiro de 2022, sendo esta decisão comunicada aos interessados (Executados e respetivo Mandatário), a 29-11-2021;
• Nada dito, uma vez mais, quer por parte dos Executados, quer do seu representante, foram endereçadas notificações a insistir por resposta a 12-01-2022;
• Obtemos, por parte do Executado AA, no dia 19-01-2022 um telefonema onde admite que tem tentado adiar a avaliação, enquanto tenta cobrir a proposta existente à data (€ 80.111,11 Euros), foi devidamente alertado das obrigações que, quer ele, quer em especial a Executada BB, em detrimento da sua função enquanto fiel depositária, têm na colaboração da diligente tramitação processual, quando para ela sejam notificados/solicitados. Uma vez mais, o Executado AA, informa que vai falar com o seu Mandatário e nos informará de uma data;
• Novamente, a 01-02-2022, devido à total ausência de notícias dos Executados, é remetido um email ao Executado AA a insistir por uma data para a já há meses requerida avaliação;
• Reiteradamente, como havia feito até aqui, indica, via email a 01-02-2022, uma data futura – a partir de 20-02-2022 – para estar novamente no Continente;
• Face às inócuas tentativas para avaliação do imóvel, vem o Exequente, a 11-02-2022, requerer ao Meritíssimo Juiz que notificasse os Executados para estes indicarem as datas possíveis para o agendamento do perito;
• Por forma a agilizar a avaliação ao máximo, bem como a dar as oportunidades que se acreditavam devidas aos Executados, tentou-se, mais uma vez, o contacto via email, antes da Notificação endereçada pelo tribunal, no dia 17-02-2022, à qual o Executado AA responde a “Sim eu disse quando eu chegar que o farei…”, menosprezando, uma vez mais, a importância da sua colaboração;
• Seguiram-se várias outras tentativas frustradas (email e telefone) de agendamento, descartando este sempre a marcação;
• O Exequente reitera, a 09-03-2022, o pedido realizado a 11-02-2022;
• O Mandatário dos Executados endereça ao Meritíssimo Juiz, a 21-03-2022, nova comunicação onde expressamente refere que “Os executados sempre prestaram toda a colaboração que lhes foi solicitada”, o que, compulsados os autos, se verifica não ser, na sua íntegra verdade, não tendo, ainda assim, indicado qualquer data para a avaliação;
• Somente, no seguimento do Douto Despacho proferido a 21-04-2022, em que são notificados os Executados para indicarem uma data para agendamento da avaliação, sob pena de condenação em multa, somente aqui, e perante tão desnecessária advertência, vêm os Executados indicar uma data possível;
8. Com todas as dilações atrás mencionadas, “perdeu-se” um ano processual;
9. Face ao hiato temporal para venda do imóvel, foi o mesmo já alvo de várias publicitações na plataforma Eleilões o que, como é apanágio, suscitou interesse por parte de diversos proponentes;
10. Foram apresentadas dezenas de propostas e para além disso, requeridos, outros tantos, pedidos para visita ao imóvel;
11. Por diversas vezes, mais do que aquelas que seriam expectáveis, foi contactado o escritório da Signatária por parte dos proponentes indicando que não conseguiam estabelecer contacto com a fiel depositária, o que não possibilitava as visitas ao imóvel o que, como compreensível, prejudicava as licitações apresentadas;
12. De todos os contactos recebidos, vários foram os protestos invocados pelos interessados na visita ao imóvel.
Não só a falta de atendimento das chamadas, mas quando o faziam, a dificuldade que surgia para as visitas que, muitas vezes, eram agendados para datas posteriores ao término das publicitações, bem como as constantes informações de que o imóvel se encontrava necessitado de muitas obras de reabilitação (o que não será verdade, conforme a diligência de verificação do imóvel);
13. A Signatária apenas tem conhecimento da possibilidade de penas uma única visita realizada ao imóvel por parte de proponentes interessados, sendo que, todas as demais foram impossibilitadas pelo Executados;
14. Não mencionando outros mas, por exemplo, a antepenúltima proponente para o imóvel, a Sra. CC, vem desistir da proposta datada de 17-01-2023, no montante de € 118.000,00 Euros (valor superior ao mínimo), a 07-05-2023, porquanto tinha um empréstimo aprovado para a aquisição do imóvel aquando da apresentação da proposta mas, a mesma caducou, devido ao período de espera motivado pela reclamação de acto – decisão de aceitação – por parte do Executado que, apesar de recorrer para o Tribunal da Relação, não lhe foi deferido;
15. Com o período de espera, a proponente tem de reestruturar o crédito, sendo que não nessa data não consegue suportar os valores, vindo, posteriormente, desistir da proposta, impossibilitando a venda, o que, consequentemente prejudica não só o Exequente como todos os credores reclamantes;
16. Nos diversos contactos estabelecidos com o Executado AA, para alertar dos deveres do fiel depositário - sua esposa que, salvas raríssimas exceções atende o telemóvel, o qual a própria forneceu aquando da sua constituição como fiel depositária – foram não só mencionados os deveres, mas também os direitos.
Não obstante, o Executado afirma, por diversas vezes, que não só a casa carece de muitas obras, como, inclusivamente, este havia instalado aquecimento na casa que, de acordo com a sua opinião pessoal, com a qual discordamos e nos fizemos posicionar, este teria direito a retirar e, de acordo com as palavras deste, danificaria todas as paredes do imóvel;
17. Agora, num âmbito historial mais recente, surge uma nova proposta para aquisição do imóvel em venda, e novamente se reitera que o é há mais de 10 anos, no valor de € 131.100,00 (cento e trinta e um mil e cem euros), apresentada em negociação particular, terminada no dia 09-07-2024, apresentada pelo proponente DD;
18. No dia 11-07-2024, é contactada a Signatária, pelo Sr. EE, que intervém como representante da entidade bancária que creditaria o valor da proposta apresentada pelo proponente DD, a questionar como poderiam fazer uma avaliação ao imóvel, imprescindível para a aprovação do crédito, que se encontraria já pré-aprovado, ao que se informou que, em momento oportuno, isto é, após o términus do prazo da decisão de aceitação, se deveria contactar a fiel depositária;
19. Cumprindo todas as formalidades exigidas, a mencionada proposta foi notificada às partes, tendo apenas se pronunciado Exequente e Executada, favoravelmente e contra a venda, respetivamente;
20. Por se verificar que o valor é superior não só ao valor mínimo, mas também ao valor base, bem como decorrido um lapso temporal tão elevado para a presente venda, encontrando-se o Exequente e Credores a serem prejudicados em larga escala, decide-se pela aceitação da proposta, o que se titula a 30-09-2024;
21. Ainda anterior à Decisão de Aceitação, fomos contactados pelo proponente DD, por diversas vezes a informar que não conseguia entrar em contacto com a fiel depositária, por forma a agendar uma data para que a entidade bancária pudesse fazer a avaliação, acreditamos que por forma a agilizar o processo para que, assim, quando notificado para o depósito do preço o pudesse depositar;
22. O proponente DD remeteu à Agente de execução o email datado de 10.10.2024 a dar conta das dificuldades no acesso ao imóvel, que não logrou visitar.
Para além das circunstâncias relatadas, da consulta da plataforma informática retira-se ainda que:
23. Em 30 de Agosto de 2016 foi lavrado Auto de diligência para constituição de fiel depositário e constatação do estado do imóvel, dele constando
«Constituição de fiel depositário SIM
Constatação do estado de conservação SIM
Executado/Depositário/Pessoa Presente BB
Foi constituído depositário, tendo este sido advertido do dever de conservar o(s) bem(ns) penhorado(s), nos termos do artigo 1187.º do Código Civil; e ainda que, nos termos do artigo 771.º do CPC, do dever de apresentação dos bens.
Assinaturas BB
FF (Agente de Execução).».
24. Em 23 de Fevereiro de 2023, a Agente de Execução proferiu a seguinte decisão:
«Face à proposta de aquisição apresentada pela Proponente CC no valor de 118.000,00€ para aquisição do imóvel penhorado e tendo em conta que a referida é superior ao valor mínimo. Decide-se pela ACEITAÇÃO da proposta de aquisição apresentada pela Proponente CC no montante de 118.000,00€.».
25. Os Executados reclamaram desta decisão, por entenderem ser superior o valor da fracção, para o que juntaram documento intitulado «Estudo de Mercado», efectuado por A..., onde consta como sugestão de preço de venda rápida, 140 000 €, sugestão de preço justo do mercado, 150 000 €, e fora do mercado, 160 000 €, o que foi indeferido por despacho exarado em 12 de Maio de 2023.
26. Em 30 de Setembro de 2024 a Agente de Execução:
«Face à proposta de aquisição apresentada pelo proponente DD, no valor de € 131.100,00 (cento e trinta e um mil e cem euros) para aquisição do imóvel penhorado e, tendo em consideração todas as respostas das partes notificadas da mencionada proposta, bem como do valor da mesma ser superior ao valor mínimo,
Decide-se pela ACEITAÇÃO da proposta de aquisição apresentada pelo proponente DD, no montante de € 131.100,00 Euros.».
27. No email de 10 de Outubro de 2024 remetido por DD à Agente de Execução, lê-se:
«Venho por este meio, … manifestar a minha intenção de desistir formalmente do processo e-leilões com a referência ...24, relativo à aquisição do imóvel T3 localizado em ..., ....
Infelizmente, ao longo dos últimos dois meses e meio, deparei-me com dificuldades incontornáveis no acesso ao imóvel, uma vez que o executado, Sr. AA, tem repetidamente recusado conceder o acesso necessário para a realização de uma avaliação, essencial ao financiamento bancário (que estava garantido).
Além disso, o Sr. AA tem repetidamente referido que, caso o processo avence, encetará acções que afetarão de forma negativa e permanente o valor do imóvel, o que agrava ainda mais as minhas preocupações (“rebentar” com as paredes e canalizações do aquecimento; remoção da cozinha; impedir acesso às garagens, que diz não constarem da escritura; recorrer, enfim, a todo o tipo de manobras dilatórias nas quais é experiente e bem sucedido).
Lamento não ter sido assegurado o acesso efetivo ao imóvel e segurança do estado actual do mesmo, o que me deixa sem condições de avançar com a compra. A situação atual não me oferece a segurança ou as garantias necessárias para prosseguir com o processo de aquisição.».
28. Em 11 de Outubro de 2024 o Recorrente opôs-se à aceitação da proposta.
29. Em 24 de Outubro de 2024 o Recorrente apresentou queixa crime na Esquadra da PSP ..., contra DD, dando origem ao NUIPC n.º 861/24.....
30. Na mesma data, no exercício do princípio do contraditório, o Recorrente negou frontalmente o conteúdo do referido email.
31. Em 31 de Outubro de 2024 a Agente de Execução pediu que os Executados fossem «… notificados para a entrega do imóvel livre de pessoas e bens, de livre vontade, devendo proceder à entrega das chaves no escritório…», opondo-se, em 27 de Novembro de 2024, o Recorrente e a 2.ª Executada, ao deferimento desta pretensão.
32. Em 3 de Dezembro de 2024, a Agente de Execução esclareceu e solicitou:
«1. Confirma-se que o bem penhorado, à data da penhora, correspondia à habitação própria e permanente do executado.
2. A penhora foi efetuada em 20 de março de 2010, ou seja, há 14 anos.
3. O imóvel encontra-se em processo de venda desde março de 2019, perfazendo aproximadamente cinco anos.
4. Durante este período, a fiel depositária e o seu cônjuge, igualmente executado, têm incumprido, de forma reiterada, os seus deveres, obstaculizando o processo de venda.
5. Tal incumprimento manifesta-se na recusa deliberada em colaborar com a exibição do imóvel, alegando a existência de múltiplos problemas e informando potenciais interessados de que, caso adquiram o imóvel, este não será deixado em condições de habitabilidade.
6. À luz do princípio da cooperação e da boa-fé que os executados invocam, requer-se que procedam à entrega voluntária do imóvel, desocupado de pessoas e bens.
7. Solicita-se que essa entrega se concretize mediante a entrega das respetivas chaves no escritório da signatária, até ao final do corrente ano.
8. Na eventualidade de incumprimento, requer-se desde já a destituição da executada BB do cargo de fiel depositária, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 761º do CPC.», tendo-se manifestado contra o Recorrente e a 2.ª Executada, com data de 17 de Dezembro de 2024.
33. Em 18 de Novembro e em 11 de Dezembro de 2024, a Exequente concordou com a posição assumida pela Agente de Execução, indo no mesmo sentido B... STC S.A., enquanto Credora Reclamante.
V.
Do Direito
É apenas uma, a objecção apresentada pelo Recorrente e que se prende com a inexistência de substrato fáctico para a remoção da 2.ª Executada do cargo de fiel depositária, sendo ainda certo que não está seguro que a mesma tenha sido investida nessa qualidade processual.
Previamente, afirma a sua legitimidade para a interposição de recurso.
Tratando-se da apreciação de um pressuposto processual, tem primazia lógica sobre a questão substancial.
Na Conclusão 1.ª o Recorrente suscita a questão da sua legitimidade para a interposição de recurso, mas a mesma não concita qualquer dúvida, já que este é parte principal na acção executiva, nela figurando como 1.º Executado, e é directamente afectado pelo teor da decisão de que vem recorrer[5], posto que se trata da habitação de que é proprietário e onde reside habitualmente com a mulher, 2.ª Executada – cf. art. 631.º do Código de Processo Civil.
A dilucidação do mérito da decisão de remoção da 2.ª Executada da função de fiel depositária, desdobra-se em dois aspectos: a atribuição deste papel processual e a factualidade que lhe serviu de esteio.
No tocante à primeira parcela, é seguro que aquando da penhora da fracção aqui em causa não constava a menção a quem desempenhava esse encargo.
No entanto, extrai-se do denominado Auto de Diligência para Constituição de Fiel Depositário e Constatação do Estado do Imóvel, elaborado em 30 de Agosto de 2016, que à 2.ª Executada foi expressamente atribuída essa qualidade processual – cf. facto provado n.º 23.
O que vem ao encontro da previsão normativa específica do art. 756.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, que estipula que fiel depositário teria que ser um dos Executados, dado estar-se perante a sua habitação efectiva.
No que se refere à decisão em exame, o Recorrente invoca que não foram descritos actos praticados pela fiel depositária susceptíveis de conduzir à procedência do incidente de remoção, e que sobre os factos – controvertidos, por impugnados –, não houve produção de prova, como exigido pelo incidente.
Conforme emana do art. 760.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, ao depositário judicial estão cometidos os deveres gerais de um depositário, enunciados no Código Civil (arts. 1187.º e ss.: guardar; avisar e restituir), e ainda os de administrar o bem actuando com zelo e diligência; apresentá-lo quando para tanto solicitado, e prestar contas[6].
A remoção de fiel depositário por ter deixado de cumprir os deveres do seu cargo, com assento legal no art. 761.º do Código de Processo Civil[7], é legalmente configurada como um incidente declarativo aqui enxertado, que segue os termos dos seus arts. 292.º a 295.º[8].
Tendo sido suscitado o incidente de remoção de um executado como fiel depositário, que esteja abrangido pelo art. 756.º, n.º 1, como é a situação em apreço, não se prescinde da intervenção do tribunal; com efeito, «a designação por lei não impede a remoção, se a actuação culposa do depositário a justificar.»[9].
Isto porque a remoção de fiel depositário tem na sua génese um juízo de culpa sobre os actos ou as omissões juridicamente relevantes praticadas pelo mesmo.
A culpa exprime a ligação psicológica do agente com o facto, e reside no juízo de censura ética dirigido ao agente por ter actuado como actuou quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias do caso concreto, poderia e deveria ter agido de outro modo.
«…confrontam-se duas conceções: uma conceção psicológica e uma conceção ético-normativa de culpa. Fazendo-as dialogar, há boas razões para optar pela segunda.
Mantendo embora essa nota de ligação subjetiva entre o sujeito e o seu ato, a culpa assume-se como um juízo de censura ético-jurídica, a traduzir um desvalor: a pessoa podia e devia ter agido de outro modo.
Trata-se de um desvalor subjetivo, diverso, portanto, do desvalor objetivo em que se consubstancia a ilicitude…»[10].
A conduta diz-se culposa quando se afasta de um modo não intencional do cuidado exigível perante as normas ou interesses jurídicos em causa – configura, então, negligência –, ou quando tenha provocado intencionalmente o resultado proibido – trata-se, então, de dolo.
Uma vez que a fiel depositária, no exercício do princípio do contraditório, deduziu oposição ao incidente – art. 293.º, n.º 2, e factos n.ºs 31 e 32 –, o passo seguinte seria o da produção de prova oportunamente requerida – art. 293.º, n.º 1 –; não obstante, não tendo sido junto qualquer requerimento probatório, elaborou-se decisão.
Esta, acolhendo a perspectiva da Agente de Execução, centra os comportamentos censuráveis em torno do período temporal que demorou a avaliação do bem imóvel; na apresentação de «dezenas de propostas … e pedidos para visita ao imóvel» que se goraram; «… proponentes indicando que não conseguiam estabelecer contacto com a fiel depositária, o que não possibilitava as visitas ao imóvel…»; «…vários …protestos invocados pelos interessados na visita ao imóvel»; «… DD, por diversas vezes a informar que não conseguia entrar em contacto com a fiel depositária, por forma a agendar uma data para que a entidade bancária pudesse fazer a avaliação,…», e «…. DD remeteu à Agente de execução o email datado de 10.10.2024 a dar conta das dificuldades no acesso ao imóvel, que não logrou visitar.».
Contudo, considerando que os factos foram impugnados pela contraparte e são factos constitutivos do pedido de remoção, careciam de demonstração probatória, recaindo o ónus de prova sobre o seu alegante ou aproveitante, segundo o art. 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Quanto ao período temporal que demorou a avaliação do bem imóvel, frisa-se que esse pedido de avaliação não foi efectuado pelo Recorrente e pela fiel depositária.
É um facto incontornável que essas diligências duraram sensivelmente um ano e que aqueles se remeteram ao silêncio ou responderam com dilação às comunicações da Agente de Execução, mais se apurando as ausências físicas da habitação e os constrangimentos associados à pandemia Covid-19.
Mas não se descortina objectivamente da leitura da factualidade qualquer acto passível de censura civil, levado a cabo pela fiel depositária, única interveniente que importa (factos n.ºs 6 e 7).
Quanto aos demais factos que lhe são concretamente imputados, não foi feita qualquer prova sobre os mesmos: as afirmações e declarações da Agente de Execução não fazem prova plena das atitudes alegadamente tidas pela fiel depositária; não se identificaram nem tomaram declarações aos eventuais interessados na aquisição da fracção e que se viram impedidos, por acto imputável à fiel depositária, de a visitar, e que, nessa sequência, protestaram junto da Agente de Execução, mormente não foram ouvidos os proponentes CC e DD, e, por último, o email junto aos autos não logrou confirmação.
Sendo um documento particular, a partir do momento em que é impugnado, não goza de força probatória plena (arts. 373.º, 374.º, e 376.º, todos do Código Civil), e não se pode confundir a prova com os meios de prova (art. 376.º do Código Civil).
Decorre do art. 363.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil, que são documentos particulares «todos os documentos que não são autênticos», ou, os «que provêm de simples particulares ou, se preferirmos, de pessoas que não exercem actividade pública ou, se a exercerem, não foi no uso dessa faculdade que elaboraram os documentos»[11].
Isto significa que o documento prova que o seu autor fez a declaração dele constante, mas no tocante ao conteúdo nele aposto, o documento não prova nem garante, nem podia garantir, que as declarações sejam verdadeiras, e, que por isso, sejam automaticamente dadas por provadas.
Por lapidar transcreve-se:
«Se os documentos - e falamos só dos particulares - provassem tudo quanto deles se fez constar, designadamente as declarações favoráveis aos declarantes seus autores, estava encontrada a forma de simples afirmações escritas valerem mais que uma escritura, tornarem certo o que em cada momento convinha ao declarante documentador. E se a parte contrária elaborasse documento com declarações contrárias? Como se decidiria?»[12].
Sendo assim, tais factos não poderiam dar-se, sem mais, por adquiridos nos autos.
Por conseguinte, seja porque os factos não traduzem comportamentos culposos da fiel depositária, seja pelo funcionamento das regras da repartição do ónus de prova[13], conclui-se assistir razão ao Recorrente, devendo revogar-se a decisão recorrida.
O pagamento das custas processuais compete à parte vencida a final (arts. 527.º e 607.º, n.º 6, este ex vi 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).
VI.
Decisão:
De harmonia, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida.
O pagamento das custas processuais é encargo da parte vencida, a final.
Registe e notifique.
16 de Setembro de 2025
[1] Juiz Desembargadora 1.ª Adjunta: Dra. Maria Catarina Gonçalves
Juiz Desembargador 2.º Adjunto: Dr. José Avelino Gonçalves
[2] Sendo actualmente Exequente, C..., S.A.
[3] Os Apensos A (Oposição à Execução), B (Reclamação de Créditos), C e D (ambos Habilitação de Adquirente ou Cessionário) estão em correição.
[4] O despacho em crise elencou os factos (n.ºs 1 a 21), por remissão para a informação da Agente de Execução, de 31-10-2024.
[5] Parte vencida é aquela a quem a decisão causa prejuízo (cui nocet).
«Diz-se vencida a parte que sofreu gravame com a decisão, a quem ela foi desfavorável. Este gravame ou desfavor afere-se por um critério prático, não por um critério puramente teórico.» – Manuel de Andrade in, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, p. 198.
[6] Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre in, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, Almedina, 2022, 3.ª Edição, pp. 587 a 589, anotação ao art. 760.º, nota 2.
[7] Epigrafado Remoção do depositário, estatui que:
«1 - A requerimento de qualquer interessado, ou por iniciativa do agente de execução, é removido o depositário que, não sendo o agente de execução, deixe de cumprir os deveres do seu cargo.
2 - O depositário é notificado para responder, observando-se o disposto nos artigos 292.º a 295.º.
3 - O depositário pode pedir escusa do cargo, ocorrendo motivo atendível.».
[8] Geraldes, Pimenta e Pires de Sousa in, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2024, 2.ª Edição, p. 150, anotação ao art. 761.º, nota 1.
[9] Lebre de Freitas et al., op. cit., pp. 590/591, anotação ao art. 761.º, nota 2.
[10] Mafalda Miranda Barbosa in, Direito da Responsabilidade: uma disciplina jurídica autónoma, Editora Principia, Março de 2021, p. 150.
[11] Gonçalves Sampaio in, A Prova Por Documentos Particulares, na Doutrina, na Lei e na Jurisprudência, 2004, 2.ª Edição actualizada e ampliada, p. 81.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.º 02A4324, de 21-01-2003, disponível em www.dgsi.pt.
[13] Por terem sido impugnados e sobre os mesmos não se ter produzido prova, o que está em sintonia com a prescrição legal que «a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita» (art. 414.º do Código de Processo Civil).